segunda-feira, maio 14, 2007

Urgência duvidosa

A questão do crioulo recebeu recentemente mais um dos seus cíclicos impulsos políticos. Ministros, Primeiro-Ministro e Presidente da República têm-se desdobrado em declarações, pontuadas por elementos de retórica nacionalista, clamando pela sua oficialização. A Constituição já estabelece no nº 2 do art. 9º que o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna, em paridade com a língua portuguesa. O País está à espera que o Governo enuncie e implemente as medidas necessárias. Tudo leve a crer que um dos principais objectivos a atingir com essas medidas seria a estandardização da escrita do crioulo. De facto quando se fala de urgência na oficialização crioulo está-se a pensar, essencialmente, em duas áreas que tal acto teria impacto: a comunicação escrita do/e com o Estado e a língua de ensino. E isso porque, diferentemente de outros países onde o respectivo crioulo foi oficializado, não há discriminação no uso da língua oral. Fala-se crioulo no Parlamento, quando convém, o PR, o PM e os Ministros falam crioulo com o País através dos órgãos de comunicação social, nenhum cidadão está impedido de fazer declarações nos Tribunais em crioulo e a Administração Pública responde a solicitações colocadas oralmente pelos utentes. Em Cabo Verde não há uma elite, como no Haiti, que só fala português. Ninguém acusa de elitismo os escritores, intelectuais e políticos que, no dia a dia, só falam português. Não se pode, pois, seriamente, erigir o crioulo como uma putativa língua de resistência em confronto com o português. Só se for para atiçar chamas nacionalistas em proveito próprio. O crioulo parece ter emergido do estado de isolamento, abandono e pobreza extrema vivido nas ilhas que não permitiu a subsistência de uma comunidade metropolitana homogénea capaz de impor a sua língua ao resto da população. Como aconteceu, por exemplo, no Brasil, mas também, na generalidade das colónias europeias nas Américas. Na Africa, as línguas europeias dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais e, mesmo após a independência, continuam a ganhar terreno, suportando-se na crescente urbanização e escolarização. Se há algo para reflectir é porquê os caboverdianos parecem não ir nessa corrente. Apesar dos altos níveis de educação e de urbanização o crioulo continua inabalável na sua condição de língua materna. Sem stress. Os políticos são os únicos ansiosos perante a imaginada perda de autenticidade que resultaria da aprendizagem da história e cultura caboverdiana em português. Mas para o cidadão comum não há crise. E nem há para os escritores, músicos e artistas plásticos que têm conseguido passar com sucesso para o mundo inteiro a alma e a arte caboverdiana, sem quaisquer constrangimentos. O que se verifica, porem, é falta de uma demanda significativa para expressão escrita em crioulo. Isso manifesta-se na parca produção e também no fraco interesse do público leitor pelas obras existentes. Reflecte-se, ainda, na inexistência de jornais em crioulo, como acontece em Aruba, Curação e outras ilhas crioulas. Tudo isso leva a crer que o esforço de oficialização poderá traduzir-se num grande desperdício. O Estado obrigado a ter todos os seus documentos em português e crioulo standard, com todo os custos que isso acarretará, correrá o risco de ver isso tudo subutilizado, ou por uma falta de alfabetização generalizada no crioulo ou por falta de interesse. O argumento de facilitação dos alunos nos primeiros anos só parece ter sentido porque o Estado falha em propiciar às crianças caboverdianas o acesso ao português desde da tenra idade. Sabe-se hoje dos estudos das ciências cognitivas que as crianças até cerca de onze anos de idade têm a possibilidade de aprender várias línguas em simultâneo e a um bom nível. A consagração constitucional da língua portuguesa como língua oficial obriga o Estado a agir no sentido, por exemplo, de redefinir todo o pré-escolar como o centro focal do esforço nacional em tornar verdadeiramente bilingue o caboverdiano. O caboverdiano não é bilingue por deficiência do seu crioulo mas sim por falhas no domínio do português. E é isso que urge remediar. Quanto à viabilidade literária do crioulo já dizia Baltasar Lopes que “para o crioulo ser língua literária é necessário que exista um background escrito. Era preciso que já existisse uma literatura, um passado literário escrito para nós podermos escolher um crioulo padrão” . E acrescenta, “não confundamos viabilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI… mas o português [escrito] só no século XIII”. Os países africanos, na generalidade, têm uma única língua oficial, a língua herdada do tempo colonial, que também é língua do ensino a todos os níveis. Em Cabo Verde, a abertura constitucional para a oficialização do crioulo existe mas as condições adequadas terão que ser criadas. Os governos devem ser pacientes e resistir à tentação de usar uma questão tão séria, e com implicações múltiplas e complexas, para o presente e futuro do País, como elemento de agenda político-partidária.

segunda-feira, maio 07, 2007

Duplicidades

O Primeiro Ministro de Cabo Verde no discurso de encerramento do Simpósio sobre o 1º Centenário da Geração do Movimento Claridoso, resolveu, a dado passo, ser claro no que pretendia transmitir: Apelou a que enterremos de vez as rivalidades improdutivas. Manifestou o desejo de um claro distanciamento, particularmente da parte dos jovens, em relação a determinados pseudo-debates datados e estéreis que em nada contribuem para o fortalecimento da ideia de Nação. E exortou a uma certa cidadania cultural reconhecível na capacidade de saber defender e promover a Cultura enquanto espaço privilegiado de consenso. Facilmente se reconhece aí os elementos recorrentes da ofensiva ideológica permanente que mantém o País sob tensão e procura dobrar a sociedade e controlar os indivíduos: O denegrir do pluralismo, a imposição de tabus e o elogio do consenso. São elementos visíveis, por exemplo, no ataque lançado pelo representante da Fundação Amílcar Cabral à tese de doutoramento do Gabriel Fernandes. Elementos de ataque sempre que algo contrarie os cânones da ideologia, outrora legitimadora do regime de partido único. Nessa perspectiva, o centenário de Baltasar Lopes da Silva constituía um problema. Não se podia deixar de referenciar a data mas também não interessava uma atenção excessiva capaz de abranger a totalidade e a complexidade da vida do Grande Homem. E, raciocinando de que não há melhor defesa do que o ataque, o Governo assumiu as comemorações e erigiu a capital como seu centro, relegando para o segundo plano S Nicolau e S. Vicente, onde subsiste com maior fulgor a memória das longas décadas de vivência de Baltasar nas ilhas. De centenário de Baltasar Lopes passou-se a centenário da geração dos claridosos. O foco das atenções foi desviado para o papel que outras personalidades, eventualmente, tiveram no eclodir da Claridade, enquanto movimento literário e cultural. Diluiu-se Baltasar. Curiosamente, uma figura que foi uma preocupação, se não obsessão de muitos, conferencistas, políticos e colunistas, foi o Amílcar Cabral. E não se percebe porquê. Ele não foi claridoso, não pertence à geração que pretensamente está-se a celebrar o centenário, e pelo que diz Dulce Almada, citada por Gabriel Fernandes, Amílcar sempre se apresentava como guineense. Ou percebe-se muito bem. Baltasar Lopes é o caboverdiano que muitos sentem que rivaliza com a figura mítica do Amílcar Cabral, criada pelo PAIGC. Por isso, a nota de quinhentos escudos com a imagem de Baltasar Lopes sempre incomodou. Imagine-se o regozijo com que, em certos quadrantes, foi recebida a iniciativa desconcertante do Banco de Cabo Verde de, no ano do centenário, eliminar a imagem do Baltasar das notas. A duplicidade da actuação do Governo não augura nada de bom para propostas com as do PM de criar bolsas de criatividade. O desejo de controlar a produção cultural é evidente. Como é também o de manter tabu sobre certas matérias. Por outro lado, a disposição em condicionar os criadores com favores ou desfavores, conforme os casos, é por demais manifesta. A protecção da propriedade intelectual, que deveria ser a primeira opção de suporte aos criadores, porque lhes garante independência e sustentabilidade na criação, não parece estar nas preocupações do Governo. A pirataria, particularmente do material audio-visual, impera sem que o Estado afirme a sua autoridade. Ficam prejudicados os artistas nacionais e deixa-se estar a ideia da edificação de uma indústria de cultura no reino da propaganda, sem tradução efectiva para o concreto. O Governo não tem o direito de impor uma agenda cultural ao País. Ao Estado está simplesmente reservado o papel de promover a actividade cultural nas suas múltiplas expressões, deixando de lado tentações de intérprete da história e de juiz de correntes artísticas e culturais. Impõe-se que o Governo se resuma nestas matérias ao papel que lhe é exigível no ambiente de pluralismo e de liberdade de expressão e de informação, que deve caracterizar a nossa democracia.