domingo, março 28, 2010

Deriva pré-Eleitoral

O Governos nas últimas semanas parece ter sido acometido de um frenesim para legislar. Leis e propostas de leis sobre matérias sensíveis, como situação de imigrantes, comunicação social, criação de novas categorias de autarquias, aquisição de nacionalidade e assuntos laborais, foram produzidas, sem a ponderação que deviam merecer. A um ano das eleições a agenda do Governo já assumiu um pendor marcadamente eleitoral. A reunião, no último fim de semana, dia 20-21de Março, do órgão máximo do partido que suporta o Governo, o PAICV, definiu como prioridade as eleições legislativas. Foi reforçada a deriva eleitoral do governo. Deriva cada vez mais notória desde que o Governo deixou de poder fingir que seria, ainda, capaz de cumprir as promessas da legislatura, em matéria de crescimento económico e de emprego. Há muito que se mostrou urgente a definição de uma política de imigração. O acordo de livre circulação com os países da CEDEAO sujeitou Cabo Verde à pressão de uma região com mais de 300 milhões de habitantes e um rendimento por habitantes várias inferior. Diferentemente dos imigrantes noutros países em rápido crescimento, designadamente os países europeus nas décadas de cinquenta e sessenta, a população imigrante em Cabo Verde não foi chamada, muito menos seleccionada, para responder às necessidades do País. Simplesmente fluiu sem resistência em direcção às ilhas, elas próprias a debaterem-se com médias de desemprego de mais de 20% da população. O Governo não sabe qual é a situação nem o número exacto dos imigrantes. Em declarações de 5 de Março deste ano, a Porta Voz do Conselho de Ministros punha esse número entre 10000 a 15000. No Plano de Segurança Interna do Governo (pgs. 50 e 51) diz-se que (…) “Em 2006, estavam em Cabo Verde 15000 a 20000 imigrantes dos quais só 1800 eram residentes legais”. Mas há quem fale em números superiores a esses. O facto é que ninguém parece saber. E, muito menos, avaliar as consequências, quando se reconhece, citando o documento referido, que “A esmagadora maioria destes imigrantes em Cabo Verde são homens entre os 17 e os 40 anos de idade, sem qualificação profissional e professam a religião islâmica”. Pensando na integração desses imigrantes, o Governo deve-se atentar ao facto, segundo o Plano de Segurança Interna (pg. 51) de que, (…) muitos já reúnem o seu núcleo familiar em Cabo Verde e os seus filhos não integrarão o sistema público de ensino. Há indícios de madraças [madrassas]em alguns bairros da capital deles (…). Ou seja, há indícios de escolas corânicas, escolas conhecidas em vários países como sendo objectos de financiamento pelo fundamentalismo islâmico wahhabista da Arábia Saudita. Sem estudos prévios e sem política de imigração definida, o Governo avança com processos expeditos de regularização de guineenses. Fica-se sem saber qual o impacto demográfico global no país, o impacto por ilha e, em particular, o impacto nas ilhas de população diminuta. E, especialmente, quais as consequências eleitorais. Os números 3 e 2 respectivamente dos artigos 418º e 419º do Código Eleitoral faz dos cidadãos lusófonos, legalmente estabelecidos, eleitores de titulares dos órgãos electivos dos municípios e elegíveis para esses mesmos órgãos, nas mesmas condições que os cidadãos nacionais. Muitas vezes em Cabo Verde não se põe em devida perspectiva a realidade demográfica de um país com 500.000 pessoas espalhadas por dez ilhas, algumas delas esparsamente habitadas. Raciocina-se como se de um país grande e continental se tratasse. Recorre-se a supostos “complexos de culpa”, derivados do facto dos caboverdianos terem sido imigrantes em vários países, para justificar inacção. Esquece-se que, exceptuando S.Tomé, os caboverdianos sempre foram uma pequeníssima minoria nos países de acolhimento de milhões de habitantes. A presença percentual mínima dos caboverdianos nunca foi problema na dimensão que milhares de imigrantes podem constituir em ilhas como Boavista, Sal Maio e Brava. São realidades incomparáveis. A exemplo das Maldivas, Seychelles, Maurícias e outros países/ilhas, há que ter políticas de imigração cuidadas. Rigor maior devia merecer o processo de aquisição da nacionalidade. Significativamente é nessa matéria que o Governo, com uma proposta de lei ao parlamento, pretende criar facilidades. Facilidade a quem tenha nascido no estrangeiro e pode adquirir a nacionalidade, porque presumivelmente descendente de caboverdianos, mas que ainda não provou, ou não se deu ao trabalho de seguir os procedimentos exigidos, incluindo inscrição nos serviços centrais de identificação civil. Facilidade, ainda, a estrangeiros casados e mesmo em união de facto reconhecível. Neste ponto o Governo parece ignorar o que o seu Plano de Segurança Interna constata: (…)“Notícias da imprensa escrita, em 2008, davam conta da conversão, em média, de um caboverdiano/dia à religião muçulmana, especialmente mulheres, que a troco de dinheiro casavam com imigrantes, permitindolhes, pela via da naturalização, adquirir a nacionalidade caboverdiana”.

E tudo para quê? Segundo o preâmbulo da proposta de lei, é para efeitos de recenseamento eleitoral e para uma participação mais abrangente nos actos eleitorais. O Governo prefere que se relaxe no rigor, a exigir na aquisição da nacionalidade caboverdiana, quando podia se concentrar em tornar a Administração Pública mais eficaz na resposta aos que, de forma declarada e activa, querem ser nacionais. Chega ao ponto de propor um aditamento á lei de nacionalidade, artigo 34º-A, em que “atribui nacionalidade a todos inscritos no Consulado ou posto consular, salvo declaração em contrário da pessoa”. Claro que a pergunta óbvia que se põe é como conseguiram fazer inscrição consular sem bilhete de identidade ou passaporte, ou seja sem nacionalidade caboverdiana. A deriva do Governo continua por outros campos. Na tarde da sexta-feira passada, dia 18 de Março, os deputados foram confrontados com um novo texto da proposta de lei de descentralização administrativa. O Governo tinha resolvido criar autarquias supramuncipais, as regiões administrativas, e autarquias inframunicipais, as freguesias. No discurso do PAICV vinha-se testando a ideia de regiões como fuga em frente para esvaziar movimentos para regionalização provocados pela aceleração da centralização do País nos últimos anos. Mas parece que, de repente, fez-se luz. A precipitação surgiu, pelo que se pode deduzir do relato no portal do governo, das idas recentes do Sr. Primeiro Ministro aos bairros da Praia. Nos encontros teria constatado a falta de autoridade inframuncipal. Logo de seguida, na quinta-feira, o Conselho de Ministros aprovou a criação de freguesias e, provavelmente, aproveitou para, em simultâneo, criar regiões administrativas, apanhando todos de surpresa. E a surpresa para ser mais completa teria que ir na lei de descentralização, que já estava agendada para discussão no parlamento, em vez de se fazer uma lei própria como estabelece o artigo 217 da Constituição:As autarquias locais são os municípios, podendo a lei estabelecer outras categorias autárquicas de grau superior ou inferior ao município. Uma outra lei que também surpreendeu foi a lei da comunicação social. O País está a poucos dias de ver publicado no B.O. o novo texto da Constituição da República, texto que resultou da revisão constitucional realizada em Fevereiro último. Uma das mudanças profundas na Constituição foi precisamente no domínio da Comunicação Social, com a criação de uma autoridade independente para a regulação do sector. Nesse órgão, eleito pela Assembleia Nacional, já não têm assento membros nomeados pelo Governo. A lei proposta ignora isso e faz tábua rasa do preceito constitucional que obriga a redesenhar todo o sector tendo no seu núcleo central essa autoridade com competência para garantir as liberdades de expressão, de informação e de imprensa, o pluralismo e a independência dos jornalistas e dos órgãos de comunicação, face aos poderes políticos, a interesses económicos e à Administração. A pressa do Governo poderá estar a revelar alguma apreensão quanto à instituição da autoridade reguladora. Com o Tribunal Constitucional foi a mesma coisa. O resultado é que dez anos passados esse Tribunal ainda não está instalado, mercê de bloqueios vários promovidos pelo Governo. Incluir na lei apresentada normas sobre o Conselho de Comunicação social, órgão criado em 1990 para dirimir conflitos no ambiente plural então emergente, para o promover a órgão regulador, indicia blocos no caminho da instalação da Autoridade Reguladora. Uma outra inovação é considerar a comunicação parceira e daí convidá-la, entre outras coisas, a incentivar e apoiar políticas económicas e a censurar más práticas. O Estado daria subsídios, benefícios fiscais e outros incentivos a quem melhor fizesse isso. Ou seja a instrumentalização pura e dura, precisamente no momento em que o Governo esforça-se por mostrar como boas a sua governação e quer denunciadas opiniões contrárias, caracterizadas como más práticas da comunicação social. Recentemente classificou como criações ou sensacionalismos dos jornalistas as revelações sobre a insegurança e a violência no País. O frenesim legislativo também chega ao mundo do trabalho. Ai, O Governo propõe alterar os tempos previstos para a transformação de contratos a prazo em contratos permanentes. Com isso compromete-se o quadro de previsibilidade de custos de trabalho, que a entrada em vigor da lei laboral em Outubro de 2007 dava aos operadores. Pelo caminho cria-se insegurança jurídica, mina-se a confiança e aumentam os custos do emprego/despedimento. Precisamente um dos índices que colocam Cabo Verde no grupo pior de países em matéria de ambiente de negócios, como ficou claro no Relatório do Doing Business 2010. Os benefícios políticos eleitoralistas esperados pelo Governo não compensam o que os desempregados irão pagar pela insegurança criada, pela maior rigidez do mercado de trabalho e pelo adiamento das decisões de contratação de mão de obra, devido aos custos acrescidos. Períodos eleitorais são bem definidos nas democracias. Os governos têm um mandato claro ao fim do qual o povo fica em posição de avaliar desempenho, considerar alternativas de governação e escolher quem legitimar para o mandato seguinte. Com isso tudo estabelecido, evita-se que o País esteja permanentemente polarizado e em disputas fracturantes. Também se evita que o Governo se sinta tentado a usar os recursos públicos, as instituições do Estado e sua autoridade para se perpetuar no Poder, retirando ao eleitorado a possibilidade real de escolha dos seus governantes. A responsabilidade de governar com lealdade, honestidade e verdade não autoriza a que se enverede pela via da campanha eleitoral ainda em tempo útil do mandato de governação. È uma via que leva necessariamente ao uso abusivo dos recursos e dos poderes públicos, à má governação e ao comprometimento do futuro. Ponderação, contenção e espírito de “fairness” é o que se exige nestes tempos em que as energias e os recursos do país devem ser mobilizados para fazer face a quaisquer contingências, presentes e futuras.

terça-feira, março 16, 2010

O Processo de Transição em Cabo Verde

Textos no jornal “Terra Nova” de1988, 1989 e 1990 que podem ajudar a ter o sentido dos tempos, então vividos, e que dão conta da dinâmica e das expectativas geradas, na sequência da abertura política de 19 de Fevereiro de 1990. São artigos da minha autoria, publicados sob os pseudónimos de Tácito Monteiro e Péricles Miranda.

1. III Congresso do PAICV: entre a realidade e o mito

jornal Terra Nova, Agosto/Setembro 1988

2. Quase quinze anos depois da independência: Ponto da Situação

Jornal Terra Nova, Dezembro de 1989

3. O que é preciso realmente para o relançamento do País?

Jornal Terra Nova, Fevereiro de 1990

4. Questionando os dogmas do chamado “quadro institucional”

Jornal Terra Nova, Março de 1990

5. Mais transparência PAICV – Mudança no interesse da Nação

Jornal Terra Nova, Abril de 1990


6. Não existe Polícia Política?

Jornal Terra Nova, Maio de 1990


7. IV Congresso do PAICV: Afinal Nada Mudou

Jornal Terra Nova, Agosto de 1990


8. Única hipótese a Bem de Cabo Verde e… do PAICV

Jornal Terra Nova, Novembro de 1990

S.Vicente - 20º Aniversário da Declaração Política do MpD

Discurso proferido na Academia Jotamonte 14/03/2010

Vinte anos atrás uma onda de liberdade e democracia corria mundo. Como um tsunami varria ditaduras e regimes totalitários encarnados por partidos únicos em todos os continentes. Milhões de pessoas saíam às ruas e regimes que pareciam sólidos e que pareciam ainda durar anos, e mesmo décadas, simplesmente desfaziam-se no ar.

Cabo Verde sentiu o espírito da onda. O desejo de liberdade dos caboverdianos ganhou um outro ímpeto. Quando o PAICV quis abrir uma fresta, para ver se escapava, o povo nas ilhas usou o seu “pé de cabra”, o Movimento para a Democracia, o MpD e escancarou a porta. O Sol da Liberdade e da Democracia iluminou as ilhas e as faces dos caboverdianos. Uma nova esperança renascia no coração de todos.

S. Vicente viveu com uma paixão muito especial esses meses de mudança. A cidade sempre se tinha ressentido da arrogância e prepotência dos auto proclamados “melhores filhos do povo”. Não foram esquecidas as humilhações diversas, infligidas ás pessoas com o sistema de comités de zona, milícias e tribunais populares. Nem os vexames que particularmente os emigrantes, muitas vezes, sofreram, quando, terminadas as férias, pediam autorização de saída do país. Na memória de todos nós ainda estavam bem vivos os episódios de barbarismo do regime, perpetrados em 1977 e 1981 nas cadeias do Morro Branco e de João Ribeiro. E também como, anos depois, em 1987, o regime agrediu gratuitamente estudantes do liceu em manifestações pacíficas pelas ruas de Mindelo.

SVicente, porém, nunca se deixou dobrar. Mesmo quando viu as suas oportunidades desaparecerem porque o Regime era contra a iniciativa privada nacional, contra o investimento externo e contra o turismo. O atraso imposto por esses quinze anos de políticas contrárias não impediu S.Vicente de manter o seu espírito crítico, criativo e inconformista.

Espírito esse que se mostra na tenacidade do sr. Padre Fidalgo em manter o Jornal Terra Nova como espaço livre e corajoso de crítica ao Partido único, não obstante as ameaças e os processos judiciais movidos contra ele. É de toda justiça prestar-lhe homenagem pela sua contribuição valiosa para o derrube do regime de partido único em Cabo Verde. O Jornal Terra Nova foi fundamental durante todo o ano 1990 para passar as mensagens de liberdade e denunciar as manobras do Paicv de procurar perpetuar-se no Poder.

S.Vicente encontrou-se com o MpD em Junho de 1990. Nas boas vindas na Praça Estrela e no comício do Éden Park ficou claro a sintonia entre o sentir do povo de SVicente e o MpD. Em particular, foi emocionante ver como, de imediato, S.Vicente estabeleceu uma relação muito especial com o Dr. Carlos Veiga. Para todos passou a ser o líder da luta pela liberdade e democracia.

Nos meses que se seguiram, o crescimento e a actuação do MpD em S Vicente, e a partir de S.Vicente, foi crucial para a vitória nas eleições do 13 de Janeiro de 1991. A influência de S.Vicente viu-se no impacto visual e nos efeitos de contágio dos comícios, manifestações e contactos directos com a população. Viu-se também na formulação do projecto político do MpD. O programa que o MpD acabou por adoptar no seu processo formal de fundação, na I Convenção de 2 de Novembro de 1990, tinha as marcas fortes do sentir de S.Vicente.

Ficou no Programa do MpD, por exemplo, a convicção, de quem, como S.Vicente, nascido no mundo globalizado do século XIX, acredita que prosperidade sustentável só é possível numa economia livre e aberta. Ficou a certeza de quem, como S.Vicente, tem sido vítima da falta de visão, da ganância do poder e da incompetência do Estado, sabe que é essencial descentralizar para ganhar agilidade no aproveitamento de oportunidades. Ficou a aposta no poder da educação e do conhecimento, feita com a segurança de quem, como S.Vicente, floresceu com os efeitos culturais e intelectuais do liceu de S.Vicente e com a presença activa de artistas, escritores e académicos, para lançar as novas gerações para um outro patamar de desenvolvimento. Ficou, ainda, a crença na importância crucial de garantir dinâmica económica em todas as ilhas para que Cabo Verde se mantenha unido e a beneficiar da sua diversidade sócio-cultural, de quem, como S.Vicente, sabe , de experiência vivida, o quanto deve à contribuição das outras ilhas no aprofundamento da caboverdianidade.

Hoje, no décimo ano do Governo do PAICV, S.Vicente debate-se como um dos maiores níveis de desemprego do País. Os jovens são particularmente afectados com desemprego a 46%. E porquê? A razão principal é porque temos um Governo que vai contra o que S.Vicente, instintivamente, sabe que deve ser o caminho certo. Um Governo que lida mal com a economia livre e aberta. Prefere controlar, criar dependência e fazer favores. É um Governo contra a descentralização. Faz braço de ferro com as câmaras, não se preocupando com consequências. Um Governo que não aposta na qualidade do ensino e deixa os jovens com diplomas, mas sem emprego. Um Governo que desequilibra o desenvolvimento do país em direcção à cidade da Praia, desperdiçando oportunidades de crescimento e criação de emprego nas ilhas e relegando ilhas e regiões do país à estagnação económica.

Vinte anos depois, é o momento certo para que S.Vicente renove a sua relação com o MpD. Porque o MpD é o partido que no seu projecto político incorpora os ensinamentos da história da ascensão e prosperidade desta ilha. É o partido que acredita ser possível desenvolver, na liberdade, sem criar dependências nas pessoas. É o partido que não se intimida com o espectro do chamado desemprego estrutural porque acredita que é possível vencer o desemprego. É o partido que assume sempre as suas responsabilidades porque nasceu para servir o povo caboverdiano, e por isso esforça-se por governar com humildade, honestidade e verdade, sem cair no cinismo e na hipocrisia.

domingo, março 07, 2010

Obsessão pelo controlo da memória

Em 1986, o jornal governamental, o Voz di Povo proclamou em manchete: “Aos 50 anos Claridade entra oficialmente na História de Cabo Verde”. O regime de partido único finalmente tinha decidido integrar na historiografia oficial o Movimento Claridoso de Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Jorge Barbosa e António Aurélio Gonçalves. Ao fim de dez anos o regime já se sentia suficientemente seguro para cooptar, na sua versão da história das Ilhas, essas personalidades e as suas contribuições fundamentais para a afirmação da caboverdianidade.

Aristides Pereira, o então Presidente da República, discursando no Simpósio Claridade, mostrou como as coisas deviam ser vistas: “o Movimento Claridoso encontra as suas raízes num terreno laborado por uma plêiade sucessiva de homens de cultura, que vinha pugnando pela afirmação da caboverdianidade, (...) cuja obra se deve apreciar e acarinhar até chegar a Amilcar Cabral (..). A lenta mas segura gestação do nacionalismo caboverdiano” Dessa e de outras muitas declarações similares fica claro que, para o Regime, o ponto de confluência da história do País é Amilcar Cabral e, por extensão, o PAIGC e o PAICV. Também fica claro que factos históricos só têm significado e são reconhecidos como tais quando servem, justificam e confirmam a luta de libertação, apresentada como ponto de origem de tudo: da Nação e do Estado.

O Partido único, enquanto força dirigente, precisa dessa validação permanente para se legitimar no Poder e para negar aos cidadãos a Liberdade e o direito de escolher quem os deve governar. Nesse sentido, memórias devem ser rearranjadas, outras memórias extirpadas, outras ainda implantadas, para que a realidade e a ficção se confundam e ninguém saiba quando termina uma e começa a outra. È uma luta permanente. Daí a obsessão pelo controlo, o policiamento do que é dito e feito, a substituição da informação pela propaganda e o assenhorear das iniciativas e de tudo o que é inovador.

O controlo de memórias foi mais penoso para Cabo Verde do que noutras paragens. A badalada luta de libertação não aconteceu em Cabo Verde. Aristides Pereira, no Relatório aos órgãos superiores do PAIGC em Agosto de 1976, em Bissau, deixou claro qual era a real situação do Partido, antes do 25 de Abril de 74: “Pouco implantado no arquipélago, a organização resumia-se a algumas células em Santiago, no Mindelo e em S.Antão. “(…) a massa militante englobava, por ordem decrescente de importância, estudantes, alguns pequenos funcionários e poucos trabalhadores”. Imagine-se o esforço titânico necessário para incutir numa população que a sua história passada é só aquela que justifica e conduz inevitavelmente à luta de libertação. Uma luta que lhe dizem ter acontecido a mais de 600Km de distância mas que não viveu nem sentiu de forma directa. Relatos fidedignos apontam para um máximo de quarenta caboverdianos numa organização que se gabava de ter mais de 12 mil guerrilheiros. É quase surreal.

A instauração de um Poder absoluto logo após a independência imprimiu a esse esforço carácter urgente e impiedoso. Extraia-se legitimidade dos mitos criados à volta de Amílcar Cabral e da luta na Guiné. Nada podia contrariá-los. Nem o seu inevitável choque contra uma história de séculos e uma vivência social e cultural, distinta de onde o PAIGC nasceu e cresceu como organização político-militar. A pressão ideológica do Estado sobre a sociedade desembocou, pontualmente, em violência explícita, particularmente contra as elites intelectuais, culturais e sócio-económicas do País.

Prisões, humilhações, torturas e mortes verificadas em 1977, 1979, 1980 e 1981 em S. Antão, S.Vicente, Santiago e Brava são exemplos do muito que aconteceu nos primeiros anos de independência. Como também são certas leis, em particular a lei de Boato, 37/1975, e a lei 97/1976 dos cinco meses de prisão sem culpa formada, que só viriam a ser revogadas em Maio de 1990. São anos que não deviam orgulhar ninguém, muito menos o primeiro-ministro de um governo democraticamente eleito. A iniciativa infeliz do Sr. Primeiro Ministro de organizar a conferência “Os primeiro anos de independência”, tendo como conferencista o então primeiro-ministro e actual presidente da República, Pedro Pires, revela o quão o ainda se insiste na legitimidade histórica. Implicitamente está-se a reiterar que votos não chegam para governar. E que o País deve estar é com o partido demiurgo, o partido do fundador da Nação, o partido que trouxe a independência, construiu o Estado e, quinze anos depois, concedeu a democracia.

Por isso, é que para as crianças de quarta classe a história de 550 anos de Cabo Verde é resumida no seguinte: “O arquipélago de Cabo Verde foi durante séculos governado por Portugal. Era uma colónia. No dia 19 de Setembro de 1956, Amílcar Cabral fundou o PAIGC. Em 1963, o PAIGC começou a luta armada na Guiné. No dia 5 de Julho 1975 Cabo Verde tornou-se um país independente. No dia 13 de Janeiro realizaram-se as primeiras eleições legislativas”(pags. 44, 45 do manual de Ciências integradas 4º ano). É o mesmo simplismo de motivação ideológica que orienta o Governo quando encomenda um Monumento à Liberdade. Quer que se retrate a história do país em dois períodos: primeiro como país-vítima, nos temas colonização, escravatura, fome, emigração forçada seguido do período da redenção nos temas luta armada, independência, reconstrução e desenvolvimento. Significativamente fica ausente dessa interpretação da história a exaltação do processo de emergência de uma nova nação dentro do império português, sem complexos de vítima e capaz de conservar o seu carácter e desejo de liberdade mesmo confrontando-se com mais de seis décadas de regimes inimigos da liberdade e do pluralismo: os 45 anos do regime autoritário de Salazar/Caetano e os 15 anos do regime totalitário do PAIGC/PAICV.

A insistência na validade da legitimidade histórica, mesmo na era da democracia e do pluralismo, significa que o esforço para manter vivos os mitos anteriores não diminuiu. Pelo contrário, aumentou, pois agora, não só tem que manter a memória fictícia do envolvimento de Cabo Verde na luta armada, como também há que fazer acreditar que o partido/Estado em Cabo Verde era benigno e único do género no planeta. Ficções corroboradas por António Correia e Silva, no artigo do jornal “anação” de 25 de Fevereiro, ao afirmar que foi de vontade própria que o PAICV fez a abertura política. “Vontade” que só se manifestou quando todos tinham bem presente que dominós caiam por todo o planeta, na sequência das políticas de perestroika e glasnost de Gorbatcev, e que a queda do Muro de Berlim a 9 de Novembro de 1989 veio acelerar ainda mais o desmoronar de regimes de inspiração leninista. Alguém acredita que o PAICV, a 19 de Fevereiro de 1990, tenha dito: vamos cair também, mas não somos um dominó nem nos revemos em Lenine!?.

Manter esse nível de ficção, de fuga à realidade dos factos exige um esforço tremendo que se manifesta pelo menos a três níveis: da propaganda, da restrição da liberdade intelectual e de luta política constrangedora do pluralismo.

Da propaganda qualquer observador fica elucidado com o desabafo da jornalista Margarida Fontes no seu blog, odiaquepassa.blogspot.com:A questão é: para quê silenciar, se a propaganda é liberada nos mais públicos meios de difusão? Num país onde a propaganda flui com naturalidade, perante o silêncio da oposição que sonha fazer o mesmo quando ocupar o Palácio, o jornalista não passa de um lacaio vencido pelo cansaço… daí que eu defendo, criem um Gabinete de Propaganda do Governo (GPG) com legitimidade para ludibriar os cabo-verdianos e as cabo-verdianas, e extinguem (melhor, mudem os estatutos) dos órgãos públicos de comunicação, começando pela TV pública” (1/03/2010).

Quanto á liberdade intelectual, o violentíssimo ataque que publicamente o presidente da Fundação Amílcar Cabral desferiu contra a tese de doutoramento, “Em Busca da Nação” do investigador Gabriel Fernandes, no jornal “asemana” de 2 de Março de 2007, foi aviso claro para todos os estudiosos: Qualquer um pode correr o risco de ver uma tese ou um estudo acusado de “emprestar chancela académica a teses partidárias” se algum mito, dos que pululam na sociedade caboverdiana, for de alguma forma beliscado por factos, análises ou teorias.

Quanto à luta contra o pluralismo, ela é diária e violenta. Assume várias formas de acordo com as circunstâncias. Ás vezes é aberta, outras vezes é dissimulada, quase subtil. Os alvos preferenciais são o parlamento, o sistema de partidos e a credibilidade pessoal de quem ideias diferentes. Aos ataques seguem-se apelos a consensos. Mas a luta nunca pára. Mesmo quando o meio político adversário, de alguma forma, capitula perante a pressão dos mitos, a ofensiva continua. O PAICV não permite que Amílcar Cabral descanse acima dos interesses partidários de hoje. Proclama-se partido de Cabral e depositário dos seus ensinamentos e insiste que todos o devem aceitar na forma mitológica da sua preferência.

A política em Cabo Verde parece cativa da História. E é. Porque estranhamente, mesmo 19 anos após eleições livres e plurais, a ideia da legitimidade popular, como legitimidade única e válida na República, ainda não foi completamente aceite. Muitos procuram capitalizar sobre a legitimidade histórica para ganhar votos. O início das Comemorações do 35º Aniversário da Independência a 1 de Março para se prolongaram até Outubro, em ano pré eleitoral, deixa imediatamente a suspeita do aproveitamento dos recursos, das instituições e da autoridade do Estado para exaltar o papel do partido que se auto intitula partido da independência, com fins claramente eleitorais.

Isso é de facto inadmissível particularmente porque é acompanhado de uma ofensiva ideológica e propagandística com vista a liquidar a memória da década de noventa. Precisamente a década, em que o País conquistou a Liberdade e construiu as suas instituições democráticas. O uso abusivo do Estado para controlar as memórias e servir agendas partidárias tem que acabar. Para que haja real liberdade de expressão, liberdade de informação, liberdade intelectual e pluralismo verdadeiro em Cabo Verde.