quarta-feira, maio 25, 2016

Mudar de paradigma

No dia da celebração de mais um Dia da África a atenção volta-se para os extraordinários desafios com que ainda o continente se confronta no seu processo de desenvolvimento. Num relatório do Banco Africano de Desenvolvimento publicado no dia 24 a previsão de crescimento económico para 2016 é 3,7% do PIB dos 52 países do continente e de 4,6 % em 2017 se houver recuperação da economia mundial e um novo impulso no mercado das “commodities”. Considerando o estádio em que se encontra a economia africana, 3,7% é uma taxa de crescimento demasiado baixa para responder às necessidades de criação de postos de trabalho e para satisfazer as expectativas futuras de mais rendimento para as populações. Aparentemente até agora a África não conseguiu acertar com um modelo de crescimento capaz de a colocar no caminho do desenvolvimento acelerado que durante décadas seguidas foi experimentado por vários países asiáticos entre os quais Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Malásia e China.
Para Kingsley Moghalu, um economista nigeriano a escrever no Financial Times da semana passada, o problema com a África é essencialmente de modelo económico. Segundo ele, teima-se em seguir um modelo que mais se adapta a economias mais maduras. Pretende-se que a África salte a etapa de industrialização e organize-se como uma economia pós-industrial. A realidade como ele próprio reconhece é que o PIB dos 52 países africanos nem chega ao PIB do Brasil. Também reconhece que dificilmente se pode dar a volta à situação porque a economia africana não está integrada nas cadeias globais de produção. O grosso do capital estrangeiro que entra vai para as indústrias extractivas e o continente, sem mecanismos de protecção dos seus mercados, continua a ser inundado com produtos industriais baratos vindos de países como a China.
Do relatório do BAD  African Economic Outlook 2016 diz-se que até 2050 mais de dois terços da população africana estará nas  cidades. Podem visualizar-se facilmente os custos da rápida urbanização em termos designadamente de desordenamento urbano e da falta de infraestruturas (estradas, energia e saneamento, comunicações). Mais difícil será vislumbrar eventuais ganhos que poderiam vir do aumento de produtividade no campo, ou em se ter população já urbanizada pronta a sustentar um ritmo rápido de industrialização ou então a integrar uma economia de serviço com padrões elevados. A maior parte dos países não está preparada para isso e as razões prendem-se com as políticas desadequadas de muitos governos. Seguem, segundo Kinsley Madugo, certas ortodoxias que não atribuem ao Estado o papel importante que pode ter em modelar uma economia de mercado, não vêem a importância central da industrialização em retirar da pobreza centenas de milhões de pessoas e não querem fazer uso de mecanismos permitidos no quadro da OMC para proteger por algum tempo indústrias nacionais nascentes. E cita o exemplo da Etiópia e do Ruanda que estão a industrializar-se rapidamente para demonstrar que é possível fazer diferente.
Ter uma visão de desenvolvimento, um modelo de crescimento claro e inteligível para todos é fundamental para qualquer país. Não se pode ficar na ambiguidade, ao sabor de modismos alimentados por vezes por organizações internacionais ou apanhados por uma lógica simples de utilização de fluxos externos no quadro da ajuda externa. Ir por aí é seguir um caminho que mais cedo ou mais tarde leva ao crescimento anémico e à incapacidade de acrescentar novos postos de trabalho e de elevar grande parte da população de forma permanente para um nível acima da pobreza. Precisamente o que está a acontecer a Cabo Verde neste momento.
Impõe-se então mudar o paradigma, adoptar um outro modelo e desenvolver outras políticas. Mas para se ser bem-sucedido é fundamental que a nação conheça o modelo e se engaje na sua implementação. A discussão do programa do Governo no Parlamento no início desta semana deve ser visto como um dos muitos momentos que o Primeiro-ministro e os seus ministros terão para explicar o novo modelo. E porque para a Oposição parece que ainda não está claro que as opções são tão diferentes das que propôs e implementou quando era governo, é fundamental que o novo modelo seja assumido com vigor mas com clareza e com crítica profunda ao modelo anterior que conduziu o país à estagnação. Só assim se poderá vencer as resistências à mudança. Só assim se poderá mobilizar forças na sociedade para se adoptar um outro modelo e trilhar um outro caminho de maior dinâmica com resultados transversais na economia e na sociedade.
A África não pode continuar a ser o continente que segundo Kingsley Moghalu detém mais de 75% das matérias-primas e apenas participa em 2% do comércio mundial e tem 1% da capacidade de manufactura. É verdade que há ganhadores na forma como a sua economia  tem sido estruturada ao longo dos anos, mas certamente que não é a generalidade da sua população nem os muitos jovens sem perspectivas de emprego e que sonham com a emigração para a Europa. Há que mudar o paradigma, procurar um outro modelo e fazer chegar o desenvolvimento a todos, para o bem da África e de toda a humanidade. A prosperidade de uns pode e deve beneficiar todos os outros. 

                Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 25 de Maio de 2016

sexta-feira, maio 20, 2016

Queda de desemprego ou aumento de subemprego?

O Instituto Nacional de Estatísticas (INE) divulgou os dados do emprego para 2015 com uma queda de 3,4% na taxa de desemprego. Nos anos anteriores a variação tinha sido 0,4% de 2012 para 2013 e de 0,6% de 2013 para 2014. A diferença de 3,4% em 2015 apesar do crescimento anémico do PIB em 1,5% deve-se segundo o INE ao aumento do subemprego no país e em particular no mundo rural. Sendo subemprego em boa parte trabalho agrícola é por natureza precário e sazonal. O mais provável é que no momento do anúncio dos resultados do inquérito (12 de Maio) já nem existem. Deve ser nisso que acreditam os que há menos de dois meses votaram massivamente contra o governo anterior clamando por mais emprego, mais segurança e por um futuro melhor. 
A falta de evidência de qualquer progresso em matéria de emprego não impediu que os antigos governantes e a liderança do partido hoje na oposição viessem logo a público regozijar-se pelos supostos bons resultados da sua governação. Parece que não conta para eles o juízo claro e inequívoco que o povo fez das políticas e seus resultados nas eleições de 20 de Março. No Facebook o ex-PM apressou-se logo a proclamar que “Estão lançadas as bases para o aceleramento do ritmo de crescimento económico e para a geração sustentada de empregos e de trabalho decente!” A fantasia é logo desfeita por mais um dado do INE que revela que de 2014 para 2015 houve uma diminuição do número de trabalhadores inscritos no INPS de 41% para 36% da população activa. É de se perguntar, onde está a “geração sustentada de empregos e de trabalho decente.” Quanto ao crescimento económico como se pode falar de aceleramento se ano após ano não se consegue pôr o PIB a crescer a 2% e no ano de 2015 ficou em 1,5%.
A realização de eleições periódicas nas democracias permite fechar ciclos políticos e abrir outros. A expectativa geral é que pelo jogo das alternâncias na governação do país se consiga um impulso para fazer avançar o país, se evite que obstinadamente fique fixado em políticas que não funcionam e que se procure caminhos que levem a outros patamares de desenvolvimento. Saber tirar ilações dos resultados eleitorais é fundamental para que tanto o partido no governo como o partido na oposição não fiquem parados no tempo ou presos em ideologias ultrapassadas pelos factos. É da maior importância que sejam capazes de desempenhar o seu papel de dinamizador do sistema político sempre à cata de soluções para os problemas que conjunturalmente vão aparecendo e para as mudanças estruturais que dinâmicas endógenas e exógenas eventualmente irão exigir que sejam feitas.
Ignorar o sentido das eleições como parece fazer o PAICV na oposição quando se serve dos números apresentados pelo INE para afirmar que “validam o realismo das políticas prosseguidas e das propostas apresentadas” não é um bom começo de um novo ciclo político. Mesmo com uma derrota significativa em todas as ilhas não parece duvidar que algo correu mal ou alguma opção não foi a mais correcta ou ainda que as prioridades nem sempre foram as melhores. Agarrar-se à bengala precária dos números do subemprego que levam a um dígito a taxa de desemprego nos concelhos rurais do país para ignorar todo o resto que motivou o voto contra o seu governo não é melhor mensagem de quem diz querer servir o povo e o país tanto no governo como na oposição.
 É uma constatação dos economistas preocupados com a problemática do desenvolvimento que o chamado “empreendedorismo de necessidade” não propicia crescimento da economia, diferentemente do “empreendedorismo de oportunidade” que se suporta na inovação de produtos e processos, na identificação de nichos de mercado e na criação de novos mercados. Muito do subemprego identificado pelo INE resulta do empreendedorismo de necessidade que temporariamente até pode facultar auto-emprego e emprego para os mais próximos, mas dificilmente é sustentável para além do período de utilização dos múltiplos subsídios que à partida o tornaram possível. A grande expansão da economia informal que se vê em Cabo Verde está ligada a políticas de suporte a esse tipo de empreendedorismo que teimosamente se insistiu em implementar durante décadas numa lógica de controlo social e político da população.
Custa a crer que ainda haja quem insista nessas políticas e veja nos dados que põem o desemprego a cair para um dígito no mundo rural como o caminho do futuro quando se sabe que o sector informal com a sua baixa produtividade e a sua fraca capacidade de criação de emprego funciona como um travão. Não acelera o crescimento do país, não contribui para o serviço de segurança social (INPS) e aumenta a frustração dos que seduzidos pelos subsídios iniciais sonharam com uma vida melhor. Lendo os dados do INE sobre o desemprego é evidente que Cabo Verde precisa mudar muito para poder crescer, empregar pessoas, fazer regressar ao mercado de trabalho muitos que hoje estão classificados como inactivos e trazer esperança num futuro melhor a muitos que apostaram na sua educação e o Estado neles investiu na sua formação. Espera-se que no novo ciclo de governação condições sejam criadas para que isso aconteça.
             Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 18 de Maio de 2016  

quarta-feira, maio 18, 2016

Secretários de Estado e coordenação de políticas

A falta de secretários de Estado no governo de Ulisses Correia e Silva deixou muita gente perplexa desde o primeiro anúncio da estrutura do governo. É o primeiro governo sem secretários de Estado. Agora há pessoas que até questionam se essa lacuna tem respaldo na Constituição considerando que o art. 187 estabelece que o governo é formado pelo Primeiro-ministro, pelos ministros e pelos secretários de Estado. O problema real com que UCS se confrontou na estruturação do seu governo foi o colete-de-forças dos 12 membros que prometeu durante a campanha eleitoral. Deu substância à ideia peregrina que a forma de se começar a controlar as ineficiências de um Estado gastador é reduzir à partida os membros do governo. O problema com essa abordagem é que se corre o risco de deixar esse mesmo Estado sem o devido controlo político e portanto mais livre para desperdiçar recursos. Ou seja, essa medida dificilmente, por si só, terá os resultados pretendidos. Tem logo à partida um efeito negativo ao aprofundar a noção populista que as despesas com os políticos são as que mais pesam ao Estado. A realidade é que a Administração Pública (AP) que UCS herdou do governo de JMN é o que o próprio considerou de partidarizada e não sensível ao mundo empresarial e um dos factores do mau ambiente de negócios no país. Se o PM dos últimos quinze anos dizia assim da sua “obra”, imagine-se a dificuldade que qualquer outro governo irá ter em fazer da AP o instrumento de implementação das suas políticas de forma eficiente e eficaz. Ora perante uma máquina já demonstradamente com forte resistência à mudança não se faz abordagem com “mão-de-obra” mínima nem com deficiência de especialização nas funções que a própria Constituição prescreve. Os secretários de Estado são normalmente os membros do governo que fazem a articulação mais próxima da administração pública orientando-a  na implementação das políticas do governo e monitorizando de perto o seu desempenho. As funções têm um caracter tecno político forte que são imprescindíveis em certas áreas da governação. Apoiar-se em ministros, alguns com um número exagerado de pastas, sem secretários de Estado e sem a possibilidade de rapidamente organizarem um gabinete que permita dar orientação política efetiva para o resto da administração não perece ser a melhor ideia. O argumento de melhor coordenação com um pequeno número de membros de governo não cola. O PM pode sempre organizar conselhos de ministros especializados. Por outro lado a estrita coordenação da acção do governo só tem sentido se consegue transmitir a orientação definida em Conselhos de Ministros às estruturas da  Administração Pública que vão implementar as políticas. Mas sem a interface necessária e com competência executiva necessária, tudo pode ficar mais difícil. A promessa de campanha de ter um governo pequeno pode ser cumprida, mas apenas quando tal for possível na sequência da consolidação de estruturas da administração e do melhoramento  do desempenho da administração com o controlo dos meios utilizados e mais qualidade nas despesas efectuadas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 754 de 11 de Maio de 2016.

terça-feira, maio 17, 2016

Mortes, vida nocturna sem limites

Com frequência alarmante verificam-se acidentes de viação quase ao nascer do dia em que são envolvidos jovens saídos de discotecas após uma noite inteira a beber e a dançar. Desses acidentes quase sempre há mortes e feridos graves que deixam sequelas por toda a vida. É claro que o cansaço e o sono resultante de horas seguidas a festejar concorrem para aumentar o risco desses acidentes. E conseguem fazê-lo em grande parte porque há estabelecimentos, bares e discotecas que oferecem esses serviços durante toda a noite. A questão que se coloca é se é realmente vantajoso para as cidades cabo-verdianas que haja bares e discotecas a funcionar sem restrição durante a noite. Será que a actividade turística ou outra atividade económica do país exige ou beneficia com isso? O facto é que isso tem custos: não só porque a partir de certas horas a probabilidade de acidentes aumenta como também para prevenir ou reagir a situações de perturbação da ordem e tranquilidade pública tem que se mobilizar recursos de polícia em número adequado para ser efectivo. Esse problema seria muito menor se houvesse uma hora certa, por exemplo, às três ou quatro da manhã, para o fecho de todos os estabelecimentos de diversão. Toda a gente beneficiaria com isso, designadamente serviços da polícia, hospitais e os próprios pais. É tempo das câmaras municipais e o Estado no âmbito das respectivas competências regularem o funcionamento dos estabelecimentos nocturnos e contribuírem com políticas inteligentes para a prevenção de acidentes e violência nas noites e diminuir custos de manutenção de serviços de atalaia sem que se vislumbre qualquer benefício para a comunidade no seu todo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 754 de 11 de Maio de 2016.

sexta-feira, maio 13, 2016

Resiliência da democracia

A eleição de Sadiq Khan para o cargo de presidente da câmara de Londres é dos tais acontecimentos que nos autoriza a invocar com Abraham Lincoln “os melhores anjos da nossa natureza” para manter viva a esperança num mundo melhor mesmo quando ultranacionalismos, guerras religiosas e terrorismo ameaçam a todos.
Um britânico de origem paquistanesa e assumidamente muçulmano foi eleito por mais de um milhão de londrinos para dirigir a sua cidade. De nada serviram as insinuações de que teria ligações a grupos islamitas e que a sua condição de filho de imigrante podia ser um factor de rejeição pela maioria da população de origem anglo-saxónica.
Ouviu-se ao longo da campanha o discurso demagógico e populista que se vem repetindo em vários pontos da Europa e tem feito crescer os partidos extremistas. Mas esse discurso do medo, da xenofobia e da intolerância que nesta época de crises – crise do euro, crise dos refugiados e terrorismo do Estado Islâmico - até parecia imparável, mas não teve o eco esperado. Prevaleceu o sentido de comunidade, a política como diálogo indispensável para a realização do bem comum e a democracia como expressão e suporte de autodeterminação.
O que aconteceu em Londres deve servir de referência a todos neste mundo globalizado. Prova que pessoas com origem, raça, cultura e religião diferentes podem conviver em comunidade desde que os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, a começar pelo primado da lei e a igualdade perante à lei, sejam aceites por todos. Não é um caminho fácil porque há ameaças sempre presentes, mas é o ó único que, preservando a liberdade, abre a todos a possibilidade de uma vida digna sem o medo constante de sucumbir perante ódios, os mais diversos.
A eleição de Sadiq Khan contrasta com os sinais negativos que vêm de outros lados. Do Brasil vêem-se tentativas de desconstrução da democracia no esforço de derrubar a Presidente Dilma Rousseff. Na Turquia aprofunda-se o autoritarismo de Erdogan, aparentemente querendo seguir as pegadas de Putin na Rússia e de Xi Jinping na China. Nos Estados Unidos o candidato Donald Trump põe a nu as contradições da nação que por duas vezes elegeu Barack Obama como seu presidente. Em todos estes casos um aspecto que salta à vista é a negação do diálogo, a negação da política como forma de chegar a compromissos e a instrumentalização do medo e do nacionalismo para isolar e neutralizar os adversários políticos.
Tem contribuído para a desvalorização da democracia a percepção generalizada que os tradicionais partidos políticos se mostram incapazes de responder satisfatoriamente às exigências de participação, de responsabilização, e de transparência feitas pelos cidadãos. Estes, por sua vez, sentem-se cada vez mais capacitados através das múltiplas plataformas disponibilizadas pela internet em aceder à informação, em comunicar-se facilmente com muitos outros e em participar em acções que partindo do mundo virtual das redes sociais pode resultar em acções de rua que até já levaram à queda de regimes como no caso da Primavera Árabe e das revoluções coloridas na Ucrânia e na Geórgia.
Infelizmente o novo protagonismo dos cidadãos via internet e o poder das redes sociais até agora não revelaram o mesmo potencial como veículos de contribuição na consolidação das novas instituições que tinham demonstrado na demolição das estruturas antigas. Não espanta por isso que haja retrocessos. No caso do Egipto, por exemplo, houve golpe militar na sequência de grandes movimentações de pessoas para repor a antiga ordem. Nas democracias avançadas é visível a erosão das estruturas tradicionais partidárias confrontadas com o cada vez maior ativismo de indivíduos e grupos. O problema que se põe é se em todos estes desajustes não se abrem espaços para germinar sementes de demagogia populista que, encontrando ambiente favorável, venha a se constituir em ameaça contra a democracia.
A experiência demonstra que medos colectivos, ódios e insegurança são dos ingredientes que mais tendem a despoletar situações incontroláveis. A história do século XX  ensina-nos que esse  risco é real e que instabilidade governativa persistente traz ditadura. A  eleição de Sadiq Khan dá mais uma demonstração o quão resiliente pode ser a democracia quando respeita os valores e segue os procedimentos: produz resultados que revelam o melhor do regime em cada conjuntura. Para que isso aconteça, porém, importa sobremaneira manter o diálogo, valorizar a política como arte compromissória e fortalecer a lealdade das instituições à ordem constitucional vigente.  
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 11 de Maio de 2016

quarta-feira, maio 11, 2016

Grogue, cana e mercado

Notícias vindas a público dão conta que a IGAE vai agir contra produtores já identificados de grogue de açúcar em São Antão. Depois de um período de alguma retracção na produção do grogue adulterado era de esperar que a prática voltasse. E é provável que volte em força. A entrada em vigor da Lei do grogue teve o efeito de diminuir consideravelmente a quantidade de aguardante adulterada que circulava no mercado. Quase que imediatamente o preço do grogue de cana mais do que duplicou. Muitos que há anos mantinham um stock que muito relutantemente vendiam aos preços baixos que então se praticavam têm agora a possibilidade de os comercializar por um preço mais justo e mais de acordo com o facto de ser grogue de cana de reconhecida qualidade. Todos estão satisfeitos, mas a questão que se coloca é até quando o ambiente favorável vai-se manter. É facto assente que não há cana suficiente no país para produzir todo o grogue que é consumido no país. Quer isso dizer que parte da procura nacional tem que ser coberta por uma oferta de grogue que não é de cana. Por algum tempo, na sequência da aplicação da lei, a produção desse grogue pode ter sido inibida e a procura passou a ser coberta pelo stock anteriormente guardado de grogue de cana. O problema é o que vai acontecer quando esse stock se esgotar e o défice estrutural entre a quantidade de cana existente e a procura global de grogue se revelar. Vai-se voltar ao grogue adulterado? O que vai acontecer aos preços? Sabe-se que há mais agricultores a cultivar mais cana sacarina. Será suficiente? O governo deve encontrar uma resposta que dê solução adequada e sustentável a um produto que, pela sua natureza, historicamente constituiu um verdadeiro cash crop para os proprietários agrícolas de Cabo Verde. Na dificuldade evidente de se ter suficiente cana para produzir todo o grogue que o país consome seria bom em todos os aspectos que o Estado se movesse para estruturar um mercado para o grogue de cana de Cabo Verde com preço e qualidade que garantisse a contínua produção em boas condições para o consumidor e o produtor também beneficiasse o país em termos fiscais e em receitas de exportação. É evidente que paralelamente devia-se encontrar uma solução para a produção regulada de aguardente que não seria de cana nacional mas sim de matéria-prima importada e controlada. De outra forma, volta-se à situação anterior de degradação e de não confiança num produto com evidentes consequências na economia do país, na saúde das pessoas e na sobrevivência de muitas famílias no mundo rural das ilhas.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 754 de 11 de Maio de 2016.

sexta-feira, maio 06, 2016

Caboverduras?

No BO do dia 26 de Abril foi publicado uma Resolução da Assembleia Nacional aprovada no dia 20 de Abril que determinava a suspensão de alguns deputados a partir da data da sua nomeação como membros do governo. A resolução impropriamente antecipou no tempo o decreto presidencial de nomeação dos membros do governo datado do dia 22 quando se sabe que até ao momento da nomeação o presidente ou os propostos para nomeação podiam mudar de posição. Curioso é que os deputados Rui Semedo e Eva Ortet, que continuaram como ministros durante mais dois dias depois da sua tomada de posse, não foram suspensos como exigem as regras de incompatibilidade. O problema parece que foi a interpretação da alínea b do artigo 153 da CR. Aí diz-se que na sessão constitutiva os deputados nomeados membros do governo são substituídos após empossamento. Pela resolução citada conclui-se que estranhamente resolveram ignorar os deputados que efectivamente eram membros do governo e declarar suspensos os que hipoteticamente iriam ser nomeados. É de se perguntar outra vez: qual é a pressa? Talvez também por descuido é que, salvo melhor interpretação, se permitiu que Basílio Ramos, que não foi eleito deputado, presidisse a sessão constitutiva da nova Assembleia Nacional. O artigo 69º do Regimento diz que na primeira reunião após as eleições “Assumirá a direcção dos trabalhos o Presidente cessante e na sua falta e sucessivamente, o primeiro Vice-Presidente ou o segundo Vice-Presidente, se reeleitos Deputados”. Aparentemente quem deveria ter dirigido os trabalhos da sessão constitutiva devia ser o deputado Júlio Correia que foi primeiro vice-presidente na legislatura anterior e foi reeleito. Caboverduras?  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 753 de 04 de Maio de 2016.

O que parece, não é



A tragédia que caiu sobre os soldados e sobre as suas famílias com fortíssimo impacto nas forças armadas e no país mais uma vez vem relembrar a todos do muito que parece, não é. Vários avisos de muita coisa que não está bem na sociedade e nas instituições têm sidos dados de forma dramática nos últimos tempos e até com perda de vida como foi o caso dos 11 mortos do navio Vicente. Outros avisos não menos custosos em vidas e em liberdade e em segurança, mas sem talvez o mesmo impacto dramático, vão sendo feitos via casos de crime e violência nos vários pontos do território nacional. Na generalidade dos casos ou não são ouvidos ou procura-se desdramatizar mostrando uma face positiva, citando estatísticas e acusando os atentos de pessimismo e de ser arautos da desgraça. A atitude no momento seguinte é de voltar-se àrotina anterior e de quedar-se na expectativa que nada de mal irá acontecer.
É facto que muita coisa vai para debaixo do proverbial tapete quando a postura oficial é de permanente propaganda num esforço de ofuscar, seduzir, iludir. Fazendo isso persistentemente durante mais de uma década o mais normal é que a relação com o país real se perca, que as instituições se adaptem às necessidades da imagética oficial e a incompetência se instale. Em simultâneo caem os níveis de confiança porque todos se vêem a representar papéis num esforço colectivo de ilusionismo com selo de aprovação oficial. Num ambiente destes, introduzir reformas de fundo torna-se quase impossível. Primeiro há que ir além das aparências e encontrar as raízes dos problemas. Depois de vencer as resistências dos interesses velados aí instalados. E tudo isso sem contar muito com aliados: os futuros beneficiários das reformas ainda não se reconhecem como tal e nem se organizaram para apoiar a continuidade das reformas, ao contrário dos que esperam ver o seu poder, influência e rendimentos postos em causa no processo de mudança.
 Das mais graves revelações vindas ao público foi a que as forças armadas desconheceram durante mais de 24 horas que não tinham qualquer contacto com o seu destacamento no Monte Tchota. Onde ficaram os três C, comando, controlo e comunicações, que deve ser apanágio das forças armadas para poderem realizar as missões que lhes estão destinadas. As instalações de comunicações do Monte Tchota são de importância estratégica para o país. Por isso é que se tem um destacamento militar permanente a guardar esse centro nevrálgico do sistema de segurança. Deixá-lo indefeso por razões de conflitos internos é grave, mas não tomar conhecimento disso imediatamente, e pior ainda durantes horas seguidas, é indesculpável.
Nesse sentido justificou-se plenamente o pedido de demissão do Chefe de Estado Maior. Alguém na cadeia de comando tinha que assumir a responsabilidade pela falha grave no cumprimento da missão e pela mensagem negativa que eventuais inimigos terão ficado da prontidão e capacidade operacional das Forças Armadas. As FAs têm outras missões na segurança interna e externa e a sua eficácia depende do efeito dissuasor que poderá ter sobre eventuais prevaricadores. A própria segurança dos soldados colocados a guardar várias entidades e pontos chaves do país está intimamente ligada à percepção da efectividade das FA em responder com rapidez e força proporcional para proteger os seus soldados e realizar os objectivos definidos.
Todo este incidente trágico abre a possibilidade de fazer um amplo debate sobre a natureza das Forças Armadas, a sua organização e as missões que deverá realizar. Importante discutir a segurança interna do país e que melhor sistema de forças a poderá servir considerando a natureza arquipelágica do país e as ameaças reais do narcotráfico e também do terrorismo, pirataria e tráfico de pessoas e armas na região. Concomitantemente é de rever o serviço militar obrigatório que de universal só tem o nome ficando por conscritos maioritariamente das zonas rurais e dos subúrbios das cidades que findo o serviço passam à disponibilidade com habilidades e competência potencialmente perigosas em técnicas de combate e manuseio de armas sem qualquer enquadramento.
Coincidentemente iniciou-se um novo ciclo governativo e o novo governo deverá aproveitar esta oportunidade para reorganizar as Forças Armadas e todo o sistema de segurança numa perspectiva de uma maior eficácia e de garantir que o que parece, realmente é. Com o terramoto verificado nas Forças Armadas espera-se que Presidente da República enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas reúna o Conselho Superior da Defesa Nacional para assegurar o envolvimento de todos os órgãos de soberania, Presidente, parlamento e governo, na procura das melhores soluções para colocar a instituição numa outra plataforma que lhe permita granjear o respeito, estima e consideração de todos os cabo-verdianos.  
          
              Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 4 de Maio de2016 

quinta-feira, maio 05, 2016

Poderes do presidente II

O Dr. Mário Jorge Menezes na III parte do seu artigo no jornal A Nação sobre os poderes do PR e a investidura do novo Governo apresentou os poderes do presidente numa perspectiva que salvo o devido respeito, até agora não se tinha claramente reconhecido e não se tinha afirmado nem aplicado em Cabo Verde. Destacam-se de entre eles a faculdade do PR avaliar as opções de fundo das políticas a implementar e de estabelecer compromissos em matérias em especial sobre as políticas de defesa e externa a incluir no futuro programa do Governo.
O Dr. Menezes recorre ao constitucionalistas Jorge Miranda para concluir que “nada obsta” que o PR acelere os procedimentos para a formação do governo e também ao Constitucionalista Gomes Canotilho para lembrar que uma consequência natural da liberdade do poder de nomeação é a possibilidade do PR condicionar a formação concreta da equipa ministerial e as opções políticas do futuro governo. Extrai-se dos muitos exemplos de actuação dos presidentes em vários sistemas políticos, desde os parlamentarismos puros, mitigados ou mais ou menos semipresidencialistas até se chegar ao semipresidencialismo francês, que a relação do PR com o governo varia, em termos de intervencionismo, consoante a conjuntura política, a existência, ou não, de uma maioria parlamentar e a garantia, ou não, de estabilidade governativa.
Foi notável, por exemplo, o intervencionismo do presidente italiano Giorgio Napolitano nas várias tentativas de formação de governo logo a seguir à queda de Berlusconi e a crise que se seguiu. Chegou ao ponto de nomear o governo de Monti, chamado de “governo do presidente”, não obstante ser um presidente eleito pelo parlamento e não directamente pelo povo e como tal empossado num cargo tido como mais cerimonial. Em Portugal, com o seu semi-presidencialismo, a possibilidade de governos minoritários e transições complicadas porque envolvem negociações entre partidos, abrem pontualmente espaços para um maior intervencionismo do PR. Foi o que aconteceu na sequência da demissão do Sócrates em 2011 e  das dificuldades de Passos Coelho em formar governo em 2015, casos por sinal citados pelo Dr. Menezes no seu artigo, e que já acontecera em outros momentos, memoravelmente no caso do presidente Sampaio e do governo de Santana Lopes. Mesmo na V República Francesa, com presidentes partidários ciosos da sua ascendência sobre o governo, a relação do presidente Mitterrand ou posteriormente do presidente Chirac ao longo dos seus respectivos mandatos com um primeiro-ministro socialista ou um  primeiro-ministro da direita eram marcadamente diferentes.
Em Cabo Verde é óbvio também que PR na sua função de garantir o regular funcionamento das instituições não segue necessariamente uma linha única de actuação. Mas como sempre houve maiorias parlamentares estáveis praticamente nunca se mostrou necessário o presidente  intervir para forjar soluções de governação e muito menos promover “governos do  presidente”. A actuação do PR seguiu sempre pelo estipulado na alínea i) do n.1 do art.º 135 da Constituição: Nomear o Primeiro-ministro ouvidas as forças políticas representadas na Assembleia Nacional e tendo em conta os resultados das eleições
As legislativas de 20 de Março deram maioria clara ao MpD. O governo do PAICV só seria demitido com o início da nova legislatura que viria a ser a 20 de Abril, abrindo caminho para a nomeação de um novo governo. Não havendo necessidade de negociações com outros partidos para criar uma maioria parlamentar não se vê como a actuação do presidente acelerou o processo de formação do governo. A novidade foi o país ter ficado a saber quem seriam os membros do governo duas semanas antes de serem nomeados e não é certo que tenha sido coisa boa.
A polémica que se instalou nesta matéria resulta mais de um protagonismo algo deslocado do PR num momento que pelos resultados claros das eleições podia não o justificar. Também deriva da possibilidade que aparentemente se abriu de condicionar as opções políticas do governo quando se sabe que elas foram amplamente sufragadas pelo povo, que o governo não é responsável politicamente perante o PR e que o governo é quem define e executa a política interna e externa do país (artº 203, n.1, a) da CR).

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 753 de 04 de Maio de 2016.