segunda-feira, outubro 30, 2017

Ir além do corporativismo

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa, em 2016, num discurso proferido no início do ano judicial em Portugal disse que desde os fins dos anos noventa a Justiça está sob um escrutínio mais apertado dos portugueses. Clamam por uma justiça menos lenta e mais acessível e o país, por sua vez, precisa de uma justiça mais eficaz no dirimir de conflitos, na defesa dos direitos e em fazer cumprir obrigações legalmente estabelecidas para ser mais competitivo e atrair mais investimento privado nacional e estrangeiro. A atenção recente sobre a justiça seguiu-se a períodos em que o foco sobre os problemas do regime democrático inaugurado com o 25 de Abril recaía algures: nos primeiros tempos era ultrapassar a relação com os militares de Abril, depois foi abrir a Constituição para suportar uma economia de mercado e por último a necessidade de integração na Europa. Com as energias concentradas nos centros políticos de decisão deixou-se evoluir por si próprio o poder judicial sem o acompanhamento que os tribunais como órgão de soberania e fundamentais para o sistema democrático e para o Estado direito mereciam. O resultado, como notado no último Painel sobre a Justiça na União Europeia (2017), Portugal está entre os países com a justiça mais lenta: “A Justiça portuguesa demora, em média, 710 dias para resolver processos cíveis, comerciais e administrativos nos tribunais da primeira instância, sendo apenas ultrapassada pela do Chipre, que ascende aos 1085 dias”
Situação análoga terá acontecido em Cabo Verde, uma democracia ainda mais jovem em que a edificação das instituições democráticas revelou-se algo mais complexa porque realizada num ambiente pressionado para fazer a mudança na continuidade tendo como “parceiro” no papel de força política de oposição o partido que durante 15 anos encarnou o regime anterior. A actividade política necessária para garantir a estabilidade política e ao mesmo tempo realizar as reformas profundas que se impunham no processo de transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado concentrou grande parte da atenção dos sujeitos políticos e da sociedade em geral. Como em Portugal, o poder judicial em Cabo Verde, que todos agora em democracia queriam que fosse independente e sem estar sujeito a interferências estranhas, pôde durante muitos anos navegar “abaixo do radar” do escrutínio público. Nesse quadro persistiu a lentidão da justiça conhecida por todos e aproveitada por muitos para conseguir a impunidade em muitas situações com prescrições de casos e com impossibilidade prática de execuções, de despejos e de cobranças de dívidas. Quantas vezes cidadãos e operadores económicos prejudicados nos seus interesses na relação com o Estado também não ficaram com forte impressão que agentes ou entidades públicos aproveitaram-se da esperada lentidão da justiça para não os ressarcir nos seus direitos.
Hoje, depois de anos de estabilidade democrática e de alternâncias dos partidos no governo, há mais tempo para um olhar mais profundo e escrutinador sobre o sector da justiça particularmente porque insiste em não responder com resultados às expectativas das pessoas. Depois de anos a pedir meios e recursos diversos, a sua eficácia não se alterou significativamente com perdas para as pessoas, para as empresas e para o país que se vê sem competitividade e sem atractividade para o capital estrangeiro tão fundamental para o crescimento económico e para a criação de empregos e para a expansão das exportações de bens e serviços. O empoderamento das magistraturas com alargamento das suas competências na gestão e disciplina dos magistrados e das secretarias judiciais e as transferências de meios correspondentes não teve os resultados esperados. A percepção que faltava um esforço consequente e comprometido ganhou força quando todos se aperceberam que não conseguiam pôr de pé um serviço de inspecção dos juízes e das secretarias judicias essencial para efectiva gestão dos mesmos. Parece que os conselhos se acomodaram durante anos à falta de vontade dos magistrados em servirem como inspectores por razões de natureza pessoal, de amizade, familiaridade ou proximidade mas que naturalmente são tomadas por qualquer outra pessoa como sinal de desresponsabilização em relação ao serviço público a que são obrigados. Vinda a público, esta falha grave quanto à inspecção judicial foi a pedra no charco que deitou tudo a perder e atraiu críticas de vários quadrantes, algumas justas e outras nem tanto. As pessoas apercebiam que, se os magistrados enquanto corpo não se sentiam pressionados para se avaliarem, como iriam mostrar uma atitude diferente quando fosse de melhorar a produtividade e de aprimorar o comprometimento na prestação de serviço público.
Nos anos que se seguiram à revisão constitucional de 2010 assistiu-se ao reforço do espírito corporativo na magistratura judicial em sintonia com as alterações constitucionais no sentido de maior autonomia e independência do poder judicial. De facto, o STJ passou a ser constituído só por magistrados judiciais, o CSM ganhou maioria absoluta de magistrados e já podiam ser remunerados por funções de docência prestados a outrem. Foi alterada significativamente a relação com o governo através do Ministério de Justiça com a autonomia administrativa e financeira dos conselhos de magistratura que passaram a ter orçamento próprio que já atinge no orçamento de 2018 o valor de várias centenas de milhares de contos. Apesar do afã em transferir poderes e recursos não se verificaram os progressos na administração da Justiça que era esperada.
Neste particular, também os outros componentes do sistema, a polícia, o ministério público e a ordem dos advogados não se têm mostrado muito diferentes. Todos muito ciosos das suas prerrogativas, em geral, não têm ou são incipientes os mecanismos internos de inspecção com capacidade para avaliação de mérito ou de reavaliação de métodos ou técnicas ou planos de acção. Respondem com tiques corporativos às críticas ou exigências de melhor prestação e não poucas vezes defendem-se passando a culpa de uns para os outros ou queixando-se da falta crónica de meios. Ultrapassar este estádio em que a relação com o poder mostra-se mais no sentido de usufruto e menos de exercício é fundamental para que haja convergência de forças e de vontades que podem fazer tudo acontecer com profissionalismo e com responsabilidade. É isso que o país e as pessoas esperam de quem mesmo não sendo eleito exerce funções vitais para a salvaguarda da democracia e do Estado de Direito. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 830 de 25 de Outubro de 2017.

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