sexta-feira, junho 30, 2017

Défice de diálogo democrático

Como já foi bastas vezes dita, o debate é a essência da democracia. Pressupõe liberdade de expressão, conta com o pluralismo de pontos de vista e exige respeito pelas regras do jogo democrático cingindo-se aos factos e à verdade. A fragilidade do debate em Cabo Verde, infelizmente não por poucas vezes despida de objectividade, de fair play e de substância, acaba por indiciar que há ainda muito a caminhar para se poder afirmar com propriedade que a democracia em Cabo Verde está em terreno sólido. Os debates parlamentares pela sua propensão em se desviar do objecto, em resvalar para ataques ad hominem e em se constituir vias para se mobilizar apoios de sectores do eleitorado mesmo quando as eleições estão distantes são paradigmáticos do que sempre se deve evitar em democracia. Em geral, termina sem um esclarecimento sobre as matérias em discussão, sem qualquer base de trabalho conjunto, e sem, de facto, um engajamento em questões muitas vezes prementes do país. 
O último debate parlamentar sobre o agronegócio não foi excepção. Aliás, sobre o próprio conceito de agronegócio não há qualquer consenso. Foi introduzido na última década como a actividade que iria justificar a mobilização monumental da água através de barragens e na sequência criar muitos postos de trabalho, aumentar o rendimento da população rural e fornecer produtos para o turismo em dinâmica crescente no país. Iludiu-se o facto que noutras paragens o agronegócio para ter escala e poder adoptar tecnologias e processos mais produtivos concentra propriedade e liberta população para as cidades e outros sectores da economia. Mesmo quando a realidade da persistência da pobreza nas zonas rurais, com o interior de Santiago a ter o mais baixo rendimento per capita do país, e com a generalidade das ilhas agrícolas a perder população, ficou difícil, em sede de debate parlamentar, reconhecer a necessidade de ruptura com as políticas do passado.
Em competição uns com os outros, os partidos continuam a prometer levar todas as infraestruturas e todos os serviços a todos os pontos do território, sejam elas cidades, vilas e povoados ou simples lugarejos. Não se vislumbra é a concomitante preocupação de saber se já há ou se é possível construir uma economia que dê às pessoas de forma sustentável recursos para aí viverem, pagarem energia, água e telecomunicação, fazerem a manutenção da casa e acederem à educação e à saúde sem subsídios estatais de uma forma ou outra. O resultado é que, na ausência de uma estratégia de promoção de uma economia que não a tradicional, a actuação do Estado tem sido a utilização de doações ou capital concessionado para fazer obras muitas vezes com prioridades questionáveis, mas sempre proclamando que trarão melhorias significativas. Entretanto o país endivida-se, a pobreza e o êxito rural para as periferias das cidades persistem, mas a resposta parece que não é outra senão a de anunciar ainda mais projectos. Espantoso que o nem com o grogue, um produto não perecível e com mercado real e potencial expressivo, consegue-se efectivamente regular a sua produção, estabelecer os seus circuitos de distribuição e garantir a sua qualidade. 
Hoje sabe-se que é fundamental para que a democracia funcione em pleno que os seus actores se sintam guiados pelo princípio de responsabilidade incluindo a preocupação com a integridade do sistema político e a sua conservação e sobrevivência mesmo perante a crise. Também é essencial que se deixem guiar pelo princípio de convicção que obriga a coerência e consistência nas posições que se confrontam na esfera pública. Perigos para as democracias existem quando são ignorados esses princípios e substituídos por actuações polarizantes da sociedade designadamente com base em nacionalismos exacerbados, sentimentos contra imigrantes e frustrações com o aumento das desigualdades e com o distanciamento das elites. Sempre que assim acontece corre-se o risco de esvaziar a democracia da sua natureza inclusiva, propiciando a divisão entre nós e eles e, em vez do diálogo, esgrimem-se paixões, medos e ressentimentos. Também sacrifica-se o diálogo quando se vai no sentido de praticamente substituir discursos alternativos por uma pretensa verdade tecnocrática que se autoproclama como solução única e científica para os complexos problemas da política e da vida em sociedade. 
O défice de diálogo entre as forças políticas em Cabo Verde tem sido prejudicial ao país em vários momentos nestes 26 anos de regime democrático. Muitas reformas profundas e reorientações atempadas poderiam ter sido conseguidas se em matérias cruciais se tivesse chegado a compromissos salvaguardando os interesses de ambas das partes. As últimas eleições legislativas bem poderiam ter aberto um outro período na relação partido no governo e oposição. A consciência de que o país se encontrava numa encruzilhada parecia ser partilhada por todos e podia-se ter aberto caminho mais cedo. Infelizmente rapidamente o país voltou aos hábitos políticos anteriores mas agora com um potencial de perturbações porque tudo leva a crer que o foco da actividade reivindicativa vai ser a administração pública e o sector empresarial do estado e, sem crescimento expressivo, não há muita margem para uma resposta positiva.
O futuro de Cabo Verde irá depender muito da capacidade do governo e de outras forças políticas chegarem a acordo em matéria do futuro do país e de garantir a paz social. Questões como a Segurança, a reforma da administração pública, a pobreza em geral, mas particularmente no mundo rural, a reforma do ensino, reforma laboral e uma estratégia para o Turismo deviam merecer um diálogo mais construtivo com participação efectiva de todos. Há que fazer mais para isso com carácter da urgência do agora.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 813 de 28 de Junho de 2017

sexta-feira, junho 23, 2017

Ampliar os ganhos da concertação social

Na segunda-feira, dia 19 de Junho, o Governo e os parceiros sociais, os sindicatos e o patronato chegaram a um compromisso para assinar em Julho um acordo tripartido para mais crescimento, mais emprego, mais rendimento e para um esforço maior na luta contra a pobreza. A convergência de posições pode vir a revelar-se de maior importância se conseguir traduzir-se em vontade para fazer as reformas profundas que o país carece, em confiança na possibilidade de vida para além da ajuda externa e em paz social indispensável para se trabalhar o presente de forma a que o futuro seja de todos. Na encruzilhada em que Cabo Verde se encontra neste momento, a braços com incertezas internacionais, com uma excessiva dívida pública e um crescimento económico ainda insuficiente, é fundamental uma atitude geral marcada pela perseverança, produtividade e solidariedade para se atingir os objectivos de prosperidade desejada.
Tal acordo só peca por ser tardio. De há muito que se devia ter concluído que, a exemplo de vários países, alguns insulares como Cabo Verde, só com uma dinâmica económica suportada por investimento privado nacional e estrangeiro e por uma população profissionalmente qualificada e orientada para exportação de bens e serviços incluindo o turismo se pode almejar uma melhoria significativa e sustentável nos rendimentos e na qualidade de vida das populações. O crescimento rápido verificado ao longo dos anos 90, na sequência das reformas económicas, demonstrou claramente isso. Um crescimento similar posterior nos anos entre 2005 e 2008 devido ao impacto do investimento externo na economia veio confirmá-lo. Infelizmente, as melhores ilações não foram retiradas dessas experiências e rapidamente se perderam oportunidades, num caso, para explorar o potencial oferecido pela industrialização voltada para exportação e, no outro caso, para construir uma base mais alargada para o turismo.
Como sempre, por um lado, pensava-se que se tinha todo o tempo do mundo para tomar decisões e, por outro, caia-se na tentação de querer ganhar à cabeça e deixar-se apanhar por rendas fáceis. Tal atitude para além dos seus malefícios evidentes ainda não contribui para o espírito de pertença a uma causa comum que é o desenvolvimento do país e para a solidariedade que é essencial para garantir que todos beneficiem dos avanços conseguidos. Em ambiente de jogo de soma nula não há cooperação para se conseguir o bem comum mas sim competição nociva em que uns procuram ganhar subtraindo aos outros. Não estranha que seguindo por esse caminho se acabe simplesmente por aumentar a dívida, por ver grande parte da economia implodir ou regredir para a informalidade enquanto o tecido social ameaça desfazer-se em crescentes incivilidades e violência. As pessoas acotovelam-se cada vez mais à volta dos recursos públicos do Estado e dos que giram em torno dos investimentos externos no turismo.
Como sugerimos no editorial de 5 de Maio de 2017 o país precisa gerar alguns “consensos necessários” para poder encontrar o seu caminho de volta para a cooperação e para a produtividade, condições necessárias para  a restauração da confiança, para maior civismo e para maior solidariedade. Mas o pacto para o crescimento e emprego que foi proposto não devia ficar pelos interesses representados no Conselho de Concertação Social que tendem a fixar-se mais nas políticas de rendimentos e preço, de emprego, formação profissional e segurança social. Pelas suas implicações em todos os aspectos da vida do país, a sua discussão e aprovação devia ser mais abrangente e verificar-se numa sede mais alargada.
O Conselho Económico Social e Ambiental previsto na Constituição como órgão auxiliar da república parece ser a sede própria para isso. É o órgão máximo de concertação social no país e é nele que os interesses das ilhas expressos através do Conselho de Assuntos Regionais são contemplados, a vontade de participação das comunidades emigradas via Conselho das Comunidades pode ser acomodada e outros grupos sociais e profissionais como organizações de consumidores, ONGs, activistas ambientais, profissionais liberais também encontram representação adequada. Impõe-se simplesmente que passe a funcionar. A sua lei de organização e funcionamento já existe desde Setembro de 2014 e convinha que a Assembleia Nacional começasse por eleger o seu presidente.
No mesmo sentido com os mandatos parlamentares e nas assembleias autárquicas renovados nas eleições do ano passado seria da maior importância que a eleição dos dois representantes para cada ilha para constituir o Conselho de Assuntos Regionais se verificasse. Curioso que com tanta paixão aflorando aqui e acolá à volta da situação vivida em algumas ilhas e os muitos debates sobre a regionalização não há um esforço concertado para se instalar esse conselho. Com as suas competências, designadamente de parecer obrigatório sobre os orçamentos do Estado, sobre leis das autarquias e finanças locais e sobre a divisão administrativa do país o seu funcionamento regular poderia contribuir positivamente para uma maior racionalidade dos recursos no país e ajudar a dissipar tensões entre as populações das diferentes ilhas que não servem a ninguém e que pelo contrário só alimentam o ressentimento e a desconfiança.
 Os ganhos conseguidos na última reunião do Conselho de Concertação Social devem ser ampliados para poderem afectar globalmente o país de forma positiva. O Conselho Económico Social e Ambiental é a sede própria para isso. Há que pô-lo de pé e a funcionar o mais breve possível.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 812 de 21 de Junho de 2017.

sexta-feira, junho 16, 2017

Precisa-se de maior agilidade governativa

As fragilidades de Cabo Verde vêm de tempos em tempos dramaticamente à superfície e toda a sociedade queda-se em choque perante as suas consequências, tanto aquelas que  se materializaram como as que poderiam ter-se verificado. Aconteceu na semana passada com o desastre da viatura na ilha do Fogo e a necessidade urgente de transportar doentes em estado grave para o Hospital da Praia. O facto de um ATR da TACV ter deixado de voar para o Fogo pôs a nu mais uma vez as dificuldades  de um país arquipélago em agir de forma efectiva a emergências a qualquer momento do dia ou da noite nas ilhas e no mar circundante. Outros acidentes e outras situações similares e até mais graves já tinham revelado a fragilidade existente, mas a reacção das autoridades tem sido de uma passividade confrangedora. Passada  a fase das recriminações públicas em que partidos e pessoas atacam uns aos outros e procuram fazer aproveitamento político da situação, não se notam mudanças significativas nas políticas, nas instituições ou nos comportamentos. Espera-se que desta vez não se repita o mesmo.
Devia ser óbvio que uma das principais prioridades de um país – com dez ilhas, uma enorme linha da costa e um mar vasto por controlar – fosse capacitar-se para fiscalizar o mar e a sua zona costeira e munir-se de recursos aéreos e marítimos, entre os quais helicópteros, para responder às emergências designadamente no que respeita a busca e salvamento no mar, evacuações médicas e respostas a desastres naturais. A responsabilidade do Estado de assim fazer é acrescida ainda com a gestão da FIR oceânica e o apoio que é obrigado prestar na eventualidade de alguma emergência aérea. O crescimento rápido do turismo deveria ser um incentivo para se acelerar nessa capacitação, considerando que é vital para o aumento do fluxo turístico que certas garantias principalmente de natureza médica estejam sempre asseguradas. Estranha pois que decorridos 42 anos desde da  independência e mais de uma década de aposta no turismo as respostas que o país por si só dá às emergências de toda espécie sejam ainda tão incipientes. Até parece que naufrágios, acidentes de aviação, desastres automóveis, cheias catastróficas e erupções vulcânicas com as sempre significativas perdas humanas e materiais não tenham sido suficiente incentivo para provocar uma mudança de atitude para além das proclamações de circunstância que no momento de choque e de dor se fazem.
Nota-se que passado o momento difícil, a tendência é voltar quase sem alteração à situação anterior. Exemplo notório é o que se passa no domínio do mar. A autoridade marítima continua dispersa entre o instituto marítimo e portuário, a capitania dos portos, a polícia marítima na polícia nacional e a guarda costeira nas forças armadas. Vários documentos oficiais entre os quais o plano estratégico de segurança interna de Agosto de 2014 e a prática já demonstraram que esta estrutura de forças não tem a eficácia desejável na consecução dos objectivos do país em matéria de policiamento dos mares e costas, de garantia de serviços de busca e salvamento e de outras emergências no país. Não se consegue coordenar devidamente as forças, não se consegue aproveitar adequadamente a cooperação internacional e mantem-se um quadro de desperdício de recursos tanto humanos como materiais por falta de foco e de estratégias consequentes.
O que se passa no mar com a autoridade marítima também verifica-se noutros sectores da vida do país. Sabe-se que algo não vai bem, mas para além das recriminações políticas de costume sempre que alguma coisa de excepcional acontece, as críticas ao status quo mantêm-se no mínimo. Procura-se não ferir susceptibilidades de grupos ou de interesses corporativos à volta do sector e o resultado é a inércia político-institucional que deixa quase tudo como estava. É o que acontece, por exemplo, com a segurança, a justiça e a educação, mas também é o que se constata noutros domínios com os transportes e a saúde. A factura que o país vai pagando com a incapacidade de definitivamente resolver os seus problemas de segurança ou de se conseguir uma justiça eficaz e ter uma educação de excelência não é desprezível. No caso da TACV já se sabe dos 120 milhões de dólares a pagar por omissões em matéria de política de transporte e por decisões erradas na gestão. Na educação é o próprio GAO há dias a apontar “as fraquezas do capital humano” como um dos principais constrangimentos ao crescimento económico apesar dos milhões gastos todos os anos no sector. A persistência do sentimento de segurança que limita a liberdade das pessoas em todo o país particularmente na Cidade da Praia e retira-lhes tranquilidade de espírito é o custo pago por todos por se continuar a pensar que se pode despejar meios sobre os problemas e eles se resolverão por si. 
A importância da alternância nas democracias é que abre o caminho para se mudar de políticas, para fazer novos arranjos institucionais, para definir outras prioridades e para congregar novas vontades na tarefa de construir um futuro de prosperidade e com superior qualidade de vida. Cabo Verde precisa libertar-se do colete-de-forças em que, de um lado, se tem entidades internacionais a impor políticas e reestruturação de sectores económicos sob pena de perda de ajuda orçamental e, do outro, se tem interesses corporativos que se servem de qualquer fragilidade ou hesitação na governação para seu próprio benefício sem preocupação com a eficácia global da actividade do Estado e com o impacto no ambiente geral dos negócios. Alinhar as prioridades com os recursos existentes e com uma nova agilidade institucional e governativa é fundamental para se dar o tipo de resposta segura e efectiva que há muito os cabo-verdianos esperam em matérias tão vitais como a segurança, a justiça, a educação, a saúde e os transportes. O Futuro depende do sucesso que se granjear nesse empreendimento.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 811 de 14 de Junho de 2017.

sexta-feira, junho 09, 2017

Dever de reparação do Estado

Várias convenções internacionais entre as quais a Resolução das Nações Unidas 60/147 de 2005 estabelecem o direito das vítimas de atropelos graves dos direitos perpetrados pelo Estado a uma reparação condigna. É um direito que o Estado de Cabo Verde ainda não reconheceu às dezenas de pessoas que durante os quinze anos do regime de partido único foram sujeitas pelas autoridades a abusos, sevícias e torturas. Em Cabo Verde quem goza de uma espécie de direito de reparação  são os reconhecidos por lei como “combatentes” e “ex-presos políticos”. Para estes a lei em vigor desde de Março 2014 enumera regalias e honras de Estado e estipula um subsídio vitalício no valor de setenta e cinco mil escudos.
Mais de vinte cinco anos após a instituição da democracia, continua-se à espera que o Estado assuma as suas responsabilidades pelo sofrimento físico, psicológico e moral infligido àqueles que simplesmente quiseram exercer os direitos fundamentais que universalmente se consideram  invioláveis e inalienáveis. Por causa disso, vive-se no país uma contradição profunda. Deixa-se cair no esquecimento as vítimas de atropelo sistemático de direitos do homem enquanto se glorificam os dirigentes do regime baseado na ideologia da luta de libertação que instituiu a opressão no país. Prova disso é que hoje o marco dos quarenta anos após as prisões e torturas em S.Vicente pode ser ignorado pelas instituições do Estado e pela comunicação social estatal mas há umas duas semanas atrás recebeu-se com pompa e circunstância em todas as instância da república e com cobertura mediática plena a iniciativa de um simpósio dedicado a Aristides Pereira, o presidente da república durante o regime de partido único. A questão que se coloca é: com tais omissões e preferências, onde fica o Estado de Direito democrático que proclama que tem no seu cerne o respeito pela dignidade da pessoa humana quando há reverência oficial por protagonistas e símbolos dos tempos da ditadura?
A realidade do que se passou em Cabo Verde não deve ser escondida. As marcas persistem ainda nas pessoas e familiares que em várias ocasiões, designadamente em S. Vicente e Santo Antão em 1977, na Brava em 1979, na cidade da Praia em 1980 e outra vez em Santo Antão em 1981 e S.Vicente em 1987, por razões políticas foram objecto da sanha das autoridades. Os relatos dos acontecimentos vivenciados podem ser encontrados em jornais e revistas da época assim como as reacções dos dirigentes de então. Também existem documentos oficiais - e estão disponíveis a  qualquer pessoa - que trazem as leis e as directivas governamentais que desde da independência até a sua revogação em Maio e Setembro de 1990 deram cobertura à brutalidade das autoridades quando violentamente punham peias à liberdade de expressão, de reunião e de manifestação, negavam o direito de propriedade e condicionavam a circulação livre para o exterior. Ignorar isso e não dar aos mais novos a possibilidade de as conhecer e por essa via saber qual o real valor da liberdade e da democracia é um mau serviço que se presta ao Estado de Direito democrático.
A experiência recente de derivas iliberais demonstra que se não houver um consenso firme quanto aos princípios e valores pelos quais a democracia se rege e uma vontade colectiva de seguir com rigor os procedimentos que regulam o jogo político em ambiente de pluralismo, as instituições democráticas rapidamente perdem credibilidade e eficácia. E, na esteira desse enfraquecimento, criam-se condições para a ascensão de líderes autocráticos, para o ressurgimento de políticas populistas irresponsáveis e para o acerbar de paixões designadamente nacionalistas e xenófobas e de intolerância em relação ao outro. Não é pois de se tomar a democracia e a liberdade por algo certo e inalterável como quando após a queda do Muro de Berlim se anunciou o fim da história e tudo parecia fazer crer que o processo democrático tinha-se praticamente tornado irreversível e que a democracia tinha ficado sem uma alternativa real e viável.
A persistência em Cabo Verde de um quadro muitas vezes confuso em termos simbólicos e de valores é um factor que dificulta a consolidação da cultura democrática, contribui para a excessiva polarização da luta política e alimenta hostilidades em relação ao regime democrático,  impedindo que consensos necessários para o desenvolvimento sejam construídos e mantidos. Crucial para se ultrapassar a confusão de valores é a assunção do Estado das suas responsabilidades para com as vítimas dos seus atropelos durante o regime de partido único e da necessidade de reparar dentro das possibilidades existentes o mal que foi feito. Fazendo isso os valores da liberdade, da democracia e do respeito pela dignidade humana serão vistos como os fundamentais a orientar o funcionamento  do Estado de Cabo Verde, como bem comanda a Constituição da República, não se sobrepondo a eles nenhuns outros. Uma outra era de concórdia poderá ser possível no país porque baseada na verdade, na justiça e no profundo amor à liberdade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 810 de7 de Junho de 2017.

segunda-feira, junho 05, 2017

Atenção à estratégia dos outros

Um artigo na revista Economist de 25 de Maio trouxe a público mais um falhanço nas negociações entre a União Europeia (UE) e a África no quadro do estabelecimento dos chamados Acordos de Parceria Económica (APE). Desde de 2012 que a UE tenta assinar pactos regionais para substituir o acordo de Cotonou com os países da África, Caraíbas e Pacífico. Encontrou sempre resistências mas as objecções têm sido maiores na África Ocidental, vindas em particular da Nigéria, e na África Oriental onde a Tanzânia retirou-se das negociações na semana passada. O facto de, segundo artigo da Economist, os acordos de parceria económica já assinados não terem trazido, como prometido, nem mais desenvolvimento, nem mais cooperação regional faz diminuir as expectativas inicialmente levantadas das vantagens de um regime de comércio mais aberto entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. 
O problema é que, diferentemente do que estipulavam os acordos anteriores, no novo pacto exige-se reciprocidade e os países em desenvolvimento terão que abrir os seus mercados a bens e serviços da Europa para continuarem a beneficiar do acesso livre ao mercado europeu. Com tal abertura ficam sem muita margem para acarinhar indústrias e serviços nascentes deixando-os expostos à concorrência aberta de produtos dos países estrangeiros. Por outro lado, perdem receitas com a redução de tarifas exigidas pelos acordos e não têm como contrabalançar porque ainda não puseram de pé uma administração tributária capaz de cobrar todos os impostos e grande parte da economia continua a ser informal. Compreende-se a relutância de muitos países em seguir o caminho do comércio cada vez mais livre como preconizado pela OMC até porque na generalidade dos casos não têm os instrumentos nem peso próprio para contornar a rigidez das imposições da OMC, como fazem os países desenvolvidos. 
Fundos são disponibilizados no âmbito desses acordos para facilitar e materializar as parcerias económicas, mas não compensam o facto de o mercado interno ficar completamente descoberto, de a promoção do empreendedorismo local tornar-se quase impossível e de dificilmente o país conseguir implementar uma estratégia própria de desenvolvimento. Por todas essas razões acaba por passar ao lado as novas possibilidades de negócio criadas pelo comércio livre. A pretendida substituição da ajuda pelo comércio - Aid for Trade – acaba por não resultar, pelo menos no nível que seria desejável para garantir desenvolvimento sustentado e prosperidade futura. Vários factores contribuem para isso, a começar pelos interesses criados e comportamentos induzidos na sociedade e no Estado pelo modelo de reciclagem de ajuda. Junta-se a essa resistência à mudança o impacto no país da acção muitas vezes estratégica de outros estados e seus actores económicos no aproveitamento de oportunidades de negócio que surgiram com a nova economia aberta. 
Em Cabo Verde há anos que se houve que a economia deve deixar de se basear na ajuda externa para passar a ter o sector privado como força motriz. Pelos resultados, constata-se que passar das palavras aos actos tem sido extremamente difícil. O estado actual do sector privado nacional, depois de anos de endividamento para construir infra-estruturas que viabilizassem o investimento privado, linhas de crédito para empoderamento das famílias, programas para promoção do empreendedorismo, projectos do Banco Mundial e das Nações Unidas para melhorar a competitividade do país e o seu ambiente de negócios, diz tudo. São exemplos a fragilidade do sector de construção civil, as deficiências dos transportes marítimos, as dificuldades dos operadores económicos nacionais em fornecer bens e serviços aos hotéis e outras estruturas de turismo e a incipiência da actividade privada nas TICs e a incapacidade de encontrar caminhos para uma agricultura mais produtiva e uma indústria com potencial de crescimento. Até no comércio a retalho ao nível das mercearias nota-se uma retirada de nacionais passando a impressão de que a porta está completamente escancarada. 
Diz-se que isso resulta das regras da OMC, mas na realidade e em boa medida é consequência de não se contrapor à estratégia dos outros uma estratégia própria, de não haver um esforço para se ter uma regulação compreensiva dos vários sectores de actividade e também porque é mais fácil, de facto, continuar a governar o país como sempre foi. Ontem assumia-se que se estava a gerir a ajuda externa numa perspectiva de redistribuição de rendimentos e de luta contra a pobreza. Hoje a tentação é de recorrer aos mesmos empréstimos de organismos multilaterais, às mesmas linhas de créditos do tipo Casa para Todos, e às ofertas dos bancos Export-import em nome do sector privado, do desenvolvimento inclusivo e da modernização. Esquece-se que a acompanhar muitas dessas ofertas “generosas” há políticas de internacionalização de empresas, de subsidiação de exportações e de penetração de mercado. 
Cabo Verde precisa fundamentalmente de investimento estrangeiro que traz capital, tecnologia, know-how e mercados e não daquele que primariamente tem o seu foco no mercado interno. O país precisa produzir riqueza, criar emprego e exportar. O Estado no quadro de uma política “industrial” compreensiva deve poder articular o desenvolvimento do sector privado nacional com a atracção do investimento externo e a oferta de um turismo com qualidade e diversificado. Para isso, há que ter uma estratégia própria para se contrapor à estratégia de quem vem, porque a economia é aberta e o mundo globalizado. De outra forma sucumbe-se para dar lugar ao outro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 809 de 31 de Maio de 2017.