terça-feira, dezembro 29, 2009

Em prol do pluralismo

A sociedade caboverdeana ainda lida mal com o pluralismo. O exercício do contraditório e o confronto de ideias são, muitas vezes, tidos como perda de tempo. Consenso parece o nirvana nas relações na esfera pública. È celebrado mesmo significando na maior parte dos casos o desejo de uma parte em submeter a outra em nome de interesses profundos da Nação com os quais diz estar indissoluvelmente ligados. Encontros de socialização, organizado pelos poderes públicos e invariavelmente iniciados e encerrados por membros do Governo, tornaram-se no modelo preferido de interacção com a sociedade. Na generalidade dos casos não passam de um ritual onde se simula a discussão pública de matérias, já aprovadas pelo Governo. As dificuldades com o pluralismo advêm, em boa medida, do facto de, ainda, ser visto, em sectores poderosos de influência política e ideológica, como uma espécie de dádiva à sociedade. Diz-se que resultou de uma decisão da abertura política. A insistência nesse ponto responde à preocupação de justificar o regime de partido único e os seus dirigentes. Segundo eles a decisão no sentido do pluralismo só foi possível quando a sociedade se mostrou pronta para isso, ao contrário do que aconteceu nos primeiros 15 anos. Um dos problemas com esse argumento é que apresenta o pluralismo como um processo gradual. Daí, é um passo para se cair na tentação de o limitar, consoante o grau de maturação sócio-político que se presume existir no momento, de o dosear, em nome do pragmatismo na tomada de decisões, e, mesmo, de o sacrificar, pontualmente, por razões de Estado. Prejudica o aprofundamento do pluralismo a incapacidade de extrair na plenitude o sentido da sua consagração na Constituição de 1992. Pluralismo não é um ganho, muito menos, uma dádiva. Resulta directamente do respeito devido à dignidade humana de cada indivíduo. Suporta-se no reconhecimento da inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos do Homem como fundamento da comunidade humana, da paz e da justiça, assim como está estabelecido no artigo 1º, nº1 da Constituição. Realiza-se, quando se aceita que há um limite a partir do qual nenhuma autoridade, muito menos a autoridade política do Estado, deve procurar coagir a consciência do indivíduo para o levar a ser o que não é e o que não quer ser. Regimes totalitários distinguem-se pela sua profunda negação do pluralismo. E definem-se pela disposição em ir para além desse limiar e a partir daí encetar a construção do homem novo. A derrota estrondosa desses regimes, simbolizada na Queda do Muro de Berlim, revelou o quão a natureza humana e o desejo de liberdade são obstáculos intransponíveis nas tentativas de engenharia do homem novo. A desumanidade desses projectos ficou patente nas crueldades, nas humilhações e na miséria que fizeram passar largas centenas de milhões de pessoas, por todo o mundo, em fomes provocadas, massacres, prisões, torturas e campos de reeducação. O totalitarismo ficou desacreditado mas isso não significa que impulsos de natureza totalitária deixaram de se manifestar. Isso é visível em muitos dos ataques ao sistema de partidos, ao parlamento e a órgãos de comunicação social. Como bem disse o grande diplomata americano George Kennan, o busílis da questão é que há um bocadinho de totalitário enterrado algures, lá muito para o fundo, em todos e cada um de nós. Por isso mesmo é essencial manter uma democracia funcional, de respeito pelos direitos fundamentais e dotado de um Estado cumpridor da Constituição e das Leis. A centralidade da democracia em manter os checks and balances (pesos e contrapesos) nas manifestações da natureza humana é realçada pelo filósofo Reinhold Niebuhr quando diz: “é o desejo de justiça do Homem que torna a democracia possível, mas é a tendência do Homem para criar injustiças que faz a democracia indispensável. O contencioso à volta das origens do pluralismo em Cabo Verde dificulta a eliminação de valores e práticas, particularmente na actuação de instituições do Estado, que não o favorecem. Um exemplo recente é a comemoração do dia da comunicação social em Cabo Verde. Devia saltar à vista imediatamente que a tomada da Rádio Barlavento no dia 11 de Dezembro de 1974 não seria a melhor data para se celebrar a liberdade de expressão, a liberdade de informação e a garantia de expressão e de confronto de ideias das diversas correntes de opinião nos meios de comunicação social do Estado. Essa data marcou o fim das rádios e jornais privados e o início da institucionalização da comunicação social a uma só voz. O processo de centralização numa rádio nacional única, então desencadeado, nem poupou a rádio Voz de S. Vicente, nascida nesse dia. Não existe uma sensibilidade crítica quanto ao limite do que é permitido ao Estado e aos seus dirigentes fazer sem ferir o direito das pessoas à sua consciência, às suas convicções e às suas ideias. É-se particularmente insensível quando se trata da juventude e da infância. A Constituição da República em vários artigos condiciona, firme e claramente, a relação do Estado com os jovens e as crianças. Assim o artigo 49º alínea c) proíbe o Estado de programar a educação e o ensino segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. No artigo 81º nº 4 garante aos pais o direito e o dever de orientar e educar os filhos em conformidade com as suas opções fundamentais. No artigo 74º do direito dos jovens restringe o apoio do Estado aos jovens exclusivamente à realização dos objectivos constitucionais (desenvolvimento da personalidade, gosto pela criação livre, sentido do serviço à comunidade e integração em todos os planos da vida activa). E mesmo assim não deve ser nunca de forma directa mas em cooperação com organizações de pais e outras organizações, designadamente juvenis, como estabelece o nº 4 desse mesmo artigo. Essas restrições constitucionais, que claramente proíbem a influenciação politico ideológica das crianças e jovens, são basicamente ignoradas. Notícias, reportagens e imagens televisivas dão conta de encontros, palestras, aulas nos liceus em que crianças e adolescentes são compelidos a ouvir discursos de dirigentes políticos vestidos da autoridade do Estado. È evidente que o que está na Constituição é uma reacção forte a toda a instrumentalização de crianças e jovens nas organizações de massa verificada durante o regime de partido único. Mas também é uma acção defensiva para garantir o pluralismo na sociedade evitando que futuros cidadãos sejam arregimentados em fase ainda frágil e permeável por forças poderosas alcandoradas no aparelho do Estado. O que aconteceu com o dia das crianças é elucidativo em vários aspectos. Até 2004 era festejado em todas nas escolas no 1º de Junho. A partir do momento em que voltou a ser feriado, as notícias do dia convergem invariavelmente para encontros de grupos de crianças com o Primeiro Ministro ou com o Presidente da República. Uma outra ameaça ao pluralismo é intervenção excessiva do Estado na divulgação do trabalho governamental. O Governo tem miríades de oportunidades no parlamento, em forum, workshops, cerimónias de lançamento de primeira pedra, visitas, inaugurações e entrevistas para transmitir a sua mensagem e divulgar o trabalho governamental com toda a transparência. Parece que não lhe chega. Resolveu montar uma máquina específica para fazer isso, mas sem qualquer restrição, mediação ou contraditório. Ou seja, resolveu forjar uma máquina de propaganda. Para isso pôs no Orçamento de Investimento o montante de 30 mil contos, acrescido de mais 3 mil contos em comunicação e imagem. Fica-se com uma ideia das prioridades do governo quando se compara esse montante com os 43 mil destinados a Cabo Verde Investimentos. Ou o trabalho, supostamente essencial para economia que é a atraccão de investimentos e a criação de novos empregos, não merece mais ou, então, para o Governo, o trabalho de propaganda está acima de outras considerações de momento. Por isso, também, é que não tem rebuços em destinar à propaganda 2 mil contos mais do que os 31 mil contos que o Estado transferia aos municípios para a actividade de Promoção Social. É evidente que a liberdade de informar, de ser informado e de acesso à informação é seriamente posto em causa quando o Governo torna-se excessivamente agressivo na sua comunicação com a sociedade. A comunicação social em Cabo Verde é frágil. Os três jornais são semanários e têm residência na capital. A informação radiofónica e televisiva é essencialmente feita através de órgãos públicos. Em tal ambiente, são inevitáveis os estragos quando o governo usa fundos públicos fabulosos para, em programas sofisticados de televisão, passar o seu ponto de vista do impacto das suas políticas, sem qualquer hipótese de competição de outras correntes de opinião. Sofre o pluralismo, inibe-se o cidadão que se sente coagido a seguir as posições do governo e mitiga-se a democracia com a proclamação de que as obras são patrióticas e portanto não sujeitas a críticas. No fim do dia, acaba-se sempre por sacrificar a verdade e em pôr em causa a relação honesta que os governantes devem ter com o País. Puralismo e tolerância andam de mãos juntas. Não há uma sem outra. Enfraquecendo o pluralismo, a intolerância aumenta, a crispação e a violência política atingem outros patamares. Nesta época de Natal que se quer de Paz e de Justiça é fundamental que todos se lembrem do dito: ninguém é inocente mesmo quando se acredita que tudo o que está a ser feito é com a melhor das intenções. Poder corrompe e a única forma de conter os seus nefastos efeitos é através da evolução gradual das instituições, com bem referiu o presidente John Kennedy. Essa evolução só é possível com pluralismo. O próximo ano será do recrudescer da agitação pré-eleitoral, que entrou antes de tempo com o surgimento da crise. Só será um ano proveitoso se se souber manter um ambiente plural gerador de tolerância para aceitar a diversidade de posições e interesses e para escutar diferenças de opinião. Um novo rumo irá ser traçado para o País. É essencial que os cidadãos não se sintam constrangidos na discussão das propostas e em fazer livremente as suas escolhas.

1 comentário:

Amílcar Tavares disse...

Caro Humberto, é por estas, e por outras, que defendo com unhas e dentes a saída, o quanto antes, do Governo, do MpD e do PAICV, das redacções.

A bem da democracia.