terça-feira, fevereiro 20, 2018

Este país não tem emenda

Pelas notícias em circulação percebe-se que nas últimas semanas a atenção voltou a centrar-se na problemática da seca, na necessidade de salvamento do gado e de garantir rendimento de subsistência à população rural atingida pela calamidade. Em causa fundamentalmente está como fazer chegar às pessoas a ajuda internacional de cerca de 10 milhões de euros que foi mobilizada nos poucos meses que se seguiram à declaração da seca. E já é claro que a perspectiva de distribuição de recursos de tal monta provenientes da ajuda externa produziu um frenesim notório nas múltiplas intervenções públicas de actores políticos, de organizações sociais e de membros das diferentes comunidades.
Todos parecem posicionar-se nessa corrida aos recursos para tirar o maior proveito da situação e ter ganhos que podem ser políticos, de influência e ganhos materiais como intermediário ou recipiente. Mas como já se conhece de situações anteriores, nesses exercícios de distribuição da ajuda externa o mais normal é que quem menos beneficia sejam justamente os elementos da população alvo da solidariedade externa. A vulnerabilidade das populações rurais que persiste até hoje é prova disso assim como também é a notória prosperidade de uma elite à volta do Estado que durante décadas privilegiou o modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa. Calculam-se entre 30 a 45% os custos administrativos dos projectos destinados às populações vulneráveis e que em boa parte ficam nas estruturas centrais e suportam os estudos, as viagens e os custos com os quadros necessários à implementação dos mesmos projectos. Reconhece-se aí perfeitamente a figura do Estado no topo da cadeia alimentar.
De um certo ponto de vista até se pode arriscar a ideia de que “infortúnios” são bem-vindos. Justificam e facilitam enormemente a mobilização de fluxos de ajuda externa do qual ainda muito da economia nacional depende. É só ver como se acirram os apetites de uns e se levantam as expectativas de outros. Além de não encarados e resolvidos, os problemas de fundo e as vulnerabilidades vão-se mantendo ao longo dos anos para, em situações como, por exemplo, de uma de seca, se revelarem completamente para aparente espanto e alarme de toda a gente, a começar pelas autoridades. Infelizmente, a forma como se lida com a situação, com todos a quererem tirar vantagem imediata, faz crer que dificilmente soluções com vista a pôr fim às vulnerabilidades serão consideradas e implementadas. Com visões estáticas de desenvolvimento incluindo as de fixar a população no sítio onde estão, perpetua-se a vulnerabilidade das pessoas porque realmente não há economia que aí as sustente e permita que se tornem mais produtivas e contribuam para criação da riqueza nacional. No dia-a-dia vão-se beneficiando da ajuda estatal e da solidariedade familiar, em particular das remessas dos emigrantes, até que qualquer desvio climático ou desastre natural venha expor a fragilidade da sua existência no limite da subsistência.
As dificuldades evidentes do país em definitivamente “mudar de paradigma” e, para além de todo o discurso oficial, acreditar, de facto, que pode desenvolver-se e deixar de depender da ajuda externa, não se mostram fáceis de ultrapassar. Historicamente pode-se facilmente demonstrar que os momentos de prosperidade que as ilhas tiveram ao longo dos tempos sempre aconteceram com o impulso de uma ligação com o exterior. Começou com apoio à expansão europeia no Atlântico e o comércio na costa africana nos tempos áureos da Cidade Velha, passou por outros momentos entre os quais os anos de movimento de barcos na Baía do Porto Grande de S. Vicente e nos dias de hoje é cada vez mais o turismo. Várias centenas de milhares de turistas europeus visitam as ilhas e pela sua presença e gastos feitos imprimem dinâmica à economia nacional. Paradoxalmente, há uma corrente forte com audiência particularmente nas elites do país que, para além da hostilidade mais ou menos velada em relação ao investimento externo, não deixa passar a oportunidade para se mostrar hostil a incentivos à presença de estrangeiros de origem europeia que são precisamente os que com os seus gastos ajudam a mover os negócios em Cabo Verde.
O último pretexto foi há dias o chamado Green Card, uma iniciativa do governo que incentiva a instalação de estrangeiros com isenção de impostos na compra de propriedade. Na pressa de acusar o governo de favoritismo em relação às empresas imobiliárias, perde-se de vista os múltiplos ganhos que o país pode ter a partir do momento em que, por exemplo, pensionistas recebem a sua pensão, fazem compras localmente, contratam pessoas para lhes prestar serviços e eventualmente investem nalguma área de negócio. Muitos países que não têm as vantagens do clima e outros requisitos culturais encontrados em Cabo Verde de há muito compreenderam a importância de ser bem-sucedida nestas e noutras iniciativas que facilitam a instalação de um número significativo de pensionistas e outras pessoas no seu território. A acrescentar às vantagens referidas, a iniciativa permite, por outro lado, ancorar o turismo em bases mais diversificadas diminuindo a dependência do actual modelo sol e praia, que assim como ganhou impulso numa conjuntura que foi desfavorável aos países do Norte de África, poderá perdê-lo numa outra circunstância se não se mostrar competitiva.
Faz alguma confusão ver que mesmo perante o falhanço de décadas de políticas que deixaram vulneráveis milhares de pessoas no mundo rural a tentação neste ano excepcional de seca é continuar a fazer praticamente o mesmo. Continua-se a rejubilar com a capacidade de mobilizar ajuda externa, a hostilizar as ligações externas que podem impulsionar a economia e a alimentar a ilusão de capacidade endógena do desenvolvimento. É caso para dizer que este país não tem emenda.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 845 de 07 de Fevereiro de 2018.

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