sexta-feira, abril 24, 2015

Regionalização adiada sine die

A cimeira da regionalização prevista para Dezembro do ano passado mas só realizada na semana passada, nos dias 14 e 15 de Abril, foi para muitos observadores mais um exemplo da proverbial montanha que pariu um rato. A Declaração da Praia proferida no término dos trabalhos não definiu compromissos para além de um plano estratégico para integrar as temáticas debatidas na cimeira. O Primeiro-ministro fez questão de sublinhar que o “mais importante é pensar na descentralização e que qualquer tipo de regionalização será a prazo”. Sondagens do Afrobarómetro vindas ao público arrefeceram mais os ânimos a favor da regionalização com a informação de que ela não consta da lista das dez principais preocupações dos cabo-verdianos.
A questão da regionalização do país tem-se revelado nos últimos anos matéria política quente. Falar da regionalização ajuda a mobilizar vontades e paixões políticas. Críticas podem ser dirigidas contra o governo agitando a bandeira do combate ao centralismo e a macrocefalia da Capital. Políticos locais podem cavalgar no descontentamento popular alimentado pelo sentimento de abandono para mais facilmente se fazerem eleger e se consolidarem no poder. A reivindicação da autonomia pode ser erigida em arma de arremesso para forçar a mão de quem tem o grosso dos recursos do Estado.
A quebra nos últimos anos do crescimento económico nacional e o aumento do desemprego põem as pessoas inquietas e receosas em relação ao futuro. Ficam mais sujeitas ao tipo de discurso com traços demagógico e populista que tende a pôr uns contra os outros. A regionalização pode ser um desses discursos. O facto de, apesar disso, o “balão” ter sido em boa parte esvaziado na sequência desta cimeira de regionalização, poderá significar que o governo conseguiu ver a ameaça e soube contorná-la. Em vez de se prestar a alvo de críticas, ressentimentos e frustrações nas ilhas devidos ao excessivo centralismo, o governo manobrou inteligentemente para não ser visto como o problema, mas como parte da solução. Apresentou-se como líder na procura do melhor modelo e caminho para a regionalização. Entretanto as tendências já constatadas na relação com o poder local e com as ilhas continuavam na mesma: o centralismo é cada vez maior, a autonomia dos municípios sofre erosão diária e a capacidade das ilhas, em manterem a massa crítica populacional necessária para garantir dinâmica económica e cultural, tende a diminuir. 
O problema com a regionalização é que por demasiadas vezes o que está subjacente ao seu debate é uma lógica redistributiva. Muitos apoiantes querem simplesmente que recursos disponibilizados ao país sejam melhor distribuídos pelas ilhas. Não querem perceber que dirigir uma economia que privilegia a reciclagem da ajuda externa gera inevitavelmente centralização. A necessidade de comando e controlo obriga que tudo se concentre essencialmente na cidade capital e que os procedimentos sejam centralizados.

As ilhas precisam de uma dinâmica económica que as faça mais ricas, mais autónomas e mais capazes de conservarem a sua população e os seus jovens promissores que decidiram ficar na ilha. Consegue-se, rompendo com o modelo económico prevalecente nos últimos anos e que tem colocado Cabo Verde a crescer a taxas baixíssimas do PIB. Mas, como se viu nas manifestações e comentários a propósito das alterações ao estatuto dos titulares dos cargos políticos, não é fácil tirar as pessoas de um modelo económico como o de reciclagem de ajudas que cria uma mentalidade de “soma nula”: se estás a ganhar, estou a perder. Para esse tipo de raciocínio não há situações win-win em que todos podem ganhar.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 22 de Abril de 2015

sexta-feira, abril 17, 2015

Da rua não se governa

Os últimos dias não foram bons para a democracia cabo-verdiana. Passou-se a ideia de que se pode governar a partir da rua. Uma lei do Parlamento aprovado por unanimidade dos deputados não mereceu do presidente da república nem 24 de horas de avaliação, ponderação e maturação. Na fundamentação do veto político o PR usou argumentos apresentados nas manifestações populares e nas redes sociais e concluiu que era necessária uma reavaliação do diploma pelos deputados. A pronta reacção das forças políticas representadas no Parlamento foi de abandonar o diploma aprovado e de se declararem indisponíveis para o reapreciar.
Em vários sectores da sociedade, muitos se regozijaram com esse inédito capitular dos órgãos representativos da república perante protestos de alguns milhares de pessoas e perante expressões de desacordo no Facebook, em comentários online e em opiniões nos órgãos de comunicação social. Realmente a rapidez e a facilidade com que todos se libertaram do diploma até podia fazer esquecer que para o aprovar foram precisos anos de negociações com participação activa da direcção dos grupos parlamentares e da chefia do governo. O próprio PR, dias antes da discussão e aprovação da lei, aceitou receber os líderes parlamentares para lhe serem apresentados os consensos conseguidos.
A crise que aflige o sistema político aparentemente tem origem na oposição da nova líder do PAICV a algumas normas do estatuto dos titulares de cargos políticos (ETCP). Uma oposição  que estaria a colocá-la em rota de colisão com o grupo parlamentar do seu partido e com o próprio governo de que faz parte. Há, porém, um problema com essa ideia. Se há crise no Paicv não se vêem as consequências onde elas deviam se manifestar. 
 O líder parlamentar, apesar de discordar das orientações da líder do partido em matérias essenciais, não deixa o lugar como é prática generalizada nos regimes parlamentares. Nem a líder que também é ministra não deixa o governo mesmo quando o PM esteve claramente envolvido nas negociações do ETCP que merece publicamente a sua discordância. Durante toda a discussão e aprovação do diploma, o governo manteve-se em silêncio numa atitude de “quem cala, consente” e ela não compareceu aos trabalhos na AN para mostrar o seu desacordo e motivar eventuais apoiantes entre os deputados do Paicv. Apesar das diferenças serem públicas, nem há demissão da ministra nem o PM se disponibiliza a deixar o governo por falta de sintonia com a líder do partido que suporta o governo.
Por outro lado, com a maioria parlamentar e o governo aparentemente inamovíveis perante as demandas da líder do partido, estranha que não ocorra a ninguém ultrapassar o impasse na liderança e na bicefalia no exercício do poder com um congresso extraordinário que fizesse o partido outra vez uno à volta de um líder efectivo. Desconcertante também que ninguém se preocupe com isso mesmo quando forças populistas já se fazem sentir e se mostram passíveis de manipulação. Não são normais conflitos no centro de organizações sem que haja consequências ou um desfecho final. Quando apesar de tudo persistem é porque resultam de encenação ou de actos de ilusionismo com vista a atingir objectivos políticos muito concretos.
Um deles de há muito procurado por certos sectores políticos é o do descrédito do Parlamento e por arrastamento do sistema de partidos e do pluralismo. É relativamente fácil despertar sentimentos anti partidos e anti pluralismo numa sociedade que viveu mais de quarenta anos do Estado Novo de Salazar e depois quinze anos de partido único. Neste momento esse sentimento está ao rubro e certamente que acaba por afectar todas as instituições democráticas, ou pela via de hostilidade directa, ou pela forma como é aproveitado por quem se julga capaz de colher as paixões mobilizadas e torná-las em ganho político permanente.
O presidente da república é um alvo preferido. A natureza suprapartidária do cargo aparentemente fá-lo ideal para ser lançado contra os partidos. Esquece-se que ele não só não pertence aos partidos como também não deve ligar-se a qualquer outra organização. O grupo de cidadãos que o propôs não tem existência para além da eleição. O seu exercício de árbitro e moderador do sistema políticos é um exercício atento mas solitário e não pode dar a ideia de que se submete a pressões exteriores, muito menos a pressões vindas da rua.
Noutras democracias, o governo é o primeiro chamado à liça perante qualquer coisa, seja ela positiva ou negativa. Se em Cabo Verde acontecesse o mesmo, as anomalias no sistema de poder actual, entre o Paicv e as suas e expressões institucionais o governo e a maioria parlamentar seriam facilmente notadas. Mas aqui a tendência geral é não responsabilizar o governo mas sim os “políticos” e canalizar as exigências aos deputados como se tivessem poder executivo. Com tais interlocutores é relativamente fácil protestar mas os problemas do país que em geral dependem de políticas compreensivas do governo correm o risco de ficar por resolver. É a frustração que daí resulta é que depois dá lugar a populismos facilmente aproveitáveis por certos políticos.

 Resistir à onda populista é fundamental. Também é essencial exigir que titulares de órgãos de soberania cumpram a sua função assim como projectado na Constituição e não caiam na tentação de elogiar a “rua” para ter ganhos políticos, sacrificando a função e as instituições existentes.  Afinal, não há democracia fora da Constituição e muito menos contra ela”.

    Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 15 de Abril de 2015

sexta-feira, abril 10, 2015

Tentação populista

Desde as manifestações de 30 de Maio contra o estatuto dos titulares de órgãos de soberania sente-se no ar uma espécie de euforia “revolucionária”. Sobressai em conversas de café, em opiniões e análises políticas e em vários exercícios informais de futurologia política. Em parte é provavelmente produto da novidade. Também virá da satisfação e surpresa de se ouvir protesto nas ruas por algo controverso, quando tanta coisa não anda bem e ninguém questiona ruidosamente.  
Largos anos se tinham passado em Cabo Verde sem que se assistisse a manifestações frontalmente políticas. Problemas persistentes como o desemprego, o baixo crescimento, o aumento de insegurança e a falta de perspectiva para os jovens não conseguiram mobilizar as pessoas contra a governação. A perspectiva de aumento de salários e regalias para os detentores de cargos políticos pelo contrário já pôde. De uma postura aparentemente conformista, num ápice, passou-se para a acção. Para os jovens manifestantes que nunca viram nem participaram em acontecimentos do género terá tido um efeito catártico.
Tudo isso compreende-se. O que parece não se justificar são as esperanças desmedidas que se procura projectar nelas. Há quem veja sinais de uma sociedade civil activa. Outros imaginam um novo partido que à imagem do Podemos espanhol ou do Syriza grego poderia reformar o actual sistema de partidos. E certamente há quem veja motivação político-partidária como parece ser o caso do Primeiro-ministro, a confirmar a presença de “dirigentes e militantes destacados do Paicv na linha de frente das manifestações”.
 Independentemente do que originariamente foi ou pretendeu ser e o que virá a constituir no futuro, o mais certo é que algo mudou no país. Uma nova era de manifestações de agravos públicos poderá ter surgido em que ninguém se vai sentir grandemente inibido com eventuais interpretações ou acusações de conveniência ou de instrumentalização política. Dois factos porém vão contra a ideia de que algo radicalmente novo aconteceu: por um lado, o protesto não é dirigido contra o governo. Foca-se no Parlamento e nos deputados e associa, mas de forma quase difusa, os outros políticos. Por outro lado, não parece ser totalmente espontâneo, enquanto reacção da sociedade civil. Dá sinais de resultar também da luta da nova líder do Paicv para se afirmar no seu partido e apresentar-se, a pensar nas eleições de 2016, como o rosto de renovação na política cabo-verdiana.
De todo o modo, o problema maior a evitar nessas movimentações é cair na tentação populista: as soluções fáceis, as paixões exacerbadas, o discurso anti-político e anti-partido e a minimização das instituições democráticas. Não é algo fácil como já se pode constatar nos ataques violentos dirigidos aos deputados, no tipo e forma de pressão que se coloca ao presidente da república e na apologia da chamada democracia participativa em detrimento da democracia representativa. Outrossim, a busca de soluções para os  desempregados e empregados mal pagos via uma putativa redistribuição de recursos que estariam ilegitimamente apropriados por alguns privilegiados políticos só pode exacerbar o ressentimento social, diminuir a confiança nas instituições e mobilizar pessoas para protestos. Certamente não abre caminho para se encontrar a via ou as vias de prosperidade para todos com mais emprego e mais crescimento económico.

Cabo Verde vive um ano pré-eleitoral. Nenhum observador atento duvida que a campanha eleitoral já está em pleno progresso. A questão que se coloca é quem ganha com os ataques ao Parlamento que também são ataques ao pluralismo. Quem ganha com o apontar de defeitos à democracia representativa que apesar das suas imperfeições é a única forma de democracia que historicamente tem conservado as liberdades e tem garantido a prosperidade geral. Finalmente, quem ganha com a aparente disfunção do PAICV que parece de um lado estar com o “povo” e do outro continua a suportar o eixo governativo do país, o governo e a maioria parlamentar, cuja posição em matéria de estatuto de titular de órgãos de soberania é repudiada em manifestações desse mesmo “povo”.

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 8 de Abril de 2015 

sexta-feira, abril 03, 2015

Crise aberta

O Primeiro-Ministro José Maria Neves em declarações à RCV disse que os consensos obtidos em relação ao estatuto dos titulares dos cargos políticos “estão a ser postos em causa designadamente pelo PAICV cujos dirigentes e militantes destacados estiveram na linha de frente das manifestações”. A nova líder do PAICV, também em entrevista à RCV, confirma que a sua comissão política discorda de várias opções assumidas no diploma aprovado, nomeadamente a actualização salarial que “não teria sido socializada” com esse órgão político. A divergência de posições entre o chefe do governo e a presidente do partido é clara e aberta. O jogo político já ultrapassa as fronteiras do partido e já foi para a rua: uma parte acusa a outra de estar à frente de manifestações e a outra responde que há que ouvir os protestos das pessoas.
Como fica a governação do país se a líder do partido que deve suportar o governo está aparentemente em colisão directa com o governo. Como conciliar a situação do PAICV como partido maioritário se a direcção do partido e a sua bancada parlamentar dão sinais de estar de costas viradas. Uma consequência desta situação pouco usual já é visível. Segundo o PM, no que respeita ao estatuto dos titulares dos cargos políticos, o consenso que já vinha desde 1997 foi agora posto em causa e teremos de repensar tudo isto e eventualmente até determinados aspectos da vida política nacional, ou do sistema político, designadamente o sistema eleitoral, o financiamento dos partidos políticos, o financiamento das campanhas eleitorais, etc.
Uma outra consequência poderá verificar-se no futuro próximo. Se se verificar um veto presidencial ao diploma legislativo, como irá proceder a direcção do PAICV? Irá trabalhar contra a vontade prevalecente na sua bancada parlamentar e no governo para evitar que haja uma maioria que confirme os estatutos aprovados? Por quanto tempo se poderá suportar a fricção aberta entre a liderança do partido e a presença institucional do partido no parlamento e no governo?
Num editorial recente este jornal chamou a atenção para o facto excepcional de o chefe do governo não ser chefe do partido. Argumentava-se que tensões podiam surgir entre membros do governo que foram rivais na luta pela liderança ou entre o novo líder do partido e o antigo líder que ainda se mantém com chefe do governo. Em qualquer das situações haveria uma perda inequívoca da eficácia do governo com o desenvolvimento de lealdades paralelas que inevitavelmente acabariam por surgir. Apontamos então que por uma outra via podia-se repor a estabilidade, previsibilidade e transparência no exercício do poder: ou o primeiro-ministro demitia-se e entrava o novel presidente numa posição cimeira no governo ou então o governo ainda por ele chefiado renovava a sua relação com a maioria parlamentar através de uma moção de confiança. Não tendo ido por uma ou outra via é que se chegou à situação actual de corte caricato entre o partido, detentor da maioria dos votos nas últimas eleições legislativas, e a sua bancada parlamentar. No mesmo sentido se constata a falta de sintonia e de articulação com o governo.
As manifestações populares na capital e em várias outras ilhas, pela juventude dos participantes, exuberância demonstrada e paixão colocada nos protesto têm “efeito de gasolina” neste ambiente político em rubro. O facto de serem raras – a última manifestação com fortes tonalidades políticas provavelmente aconteceu em 2006 contra a Electra então dirigida pela empresa portuguesa EDP – os governantes e em geral os políticos desabituaram-se com o descontentamento visível e ruidoso dos cidadãos. Quando se deparam com protestos mais vigorosos não dão a aparência de serenidade que é fundamental para o funcionamento do sistema político e da sociedade. Na verdade, não se pode deixar de ouvir as pessoas, mas também ninguém governa a partir da rua.

A extrema sensibilidade e mal-estar demonstradas perante o que o PM chamou de actualização já tardia dos salários dos titulares de cargos políticos fixados em 1997 revelam o quanto as pessoas percebem que vivem num ambiente de soma zero. O que é ganho para ti, deve ter sido subtraído de algum outro. Em ambiente de fraco crescimento, desemprego elevado e diminutas oportunidades, a desconfiança mútua aumenta, cresce o desespero e a falta de confiança nas instituições aprofunda-se. Cabe aos governantes e aos representantes legítimos do povo manter a sociedade inclusiva, combater a impunidade e renovar a crença num dia melhor derivado do trabalho e da capacidade de cada um dos seus membros.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 1 de Abril de 2015