quarta-feira, julho 27, 2011

Ameaças ao Estado de Direito

Indivíduos e grupos vêm colocando seriamente em causa um dos atributos fundamentais do estado que é o deter o monopólio de violência. Hoje estão ao alcance de pessoas e pequenas organizações armas sofisticadas, meios de comunicação modernos e conhecimentos especializados de guerra que outrora só se encontravam na posse de certas instituições do estado. Experiências de guerra são compartilhados via internet por combatentes informais em diferentes paragens tornando-os em ameaças formidáveis para as forças de segurança nacional. O resultado é qualquer estado ficar desnorteado perante a fúria destruidora que de repente lhe pode cair em cima.

Na semana passada um duplo ataque terrorista na Noruega perpetrado aparentemente por um indivíduo deixou mais de 90 mortes e uma nação subjugada pela dor do desaparecimento súbito de quase uma centena dos seus jovens. Também aqui em Cabo Verde o ataque contra o Juiz do 3º Juízo Crime da Praia causou consternação geral. O choque sentido não derivou somente da tentativa de assassínio de uma pessoa em plena luz de dia. Todos viram-no também como um acto de terror, um autêntico atentado ao pilar do Estado de Direito que são os tribunais e os seus titulares, os juízes. Anos atrás um procurador da república, a mulher e filho foram alvejados e feridos à porta da casa. E ao longo dos anos ameaças dirigidas a magistrados vem-se tornando frequentes.

Nenhum estado consegue ficar completamento isento de ameaças semelhantes. Mas o nível de exposição a perigos diversos depende muito da adequação das políticas e estratégias de segurança à sua realidade específica e também da qualidade e probidade das suas instituições policiais. Para os enfrentar conta muita a capacidade de analisar, identificar e mesmo antecipar problemas e o uso de tácticas adaptadas ao contexto sócio-cultural.

A abordagem do Governo destaca-se, por um lado, por demasiada condescendência para com interesses corporativistas nas forças de defesa e de segurança. E, por outro, por ceder a tentações securitárias, que tem desembocado em excessos de violência policial e consequente erosão dos direitos dos cidadãos. Nessa qualidade revela-se um impedimento a um controlo social, político e legal mais apertado da actividade policial. A agravar a situação juntam-se dificuldades sérias no controlo efectivo de fronteiras nacionais, tornada porosa por tratados regionais de livre circulação, e a falta de vontade política em legislar em matéria de uso, venda e porte de arma. Neste particular é próprio Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, em entrevista a um jornal da praça, que aponta para casos de civis na posse de armas, condição, segundo ele, que existe desde da independência nacional e da proliferação de milícias populares por todo o território nacional.

Segundo relatos da imprensa o alegado atirador contra o juiz teria sido um efectivo da Legião Estrangeira Francesa, ou seja um especialista de armas. Isso chama a atenção para a situação cada vez mais frequente de muitos estados enfrentarem indivíduos sofisticados no manuseamento de armas treinados por eles nas suas forças especiais. O problema já existe cá entre nós. Vários soldados a quem foi dado treino especializado enveredaram-se por actividades criminosas com uma sofisticação inesperada. Não se fez um plano para, por exemplo, os enquadrar na polícia ou em empresas de segurança e ficaram sem ocupação mas bem treinados em tácticas perigosas para a vida e bens dos cidadãos. O resultado vê-se.

Crimes acontecem, perigos graves podem sempre surgir mas o sentimento de insegurança só se apodera das pessoas quando a confiança deixa de existir ou é abalada profundamente. Sem confiança nas instituições, nas palavras dos governantes e nos actos concretos do dia-a-dia dos agentes da ordem pública, dificilmente se estabelece a relação adequada entre a comunidade e a polícia que viabiliza no essencial todo o plano de segurança. No mundo de hoje, onde as ameaças navegam indistinguíveis pelo meio da população, a efectividade da polícia depende da cooperação que souber granjear junto da comunidade para as puder identificar em tempo útil. Para isso é imprescindível o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, a defesa das instituições do estado de direito e o cultivo do orgulho e do espírito do bem servir entre todos os elementos da polícia.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 27 de Julho de 2011

quarta-feira, julho 20, 2011

Eleição presidencial crucial

No dia 7 de Agosto o povo vai às urnas para eleger o presidente da república. Com as eleições presidenciais fecha-se o ciclo eleitoral dos órgãos da direcção política do Estado. Já em Fevereiro último tinha sido eleita a Assembleia Nacional, enquanto órgão representativo do pluralismo e da diversidade de interesses dos cidadãos. O Governo foi então atribuído ao PAICV que conseguiu uma maioria de 38 deputados contra os 32 do MpD e os 2 da UCID. Chegou agora o momento de eleger o presidente da república que melhor encarne a nação unida nos princípios e valores que ela própria, soberanamente, consagrou na Constituição.

A eleição do presidente da república distingue-se das eleições dos outros órgãos de poder político. Os proponentes são simples cidadãos diferentemente do que acontece com o parlamento onde só partidos políticos apresentam de listas de deputados e também do que acontece nos órgãos autárquicos onde candidaturas podem vir de partidos políticos e de grupos de cidadãos. Compreende-se que assim seja, considerando que as causas do presidente visam fortalecer a unidade da nação e não a polarizá-la ou a oferecê-la opções alternativas de acção. O presidente da república não governa. É o guardião da Constituição, o árbitro e o moderador do sistema político.

A governação do país envolve execução de políticas cujo processo de definição e confirmação implica o exercício do contraditório ao longo de toda a sua extensão. São garantes desse exercício fundamental em democracia a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, a existência de partidos políticos, os direitos das minorias e a independência dos tribunais. A existência de dissenso é fundamental para a dinâmica, a criatividade e a renovação do sistema. Mas só cumpre o seu papel na tranquilidade e de forma livre e solidária se for preservado o consenso quanto ao essencial que une a Nação.

O Presidente da República tem um papel central na conservação desse consenso indispensável ao progresso na Liberdade. Velar pelos direitos dos cidadãos e assegurar que todos os órgãos de soberania e as instituições funcionem plenamente no âmbito das suas competências e no respeito pela Lei é o que se exige dele. A sua contribuição para estabilidade da governação provem não de uma suposta colaboração com o governo mas sim de certificar-se do cumprimento das regras do jogo democrático e de que os cidadãos não sofrem abuso de Poder e não lhes é negada Justiça.

A democracia caboverdiana com vinte anos é muito jovem. As instituições mostram as marcas da luta renhida que ainda são travadas para se imporem num ambiente ainda com vestígios de culturas políticas iliberais e avessas ao estado constitucional. E notam-se na presidência da república. O exercício do cargo tem ficado aquém do esperado e do que o sistema político exige. Razões são várias, entre elas destacam-se as lealdades partidárias que se manifestam em acções e omissões na relação com o governo. Uma oportunidade se abre com as próximas eleições para se eleger um PR em paz com a Constituição e acima de tentações de colaboração ou de oposição ao governo para satisfazer antigos correligionários do partido.

Com a crise que assola o mundo e em particular os nossos parceiros na União Europeia urge que se adopte a atitude certa na mobilização da energia da nação para enfrentar os desafios do futuro. É cada mais evidente que isso não tem sido feito: Permite-se que se arraste por mais de dez anos o problema crucial do fornecimento de água e energia. A insegurança persiste, não obstante os enormes gastos públicos, e há sinais preocupantes que as próprias forças policiais deixam-se corroer. Também constata-se que, apesar dos níveis elevados de frequência, os jovens terminam os estudos sem as competências que lhes podia garantir emprego e ser um factor de competitividade do país.

O jogo democrático não tem feito valer todas as suas virtualidades. Tem faltado a confiança que o cumprimento das regras e a clara assunção das responsabilidades dentro do sistema político podia ter criado. Em vez de cooperação, inclusão e solidariedade vem-se insistindo num jogo de soma zero que aumenta a desigualdade e promove a ineficiência no uso de recursos e a incompetência na execução. Do novo presidente da república a ser eleito no dia 7 de Junho espera-se um novo comprometimento e engajamento no reforço do que nos distingue como nação e que seja garante da nossa caminhada na Liberdade e no Pluralismo, rumo à prosperidade.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 20 de Julho de 2011

quarta-feira, julho 13, 2011

Cidade administrativa e centralização

O Primeiro-ministro José Maria Neves confirmou a intenção do governo em construir uma cidade administrativa na cidade da Praia no valor de 220 milhões de dólares. A ideia de um centro administrativo na capital reunindo vários ministérios, institutos serviços e outras entidade do estado tinha sido aflorado a quando da visita do presidente Lula da Silva há um ano atrás. Imediatamente anunciado pelo governo, que então se encontrava em pré-campanha para as legislativas, o projecto da cidade administrativa ganhou um outro fôlego nas últimas semanas. Curiosamente isso aconteceu a meio de umas outras eleições, as presidenciais.

A ideia de construção de raiz das cidades administrativas relembra os grandes projectos estratégicos de países como Estados Unidos da América, o Brasil e a Nigéria na edificação das suas respectivas capitais em Washington, Brasília e Abuja. Foram projectos considerados megalómanos mas que eventualmente se justificaram com a necessidade de dar ao Estado Federal um símbolo, um locus, onde a nação na sua globalidade podia rever-se. Nas declarações dos governantes caboverdianos não se vislumbra que tenha sido essa a razão de ser para o projecto. Aliás está projectada para ser mais um espaço estatal na cidade-capital.

Pergunta-se então qual é estratégia por detrás da decisão do governo. O Primeiro-ministro explica em declarações à imprensa que é um “passo importante” para garantir a transformação na Administração Pública, que se quer “mais célere e mais eficaz”. No mesmo sentido o Secretário de Estado da Administração Pública diz acreditar que “será um empreendimento fabuloso tanto para os privados, quanto para os utentes que estarão mais próximos de todos os serviços”. Ou seja investe-se 220 milhões porque de alguma forma espera-se que os serviços da administração caboverdiana tornar-se-ão mais eficientes com a proximidade uns dos outros. O governo ainda encontra razões para o projecto fazendo contas nas rendas que deixaria de pagar mudando as repartições para a cidade administrativa.

Nos cálculos da construção de uma cidade administrativa no Estado das Minas Gerais no Brasil entrou a projecção no crescimento em 12% do PIB que o projecto iria induzir. Não só pelo efeito de arrastamento que teria na economia do Estado afectando a construção civil, indústrias e serviços locais como também no que iria servir de atractivo para os investimentos privados. Nos cálculos dos governantes caboverdianos tais externalidades dos investimentos públicos parecem não contar. Fica-se com a sensação que o que importa é tomar o crédito estrangeiro, nem que no essencial os trabalhos fiquem à conta de empresas estrangeiras, e depois mostrar obra feita. Depois das inaugurações é rezar para que não sejam elefantes brancos.

No caso do projecto da cidade administrativa a insensibilidade do governo para com a problemática urgente de combater o desemprego e reforçar o tecido empresarial é reforçada pelo que é aparentemente o desconhecimento dos efeitos centralizadores da do próprio projecto. Ou seja no momento em que toda a classe política fala de necessidade de um reforço de descentralização do Estado e de regionalização, o Governo envida esforços para na prática acelerar-se o processo de centralização. Depois de construídas estruturas próprias dos serviços estatais muito dificilmente serão deslocalizados para outras ilhas e pontos do território nacional.

A cidade administrativa na Praia irá acelerar a centralização do país. Aumentará os desequilíbrios na ilha de Santiago e será factor de crescimento de migrações internas em direcção á Capital prejudicando a retoma das dinâmicas económica social e cultural das outras ilhas. Em consequência diminuirá a diversidade da nação tornando todos mais pobres. Por outro lado, o crescimento rápido da Praia vai tornar ainda mais intratáveis os problemas de urbanismo, saneamento, de energia e de criminalidade. É evidente que perante este cenário negro cujos contornos já se notam com o actual nível de centralização, é fundamental que qualquer passo em frente para implementar projecto de tal envergadura seja submetido escrutínio sério e aprofundado de todos os caboverdianos.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 13 de Julho de 2011

quarta-feira, julho 06, 2011

Nobreza no combate pela Liberdade

Proclamação da Independência é um grito de liberdade e uma manifestação básica de dignidade. Afirma com veemência o direito de não sofrer opressão dos outros e tem como pressuposto essencial o princípio que todos os homens são iguais. Por tudo isso não deixa espaço para alguns ditarem o que é a liberdade, que formas pode assumir e que etapas é obrigada a respeitar. A Independência é sequestrada e desviada da sua razão última sempre que é invocada para legitimar tiranias, justificar a opressão e desresponsabilizar insistindo numa pseudo ética de intenções.

Na declaração de Independência dos EUA há 235 anos o escopo do que então se proclamava ficou bem claro: falava-se da existência de direitos inalienáveis do indivíduo a começar pelo direito á vida, à liberdade e á procura de felicidade que nenhum poder legitimamente devia atropelar. Também se referia ai ao direito dos povos em ter governos por eles escolhidos e não impostos por forças exteriores. E ainda ao direito de revolta contra governos que manifestassem ser destrutivos para o povo e para a nação na sua ânsia de se perpetuarem no poder.

A promessa de liberdade na proclamação de independência cria uma dinâmica e uma tensão construtiva que não consegue alívio até que se concretize na garantia de exercício dos direitos fundamentais dos indivíduos, no respeito pelos direitos das minorias e na instituição plena da democracia. Nos Estados Unidos da América o conflito entre as promessas da Declaração da Independência e a realidade da escravatura teve que ser resolvida. E foi, pela via de uma guerra civil violenta, sangrenta e que custou muitas centenas de milhares de vidas. O presidente Lincoln, para forjar uma União mais perfeita da Nação americana tornou inseparáveis o respeito pelos direitos do homem e a existência de um governo do povo, pelo povo e para o povo. Ainda hoje é relembrado por isso.

Muitos poucos dos que posteriormente se juntaram às lutas pela independência podem reivindicar o mesmo. Em muitos países, a promessa da liberdade no momento de independência foi esvaziada primeiramente pelos que a protagonizaram. Na sua esteira sucederam-se ditaduras, opressão de minorias, guerras civis cruéis e assaltos indescritíveis à liberdade do cidadão comum. É evidente que por muito que façam para exaltar os seus feitos perante o mundo não se encontram no mesmo panteão onde estão os verdadeiros Combatentes da Liberdade.

Como podem ser lembrados se anos a fio esqueceram por completo que a independência antes de mais clama pelo reconhecimento “das opiniões, dos direitos e do patriotismo essencial dos outros”. Querendo poder acima de tudo afirmaram-se como os “sages” detentores da verdade absoluta. Arvoraram-se em pais da nação e protectores do povo. Não deixaram quaisquer dúvidas quem eram os únicos patriotas. Com tais pressupostos tudo se permitiram em nome da sua condição de força, luz e guia do povo.

Hoje povos em todos os continentes conhecem a verdade. Sabem que a promessa de liberdade demasiadas vezes é morta logo no dia da independência. Cabo Verde teve de esperar mais de 15 anos para a ver cumprida. Por isso, quem a História regista como combatentes da liberdade são líderes como o Nelson Mandela. Em nome da dignidade abriu o caminho para ao reconhecimento da igualdade de todos na Africa de Sul do apartheid e promoveu a reconciliação nacional. Chegado ao Poder lançou as bases da construção de instituições sólidas que garantem para a posteridade o exercício das liberdades, a protecção das minorias e uma governação com respeito estrito pela Constituição e as leis da república.

Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 6 de Julho de 2011