quarta-feira, junho 29, 2011

Cansaço já nos cem dias?

No dia 30 de Junho completam os primeiros 100 dias do terceiro governo do Dr. José Maria Neves. O balanço não é positivo. Em vez de um governo enérgico, imaginativo e confiante depara-se com um quadro que lembra governos em fim de mandato: Líder contestado, população descrente na capacidade do governo em resolver problemas básicos de emprego, segurança e energia e água; promessas como o do 13º mês simplesmente abandonadas.

Nas democracias o período inicial do mandato é escrutinado para análise. Procuram-se indícios das políticas que vão marcar a legislatura. Pressentem-se o comprometimento e a energia que as grandes questões irão merecer. Avalia-se a destreza, segurança e lucidez na arte de reunir vontades para concretizar os objectivos e metas escolhidos. A própria Oposição e a comunicação social dão um tempo de graça para se ver o que novo governo é capaz.

Findos os cem dias do governo do PAICV notam-se sinais de fadiga e desalento. A continuidade de políticas, de estruturas e de personalidades no executivo não dá confiança que alterações significativas verificar-se-ão no emprego, na diminuição de desigualdade social e na contenção da centralização do país. Por outro lado, a crise internacional não parece ter despertado a liderança para os novos desafios da economia global. Insiste-se com o “Estado Providencial” mantem-se a rotina de acusar os adversários de deslealdade e de tentar destruir esse mesmo estado. Quando confrontado com os riscos de recorrer a empréstimos externos para impulsionar o crescimento o governo é ainda incapaz de apontar os investimentos privados que vão substituir os investimentos públicos e suportar as taxas altas de crescimento necessárias ao pagamento da dívida e à elevação do nível de vida.

A crise de água que atingiu a Praia durante semanas e em menor escala várias outras ilhas, acompanhada das exasperantes cortes de energia, abalou consideravelmente a confiança das pessoas no governo. O capital político recebido das eleições foi bastante delapidado. Ninguém tem a certeza que a curto/médio prazo se irá encontrar solução duradoira para a questão energética. As proclamações sucessivas à volta das energias renováveis não satisfazem. Todos têm alguma noção que tais alternativas pela sua natureza variável e intermitente dificilmente constituem a “mãe de todas as soluções” para a Electra.

Muito capital político perdeu-se na forma como o partido no governo lidou com a questão presidencial. Os ataques virulentos desferidos contra o candidato Aristides Lima, do mesmo quadrante político do PAICV mas não apoiado pela cúpula, tiveram o efeito de desmobilizar pessoas que antes provavelmente se sentiram tentadas a um maior engajamento no pós-eleições. A gestão inepta, arrogante e facciosa de algo que podia ser um facto normal da vida dos partidos democráticos deixou muita gente estupefacta e revoltada.

A discussão do Orçamento do Estado na Assembleia Nacional veio confirmar que, de facto, com o terceiro mandato pouca coisa mudou. Mesmo em momento de vitória eleitoral clara a retórica usada contra a Oposição visa excluí-la do debate político, tornar ilegítima as ideias e questionar as suas razões. O país fica suspenso, parado no tempo, sem puder discutir as opções do presente e futuro porque o Governo está ocupado em fustigar a oposição com supostos erros cometidos na década de noventa.

Ter um governo num terceiro mandato intolerante perante dissensões internas, intransigente com os adversários políticos e refractário à real autonomia de centros de saber como as universidades não pressagia nada de bom para o país. A realidade mundial complexa e perigosa particularmente para pequenas economias como Cabo Verde exige da liderança nacional muita imaginação, flexibilidade e capacidade de aprender com os outros. Os 100 dias do Governo do dr José Maria Neves deixam antever sinais do que de pior quanto á arrogância, o autoritarismo e a intolerância terceiros mandatos podem brindar aos governados. Oxalá não seja assim. Para bem de todos e da república.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 29 de Junho de 2011

quarta-feira, junho 22, 2011

Insegurança aprofunda-se

Tráfico de armas parece que já é uma realidade em Cabo Verde. Informações vindas a público nas últimas semanas deram conta da existência de um comércio activo de compra e venda de armas de guerra envolvendo nacionais e estrangeiros. Duas constatações feitas nas operações de recuperação das armas emprestaram especial gravidade à questão: Ficou-se a saber que parte das armas no tráfico resultam de roubos feitos nos paióis da Forças Armadas. E que o Governo estava praticamente às escuras quanto à dimensão do problema.

Segundo a Inforpress as Forças Armadas conseguiram recuperar “70 pistolas makarov de calibre 9 mm, 17 metralhadoras AKM de calibre 7,62 mm, mais de duas mil munições reais, munições de pistolas Makarov, carregadores de AKM e cordão detonador utilizado para accionar explosivos”. Fontes militares confirmaram que “ainda falta muito material por recuperar”. Nas operações foram apreendidas armas diversas entre as quais 15 espingardas automáticas AKM que não constavam do arsenal das FA.

De todo este imbróglio várias questões se colocam. Uma é se o governo garante que as forças armadas têm os recursos materiais, humanos e institucionais para não só cumprir a sua missão de defesa nacional como também para impedir que as suas armas munições e explosivos caem nas mãos erradas alimentando o tráfico e fazendo escalar o nível de violência no país. Outra questão é em que medida a insistência em manter demasiado porosa a fronteira nacional tem inexoravelmente trazido para as ilhas os problemas graves de tráfico de droga, de armas e de pessoas que assolam os países da costa africana, a mais de 500km distante. Uma outra questão ainda é se os meios utilizados na investigação dos desvios de armas, no combate ao tráfico e na recuperação das armas trazem mais segurança para o país e para os cidadãos.

Notícias vindas a público revelam que as operações de recuperação das armas foram realizadas pelas forças armadas. Autoridades militares convidadas a fazer declarações para imprensa declinaram dizendo que as operações eram “secretas”. Informações citadas por órgãos de comunicação social dão conta que as FA teriam cercado bairros e feito buscas

domiciliárias. Em todos os relatos sobre a matéria não houve referência à presença da polícia nacional e nem se falou da polícia judiciária envolvida na investigação dos crimes. Da procuradoria-geral da república também não se ouviu nada, mesmo quando surgiram indícios que medidas coerção (sevícias e torturas) estariam a ser utilizadas nas investigações. Tudo isso é muito estranho e foge ao que se espera do normal funcionamento da república

O Governo tende a contornar a responsabilidade central do Estado em matéria de segurança sempre que é confrontado com as exigências dos cidadãos perante a violência urbana e outros crimes. Insiste na ideia “segurança partilhada”. E isso tem tido consequências. Diminui o nível de alerta das instituições de segurança perante as ameaças emergentes. Expõe as forças policiais a perigos inesperados como o de confrontar-se com elementos criminais munidos de armas de guerra. Sobrecarrega o tesouro público com pedidos de mais meios de armamento ou de unidades policiais especiais para fazer face a situações que só se tornaram graves porque não identificadas a tempo e inteligentemente confrontadas. E acaba por provocar a erosão dos direitos fundamentais dos cidadãos porque com a escalada de violência aumentam as possibilidades de abuso policial como aliás tem sido denunciado por entidades nacionais e internacionais.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 22 de Junho de 2011

quarta-feira, junho 08, 2011

Desresponsabilizar não rima com governar

É uma pergunta que devem colocar á administração da Electra e não ao Primeiro-ministro”. Foi assim que o PM respondeu ao jornalista que lhe colocou o problema angustiante de energia e água que os caboverdianos enfrentam no seu quotidiano e que para os praienses nas duas últimas semanas se tornou num verdadeiro pesadelo. A atitude displicente do PM em simplesmente “passar a bola” deixou o país perplexo. Todos intuem a dimensão e complexidade da questão e sabem que ultrapassá-la exige uma intervenção qualificada do Governo.

O Governo deixou arrastar por demasiados anos a situação de precariedade no sector. As consequências sentem-se designadamente na qualidade de vida das pessoas e na competitividade da economia. O diálogo descrito entre o PM e o jornalista ilustra muito bem o que tem sido a resposta do governo sempre que confrontado. Adia a questão ao mesmo tempo que procura desviar a atenção do público com novos anúncios, novos eventos e novas realizações. Mas os problemas não se esvaem simplesmente no ar. Permanecem e um dia há que os enfrentar.

A lição que chega de fora é que países e governos não podem esconder para sempre os desafios que a realidade mundial coloca às respectivas sociedades. Não podem impunemente iludir-se e iludir a nação que as dificuldades vividas ou emergentes acabarão por resolver-se por si. Um dia “alguém” vai acabar por aparecer, a bater a porta e a pedir contas ou como emissário do mercado de capitais ou do FMI. E aí não há escape possível e então há que confrontar as deficiências antes ignoradas, há que fazer as reformas que gritavam por ser feitas e há que mudar a atitude que todos complacentemente aceitam como natural e até “cultural”. Nas eleições de domingo passado Portugal finalmente aceitou mudar de rumo, como antes fizeram a Grécia e a Irlanda.

A história da Electra de há uns anos para cá tem sido uma história de equívocos e inverdades. A interferência do Governo na gestão da empresa seguiu interesses políticos de curto prazo com resultados desastrosos para o sector de energia e água, para a reputação da empresa e para competitividade da economia nacional. O que hoje se vive resulta de vários factores. Em particular dos persistentes défices tarifários que descapitalizaram a empresa, dos investimentos essenciais que não foram feitos no tempo próprio e da ausência de política energética que deixou a empresa sem norte. Mas de tudo isso o Governo vem se desresponsabilizando.

Passando a bola aos outros, culpando a oposição e mesmo inventando sabotadores pode-se segurar no Poder e mesmo ganhar eleições. Mas nem por isso os problemas desaparecem. Portugal teve de repetir eleições em menos de dois anos para finalmente estar em posição de se confrontar com a realidade das suas dificuldades.

Em Cabo Verde vive-se quotidianamente com as consequências da incompetência e desresponsabilização na gestão do sector de energia e água. Aos governantes caboverdianos recentemente eleitos para um novo mandato fica o ónus de provar que não estão a seguir a via do logro, das inverdades por razões de Poder. Têm que demonstrar que reconhecem os problemas e que são capazes de os resolver da forma a que o sector potencie a economia nacional e deixe de ser um travão para o investimento.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 8 de Junho de 2011

quarta-feira, junho 01, 2011

Por onde pára a autonomia universitária?

O Governo resolveu mexer com os estatutos da Universidade pública de Cabo Verde. No preâmbulo do decreto lei 23/2011 justifica a intervenção com a realização das eleições legislativas e com os compromissos assumidos com os caboverdianos no âmbito dessas eleições. As alterações nos estatutos publicadas no BO de 24 de Maio fazem equivaler a Uni-CV a uma Entidade Para Empresarial (EPE), enquadram o Reitor como gestor público e prevêem assinatura de contratos programas. Nesses contratos ficarão inscritas a política do governo e as regras de gestão e prestação de contas.

A mudança dos estatutos aconteceu num momento muito peculiar. O período transitório na Uni-CV, originalmente previsto de dois anos e renovável uma só vez, estava a terminar. Devia seguir-se a eleição do reitor e de outros órgãos da universidade. E uma nova era de mais autonomia, de mais auto governo e mais liberdade para a comunidade académica nos domínios da criação intelectual e do ensino despontaria.

As cartas baralharam-se porém na sequência de eventos em que a UNIV-CV viu o seu reitor integrado nas listas partidárias para as legislativas e, depois das eleições, convidado para ministro do ensino superior. Em vez de garantir maior autonomia, o governo optou por reforçar a superintendência através dos decreto-leis 23 e 24/2011 de 24 de Maio. Uma nova alínea f no artigo 9º concede ao ministro poderes para aprovar alterações aos estatutos por diploma próprio. Expectativas de autonomia estatutária caíram por terra e a eleição do reitor ficou outra vez adiada.

A tentação de controlar politicamente a Uni-cv não tem servido os propósitos da universidade pública nem do ensino superior em Cabo Verde. As controvérsias que desde do início rodearam a nomeação dos órgãos da universidade têm sido de pouca ajuda na construção de um edifício institucional com credenciais académicos sólidas. O espírito centralizador prevalecente descarrilou percursos institucionais autónomos como os do instituto superior de educação (ISE) e do ISECMAR sem que sejam perceptíveis os ganhos. Bem pelo contrário.

A inversão de marcha que a publicação dos decreto-leis de 24 de Maio configura não contribui para a afirmação da universidade pública e não a coloca em posição de dar o impulso esperado para o desenvolvimento do país. Dias atrás Francis Fukuyama, em conversa com o Martin Wolf do jornal Financial Times, disse de forma peremptória que foi com a invenção do método científico e a sua institucionalização nas universidades que Europa conseguiu sobrepor-se ao resto do mundo a partir do século 17 e 18. Segundo ele a intersecção das ideias e das instituições sociais verificada foi essencial. O ambiente de tolerância, de troca de ideias e de não subordinação a autoridade absoluta do Estado ou da religião concorreu para isso e aprofundou-se por sua vez com a dinâmica gerada.

De facto o crescimento rápido que todos pretendem está intimamente ligado com a capacidade de inovar em produtos e processos. Mas isso só acontece com liberdade de criação, com autonomia das universidades em relação ao poder político e com uma sociedade civil vibrante que não se deixa limitar nas suas opções pela estreiteza e conveniência de quem no momento manda.

Editorial do jornal “Expresso das Ilhas” de 1 de Junho de 2011