sexta-feira, setembro 25, 2015

Dia da Constituição



A Constituição democrática de Cabo Verde entrou em vigor no dia 25 de Setembro de 1992. Dezassete anos já tinham decorrido desde o dia da independência a 5 de Julho de 1975, quinze anos dos quais sob o regime de partido único. Com a Constituição de 1992, Cabo Verde consagrou-se como Estado de direito democrático tendo como fundamento o respeito absoluto pela dignidade humana. Os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos de corpo inteiro na sua própria terra, livres para se exprimirem, livres para escolherem quem os pode governar e livres para escolherem como podem ser felizes e prosperar. É estranho que um dia com tanta consequência não seja celebrado devidamente.
Vários países do mundo registam com solenidade o dia de adopção da Constituição, nalguns casos até como feriado nacional. A Espanha tem o seu dia da Constituição referente a 6 de Dezembro de 1978 que marca o fim do franquismo e Portugal tem o 25 de Abril que acumula o simbolismo da revolução contra a ditadura, das primeiras eleições livres e plurais e da entrada em vigor da Constituição de 1976. Outras democracias da chamada Terceira Vaga, em particular os que se libertaram de regimes totalitários e autoritários na sequência da queda do Muro de Berlim comemoram o dia em que se juntaram a outras nações na consagração dos valores da liberdade, da democracia e do primado da lei. Em Cabo Verde em anos anteriores já houve pontualmente iniciativas designadamente da Presidência da República, da Assembleia Nacional, de partidos políticos e de universidades a marcar a data, mas nada está institucionalizado.
O Parlamento que devia assumir-se como ponto focal da celebração da Constituição, recusa-se sistematicamente a esse papel. Não o faz no dia 13 de Janeiro, Dia Nacional da Liberdade e da Democracia e muito menos se disponibiliza para isso nos aniversários da entrada em vigor da Carta Magna do país. Em Espanha, por exemplo, nos dias anteriores ao feriado da Constituição, entre outras actividades, as escolas dedicam tempo especial a introduzir as novas gerações no estudo da Lei Fundamental do país. Em Cabo Verde, pelo contrário, nos feriados privilegiam-se referências à luta de libertação na Guiné-Bissau com base quase exclusivamente em elementos da historiografia oficial do PAIGC/PAICV. Nas comemorações dos 40 anos de independência, que se vêm arrastando meses a fio, o grosso das actividades tem sido dedicado à homenagem dos “libertadores” e dos protagonistas do regime de partido único que eufemisticamente se passou a chamar de “construtores do Estado”. Perante o paradoxo evidente de o Estado constitucional privilegiar nos seus actos públicos a homenagem a figuras de um regime nas antípodas da democracia é de se perguntar qual é, de facto, o nível de comprometimento das instituições estatais com os princípios e valores da Constituição de Cabo Verde.
O Estado que hoje se tem em Cabo Verde foi construído seguindo elementos referenciais que estão na Constituição de 1992, designadamente os de separação de poderes, da legitimação do poder pelo voto livre e plural, do respeito e garantia dos direitos fundamentais, da independência dos tribunais e da autonomia do poder local. Deverá continuar a evoluir e a consolidar-se seguindo esses princípios fundacionais. A realização das expectativas dos cidadãos de ter um Estado cada vez menos partidarizado, mais respeitador dos direitos fundamentais e da legalidade e com uma cultura de serviço público voltada para a eficiência e eficácia na relação com os utentes vai depender da atitude de todos os partidos e dos cidadãos no que respeita ao contracto social consubstanciado na Constituição da República. Essencial para isso será garantir a aceitação por todos das regras do jogo democrático, evitar ambiguidade ou ambivalência em relação aos seus princípios e valores e assegurar-se que a narrativa que a justifica é a do abraçar da liberdade e dos valores civilizacionais como a igualdade perante a lei, igualdade de oportunidades e o pluralismo enquanto motor da dinâmica social, económica e política. Seguir um outro caminho leva a ineficiências graves, crispação política e alguma incapacidade de gerar alternativas de políticas e de governação. 
Nas democracias, os rituais à volta do processo de eleições, de transferências de poder, de responsabilização política e de confirmação da independência do poder judicial são essenciais para manter alto o nível de confiança no sistema. Nessas democracias os partidos chamados do “arco da governação” mostram-se especialmente comprometidos com o regime constitucional. Podem ser ferozes opositores entre si, mas tacitamente revelam-se unidos na defesa das regras do jogo democrático. Feriados nacionais e outros momentos carregados de simbolismo nacional são usados para confirmar essa defesa intransigente de regime democrático. Em Cabo Verde não deveria ser assim?
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Setembro de 2015

sexta-feira, setembro 18, 2015

Cuidar da qualidade da democracia



Dados do Afrobarómetro publicitados na semana passada trazem informações no mínimo intrigantes. A percentagem de cabo-verdianos que consideram que as eleições de 2011 reflectem a escolha dos cabo-verdianos (54%) é a mesma que acredita que houve suborno no processo eleitoral. A percepção de que houve aumento de corrupção de 2011 para 2014 é acompanhada da ideia de que não há denúncias porque as pessoas têm medo das consequências (56%) e que os órgãos de comunicação social não são eficazes em revelar erros do governo e actos de corrupção.
A impressão que sobressai da sondagem é que está-se perante uma sociedade em que a funcionalidade das instituições e o exercício das liberdades foi de alguma forma comprometida. É o que basicamente deixa a entender a maioria dos sondados quando diz que há medo, que a liberdade de imprensa é limitada ou autolimitada e que o processo eleitoral sofre pressões. A dependência cada vez maior dos indivíduos em relação ao Estado seria a principal causa deste minguar da democracia. Dependência essa que acelerou nos últimos anos, à medida que, por um lado, o peso do Estado aumentou e predominam os investimentos públicos e, por outro, a economia não cresce o suficiente, o desemprego mantém-se alto e o sector privado nacional vive tempos difíceis.
Sabe-se que em situações similares de precariedade e de riscos diversos no futuro próximo a tendência das pessoas é agarrar no “certo e garantido” que vem do Estado. Ao enveredar por essa via de assegurar favores e acessos especiais contêm-se enquanto cidadãos atentos e críticos. Já uma outra motivação tem quem gere os recursos públicos. Aí a tentação é de usar as múltiplas oportunidades criadas pelas fragilidades do momento para a compra de lealdades e condicionamento de comportamentos particularmente em tempos eleitorais. A institucionalização de facto destas práticas de encontro de dadores e beneficiários pela via da repetição na televisão e em outros órgãos dá-lhes um ar de normalidade. Mas ninguém ignora o aproveitamento político  subjacente. Em momentos eleitorais, nacionais, locais e intrapartidários ouvem-se denúncias desse aproveitamento de recursos do Estado para ganhos eleitorais. Logo depois, porém, desaparecem numa espécie de buraco negro onde a percepção de que tais práticas fazem parte do “nosso normal” desculpa os que acusaram, iliba os alegados prevaricadores e isenta o Ministério Público e outras entidades fiscalizadoras do trabalho e da preocupação em verificar a veracidade das afirmações feitas publicamente.
Algum sentimento de que o “actual normal” não deve ser o normal desejado pode estar traduzido em parte nessa percepção do aumento da corrupção em certas entidades detentoras do poder concreto que afecta as pessoas no dia-a-dia. Da mesma forma a sensação de quase impotência perante o que se passa à volta poderá estar a manifestar-se na constatação de que os mídia não estão a ser eficazes em controlar os erros do governo e os actos de corrupção. Curiosamente, um sentimento similar surgiu há algum tempo atras, sendo ventilado em relação aos deputados e ao próprio Parlamento. A frustração com a aparente falta de efectividade do Parlamento levou então a uma espécie de crise de representação que trouxe à tona discussões várias à volta do parlamentarismo, dos sistemas eleitorais e do papel dos partidos políticos.
Algo que alguns podiam chamar de dissonância cognitiva poderá estar a verificar-se. Por um lado, as pessoas e a sociedade sentem-se apanhadas na teia da realidade criada pelo discurso oficial que basicamente anuncia “manhãs que cantam” com clusters diversos e água nas barragens. Por outro, no quotidiano vive-se num ambiente de letargia económica, de falta de perspectiva de emprego e de algum receio sobre o que a dívida pesada que o país acumulou poderá representar no futuro próximo. E todos estão a ver neste mundo de dificuldades crescentes as consequências de não se encontrar soluções para os problemas de endividamento do Estado. Perante tudo isto, não há o debate necessário que seria capaz de revelar a real situação do país e ajudar na ponderação das opções. Nem também a fiscalização adequada dos actos do governo como se pode extrair dos dados trazidos a público por este e outros jornais que dão conta de transferências de recursos públicos a associações diversas num processo que prima pela falta de transparência.
Na celebração de mais um Dia Internacional da Democracia (15 de Setembro) os dados trazidos pelo Afrobarómetro alertam para uma perda da qualidade da nossa democracia. Não é de estranhar, considerando que a democracia dificilmente pode dar frutos quando o peso do Estado se faz sentir cada vez mais a todos os níveis: económico, social e cultural. Democracia, sem uma sociedade civil por definição autónoma em relação ao Estado, não consegue consolidar-se. Faltará sempre pressão para se respeitarem as liberdades, para o Estado e seus agentes se sujeitarem à Lei e para se dar prioridade à criação das condições para que todos se realizarem e serem felizes e no processo contribuírem para a prosperidade geral. Problema grave surge quando actos que visam reproduzir a dependência e manter as pessoas sob controlo passam a ser a forma normal e o objectivo principal de fazer política. Aí, além da liberdade e da democracia, está-se a arriscar o futuro. Esta é armadilha que se tem evitar a todo o custo.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 16 de Setembro de 2015

sexta-feira, setembro 11, 2015

Mau sinal



As revelações vindas a público sobre as aplicações feitas do Fundo do Ambiente vieram confirmar o pior que se pode esperar da gestão de recursos públicos. Notou-se imediatamente a disparidade regional na distribuição dos fundos (Santiago 82 %, outras ilhas 18%), viu-se o potencial eleitoralismo e partidarização na selecção de projectos e parceiros(quase vinte mil contos para a Associação dos Amigos para o Desenvolvimento de Brasil-ASA) e ficou claro que outras razões que não a protecção do ambiente determinou a alocação dos fundos disponíveis (mais de dois mil contos para campas de combatentes).
A publicação neste número do jornal (pag.16 e 17) do quadro da distribuição de recursos do Fundo do Ambiente em 2013 e 2014 permitirá ao leitor tirar as devidas ilações quanto à motivação, razoabilidade e pertinência das escolhas feitas. O facto de o Fundo do Ambiente não ter todos os órgãos previstos no seu estatuto a funcionar já é deplorável. Piora quando, para supostamente colmatar as falhas institucionais, o Ministro chama a si as competências do Fundo porque, segundo ele, em declarações à imprensa “o Fundo não pode ficar parado porque as comissões não funcionam e que a lei lhe dá prorrogativas de movimentar o Fundo”. Movimentar significa na prática decidir qual é o projecto aprovado, quem é o parceiro e quanto cada um pode receber. É evidente que olhando para o quadro publicado das escolhas feitas dificilmente se pode dizer que o interesse público foi devidamente salvaguardado.
A gestão dos recursos públicos numa perspectiva partidária e eleitoralista vem sendo denunciada por vários actores políticos. Os partidos na oposição acusam a nível nacional o partido no governo de utilização eleitoralista dos dinheiros e meios do Estado e a nível local apontam o dedo ao partido maioritário nas câmaras municipais pela mesma razão. É um facto que o próprio Primeiro-Ministro reconhece que a administração pública directa, indirecta e local está partidarizada. Sendo assim, não estranha que haja uma percepção geral de que muitas das taxas e fundos criados nos últimos anos não são propriamente utilizados na persecução dos objectivos inicialmente preconizados. 
O que espanta é que não haja uma indignação geral contra isso. Talvez porque essas práticas são tomadas como normais e como parte integrante do que é fazer política, ser influente e ganhar votos. Em consequência, denúncias de situações gravosas de compra de votos em eleições nacionais autárquicas e intrapartidárias não resultam na penalização dos visados. Pelo contrário, insiste-se em acreditar que todos assim fazem e que são os mais espertos ou os mais efectivos que ganham. A partir daí é só um passo para o desenvolvimento de uma cultura política marcada pelo cinismo e pelo conformismo.
Em Cabo Verde, de há muito que se instituiu que governar é controlar. Durante algum tempo tudo se fez para que houvesse pensamento único e dependência total do Estado. Mudaram-se os tempos, e não sendo já possível advogar o alinhamento de todos pelo mesmo diapasão político, alimenta-se o desencanto com o pluralismo e o multipartidarismo. Entretanto não se deixa as pessoas despersuadirem da centralidade do Estado para o seu bem-estar, prosperidade e carreira e também dos meios, acessos e facilidades que pode disponibilizar a quem “merecer”. 
O quadro da distribuição de fundos pelas associações e outras ONGs é elucidativo do esforço em manter controlado as populações. É evidente que tal ambiente não evidencia o valor da autonomia, da iniciativa e da criatividade, enquanto ingredientes essenciais para se construir a riqueza das nações. Nem tão pouco deixa desenvolver as instituições inclusivas indispensáveis para que o esforço individual ou colectivo das pessoas sirva para colocar o país num caminho ascendente de crescimento económico e de criação de emprego. A opção que realmente se faz é pelo conformismo, pela dependência do Estado e até por pretensa neutralidade política.
Os dados do Afrobarómetro que vão ser divulgados hoje, quarta-feira, dão conta que a população já se apercebe dos níveis cada vez mais elevados da corrupção. É um mau sinal. Significa que as disputas e rivalidades no acesso aos favores do Estado aumentaram à medida que se tornou evidente que os enormes investimentos públicos não estão a produzir crescimento elevado e a criar emprego de qualidade. Uma inversão desta tendência só pode acontecer quando activamente se combater o centralismo e se evitar que as pessoas fiquem menos dependentes do Estado. Também quando a cultura administrativa dominante for substituída por uma cultura empresarial de procura de resultados que ponha enfase na produção e na qualidade da prestação de serviço.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 9 de Setembro de 2015