sexta-feira, novembro 06, 2009

Ser ou não ser ilha

Ir para uma ilha ou morar numa ilha significa entregar-se a uma vivência com limitações mas também com gratificações. A ilha, separada do continente, não poucas vezes, é remota, isolada e de difícil acesso. Mas a presença constante do mar ameniza o clima e dá tranquilidade face a ameaças exteriores. A pequenez territorial e o isolamento vaticinam um ecossistema frágil e uma economia pequena e dependente. De tempos em tempos, a ilha vê-se arrebatada por desenvolvimentos políticos, económicos ou militares, verificados algures, e tem surtos de crescimento, para logo depois voltar ao ritmo habitual. Geralmente apresenta processos evolutivos, tanto de plantas e animais como ainda de grupos humanos, diversos dos do continente, fenómeno que Charles Darwin pôde comprovar nas suas viagens por ilhas e arquipélagos. Por tudo isso, e mais, a ilha entra no imaginário dos continentais como paradisíaca, oásis de tranquilidade, exótica e livre dos males que assolam os continentes

Ser ilha pode trazer algumas vantagens se a condição insular for traduzida em produtos que vão de encontro aos desejos de paz, sossego e entretenimento dos que a procuram. À partida, porém, é fonte de extraordinárias desvantagens devido à pequenez do território e à população geralmente diminuta. Quando, então, o País é arquipélago, as desvantagens crescem exponencialmente devido á necessidade imperiosa de se investir em cada ilha, repetindo infraestruturas já existentes noutras, como forma de viabilizar a sua ligação com um mundo mais amplo. 

As desvantagens são múltiplas e permanentes. As vantagens, pelo contrário, têm que ser identificadas a cada passo e com o olho atento nas tendências evolutivas do mundo global. Janelas de oportunidades devem ser exploradas no momento em que se abrem e agressivamente mantidas as qualidades da ilha que melhor a posicionam para as pôr em bom uso. Uma atitude positiva face ao mundo deve caracterizar o ilhéu, mesmo quando as desvantagens de ser ilha perdida no meio do mar ameaçam esmagá-lo. Não pode sucumbir ao fatalismo, à vitimização e à tentação de se erguer na dependência dos outros. Isso só leva ao assistencialismo não dignificante, ao crescimento das desigualdades, à medida que alguns apropriam-se desproporcionalmente dos fundos disponibilizados no quadro das ajudas, e à fraca atenção dada ao crescimento económico criador do emprego.       

A atitude certa deve ser diminuir o impacto das desvantagens. O mundo moderno dos transportes rápidos, das telecomunicações seguras e céleres e da internet como suporte universal de transferência de conteúdos fornece alguns dos meios para isso. Mas é preciso visão estratégica e políticas públicas adequadas para fazer com que actos individuais de expressão e afirmação, conjugados com o esforço de venda de bens e serviços pelas empresas e com o elevado espírito de serviço público das instituições do Estado , resultem numa economia dinâmica, competitiva e articulada com o exterior.

Potenciar as vantagens implica manter os ingredientes essenciais que levam as pessoas a optar por ilhas para férias, para estadias prolongadas ou para residência permanente. Segurança, saúde pública e ambiente sociocultural estimulante, mas sem choque cultural, são dos primeiros ingredientes a ter em consideração. As dificuldades do turismo em Cabo Verde, manifestas na fraca taxa de retorno dos turistas, estão intimamente ligadas às insuficiências que se notam, precisamente, nesses sectores. A insensibilidade das autoridades, face ao que exigia acção decisiva para ultrapassar as dificuldades, já custou muito ao País em oportunidades perdidas.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de perder as suas poucas vantagens, por incúria ou por falta de compreensão da natureza das ameaças que o país pode vir a confrontar-se. De entre as potenciais ameaças sobressaem a ameaça demográfica e ameaça das epidemias por visarem a própria essência da nação e a sua existência futura.

Ter uma pequena população de 500 mil almas,  dispersa por nove ilhas, levanta sempre o espectro de uma ameaça demográfica. Particularmente, quando se tem um acordo de livre circulação com uma região com 200 milhões de habitantes cujo rendimento per capita é cinco ou mais vezes menor do que Cabo Verde. A ameaça torna-se real na ausência de uma política de imigração inteligente, criando  situações como as descritas no Plano de Segurança Interna do Governo (pgs. 50 e 51): (…) “Em 2006, estavam em Cabo Verde 15000 a 20000 imigrantes dos quais só 1800 eram residentes legais”.(…) “A esmagadora maioria destes imigrantes em Cabo Verde são homens entre os 17 e os 40 anos de idade, sem qualificação profissional e professam a religião islâmica”. (…)“Notícias da imprensa escrita, em 2008, davam conta da existência de cerca de 11 mesquitas em todo o Cabo Verde e da conversão, em média, de um caboverdiano/dia à religião muçulmana, especialmente mulheres, que a troco de dinheiro casavam com imigrantes, permitindolhes, pela via da naturalização, adquirir a nacionalidade caboverdiana”. (…) “Por dia, do total de cidadãos de Estados CEDEAO que entram legalmente em Cabo Verde por via aérea, quinze acabam por permanecer no território em situação irregular (dados respeitantes apenas ao aeroporto da Praia)”.”(…) “Na ilha da Boavista a presença de imigrantes, em 2006, tinha chegado a um número aproximadamente igual à população de Sal-Rei de 2500 habitantes”.

A epidemia do dengue que assola vários pontos do território nacional vem lembrar a fragilidade do País perante as doenças endémicas nos dois lados do Oceano Atlântico. Esse mais recente assalto do exterior a Cabo Verde não veio sem aviso. É um assalto de há algum tempo previsível, considerando que o mosquito aedis aegpti vem se proliferando pelas ilhas desde de Agosto de 2008, data em que a sua presença foi oficialmente reconhecida.

A falta de comprometimento das autoridades na preservação das vantagens das ilhas voltou a manifestar-se perante mais esta ameaça. Identificado o mosquito do dengue não se desencadeou um esforço nacional, dirigido e efectivo, para o eliminar. Nem se fez o suficiente para controlar a entrada de pessoas contaminadas e evitar que fossem picadas por mosquitos, contribuindo para a propagação da doença. As autoridades omitiram-se mesmo quando a população pressentiu que confrontava algo novo, identificando a doença como sacudim djam bem.. O Governo só viria a despertar quando o número de casos chegou aos milhares, ou seja, quando, provavelmente, a maioria da população da Praia já tinha tido contacto com o vírus. Isso, porque em oito a dez pessoas infectadas, em média, só uma desenvolve a doença.

Os problemas que vêm na esteira dessas ameaças têm sido atirados para debaixo do tapete, mesmo quando se experimenta na pele os seus efeitos em termos de quebra de crescimento económico, de desemprego elevado e de perdas de receitas. O Governo não assume as suas responsabilidades e deixa nas entrelinhas que tudo é efeito da crise. O facto, porém, é que, antes da crise, já se verificava forte quebra no fluxo turístico, em consequência de investimentos não realizados no saneamento, saúde pública e noutras infraestruturas e de medidas efectivas não tomadas no domínio da segurança e do controlo da imigração.

As autoridades têm que se mostrar proactivas na defesa do que nos distingue e nos dá vantagens como ilhas ao mesmo tempo que, seguramente, se deve diminuir as distâncias e os custos de comunicação com o mundo. As políticas públicas devem traduzir uma visão estratégica própria e não simplesmente ir ao reboque de políticas que se suportam em fundos vindos do estrangeiro, HIV/SIDA, cancro de mama e gripe das aves, colocando em segundo plano outras patologias que, provavelmente, andam a exigir mais atenção.

Em relação à imigração é evidente que qualquer política deve ter em devida consideração não só o número actual da população  e as taxas esperadas de seu crescimento, no curto e médio prazo, como também incluir tratamento diferenciado a ser dispensado às diferentes ilhas. A riqueza cultural do país depende da sua capacidade em manter a sua diversidade e em renovar as condições para que cada ilha continue a contribuir para a caboverdianidade. Isso tem que ser protegido.

Quanto às epidemias, a erradicação do paludismo e do dengue terá que ser considerado um desígnio nacional e estratégico. Tudo leva crer que é possível realiza-lo.

Nos anos 1960 o paludismo desapareceu de Cabo Verde. Na época usou-se muito o insecticida DDT, um produto que até agora é considerado o melhor para combater a malária. A Organização Mundial de Saúde, numa decisão tomada a 15 de Setembro de 2006, recuperou o DDT, após décadas de proibição, autorizando o seu uso pulverizado nas paredes das casas como repelente dos mosquitos do paludismo. Segundo Daniel Roberts, professor de medicina tropical, num artigo publicado no jornal New York Times de 20 de Agosto de 2007, experiências feitas indicam que, diferentemente de outras insecticidas que só funcionam no contacto com os insectos, DDT fornece repelência espacial, impedindo os mosquitos de entrar nas residências. No mesmo artigo ele sublinhou que o produto é particularmente efectivo para o mosquito da dengue e da febre amarela.

Somos ilhas, não podemos permitir que as vantagens em sê-lo desapareçam ou vão somar-se às desvantagens.

         Publicado pelo jornal A Semana de 6 Novembro de 2009

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