sexta-feira, fevereiro 24, 2017

Elevar o debate: verdade e factos

A propósito do Programa de Casa para Todos e da auditoria à IFH que põe a empresa em situação de falência o porta-voz do grupo parlamentar do PAICV deixou saber que o programa tinha sido concebido pelo seu partido, então no governo, para uma franja da população que por não ter posses só pode ser servida numa base social e não na base económica e financeira. O problema é que os meios para implementar o programa não resultaram de uma solidariedade social e nacional mobilizada para o efeito. Vieram de meios financeiros postos à disposição através de uma linha de crédito da Caixa Geral de Depósitos avalizada pelo Estado português que se comprometeu a bonificar os juros. Do arranjo feito podia-se prever custos acrescidos porque exigia-se que os consórcios fossem liderados por empresas portuguesas e que grande parte dos bens e serviços tivessem origem portuguesa. Também sabia-se, logo à partida, que as vendas de casas não iam cobrir as despesas porque como diz o deputado o público-alvo não tem posses. O resultado só podia ser um.
A auditoria recente confirmou a falência anunciada do programa Casa para Todos mas desde o seu início, em 2010, vinham-se somando críticas ao programa por parte da oposição e de outros sectores da sociedade, designadamente de operadores nacionais da construção civil, e do próprio FMI. O governo ignorou todos os avisos porque o que tinha em mira eram principalmente ganhos políticos com impacto eleitoral. A vitória nas legislativas de 2011 demonstraram que por aí o governo foi rigoroso nos seus cálculos. O país depois arcou com as consequências com a dívida pública a ultrapassar os 125% do PIB, a economia a estagnar-se e o sector de construção civil em ruína mas estes problemas não são os que perturbam o sono de quem vê a governação primariamente como reciclagem de recursos externos mantendo o Estado no centro do processo. A realidade é que quando se tem tal perspectiva priorizam-se ganhos políticos e eleitorais sobre quaisquer outras considerações de custo e benefício dos projectos. Para a sociedade, porém, diz-se que os objectivos são sociais e deixa-se entender que quanto às dívidas não há razão para preocupação porque no “final do dia” ou serão perdoadas, ou serão adiadas e reestruturadas.
Não é pois de estranhar as propostas de perdão ou de renegociação dos quase 200 milhões de euros do Programa apresentadas pelo actual governo ao governo português no âmbito da Cimeira Luso-Cabo-verdiana. Situam-se dentro do que já era expectável que viesse a acontecer considerando as discrepâncias já conhecidas no Programa Casa para Todos em termos de custo-benefício e retorno sobre investimento. Tinha-se criado com esse tipo de situações algo que pode configurar um “moral hasard”. Ou seja, tinha passado a ser hábito contrair dívidas com base em estudos que dão como viáveis os projectos, mas sabendo de antemão que cumplicidades diversas vão aumentar consideravelmente os custos e alguém os terá que pagar. A factura por uma via ou outra acabaria sempre suportada pelo povo enquanto quem concebeu a jogada somaria vitórias políticas e ficaria alcandorado em posição de poder.
Os estragos porém não ficam por aí. O impacto desse modus operandi do governo e do Estado sente-se transversalmente na sociedade, no Estado e na forma de fazer política. A preocupação com ganhos convenientes e “à cabeça” para além de qualquer razoabilidade económica financeira não é certamente a melhor atitude que se quer ver implantada numa sociedade. Retira previsibilidade quanto aos resultados, mina a cooperação entre as pessoas e legitima o ilusionismo oficial que despreza factos, trafica em meias verdades e valoriza o cinismo na condução dos assuntos públicos. O cultivar da imagem de “bom aluno” ou da boa governação como forma de manter os fluxos da ajuda externa e ir empurrando com a barriga os problemas tem os seus limites como veio a demonstrar a repentina queda de Cabo Verde de 57 para a posição 116 no índice da liberdade económica da Fundação Heritage. De facto, dificilmente podia-se continuar a manter a camuflagem sobre a gestão da dívida pública que ultrapassa os 125% insistindo que eram empréstimos concessionais quando a economia estagna e aumenta o risco orçamental com a má gestão acumulada de vários anos de grandes empresas públicas como a TACV, a IFH e a EECTRA.
Hábitos com décadas de existência custam muito a ultrapassar, mas para produzir riqueza nacional e alimentar expectativas de prosperidade futura tem que se ter os pés bem firmes na realidade. Não se pode programar redes de estrada, construir barragens, portos e aeroportos, investir na água e energia, canalizar enormes recursos para educação e formação profissional e depois ficar muito aquém dos resultados prometidos. Com diz Justin Yifu Lin, ex-economista do Banco Mundial e autor de várias obras sobre o desenvolvimento económico, para se conseguir resultados as intervenções ao nível de infraestruturas, de logística e de apoio às empresas devem ir no sentido do reforço das vantagens comparativas do país. De outra forma fica-se com a imagem já conhecida de estradas sem carros, portos sem navios e aeroportos sem tráfego e não se conseguem os investimentos privados que deveriam crowding in, como prometido no início do processo de endividamento que praticamente duplicou a dívida do país.
Infelizmente, escutando as discussões no parlamento sobre “esquerda e direita” nesta sessão de Fevereiro, sente-se que os desafios que se colocam ao país depois de anos seguidos de estagnação económica ainda não estão a ter a ponderação devida. O jogo político ainda quer se situar na disputa de quem melhor distribui benesses, descurando de onde vêm os recursos, mesmo sabendo que a esquerda tradicional há muito que promove modelos de produção de riqueza sem pôr de lado a sua preocupação com a igualdade. Já se impõe que as forças políticas em Cabo Verde passem o debate político para outro patamar e façam um esforço conjunto, naturalmente com as nuances que as diferenciam, para que o país e toda a sociedade e principalmente o Estado mude de paradigma e passe a trilhar o caminho baseado em factos e na procura da verdade que leve ao crescimento económico e ao desenvolvimento.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 795 de 22 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Despartidarizar não chega

Várias são as razões por que o Estado é hoje foco de tanta atenção. Entre elas está o facto de depois das falhas dos clusters em fazer o take-offprometido e o quase colapso de sectores da economia como a construção civil não se ter por onde escolher para  assegurar rendimento estável e seguro. Os hotéis e o turismo praticamente ainda só absorvem mão-de-obra pouca qualificada não deixando aos mais qualificados e os com ensino superior uma outra solução que não um lugar no Estado. Outrossim, a actual conjuntura de passagem de um governo para outro de partido diferente ao fim de 15 anos abre novas oportunidades de acesso a posições no Estado à medida que os vencedores substituem os vencidos em posições-chave de orientação política do país.
A dança das cadeiras que propicia é motivo de fascínio mas também de frustração e ressentimento. Na competição por lugares esgrimem-se argumentos de partidarização e da despartidarização como se o principal problema da administração pública fosse essa e não as queixas de falta de profissionalismo, as deficiências no serviço aos utentes e a postura de sobranceria da administração pública que particularmente prejudica o ambiente de negócios. Aliás, a questão da partidarização só toma a dimensão já conhecida devido ao papel que o Estado se atribui de gestor dos recursos do país e de dinamizador principal em todos os sectores. Sabe-se que é abusando dessa posição que cai em favoritismos, na criação de clientelas e em tentativas de controlo da população mais vulnerável numa perspectiva claramente partidária.
Os efeitos do controlo da administração pela força política vencedora das eleições teria menos impacto num contexto outro em que houvesse uma estrutura produtiva nacional expressiva, uma classe empresarial mais assertiva, menos desemprego e pobreza e uma sociedade civil autónoma. São esses os factores que, de facto, em todas as democracias, independentemente do modelo adoptado na relação entre o poder político e a administração pública, impede o Estado de ser sequestrado por interesses puramente partidários. Em Cabo Verde, é evidente a centralidade do papel do Estado em todos os aspectos da vida económica, social e cultural. Inicialmente tal centralidade foi consequência da opção inicial pós-independência de estatização da economia no quadro de um modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa. A incapacidade de decisivamente se afastar do modelo de reciclagem nas décadas seguintes, de diversificar a economia e de ganhar capacidade de exportação de bens e serviços permitiu que o Estado conservasse essa centralidade e se mantivesse numa posição cimeira no topo da proverbial cadeia alimentar com todos os sectores da economia e franjas importantes da população na sua dependência.
Mudar o Estado para deixar de promover activamente o assistencialismo e a dependência e encontrar-lhe um novo papel no processo de dinamização da economia que seja de incentivo à iniciativa privada e não de bloqueador ou condicionante do desenvolvimento é o grande desafio que se coloca hoje. Pelas tentativas de reformas fracassadas no passado sabe-se que não será tarefa fácil. A inércia é grande e os interesses no status quo são muitos. É só perguntar quais das 100 medidas propostas com pompa e circunstância pelo governo anterior foram implementadas e quantas tiveram um efeito real e durável nos utentes em termos de custo e tempo e contribuíram para a melhoria do ambiente de negócios como prometido.
O cidadão comum, pela comunicação social, constata no dia-a-dia o frenesim dos anúncios de estudos, de investimentos, de ajuda externa seguidos de encontros de socialização, workshops, mesas redondas e fóruns. A impressão porém é que são eventos que muitas vezes não resultam da estratégia do Estado, mas sim de impulsos vindos de outras entidades ou partes da agenda das mesmas já com financiamento assegurado. Por isso é que parecem esgotar-se em si próprios sem ter continuidade ficando por realizar iniciativas realmente prioritárias por falta de fundos. A aparente dificuldade do Estado em alocar fundos próprios no tempo certo retira muita da eficiência e eficácia que podia ter na implementação das suas políticas. Custa, por exemplo, compreender que as forças armadas tenham sido prejudicadas no cumprimento da sua missão por causa de meios de comunicação VHF que afinal custam cerca de vinte mil contos e recentemente foram doados pelo AFRICOM americano.
A falta de efectividade do Estado em muito do que faz, soma-se ainda à dificuldade em ver-se como agente económico de grande importância enquanto comprador de bens e serviços no mercado local. Os industriais entrevistados por este jornal na semana passada dão conta dessa omissão e dos prejuízos que incorrem por causa disso. O mesmo dizem outros privados, por exemplo, no domínio das tecnologias de informação e comunicação que lamentam a ausência de uma estratégia de compra de serviços dinamizadora de empresas nacionais no sector. A assinalar uma mudança de política nesta matéria foi a decisão muito positiva do actual governo em promover o aprovisionamento de bens e serviços nas ilhas onde estão sediados serviços do Estado e em privilegiar operadores locais para obras municipais. Realmente, para ter maior impacto na economia nacional deve-se constituir toda essa compra de bens e serviços na “procura sofisticada” de que fala Michael Porter.
Em conclusão, há que ir além da problemática de partidarização. O Estado precisa de ser retirado do papel dominador que teve no modelo de reciclagem de ajuda. Há que adequá-lo para um outro papel que é o de promotor da autonomia e da iniciativa das pessoas com vista a aumentar a produtividade e a competitividade do país e criar as condições para a prosperidade e a felicidade de todos.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 794 de 15 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, fevereiro 10, 2017

Não há tempo a perder

Na semana passada o Governo organizou uma mesa redonda sobre o turismo na Boa Vista. Outros dois eventos similares com temática de turismo de montanha e de turismo urbano vão ser realizados respec­tivamente nas ilhas da S. Antão e S. Vicente nos fins de Fevereiro e Março. O debate com operadores do sector e entidades públicas e pri­vadas visa encontrar vias e soluções para os múltiplos entraves a uma dinâmica do turismo nessas ilhas e no resto país. O problema, como bem o caracterizou o actual presi­dente da Câmara Municipal da Boa Vista, em entrevista a este jornal, é se a mesa redonda não vai ser mais um dos muitos encontros, fóruns e workshops que se realizaram ao longo dos anos e que poucos benefí­cios trouxeram ao turismo nas ilhas. Também é de saber se, na sequência de tais reuniões, pode-se esperar um turismo com maior impacto na economia nacional, no rendimento e na qualidade de vida das pessoas.
É um facto que nos últimos cin­co anos foram feitos grandes inves­timentos no turismo, o que aumen­tou significativamente o número de turistas que chegam a Cabo Verde. A crise com que se debatem os paí­ses do Norte de África, designada­mente a Tunísia e o Egipto, e que agora chegou à Turquia, afectou profundamente a indústria turís­tica dirigida para a bacia mediter­rânea. Com a crise, abriu-se uma janela de oportunidades para Cabo Verde que se encontra a poucas horas dos centros emissores da Eu­ropa. O aproveitamento feito pelo governo anterior pode não ter sido dos melhores mas não se pode dei­xar de notar que apesar do turismo ter crescido e aumentado a sua con­tribuição no PIB para mais de 21%, a economia estagnou-se. Depois do ano eleitoral de 2011 em que atingiu os 4%, a taxa de crescimento do PIB foi, segundo dados do INE, de 1,1% em 2012, 0,8% em 2013, 0,6% em 2014, 1,1 em 2015 e, outra vez em ano eleitoral, a apontar para pouco mais de 4% em 2016. E em todos esses anos houve grandes investi­mentos em infraestruturas: estra­das, portos, aeroportos, barragens, habitação, escolas, liceus e outros edifícios públicos que deixaram o país com uma dívida pública de mais 125% do PIB. É de se pergun­tar o que aconteceu.
Responder a esta questão é cen­tral neste novo ciclo político em que se pretende deixar para trás os anos de estagnação económica e relançar o país no caminho do crescimento económico e do emprego. Há que procurar compreender porque, apesar das obras feitas, do inves­timento na educação de milhares de jovens e também dos milhões investidos pelos privados no sector do turismo, o crescimento foi raso e o desemprego manteve-se dema­siado elevado com ligeiras descidas em 2012, 2013, e 2014, e com uma queda de 3,4 em 2015 mas acompa­nhada de aumento do subemprego e do número de inactivos. Deve­-se procurar identificar o que está mal, quando depois de muitos mi­lhões investidos e o alargamento do mercado potencial com os muitos milhares de turistas o tecido em­presarial não se densifica, não se diversifica e não se especializa. Pelo contrário cai em falência, insiste na informalidade e simplesmen­te abandona largos segmentos do mercado interno face à concorrên­cia de operadores de origem estran­geira.
O que se pode, logo à partida, constatar é que, por um lado, os anunciados clusters que deviam ter dinamizado e diversificado a economia com contribuição para o PIB nos domínios da agricultura, da indústria e dos serviços nunca se constituíram. Também o inves­timento privado particularmente o capital estrangeiro só se interessou pela mão-de-obra pouca especiali­zada a qual deu uso na construção civil, nas fábricas e nos hotéis. Por outro lado, os investimentos públi­cos realizados não favoreceram as empresas nacionais levando prati­camente à falência o sector nacio­nal da construção civil. Os hotéis, apesar de movimentarem muitos milhões, pouco serviram para ala­vancar a actividade empresarial nacional não propiciando a possi­bilidade de criação de riqueza que resultaria da satisfação em bens e serviços da procura gerada pelos milhares de turistas.
É interessante notar como os governantes e o Estado em geral pareciam contentes com toda esta evolução não obstante os evidentes sinais perturbadores na vida das pessoas, nas dificuldades das em­presas e no ambiente social tanto nas cidades como no meio rural. Inauguravam-se obras quase todos dias, o discurso político celebrava os ganhos futuros dos clusters e as finanças públicas exibiam o seu perfil de eficiência no pagamento dos funcionários mesmo que no processo de conseguir receitas sufo­casse as empresas, não restituísse o IUR devido às pessoas e pusesse a obtenção de receitas alfandegárias e outras derivadas do movimento de turistas acima de qualquer conside­ração de política económica. Mudar esta atitude do Estado e dos gover­nantes é fundamental para que, de­pois de ultrapassado o ilusionismo, se confronte a realidade das dificul­dades da economia nacional em se estruturar para atrair capitais e para ganhar com os investimentos feitos.
No inquérito da conjuntura do INE divulgado na semana passada os operadores de todos os sectores apontam como um dos obstáculos à sua actividade o “excesso de buro­cracia e de regulamentações esta­tais”. Esta mensagem enviada pelos empresários e pelos utentes em ge­ral tem que ser compreendida pelo novo governo de como o aparelho do Estado, no sentido lato, tem sido um obstáculo para a actividade económica do país. Também para compreender que despartidarizar a administração pública (AP) não chega para mudar as coisas. Des­partidarizar pode fazer a AP mais profissional mas não muda neces­sariamente a sua actuação no sen­tido pretendido de ter um Estado promotor, facilitador e regulador.
Concluindo, para que as mesas redondas ou outro tipo de encon­tros não repitam o que foi feito no passado há que identificar de forma compreensiva os empecilhos múlti­plos que tem impedido que se erga no país uma estrutura produtiva capaz de gerar prosperidade e em­prego de qualidade para todos. Já se vai tarde na procura das respos­tas certas e o mundo não espera por ninguém.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 793 de 8 de Fevereiro de 2017.

sexta-feira, fevereiro 03, 2017

Necessidade de alternativas viáveis

A centralidade do poder do povo de, em eleições livres e plurais, escolher os seus governantes, de optar por uma nova via e também de fazer a transferência pacífica de um governo para outro é celebrada com grande solenidade em todos os países democráticos. Muito do cansaço, frustração e ressentimento que se vem acumulando nas sociedades modernas resulta da percepção crescente do público que esse acto fundamental da democracia já não tem a importância que teve outrora. Muda o governo e fica-se com a impressão que, de facto, o país não altera o rumo, fica, pelo contrário, sujeito aos mesmos constrangimentos, pontificam os mesmos actores de sempre ou os seus “clones” e retoma-se o discurso antigo mas retocado com aparentes novidades, porque, parafraseando Margaret Thatcher, diz-se que hoje vive-se nos tempos da TINA – There Is No Alternative.
Nas democracias modernas o povo não governa directamente. Escolhe os seus representantes e governantes e dá-lhes um mandato fixo para cumprir o programa prometido. Mas como não há cheques em branco em democracia, quer, primeiro, certificar-se que a governação acontece num quadro constitucional e legal de respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos, pelo pluralismo, pelo primado da Lei e pela independência dos Tribunais. Segundo, faz questão de ver as promessas cumpridas e os objectivos atingidos. Um mecanismo central de avaliação dos resultados do mandato é o poder de livremente escolher quem deve ser o próximo governo. Com isso garante-se que ninguém fica eternamente no poder e assegura-se que haverá sempre possibilidade de correcção em caso de abusos, desvio de objectivos ou simples incompetência.
Quando, porém, como aconteceu em vários países nos anos após a crise financeira de 2008, vota-se a mudança de governo e a transformação desejada não se verifica, designadamente na economia, no rendimentos das pessoas e na qualidade de vida, aparecem logo sinais de desencanto seguidos de frustração e até de raiva. Os alvos preferidos do ressentimento social são os partidos políticos, o parlamento, a imprensa, as elites, os ricos e os cosmopolitas mas também “os outros” designadamente os ciganos, os imigrantes, os africanos, os muçulmanos e todas as minorias que estiverem a jeito. Em simultâneo culpa-se a globalização, o comércio internacional, as instituições internacionais e, no caso da Europa, as instituições supranacionais. O Brexit, a eleição de Donald Trump e muito do que aconteceu nos últimos anos no sistema de partidos e no interior de vários deles são consequência do sentimento anti-partido e anti-política em crescimento há algum tempo e que foi amplificado extraordinariamente pelas redes sociais nos últimos cinco anos.
Comprovada a falta de utilidade do sistema de alternância de partidos, não estranha que o sentimento de desprezo pela política tivesse sido canalizado para soluções populistas no interior de estruturas partidárias já existentes ou que fossem alimentar forças políticas novas fortemente identificadas com os seus líderes. De facto, tanto numa situação como noutra nota-se a ascensão de um novo tipo de líder propenso a projectar uma imagem de outsiders e de personalidades com “força de carácter, autênticos, sinceros e não comprometidos” com as elites existentes. No actual ambiente em que os factos contam pouco, todas as opiniões parecem valer o mesmo e narrativas substituem a procura da verdade, a personalidade dos líderes populistas passou a ser razão suficiente para validar as promessas e opções políticas apresentadas. Os factos, porém, têm demonstrado que nos partidos tradicionais a adopção de uma agenda e estilo de liderança populista não traz ganhos a prazo. Tendem a falhar na corrida ao poder como testemunham os exemplos de partidos socialistas na Europa e depois passam vários anos a recompor-se. Quando conseguem triunfar nas eleições não tarda muito que todo o partido sinta os efeitos dos excessos e das inconsistências da liderança como aconteceu com Berlusconi na Itália e irá certamente acontecer com Trump nos Estados Unidos.
A democracia cabo-verdiana apesar de recente não deixa de ser afectada por fenómenos similares. No ano passado substituiu um governo de quinze anos por um outro do partido que nos anos de oposição soube manter-se como alternativa de poder. O flirt com o populismo foi perfeitamente visível nos dois partidos tanto no período pré-eleitoral como durante as eleições. Não estranha por isso que sequelas da proximidade de práticas populistas estejam a revelar-se na unanimidade à volta dos líderes, todos eleitos com números quase a atingir os 100% dos votantes, e também na animosidade dirigida a qualquer sinal de dissenso nas fileiras dos militantes. A quase total ausência de listas concorrenciais para delegados aos órgãos máximos dos respectivos partidos veio comprovar a falta de dinâmica de vida interna e pode estar a revelar um défice no debate de ideias que, a verificar-se, deixa qualquer partido em sérias dificuldades de se constituir como real alternativa de poder.
 A credibilidade do sistema democrático depende muito da sua capacidade em produzir governos alternativos que demonstram de forma inequívoca que o voto popular tem efeitos práticos na escolha de governantes e de novas políticas para o país. Não ter uma força política à altura de produzir políticas distintas e governantes competentes para o país pode criar descrença no sistema de partidos pondo em perigo a democracia e abrindo caminho a soluções populistas e a líderes autocráticos. Por isso, nas vésperas da realização dos órgãos máximos do MpD e do PAICV o apelo deve ser de arejar as fileiras com debate sério e plural cientes de que só dessa forma vão justificar o sistema de partidos e ajudar a preservar a democracia representativa fundamental para a liberdade e a prosperidade de Cabo Verde.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 792 de 01 de Fevereiro de 2017.