sexta-feira, novembro 28, 2008

Ganhadores?! A dedo

A odisseia do Governo pelo sector de energia e água teve um novo desenvolvimento com a publicação do decreto lei n. 36/2008 de 10 de Novembro. A partir de agora o Governo pode adjudicar a concessão de produção de água e energia por ajuste directo a entidades privadas, no quadro de parcerias público-privadas.

No preâmbulo do decreto-lei referido, o Governo justifica essa decisão: a urgência em abastecer as populações com água e energia não se compadece com a realização de concurso público para a escolha de parceiro estratégico. E, por ser urgente, a escolha é a a dedo, a ser feita pelo ministro de economia (artigo 3º nº 3). E para tornar a parceria apetecível, garante-se 30 anos de exclusividade (artigo 10º nº 4).

É este o desfecho encontrado para a saga da Electra: A constituição de monopólios privados na produção de água e energia sem qualquer responsabilidade no transporte e  distribuição às populações. Um desfecho previsível, quando durante quase cinco anos se faz uma gestão desastrosa da relação com um parceiro estratégico de envergadura mundial como a EDP. Também previsível quando, ao convidar o parceiro a sair, ele fica liberto da promessa de conseguir financiamento no valor de 250 milhões de dólares para, em quinze anos, investir em energia e água. Ainda previsível quando se deixa a Electra atolada em dívida, porque fica sozinha com a dívida dos 70 milhões de dólares dos investimentos iniciais nos geradores e dessalinizadores da Praia, S.Vicente e Sal,  e as tarifas são geridas politicamente, absorvendo a empresa o diferencial entre os seus custos e o preço de venda ao público.

O conflito ideológico que rodeou as privatizações em Cabo Verde sempre obscureceu as razões de fundo porque se devia abrir vastos sectores da economia à iniciativa e gestão privadas. Privatiza-se, para se libertar o Estado da necessidade, via orçamento, de cobrir as ineficiências e os custos excessivos das empresas públicas. Ao fazer isso controla-se o défice, melhora-se a qualidade das despesas e contem-se a inflação. Privatiza-se, para ganhar, em sectores chaves da economia, uma outra capacidade de financiamento quanto ao volume de capitais a mobilizar quanto á definição do timing, do momento certo de investimento. Privatiza-se, ainda, para que haja dinâmica e inovação na gestão e para uma menor submissão das decisões económicas a constrangimentos políticos partidários do Estado.

São todas essas razões que foram atiradas ao ar quando o Governo deixou argumentos de campanha eleitoral persistir no seu discurso e permear as suas decisões. O que o Sr. Primeiro-Ministro há dias chamou de cancros, a Electra e a TACV, são exemplos paradigmáticos do que foi permitido acontecer. A Electra foi o palco da luta pelo resgate da terra supostamente vendida. A TACV sofreu com incursões de gestão que procuraram provar que privatizar era desnecessário. O Estado tem pago em milhões de contos os resultados dessas folias. Os indivíduos e a sociedade perderam em confiança, oportunidades e qualidade de vida.   

Privatizações implicam o reforço do papel regulador e fiscalizador do Estado. E o  reforço da função central do Estado na defesa do interesse público, em termos, designadamente, de previsibilidade, qualidade e preço de produtos. Garantir um ambiente de concorrência é, portanto, fundamental. E tal ambiente cria-se com a regulação e a fiscalização necessárias ao desenvolvimento de mercados, à inovação de processos e produtos, à melhoria da qualidade e à prática de preços justos. A existência de monopólios públicos ou, pior ainda, de monopólios privados é o que se deve evitar.

Monopólios naturais existem, a rede eléctrica é um deles, e recaem normalmente sobre bens de domínio público. São normalmente objectos ou de gestão directa do Estado ou de concessão. No caso de concessão, é por tempo limitado e envolvem investimentos programados, condições de prestação de serviço público estabelecidas, tarifas determinadas em concertação com autoridades reguladoras e devolução dos bens ao Estado no fim da concessão.

Na privatização da Electra foi liberalizada a produção de energia e água e foi assinado, em 2002, um contrato de concessão da rede pública. Com a perda do parceiro estratégico e a, de facto, nacionalização da empresa, o Governo rapidamente mostrou-se incapaz de equacionar e resolver os problemas de energia. Nos discursos e entrevistas de membros do Governo sobre o sector era evidente o desnorte. Todos os dias surgiam novas soluções: produtores independentes, incineradora da Praia a produzir energia, energias renováveis, aproveitamento de gradiente térmico oceânico, energia das ondas do mar. Chegou-se mesmo a falar na energia nuclear.

A realidade é o que já se sabia à partida. Dificilmente o Estado consegue financiamentos vultuosos, e no tempo certo, para fazer os investimentos estratégicos que se impõem. Na falta de capacidade de investimento e pressionado por razões políticas, o Governo opta por entregar ilhas ou municípios inteiros a privados. Como parece acontecer com a Boavista.  E, segundo o referido decreto-lei, como já está decidido para os municípios de Santa Catarina, São Lourenço dos Órgãos, São Miguel e São Salvador do Mundo.

Pergunta-se, quais são os ganhos para o País, para os consumidores, e para os operadores e investidores. No contexto de baixa de expectativas ou mesmo de resignação que vinha se verificando com a progressiva implosão da Electra qualquer coisa parece ser um ganho. A realidade é, porém, muito diferente. E os custos serão enormes, para todos.    

Á vista desarmada pode-se notar que, primeiro, ao entregar mercados potencialmente ricos e em expansão como o da Boavista e do Sal a produtores privados e deixar a Electra a operar nas outras ilhas só se precipita ainda mais o seu colapso. O bife de lombo é entregue a um enquanto outros ficam com o osso para roer. Segundo, com os produtores privados não se vê qualquer alteração vantajosa no preço da água e energia. Cobram os preços da Electra. Preços que já incluem as ineficiências e a estrutura pesada de uma empresa que tem presença em todas as ilhas e em quase todos os pontos do território nacional. Ou seja, os consumidores nas ilhas não ganham directamente com tarifas mais baixas, nem se melhora, com menores custos de factores como energia e água, a competividade da ilha, na atracção de investidores. Mas os lucros dos produtores, esses, devem ser fabulosos. Não têm os custos da Electra.

Por último, ao decidir pela concessão da produção com exclusividade de 30 anos, segundo o decreto-lei 36/2008, o Governo deixou para o Estado e para os municípios a responsabilidade de construção, manutenção e expansão das redes públicas. Ficou com a parte mais custosa. Normalmente garante-se, por algum tempo, exclusivo de fornecimento ou especial facilidade de acesso em troca de gestão e desenvolvimento de um bem de domínio público. Dar exclusividade nestas circunstâncias, sem correspondente responsabilidade em assegurar todos os meios de prestação do serviço público, configura o estabelecimento do pior dos monopólios privados. Monopólios que, como todos os outros, vão estar em posição de extrair rendas, com prejuízos para os consumidores e para economia em geral.

O Governo parece estar a engajar-se num processo de “pick the winners” de “escolha dos ganhadores” que noutras paragens conduziram ao nepotismo, ao clientelismo e à corrupção. Foi descuidado com a gestão dos terrenos e, outra vez, para obter ganhos políticos instantâneos e contornar erros graves de governação, trilha caminhos duvidosos. Até se envereda por oferecer subsídios, sem concurso público, a empresas de transporte marítimo que só prevêem operar em Janeiro de 2010 (Resolução nº38/2008 de 17 de Novembro).

A  percepção da fragilidade da estrutura produtiva e da dependência excessiva de fluxos exteriores, mais evidentes hoje no contexto de crise generalizada, devia tornar o Governo e outros sujeitos políticos menos ideológicos e mais pragmáticos. Devia constituir um lembrete permanente aos governantes, mas também á toda a classe política, que não se pode dirigir o País com preocupações eleitorais permanentes. E devia afastar qualquer tentação de, à partida e sem transparência, escolher ganhadores no processo de crescimento da economia nacional. 

      Publicado no jornal ASemana de 28 de Novembro de 2008

segunda-feira, novembro 17, 2008

Nós e a Crise

Na sexta feira passada o Banco Central de Cabo Verde actuou face à crise que avassala o mundo. Alterou em 50 pontos a taxa directora lançando a taxa de redesconto para 7.5% e a taxa de facilidade de cedência para 8.25%. O objectivo é controlar os fluxos da balança de pagamentos e a inflação. Os aumentos das taxas praticadas pelo BCV têm o condão de, pela via do encarecimento do crédito, travar o consumo e, por aí, conter importações dissipadoras das reservas externas. Também no sentido inverso, taxas mais favoráveis incentivam emigrantes a fazer depósitos em Cabo Verde. Com isso pretende-se conservar algum conforto ao nível de reservas e garantir estabilidade do peg da moeda caboverdiana ao euro.  

A actuação do BCV verifica-se num momento em que bancos centrais em todos os continentes movem-se para assegurar liquidez ao sistema financeiro internacional e restaurar confiança entre os seus operadores. Procura-se evitar que o aperto ao crédito lance a economia real na maior das crises desde da Grande Depressão de 1929. Até agora tem sido bastante limitado o sucesso conseguido pela operação conjunta de bancos centrais e governos. Medidas como seguro dos depósitos, injecção directa de capitais via compra de acções nos grandes bancos e garantia do Estado a novos empréstimos não conseguiram evitar que o espectro de recessão económica paire e já assombre o mundo inteiro.

Países que dias, semanas atrás achavam-se a salvo da crise por não se terem envolvidos com os chamados produtos financeiros tóxicos, subprime e outros derivativos, vêem-se agora no olho do furacão. De facto já não é só a Islândia, mas também outros países como a Ukrânia e a Hungria, a  solicitar pacotes salvadores do FMI. Amanhã poderá ser a Rússia, a Africa do Sul ou o Brasil, países que pensaram estar protegidos atrás das enormes reservas externas acumuladas na base de vendas em alta de matérias-primas, produtos agro-pecuários, petróleo e metais preciosos.

Ninguém consegue prever a dimensão da recessão global que se aproxima. Nem como afectará a economia de países e regiões. Tudo leva a crer, porém, que o mundo saído da crise não será o mesmo. O que permitiu o crescimento de um sector financeiro de bancos de investimento, fundos de risco (hedge funds), e fundos privados de investimento (private equity), armado de produtos, cada um mais esotérico do que o outro, paralelo ao sector bancário e com um mínimo de regulação. 

Poderá vir a ser um mundo em que a actual distribuição do poder económico terá representação adequada nos centros de decisões das organizações internacionais de supervisão da economia mundial. Particularmente as de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, criados em 1946, que ainda espelham a relação de forças saída da II Guerra Mundial.

Países como a China, o Brasil e a India não podem ficar de fora. Devem assumir responsabilidade comensurada com o seu peso nos fluxos globais. De facto, na origem dos problemas financeiros de hoje também se encontra o ambiente de crédito barato nos países desenvolvidos. Países com largas reservas externas como a China, para evitar a valorização da sua moeda, reinvestiram muito das suas reservas na América, fazendo baixar as taxas de juro e contribuindo para o endividamento das famílias. No processo geravam forte procura para os seus produtos e garantiam crescimento das exportações, o sector motor da economia.

A crise veio, porém, demonstrar que não é possível manter por muito tempo o mundo dividido em países com grandes excedentes e países com enormes défices na balança comercial, sem que algo acabe por ceder. A extrema interligação de todas as economias na fase actual da globalização não permite que ninguém fique incólume quando isso acontece. É o que se vê hoje.   

Economias pequenas como a caboverdiana são as mais vulneráveis. Não têm dimensão para condicionar em favor próprio as relações económicas internacionais. O mercado interno é exíguo e não pode compensar, em tempos de recessão global, pela queda na procura de bens e serviços nos mercados externos. Em existindo recursos naturais, a recessão também faz cair os preços das matérias-primas, contribuindo para perda de receitas externas.

No caso concreto de Cabo Verde, a situação é ainda mais grave. Não tem recursos naturais e tem uma base exportadora exígua que, segundo o relatório de Julho do FMI,  restringe-se cada vez mais ao turismo. Quer dizer que a sua sustentabilidade económica e financeira actual depende dos fluxos financeiros que poderá mobilizar. No ambiente de crise essa dependência excessiva do exterior e de factores que não tem controle directo, pode tornar-se crítica.

Porque as remessas de emigrantes são afectadas pelo nível de emprego e pelas expectativas de crescimento nos países de acolhimento. A diminuição do investimento directo estrangeiro, em consequência de fortes constrangimentos ao crédito ao nível internacional, já é sentida na quase paralisia do sector imobiliário e turístico, em várias ilhas. A ajuda externa não deixará de se ressentir, no futuro próximo, com as dificuldades orçamentais dos países doadores, derivadas das acções de restauro de confiança no sistema financeiro. E a capacidade do Estado em contrair empréstimos para investir em infraestruturas e no sector energético sofrerá certamente com o encarecimento inevitável do crédito nos mercados de capitais.

No mundo inteiro todos estão a preparar-se para maus momentos a curto e a médio prazo. A preocupação em muitas paragens é de aproveitar a crise para um renovado olhar sobre o país, a sua sociedade e a sua economia. Procura-se vislumbrar o que de essencial se precisa fazer para elevar a produtividade nacional, tornar as empresas nacionais competitivas e o país atractivo para capitais estrangeiros, visitantes e turistas.

Cabo Verde não é excepção. Não pode ver-se como imune ao que se passa lá fora. A fotografia macroeconómica actual até pode mostrar-se tranquilizadora para alguns. Mas, em ambiente de crise, fragilidades não aparentes podem emergir e mudar tudo. É o que aconteceu na Islândia e noutros países. Na Hungria, no  Brazil e na  Austrália, por exemplo, empréstimos individuais e empresariais, feitos em moeda estrangeira e a taxas mais baixas do que as praticadas ao nível nacional, que até recentemente sustentaram investimentos diversos e expansões rápidas na imobiliária, agora, com a valorização do dólar e do yen japonês, contribuem para a queda do valor das moedas desses países e a fuga de capitais.

Recentemente, de diferentes quadrantes políticos, institucionais e empresariais vieram sugestões no sentido de total liberalização de capitais em Cabo Verde. Isso não obstante a experiência negativa da crise financeira de 1997 que da Tailândia, Indonésia e Coreia do Sul passou para o  Brazil, a Rússia e a Argentina. Esses países, muitos deles com peg fixo no dólar, sofreram os efeitos do chamado hot money, os capitais de curto prazo que podem entrar e sair rapidamente e que, em certas circunstâncias, podem ser altamente destabilizadores, mesmo quando, aparentemente o quadro macroeconómico não prenuncie problema nos os fundamentals da economia. Espera-se que a falada facilitação de acesso a crédito exterior directamente por privados nacionais à cata de taxas de juro mais baixas, a ter-se concretizada, não se revele, hoje, como mais um ingrediente na fragilização da balança de pagamentos do País.

A pequenez da economia nacional e a fraca densidade empresarial limitam, por outro lado, os instrumentos que o Estado poderá socorrer-se para estimular a economia e fazer face à crise. Isso porque qualquer aumento da procura tem efeito directo nas importações, com as consequentes tensões nas reservas externas. Diferentemente do que se passa noutros países, onde estímulos fiscais têm o efeito de arrastamento na economia nacional porque uma parte considerável de bens e serviços são produzidos localmente. Isso não significa naturalmente que o Estado não deva procurar responder às dificuldades das populações, particularmente das mais vulneráveis e que mais sofrem com os efeitos da crise, designadamente com os efeitos de diminuição de remessas de familiares e da alta de preços devido à  inflação.

Todos os países procuram responder à crise reajustando as prioridades nacionais e mobilizando a vontade nacional. Baixa-se mesmo a tensão política. Dada a especial vulnerabilidade de Cabo Verde esse exercício é urgente.

 À partida, porém, parece evidente que o Estado deverá orientar-se resolutamente para estimular actividades económicas em áreas de serviços particularmente de exportação que criam emprego e potenciam o fluxo turístico para Cabo Verde. No sector da educação a atenção nacional deverá focalizar-se intensamente na qualidade. A estruturação do mercado de trabalho poderá potenciar o esforço nacional na formação profissional, na criação do emprego e no aumento da produtividade. A eliminação dos múltiplos entraves à unificação do mercado nacional certamente introduziria uma nova dinâmica na economia nacional. A organização de uma oferta de serviços com base na cultura caboverdiana claramente é uma opção a fazer.

Tempo de crise. Oportunidade para deixar para trás ilusões de dependência e fazer o que dignifica os indivíduos e engrandece a Nação.  

         Publicado no Jornal ASemana de   Novembro de 2008

sexta-feira, novembro 14, 2008

Fazer mais

Tempo de crise pode ser o momento de mudar a forma de fazer as coisas. Para Emanuel Rahm, o braço direito de Obama,  a regra número um é: nunca desperdiçar uma crise. É oportunidade para criar vontade e ultrapassar definitivamente inércias, vícios e métodos gastos. Oportunidade para um olhar mais atento sobre a qualidade dos resultados obtidos e para a necessidade de um retorno maior e duradoiro de tudo quanto a sociedade no seu todo investe, particularmente,  através da acção do Estado.

Deixar projectos de desenvolvimento como os de S.Vicente passar por uma verdadeira odisseia é o que não pode acontecer. Nem tão pouco deixar a cúpula do sistema judicial em Cabo Verde chegar à situação anómala em que se encontra actualmente com todos os mandatos dos juízes terminados há mais de seis meses.   

De facto, vistas bem as coisas, o que está descrito nas reportagens do jornal asemana de 17 e de 31 de Outubro sobre os projectos em S.Vicente parece puro surrealismo. Não é compreensível nem aceitável que projectos potenciadores do crescimento e emprego fiquem anos dependentes da guerrilha institucional entre Governo e câmaras municipais. Em vários casos, só se avança com os projectos quando o investidor ou promotor concorda em pagar mais uma quantia ao Estado, a ajuntar-se ao que já tinha pago à Câmara.

Parece que não interessa a perda de um, dois, três ou mais anos nesse braço de ferro. Não interessa se, entretanto, janelas de oportunidades retraem-se e se a bolha na imobiliária, cuja exuberância também fazia-se sentir em Cabo Verde, arrebenta com efeitos globais desastrosos. Nem causa muita preocupação que provavelmente ter-se-à de aguardar, por mais uns anos, o ressurgimento de um forte interesse na imobiliária turística e de segunda residência.

Nas referidas reportagens da jornalista Constança de Pina, fica-se a saber que desde do Verão 2007 o projecto do Viana Club Resort estava bloqueado enquanto decorriam as negociações com o CI. Também o administrador do projecto de Salamansa diz que há o mais de dois anos que estão em diálogo com a CI para tentar desbloquear o processo. O Cesária Resort, segundo a reportagem, em três anos já gastou milhões em consultores e já enfrentou situações complicadas. Não há previsão ainda para o início das obras. Só o projecto do Fortim del Rei já deu o passo de assinar com uma empresa construtora.

A impressão que se fica é que os múltiplos e complexos efeitos da execução desses projectos na economia, na sociedade e nas pessoas são postos em segundo plano. E que a atenção das autoridades é arrebatada pela questão dos terrenos. Razão para isso não é o desejo de transmitir imagem de segurança jurídica na titularidade dos terrenos nem o de evitar especulação no preço dos mesmos. É para se saber quem se impõe e quem retém os proventos da venda de terrenos. Se as receitas ficam para o Estado, para as câmaras ou se vão para os particulares.     

De acordo com o decreto legislativo 3/93 as ZDTIs são essencialmente zonas identificadas pelas suas condições geográficas e pelo valor paisagístico as quais o Estado dota de planos de ordenamento turístico com vista a gestão adequada do uso e ocupação do solo. A lei prevê a possibilidade de expropriação de terrenos nas ZDTIs mediante declaração de utilidade pública, mesmo os pertencentes aos municípios. O que na lei é acessório e instrumental, a titularidade dos terrenos, na prática, passa a ser o essencial, em detrimento do que, em primeiro lugar, obriga o Estado: dotar essas zonas de um Plano de Ordenamento Turístico.

Isso ficou evidente na forma como o Governo em Agosto último procura resolver o problema do projecto da Salamansa Sands, há mais de dois anos em negociações. Segundo o jornal asemana, o Projecto de Salamansa Sands tinha sido aprovado pela CI e pela CMSV e projectava criar 1286 postos de trabalho. Em nota de 30 de Julho de 2008 a CI fazia saber aos Deputados que já tinha acordado com os promotores que eles anulavam a escritura pública que detinham dos mais de 500 hectares em Salamansa e a que a CI afectaria de novo o terreno mediante um novo preço.

Tudo leva a crer que o acordo não foi avante. O BO de 25 de Agosto trouxe a decisão do Governo de criar uma ZDTI de 506 hectares na Salamansa. Com isso ficou evidente a instrumentalização do processo de criação das ZDTIs. Salamansa já tinha plano de ordenamento turístico aprovado pelas autoridades competentes. Dotar a zona de um plano turístico não foi, por conseguinte, a razão de fundo da decisão tomada. Só podia ser a possibilidade de expropriar os terrenos num quadro de conflito com a Câmara Municipal.

Conflitos dessa natureza têm sede própria para serem dirimidos: os tribunais. Mas o Governo opta por resolve-los politicamente. Pela força, sem considerar como, com isso, torna precário o direito de propriedade. E as opções não terminam aí. Há ainda a via legislativa. Novas leis, porém, implicariam avaliação de interesses em causa, negociações, give and take, e respeito pelas regras, processos e procedimentos democráticos. Ou seja, tudo o que é necessário para a prossecução do interesse público na democracia. Mas que é anátema num ambiente político em que se prefere confrontos a compromissos, ao mesmo tempo que se apregoa amor louco pelo consenso. 

Certamente que não se realiza o interesse público quando se deixa estender indefinidamente uma situação que, independentemente da origem, resulta em que particulares, emigrantes, operadores económicos e investidores não conseguem fazer registos de terrenos em vários pontos do território nacional. Se há omissões na lei que sejam preenchidas, se surgem disputas que sejam resolvidas e ultrapassadas, se falta clarificação que decisões sejam tomadas em tempo útil. Evitar a asfixia da construção civil, com o seu potencial de emprego e efeito de arrastamento sobre o resto da economia devia sobrepor-se a outras considerações. Porque sem registo não há hipoteca, sem hipoteca não há credito, sem crédito as obras param ou não arrancam e sem obras o desemprego aumenta.

Não se pode prejudicar empreendimentos, vultuosos e sensíveis quanto ao momento de implantação, porque se falha no essencial que define a governação: a definição de objectivos e metas nacionais, a construção da vontade colectiva para os atingir e a persistência, não obstante os percalços, em os realizar.

E, no excuse, como diria Obama. A responsabilidade da governação pertence ao Governo eleito. Assim como não partilha com a população a responsabilidade primeira do Estado de assegurar a segurança, a tranquilidade e a ordem pública também não compartilha com as Câmaras e nem com a Oposição a responsabilidade central de implementar o programa político que fez sufragar nas urnas. Tem é que saber lidar com o sistema, com todas as suas salvaguardas, seja no domínio dos direitos fundamentais, dos direitos das minorias, dos direitos específicos das populações nos municípios e do que mais a Constituição e as Leis impõem.  

Este é o mar que se navega na democracia. E não é aceitável a desresponsabilização do capitão pelo desvio do rumo do navio porque ondas se fazem sentir com mais força e determinação.

Da mesma forma que não se aceita que o Governo venha desresponsabilizar-se culpando a Câmara pelo não andamento dos projectos em S.Vicente também não é de aceitar desculpas pelo adiamento de pacotes legislativos concernentes à Justiça. As condições para o impasse que se vive hoje foram postas em marcha há mais de cinco anos atrás.

A revisão constitucional de 1999 criou o Tribunal Constitucional (TC). Nos anos seguintes, uma lei orgânica desse tribunal e outra lei definindo o molde de acesso e a constituição do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deviam ser produzidas. O MpD apresentou projectos de lei nesse sentido e o PAICV recusou-se a viabilizá-las. No vazio legal que ficou, em 2003, o Conselho Superior de Magistratura nomeou três juízes  o Presidente da República um juiz, em moldes já ultrapassados pela revisão de 1999 e, por isso, constantes de disposições transitórias. A Assembleia Nacional recusou-se a eleger um juiz nesses moldes. O MpD argumentou que interesses partidários do PAICV impediam a criação do TC.

Em 2005, finalmente o PAICV e o MpD aprovaram por unanimidade a lei de instalação do TC, mas não se pode ir adiante porque o Governo recusou-se a prever verbas para esse Tribunal nos Orçamentos de 2006 e 2007. Provavelmente queria, por razões que nunca explicitou, que o mandato do actual STJ enquanto Tribunal Constitucional completasse cinco anos. Só que tardiamente apresentou a proposta de lei que define a nova forma de acesso ao STJ. Um mês depois do fim do mandato dos juízes. E é essa proposta que foi retirada porque simplesmente o partido no governo não aceita que deve negociar para chegar à maioria de dois terços dos deputados, imposta pela constituição para a aprovação de actos estruturantes da República.

A realização de políticas públicas falha quando se tem em sempre em mira ganhos políticos partidários instantâneos. Não é possível construir a vontade colectiva para a realização de políticas públicas pela via de encurralar o adversário, atirar sectores de interesses contra ele e desrespeitar o papel que o sistema lhe confere como garantia de equilíbrio e de co-participante, sob pena de bloqueio, em decisões chaves e estruturantes.

Em tempo de crise, tudo se acelera porque intervêm processos de criação do novo. Pode ser a oportunidade para se rever os métodos de acção e compreender, definitivamente, que na democracia a escolha de meios justos, legais e constitucionais é essencial para a consecução dos fins.

     Publicado no Jornal ASemana de 14 de Novembro de 2008