sexta-feira, dezembro 09, 2016

Poder e responsabilidade

A relação do Estado com os municípios mudou. O Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva, no discurso da semana passada na abertura do VIII Congresso Autárquico, mostrou-se pronto para cumprir as promessas de descentralização e de reforço da autonomia dos municípios. Antes, já eram conhecidas as normas do Orçamento do Estado que davam corpo à discriminação positiva dos municípios mais pobres e frágeis. Também já se sabia das novas regras que iriam determinar as transferências de receitas provenientes da taxa turística, da taxa ecológica e da taxa rodoviária. No BO do dia 2 de Dezembro, através de decretos-leis do governo, ficaram estabelecidas as várias formas como os diferentes municípios poderão aceder aos Fundos do Turismo e do Ambiente para investimentos em infra-estruturas e servir- se deles para financiar projectos, requalificar o espaço urbano e promover o turismo. Ainda na mesma linha, através do porta-voz do Conselho de Ministros, o governo manifestou a vontade de envolver os municípios na consecução dos grandes objectivos do ODS designadamente nos domínios de redução da pobreza, do acesso água, à saúde, ao saneamento e á energia, educação de qualidade, crescimento económico e redução das desigualdades.
Com tantos recursos transferidos e outras tantas competências ampliadas não é de estranhar o regozijo dos autarcas. Vêem a possibilidade de fazer mais e a oportunidade de ter um impacto maior na vida das pessoas. Uma enorme responsabilidade porém acompanha esses novos poderes e recursos, tanto da parte de quem os delega como também de quem os recebe. O governo, ao optar por envolver administração local na prossecução de um conjunto de objectivos, tem certamente em mira maior eficácia na prestação de serviços aos utentes e na implementação de políticas públicas e uma eficiência superior nos meios utilizados. O sucesso vai depender certamente da capacidade da administração local em responder com uma nova atitude e uma nova cultura de prestação de serviço aos desafios colocados. Afinal, em ultima análise, o que se pretende é que, como diz o governo, as pessoas sejam livres e autónomas, vivam com dignidade e sejam capazes de ascender social e economicamente.
Assume-se que o Poder Local tem o conhecimento e a proximidade das populações que o faz automaticamente menos burocrático, menos autista e mais pró activo em apoiar a iniciativa, a criatividade e a vontade de fazer. Mas assim como a proximidade pode ser de grande ajuda, quando há atitude certa, também pode constituir um empecilho se interesses outros surgem que põem em causa a isenção, imparcialidade e não discriminação partidária que se espera de qualquer serviço público. Os problemas que todos reconhecem existir na administração pública, com impacto directo na qualidade de serviços prestados e no ambiente de negócios, não estão apenas na administração central. Muitos dos mesmo vícios encontram-se na administração local, com resultados não poucas vezes mais perversos precisamente por causa da maior proximidade.  
O desenvolvimento do poder local a partir da II República trouxe benefícios inegáveis para todo o país. Logo à partida, pôde resgatar uma tradição de séculos das câmaras municipais nas ilhas no seu esforço de ordenamento do território, do saneamento básico e de construção das pedras basilares de uma cultura cívica. O nível de infra-estruturas conseguido e a qualidade de vida das populações atingido nos vinte e dois municípios são o exemplo eloquente do que se pôde realizar com transferências do Estado, com uma fiscalidade local mais dinâmica e com algumas iniciativas na cooperação internacional ao nível municipal. Salta, porém, à vista, para além dos sucessos conseguidos, também a tendência para a centralização do poder no município e a tentação de caciquismo. Órgãos que deviam ser de controlo da actuação do executivo, designadamente a assembleia municipal e a própria câmara, não poucas vezes se submetem aos ditames do seu presidente. Maior eficiência e eficácia ao nível local terá que passar necessariamente por contrariar essas tendências e conseguir maior accountability, ou seja maior responsabilização e melhor prestação de contas. A perspectiva de infusão de novos recursos e o alargamento de competências tornam este objectivo fundamental para se conseguir “soltar as energias das pessoas, libertar os operadores económicos de custos desnecessários e pôr a administração pública a prestar serviços públicos de qualidade”.
A massiva transferência de recursos já iniciada, com o claro objectivo de estimular a economia local, criar emprego e aumentar o rendimento das pessoas através de novos investimentos públicos, financiamento de projectos, compras locais de bens e serviços pelo Estado, deve ser vista como uma oportunidade para a estrutura produtiva nas ilhas e não numa lógica redistributiva pura. Essa lógica, sabemos, resultou de décadas de políticas de reciclagem de ajuda externa e é extremamente resiliente. Várias vezes foi posta em causa, mas acabou sempre por prevalecer. Tantas vezes já sobreviveu que não se sabe, à partida, se o novo esquema para o ultrapassar estará a matá-lo ou a alimentá-lo. O pior é quando deixa de ser solidariedade e se torna no veículo de influência eleitoral no país levando os políticos a utilizar os meios postos à sua disposição para conseguir votos e perpetuar-se no poder.
O relatório de competitividade do World Economic Fórum coloca Cabo Verde entre os países onde o que mais conta para o crescimento da economia é a eficiência com que se usam todos os recursos sejam eles humanos, de infra-estrutura, naturais, etc. A competitividade externa do país e a produtividade dependem muito do que se conseguir nesse domínio. Insistir no estímulo do mercado interno minúsculo e fragmentado pela via da redistribuição sem um cuidado especial pelos seus eventuais efeitos no aumento da ineficiência geral pode simplesmente ter efeito contrário ao pretendido. E o sonho da autonomia, do crescimento e de mais emprego, possível com uma capacidade produtiva endógena, pode continuar a ser simples miragem de um país que não consegue dar o salto para se soltar da chamada “armadilha dos países de crescimento médio”.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 784 de 07 de Dezembro de 2016.

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