sexta-feira, março 31, 2017

Sair do círculo vicioso

Na semana passada o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva anunciou alguns instrumentos de financiamento de start ups e projectos de Pequenas e Médias Empresas (PME). Falou na criação para breve de um fundo de capital de risco e do fundo de garantia soberana. Numa intervenção na Assembleia Nacional no dia 28 de Março, o ministro das Finanças acrescentou a recapitalização do Cabo Verde Garante como mais um desses instrumentos que o governo pretende disponibilizar para assegurar a partilha de riscos entre o empresário, a banca e o Estado. A promessa implícita nestes anúncios é que, resolvido o problema do capital para as empresas, a economia do país ganhará outra dinâmica. 
A questão do financiamento das empresas sejam elas micro, pequenas ou médias é tida como um dos constrangimentos de maior peso que deverão ser ultrapassados para que haja mais crescimento e mais emprego. Tanto nos governos anteriores como no novo governo constituiu uma preocupação central e uma promessa. O facto porém é que até agora não se conseguiu sucesso significativo e sustentável com os vários instrumentos criados, designadamente os fundos de pesca, crédito agrícola, microfinanças e tragicamente o Novo Banco. Raros são os casos em que não se passa do empreendedorismo de sobrevivência e da actividade informal que não obstante os benefícios pontuais que propiciam aos operadores individualmente muito pouco contribuem para resolver o problema geral do emprego, da produtividade e da competitividade do país. O caso do Novo Banco e os avultados prejuízos na ordem de um milhão e oitocentos mil contos que vai legar para o Tesouro e para os contribuintes do INPS devia ser motivo para alguma pausa antes de se avançar com mais um esquema de financiar as pequenas empresas nacionais.
O aparente paradoxo de se ter dinheiro ou liquidez nos bancos nacionais enquanto a economia está carente de financiamento fez o governo anterior aprimorar-se nas suas artes de ilusionismo para justificar por que o financiamento não chegava às empresas. Tinha prometido que as infraestruturas em construção por todo o país iriam abrir caminho para o investimento privado, mas isso não aconteceu. Pelo contrário, com as dificuldades crescentes das empresas, com os riscos macroeconómicos a aumentar à medida que a dívida pública ultrapassava os 100% do PIB até chegar aos 124% e com a economia a crescer anemicamente à volta de 1,2% do PIB os bancos mostravam-se relutantes em autorizar créditos. O governo optou então por ofuscar a realidade com iniciativas vindas do Banco Central de facilitação de liquidez que, como se veio a verificar, não resultaram porque os bancos tinham os cofres cheios. Falhada a transmissão monetária, a situação para os privados no que respeita ao acesso ao crédito ficou praticamente na mesma. A reacção política foi de justificar o fracasso com suposta má vontade dos bancos e com outras iniciativas agora na prestação de garantias que acabaram mal como se pode constatar de certos créditos duvidosos do Novo Banco que vieram a público. 
Nas discussões sobre o ambiente de negócios em Cabo Verde tende-se a realçar constrangimentos ao nível fiscal e de acesso ao crédito a exemplo aliás do que se passa nos países avançados. Mas, se nestes os efeitos das medidas políticas têm eficácia directa, aqui em Cabo Verde diluem-se no meio de outros factores que dificultam a actividade empresarial e inibem a iniciativa individual a começar pelo mercado que não só é exíguo como é fragmentado e carece muitas vezes de regulação adequada. O resultado é que a concorrência não é justa, a informalidade reina e os custos de factores, de transporte e de contexto contribuem extraordinariamente para inibir qualquer actividade ou iniciativa. Centrar na resolução do problema do financiamento ou do acesso ao crédito sem uma acção estratégica para contornar ou eliminar os muitos outros constrangimentos que se colocam no caminho dos operadores económicos poderá significar simplesmente mais um regresso a um caminho já trilhado de fundos e financiamentos que poucos resultados tiveram e muitas dívidas deixaram para depois serem assumidas por todos os contribuintes. 
A verdade é que o país precisa crescer a taxas elevadas e baixar dramaticamente o desemprego e a experiência das últimas décadas demonstra que crescimento rápido e grande número de postos de trabalho só se consegue com investimento externo e exportações. As fábricas do Lazareto em S.Vicente, a Frescomar e os resorts e hotéis da Ilha do Sal e da Boa Vista são prova disso. Criaram rapidamente milhares de postos de trabalho directos e indirectos e introduziram uma outra dinâmica económica porque investimento externo não é só capital, é também tecnologia, know-how e mercados. E sem mercados e sem competitividade não serve de muito facilitar acesso a financiamento de empresas. 
A nossa experiência recente, mesmo limitada, e a experiência de outros países demonstram sem equívocos que conseguem-se melhores resultados na política de desenvolvimento quando se articula a política de atracção de investimentos externos como uma estratégia compreensiva de dinamização do empresariado nacional. De outro modo, com desencontros de políticas e acções desarticuladas só se chega ao estado que o país se encontra hoje: a crescer muito pouco com uma dívida pesada, uma economia pouco diversificada e demasiado dependente de uns poucos operadores externos. 
                Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 29 de Março de 2017 

sexta-feira, março 24, 2017

Blame game, ou o jogo da culpa

O Novo Banco tem sido nas últimas duas semanas o foco da atenção geral do país. A resolução do Banco a sancionar a transferência dos activos para a Caixa Económica e a liquidação da parte restante, na perspectiva de ainda arranjar recursos que permitam indemnizar os trabalhadores e de minimizar perdas, desencadeou um debate público intenso na comunicação social e nas redes sociais. Muito da troca cruzada de palavras na esfera pública tem-se centrado na procura de culpados. Menos do que se deveria esperar, visa elucidar os termos em que se verificou o descalabro com vista a se evitar repeti-los no futuro. A participação de políticos no debate tende a derivar para mero  arremesso de acusações mútuas, não assumindo ninguém a responsabilidade pelo trajecto de mais de cinco anos do Novo Banco. Entretanto, aumenta-se o stock de cinismo nacional quanto à política, reforçando a ideia de que “todos têm natureza idêntica e agem da mesma forma”. 
Interessante que o jogo da culpa inicia com a afirmação imediata de uma realidade alternativa em que as razões para a criação do Novo Banco existiam em 2010 e mantêm-se até hoje. O ex-primeiro-ministro num post do Facebook veio reiterar que tomaria a mesma decisão de sete anos atrás de criar o Novo Banco. Insiste que há razões para a existência do banco, mesmo perante a realidade do falhanço da instituição ser conhecida desde o início da actividade e confirmada ao longo dos anos em episódios de perda de rácio de solvabilidade e de recapitalizações sucessivas. Na prática quer-se iludir o problema original da falta de fundamentos sólidos para a sua criação, algo sinalizado por consultores e outros intervenientes no processo, ressaltando a suposta bondade dos propósitos: financiar micro e pequenas empresas. 
Vê-se o sucesso na construção dessa realidade alternativa quando se consegue que o foco da atenção do público se mova para outros actores que supostamente teriam desviado do plano original do banco e arruinado o projecto, entre eles os gestores, os accionistas e entidades de supervisão. Com alguma imaginação pode-se incluir os clientes incumpridores e um novo governo que herdou o pré-anunciado desastre. A partir daí é fácil entrar num jogo em que cada um atira culpa do insucesso do banco ao outro enquanto os principais responsáveis passam ao largo. 
Neste quadro vem à tona problemas  não anteriormente visíveis ou se identificados quem devia agir tinha os passos tolhidos. Fala-se agora da estrutura exagerada de custos no Novo Banco, dos créditos concedidos a entidades com exposição noutros bancos, e de falta de planos de reestruturação do banco mesmo quando falhava nos testes de stress e era obrigado à recapitalização para repor rácios de solvabilidade. Ninguém com responsabilidade parecia agir decisivamente para ultrapassar definitivamente o problema mas agora culpam-se uns aos outros. Faz-se por esquecer que só  intervenção do governo anterior a vários níveis com instruções directas nuns casos, com influenciação indirecta noutros casos e ainda como força dissuasora em relação a eventuais intervenções de reposição de certos equilíbrios permitiu que uma situação como a do Novo Banco pudesse persistir durante todos estes anos. Concomitantemente quer-se ignorar a evidência que a criação do banco desde o princípio seguiu propósitos políticos eleitoralistas e que a sua manutenção serviu interesses políticos. 
Perante o desfecho inevitável do Novo Banco a partir do momento em que iniciou um novo governo aparecem agora dúvidas se se devia ter sido salvo. Compreende-se que os trabalhadores despedidos, sentindo-se prejudicados, procurem ser recebidos pelo presidente da república, pelo presidente da assembleia nacional e pela presidente do partido de oposição. Já não é tão claro que tipo de intervenção esperariam dessas entidades perante o que é decisão de uma autoridade de supervisão independente, o BCV, e a opção do novo governo em não perseguir os objectivos políticos que o outro governo tinha com o Novo Banco. O problema para todos, para a paz social e para o funcionamento normal das instituições é se a moda pega e se as audiências do género são garantidas não só aos trabalhadores de “colarinho branco” mas a todos os outros que numa circunstância ou outra se vejam em situação de desemprego ou de simples confronto laboral. 
Devia ser evidente que o país está numa encruzilhada e que terá que mover-se decisivamente para além de certas práticas e de certa atitude que dificilmente continuarão a ter respaldo nestes tempos de mudanças inesperadas e imprevisíveis na forma como se organiza a economia mundial e as relações entre as nações. O caso do Novo Banco devia ser um dos muitos alertas para a urgência das mudanças a serem realizadas. Não devia ser mais um pretexto para mais um jogo da culpa que acaba por deixar todos exaustos, mais pobres e menos conhecedores dos problemas do país e dos caminhos a serem percorridos para os ultrapassar. Há que não se deixar apanhar por práticas que alimentam uma cultura de cinismo em relação à política e aos políticos. Como se vê noutras paragens, é por aí que se promove a ascensão de líderes populistas que no processo de implantação da sua autoridade sacrificam não poucas vezes a liberdade e a prosperidade do seu povo. 
               Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 22 de Março de 2017

sexta-feira, março 17, 2017

Castelos no ar

Governar servindo-se do ilusionismo para gerir expectativas, mobilizar apoio político e conter adversários acaba sempre por terminar mal. Quando a realidade vem bater à porta são finalmente conhecidas as facturas por pagar acumuladas nos anos de construção de castelos no ar. Também fica-se a saber que o futuro poderá não ser o imaginado. O fim da ilusão não acontece porém sem que na sua esteira surjam sinais inequívocos de pobreza, desorientamento e frustração dos que foram apanhados pelo seu fulgor enquanto os promotores prosseguem a sua vida envoltos numa espécie de véu de intocabilidade. A sociedade, por sua vez, ressente-se da aparente impunidade do processo e nota-se a insatisfação nas quebras nos níveis de confiança, nas perdas em civismo e no descrédito das instituições. Após um exercício do ilusionismo como método de governação o saldo é francamente negativo para todos.
 O fim do Novo Banco é o mais recente exemplo do desmoronar de um dos vários castelos no ar que o governo anterior se entreteve a construir no âmbito da sua Agenda de Transformação. Não há muito tempo o país já tinha assistido em choque ao arresto do avião da TACV na Holanda e com particular intranquilidade às dificuldades do Programa Casa para Todos que não proporcionou todas as casas prometidas e deixou uma dívida pesada. Os problemas, porém, não ficaram por aí. Enquanto estes castelos no ar caiam com fragor outros tantos como os diferentes clusters supostamente criados para impulsionar o crescimento desapareciam sem um pio audível deixando para trás uma economia estagnada. Também o sonho das barragens mobilizadoras da água indispensável para o agronegócio que ia salvar as zonas rurais acabou por ficar encalhado em múltiplos problemas de construção, de falta de políticas para o sector agrícola e pecuário, de organização e regulação do mercado e de acesso aos mercados turísticos. Todos estes casos demonstram que deixar-se levar pelo ilusionismo, em detrimento de abordagens realistas e pragmáticas, não é o caminho que deve ser seguido. A curto prazo pode até trazer benefícios políticos mas, a médio e longo prazo, os custos serão enormes.
O processo da criação do Novo Banco é paradigmático quanto ao que acontece na construção desses castelos no ar resultantes do ilusionismo na governação. O aparecimento do Novo Banco coincide com o do lançar do Programa Casa para Todos, no ano de 2010, o ano em que o partido no governo preparava-se para disputar um terceiro mandato. A evidente conveniência política conjugou-se com a aparente necessidade de, por um lado, responder aos problemas de financiamento encontrados pelas micro e pequenas empresas e, por outro, facilitar crédito para habitação social que resultaria da concretização do Programa Casa para Todos. No parecer do BCV, citado por este jornal, as razões para a criação do Novo Banco careciam de base sólida. Não se demonstrava com estudos que certos segmentos não bancarizados da população tinham necessidade de uma instituição como o NB. Não se fundamentava que o problema estava do lado da oferta. E não se provava que os problemas de financiamento só podiam ser resolvidos por um banco, mesmo de cariz social.
Apesar de todas essas ressalvas que também foram colocadas por outras entidades o governo avançou com a criação do Novo Banco. Foi uma decisão política clara e como outras do género desde do início acumulam custos sem que se vislumbrem benefícios significativos. Interessante como nesses casos o que é definido como objectivo maior ou benefício a ser conseguido é o que menos lucra com todo o esquema montado. No caso do Novo Banco o crédito para o sector alvo das pequenas e médias empresas não chega a 5%. Não há demonstração mais clara do fracasso de todo o projecto. Também os problemas com a venda de apartamentos B e C do Programa de Casa para Todos que depois se veio a verificar  acabou por revelar que até nesse objectivo de apoiar a habitação social não esteve à altura.
Se os benefícios foram mínimos, os custos não pararam de crescer. Aos custos exagerados da estrutura empresarial juntou-se o custo resultante da pressão do Estado, por um lado, a pressionar empresas públicas em dificuldades financeiras a serem accionistas e, por outro, a forçar o INPS a avançar com capital inicial e reforços do capital sempre que os rácios de solvabilidade se mostravam abaixo dos exigidos pelo BCV. As perdas de cerca de 900 milhões de contos suportados pelo INPS na relação com o INPS não se justificam à luz dos critérios de investimento que uma entidade como o INPS deve seguir estritamente. Outras perdas institucionais designadamente de entidades públicas que para apoiar, aconselhar e supervisionar na implementação de certas políticas devem ser independentes, são muitas vezes enormes. Ficam diminuídas na sua estatura público-institucional ao se sujeitarem ou se calarem publicamente perante a evidência de que são manifestações de interesses de natureza política partidária que estão por detrás da posição do governo e não o interesse público.
A manifesta vontade de vários protagonistas em ganhar logo à cabeça com iniciativas públicas sem consideração com eventuais benéficos práticos, mas sempre muitos atentos aos ganhos políticos, tem sido o suporte para a construção do ilusionismo de castelos no ar. Mas com a dívida pública a 128,5 % do PIB e o país só a crescer a 3,6%, como na terça-feira estimou o Ministro de Finanças, depois de mais de cinco anos com uma média de crescimento de 1,2% do PIB, não há absolutamente nenhuma margem para insistir em projectos ilusórios. Num pequeno país arquipélago como Cabo Verde, realismo, flexibilidade e pragmatismo deviam guiar a acção estratégia do governo. Só com uma abordagem despida de ilusões se pode avançar, de facto, na identificação dos potenciais motores de crescimento, no desenvolvimento e melhor alocação do capital humano, na atracção do investimento privado nacional e estrangeiro, no acesso aos mercados e na melhoria da competitividade externa do país, imprescindíveis para criar emprego, produzir riqueza e prosperar. 
                           Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Março de 2017  

sexta-feira, março 10, 2017

Combater a violência policial

Onde há exercício de poder, há possibilidade de abuso. Combatem-se os abusos e limitam-se as impunidades com salvaguardas legais e institucionais que funcionam como contrapesos ao poder e também com uma consciência cívica apurada, suportada por uma imprensa livre. A democracia é o melhor dos sistemas políticos não porque as suas regras não são susceptíveis de abuso mas por que nela o Poder é de facto vários poderes que se equilibram em tensão permanente. O ambiente que daí resulta é o em que a igualdade dos indivíduos perante a lei e a defesa da dignidade humana e da liberdade estão devidamente asseguradas. Para que assim seja é fundamental que as forças de repressão na democracia que detêm o monopólio da violência sejam clara e eficazmente controladas. E em caso de abuso os efeitos devem ser identificados e reparados, os agentes responsabilizados e a força policial corrigida nos seus procedimentos e filosofia de actuação. 
Violência policial em Cabo Verde é uma realidade que não escapa a ninguém. Relatos que aparecem na comunicação social em particular na televisão são demasiado frequentes para não deixar indiferente qualquer cidadão. As justificações das autoridades em resposta às denúncias são em geral de uma fragilidade confrangedora especialmente quando procuram pôr a polícia em posição de vítima. São tomadas muitas vezes com cepticismo considerando a desproporção de força a favor da polícia e a dúvida popular tende a subsistir quanto ao que realmente se passou porque, em geral, fica-se por saber se foram cumpridas as promessas de esclarecimento cabal do assunto. Os resultados dos inquéritos quase nunca chegam a público. Não estranha pois que a percepção geral é que há violência policial nas esquadras e que suspeitas de mortes por causa dessa violência têm algum fundamento. 
Reforçam ainda mais essa percepção  casos como o de Pensamento da semana passada em que um infractor depois de alegadamente espancado por um policial e deixado ficar numa esquadra durantes mais de 12 horas morre, como consta na certidão de óbito, de “choque hipoglicémico e de politraumatismos”. A polícia, em conferência de imprensa, com imprecisões e contradições passou a imagem de estar a fugir à assunção plena das suas responsabilidades. E obviamente que repetir mais uma vez que iria instaurar inquérito interno para apurar  responsabilidades dificilmente poderia trazer algum conforto aos familiares e aos cidadãos que estivessem a seguir o caso. Um facto novo porém foram as declarações do Ministro de Administração Interna a garantir sindicâncias externas à actuação da polícia e a pedir a intervenção do Ministério Público para dirigir investigações ao caso. 
O relatório do Departamento de Estado americano sobre os direitos humanos do dia 3 de Março comunga da mesma percepção que parece existir entre o público a propósito de certas actuações da polícia. Há referências a brutalidade policial para com detidos, fala-se de casos em que não são responsabilizados os agentes e recordam-se situações em que o governo parece não ter mãos sobre as forças de segurança. O facto de ao longo dos anos esses relatórios terem repetido as mesmas preocupações deixa entender que não se está a fazer o suficiente para pôr cobro a uma prática que, sabe-se de outras experiências de abuso de poder, não encontra cura por si própria e só tende a agravar-se. A descrença na justiça que é gerada apenas retroalimenta a desconfiança entre a população e as forças policiais o que torna mais difícil o combate contra a criminalidade, põe em perigo os agentes da ordem pública e deixa indefesos os cidadãos apanhados no fogo cruzado entre polícias e bandidos. 
O aumento significativo da eficácia de todo o sistema de justiça é fundamental para recuperar a confiança na sociedade cabo-verdiana e os níveis de civilidade essenciais para uma baixa permanente do nível da criminalidade no país. Polícias, procuradores, juízes, directores de cadeia e agentes de reinserção social devem perceber que só se terá justiça efectiva com demostrações de brio e profissionalismo por parte de todos os elementos do sistema e com viva consciência de todos da importância do respeito escrupuloso pela lei e pelo processo devido (due process) em todas as situações. Corre-se em sentido contrário quando em vez de se verem como partes de um sistema, derivam para posturas de culpar uns e outros desarticulando-se e desresponsabilizando-se no processo. Pior ainda, é quando se cai na tentação de fazer justiça por conta própria porque se tem a percepção de que parte do sistema não está a fazer o seu papel e presumíveis criminosos são soltos e ficam incólumes. 
Impõe-se mudar este estado das coisas. Reequilíbrios têm que ser impostos e os órgãos de fiscalização interna e externa devem funcionar seja nas polícias, seja nas magistraturas de forma a ultrapassar a cultura corporativista que tende sempre a instalar-se e fazer valer-se para cima do interesse público nos corpos profissionais. Do Ministério Público em particular, que, como diz o Presidente da República, no discurso de tomada de posse do actual PGR, “está colocado no vértice da pirâmide de fiscalização da legalidade”,espera-se “coragem de poder desagradar e causar incómodos, (…) mesmo em relação àqueles que pensam estar acima dela, julgando que as suas acções não estão submetidas à sindicância”.  
O comunicado do Ministério Público sobre a “Morte de indivíduo detido na esquadra policial” e a conferência de imprensa do Ministro de Administração Interna sobre a mesma matéria de ontem, dia 7 de Março, marcam uma mudança de atitude no sentido que o PR apontou e que todos os cidadãos esperam. É fundamental que se avance para coarctar quaisquer tipos de abusos de poder, complacência com certas práticas e espírito corporativista para que todo o sistema judicial se ponha à altura de eficazmente e em tempo útil proteger os direitos de todos e satisfazer o desejo colectivo de justiça essencial para uma convivência na paz e na liberdade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 797 de 08 de Março de 2017.

sexta-feira, março 03, 2017

Imprensa em crise

Nas últimas semanas a problemática da crise na comunicação social reapareceu de repente na consciência das pessoas, da sociedade e do próprio Estado. Perante casos notáveis de desaparecimento de órgãos de imprensa, surgiram vozes de vários sectores de opinião a expressar preocupação com a sustentabilidade dos jornais privados e das rádios comerciais. Face ao problema, a sugestão da parte do governo de um eventual posicionamento no sentido de reforço dos órgãos públicos de comunicação social não se mostrou encorajador. Provavelmente só iria diminuir mais a base de sustentação da imprensa privada. E a verdade é que a crise na comunicação social privada não é ultrapassável com maior protagonismo do sector público. Também sabe-se que a democracia fica necessariamente diminuída e em situação de risco num ambiente em que jornais, rádios e televisões privadas não encontram autonomamente meios suficientes para se viabilizarem.
O problema de fundo com os jornais privados começa com o mercado publicitário. Depois de anos de estagnação da economia esse mercado continua exíguo e sente-se cada vez mais o peso da concorrência da rádio e televisão públicas. Os jornais aqui em Cabo Verde assim em como em toda a parte do mundo ressentiram-se bastante da quase omnipresença da televisão 24 horas/sete dias na transmissão de notícias. A isso veio juntar-se em tempos mais recentes a tendência das pessoas em se servirem de informações disponibilizadas gratuitamente na internet para se manterem a par dos acontecimentos no país e no estrangeiro. Ultimamente com a expansão rápida das redes sociais mudaram-se completamente as regras do jogo. Foi criada a possibilidade dos utilizadores de reagiram directamente e de forma imediata a acontecimentos e posicionamentos de outras pessoas sem necessidade de intermediação.
Esvaziada em boa medida da sua capacidade de mediação, a comunicação social tradicional viu-se limitada e preterida no papel de facultar aos cidadãos os meios para exercerem o seu direito de se informar, de informar e de acesso às fontes de informação. Não espanta que a crise actual seja profunda e abrangente. Encontrar soluções para a ultrapassar é de importância crucial para as democracias. A urgência nesta matéria é tanto mais quando crescentemente se perfilam no mundo forças políticas e outras que apostam na descredibilização da imprensa tradicional.
Paradigmático neste aspecto foi a acusação de “inimigo do povo” feita pelo presidente Donald Trump aos media americanos. Para mostrar que não é uma acusação para esquecer ou ser tomada como algo sem consequência é que nos dias de hoje o Washington Post mantem no cimo da primeira página a expressão Democracy Dies in Darkness, a democracia morre na escuridão. Com essa inscrição quer alertar para os perigos da ofensiva violenta que está a se verificar sob várias formas contra factos, contra a verdade e contra o pluralismo. A História mostra que tiranias de toda espécie começam por apagar a luz que a imprensa livre e plural tende a projectar sobre os actos de poder.
Com diferentes variantes e intensidade o fenómeno está a passar-se em várias democracias espalhadas pelo mundo. À medida que muitos vão ficando dependentes das redes sociais para se informarem e se posicionarem, mais vulneráveis se mostram as manipulações demagógicas, teorias de conspiração e a notícias falsas. É evidente hoje que todas as derivas populistas apontam invariavelmente o alvo para as instituições fundamentais do pluralismo: o parlamento e a imprensa privada de referência. Neste sentido, lutar contra tentações populistas também significa apoiar a imprensa privada, resistir a tentativas de governamentalização da comunicação social e tudo fazer para manter uma sociedade livre e plural onde ninguém tenha a presunção de ser detentor da verdade, possuir em exclusivo as soluções possíveis e falar pela Nação como se ela tivesse uma única voz.
 Na condição actual de Cabo Verde não é fácil manter uma imprensa livre e plural em particular na imprensa escrita. Mas sendo essencial para o funcionamento do sistema democrático é da maior importância que se encontre o devido equilíbrio entre o sector público e o sector privado da comunicação social. A Constituição da República (CR) é clara por um lado a declarar livre a criação de jornais e por outro a estabelecer um serviço público da rádio e televisão. Rádio e televisão privadas podem conseguir licenças de emissão depois de se submeterem a concursos públicos. Reconhecendo o carácter excepcional do serviço público da rádio e televisão, a própria CR impõe um pluralismo interno no funcionamento dos órgãos públicos e submete-os a um escrutínio externo estrito de uma entidade reguladora com competência para emitir perecer vinculativo no processo de nomeação dos respectivos directores.
Para se garantir porém o pluralismo externo dos vários órgãos privados há que assegurar a sustentabilidade autónoma para os mesmos sem dispensar eventuais incentivos do Estado. Devia ser evidente que nestas circunstâncias o Estado procurasse evitar que os órgãos públicos que já recebem taxas e transferências públicas também beneficiassem do mercado publicitário que todos reconhecem ser diminuto. Muito menos que acções de verdadeiro dumping se verificasse na corrida pelos escassos recursos da publicidade quando se sabe que quem está a ser subsidiado por fundos públicos melhor preço poderá fazer para aumentar quota de mercado e até eliminar o concorrente. Já o Estado ajudaria e muito com o investimento numa agência noticiosa que fornecesse a partir de todas as ilhas despachos nos diferentes formatos para uso de todos os órgãos. Fica a sugestão. Há que ultrapassar a crise de sustentabilidade da imprensa em Cabo Verde para  se evitar uma crise ainda maior no regime democrático.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 796 de 28 de Fevereiro de 2017.