segunda-feira, abril 30, 2018

Redescobrir o livro

Iniciativas da Presidência da República, do governo e de outras entidades juntaram-se este ano numa campanha para promover o livro, a leitura e o saber. Houve discursos, fizeram-se leituras públicas em encontros nas escolas, distribuíram-se livros no formato de kits para bibliotecas escolares e municipais e aproveitou-se a oportunidade para anunciar o início da publicação de “clássicos” cabo-verdianos com mais uma edição do romance Chiquinho de Baltasar Lopes.
São iniciativas todas louváveis com foco nas crianças e nos jovens e procurando mobilizar escolas e professores num esforço para inverter o desinteresse crescente pela leitura e pelo conhecimento que se vem notando na sociedade cabo-verdiana. Se vão ou não ter sucesso depende muito de se ter identificado as reais causas do desinteresse e se há vontade de as reconhecer e de as combater de forma eficaz.
Presentemente em todo o mundo a questão dos livros, da leitura e do saber, de uma forma ou outra, está-se a colocar. Há quem diga que o problema é da tecnologia moderna, mas não é líquido que assim seja. É verdade que se vive um momento especial em que a tecnologia massificada através dos smartphones alterou radicalmente os hábitos de procura e de acesso à informação. Se antes tinha-se que recorrer a objectos físicos como livros, revistas e jornais para conseguir informação sistematizada e no momento desejado, agora recorre-se ao Google, às edições digitais de jornais e livros e às redes sociais. Mesmo a rádio e televisão que requeriam presença e um tempo certo para passarem informação e entretenimento hoje perdem terreno para os podcasts, vídeos e streaming à disposição a todo o instante de qualquer pessoa com um smartphone e uma ligação à internet. Também é verdade a queda notória na circulação da imprensa escrita, a mudança no negócio livreiro com o desaparecimento das pequenas lojas, que ofereciam livros em várias áreas de conhecimento a favor das grandes superfícies que privilegiam livros de alta rotação, e a diminuição da frequência nas bibliotecas públicas. A aparente coincidência poderia levar a pensar que uma conduziu à outra. O facto, porém, é que a tecnologia só é instrumental. Por si própria não aumenta nem diminui o gosto pela leitura e a vontade de saber.
Outros factores terão que ser considerados para se compreender, por exemplo, o fenómeno em ascendência o qual alguns chamam de “nova ignorância”. Fenómeno particularmente visível em grupos criados muitas vezes nas redes sociais e que de forma tribal afirmam a sua verdade e os seus preconceitos acima de todas as evidências, chamam de fake news a factos incontornáveis e rejeitam a mediação das instituições, da academia e da comunicação social na compreensão do mundo à sua volta. Também estes ou outros factores poderão ajudar a entender por que menos livros são lidos nas escolas, liceus e universidades e menos procurados nas bibliotecas. Pergunta-se se a razão para essa calamidade não estará na atitude geral em relação ao conhecimento, nas metodologias utilizadas e nas formas de avaliação que não favorecem uma via mais lenta, mais profunda, mais exigente e mais conectada com os factos na procura da verdade como os livros oferecem. A existir esses factores inibidores do desenvolvimento da vontade de ler e saber não se vê como simples entrega de livros, sessões de leitura e oferta de computadores, tablets ou até smartphones por si sós vão alterar a situação existente.
A situação calamitosa que nesta matéria se vive em Cabo Verde devia ser de profunda reflexão e urgente acção. A começar, nem se deveria considerar a hipótese de que são as novas tecnologias e os seus écrans que têm levado as crianças e jovens a se afastarem dos livros e a não desenvolverem o hábito de leitura. Notou-se o fenómeno muito tempo atrás. Nos anos após a independência, o sistema educativo em expansão rápida e a proporcionar o ensino massificado descurou a qualidade, favoreceu outros critérios acima dos meritocráticos e assumiu-se como aparelho ideológico na criação do “homem novo” e na “reafricanização dos espíritos”. Para exercer bem o papel dele esperado teve de criar currículos e material de suporte. Em consequência há várias gerações de alunos e professores que só usaram fotocópias de fichas como material de estudo e nunca foram incentivados a fazer o uso de livros e manuais. Pelo contrário.
Se passados mais de quarenta anos após a independência ainda se está a ouvir um clamor cada vez mais alto pela melhoria da qualidade do ensino é que, de facto, o sistema, não obstante as sucessivas reformas, no essencial não perdeu as suas características e motivações iniciais. Daí que o conhecimento continua a ser sacrificado como se pode ver dramaticamente no nível baixo do português dos alunos, nível esse para o qual terá certamente contribuído o facto de a questão do crioulo vs. português se ter transformado numa questão identitária fracturante. Mas as falhas não se ficam só no ensino da língua como também se verificam em outras áreas do conhecimento, algo que já ninguém deveria pretender esconder quando se sabe dos milhares de jovens saídos do ensino secundário e das universidades sem as competências necessárias para lhes garantir empregabilidade nos diferentes sectores de actividade. Devia ser motivo de reflexão o facto de antes da independência, com menos escolas e menos livros disponíveis, o nível dos alunos saídos das escolas primárias e dos dois liceus ser mais elevado do que actualmente. Na época, tudo leva a crer que havia mais amor pelos livros, pela leitura e pelo saber e esse amor era transversal a toda a sociedade cabo-verdiana e abrangia a todos, independentemente das suas posses tanto no campo como nas cidades. Depois a motivação passou a ser conseguir o “canudo” e depois seguir carreira apoiado em outros critérios de influência que não os da competência técnica e profissional. Não estranha que se tenha chegado ao ponto actual.
A sustentabilidade da actual situação é claramente impossível de se manter. O retorno do investimento massivo que o Estado, as famílias e as pessoas individualmente já fizeram em busca de uma educação é claramente baixo como se pode constatar nos níveis de desemprego entre os jovens. Não é porém essa a percepção que se fica do debate sobre o ensino superior no parlamento, esta terça-feira, 24 de Abril. E assim é porque em Cabo Verde dificilmente se consegue fazer política sem cair no populismo e na demagogia. O resultado é que os problemas de fundo do país ficam por resolver, as pessoas ficam frustradas por não verem o retorno dos seus investimentos e a situação de impasse retira confiança num futuro promissor. Mudar as coisas significa fazer as pessoas acreditar que conseguir o conhecimento e as competências para melhorar o rumo ´do país estão perfeitamente ao nosso alcance. Para isso, livros, hábitos de leitura e gosto pelo saber são indispensáveis.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de Abril de 2018.

segunda-feira, abril 23, 2018

Não deixar para amanhã

O FMI no seu World Economic Outlook (WEO) de ontem, 17 de Abril, projectou um crescimento da economia cabo-verdiana na ordem dos 4,3% do PIB para 2018. No WEO de Outubro a previsão tinha sido de 4,1% para 2018.
A evolução positiva nas projecções denota algum optimismo quanto às perspectivas de crescimento do país no futuro próximo. Comunga de optimismo similar o Banco de Cabo Verde que no Relatório de Política Monetária publicado também no mesmo dia coloca o crescimento económico no intervalo 3,5-4,5% do PIB. Entre as múltiplas razões para o maior crescimento estará certamente a actual conjuntura de aceleração da economia mundial. O referido relatório do FMI põe uma taxa de crescimento de 3,9% para 2018 e para o próximo ano. O problema com esta conexão forte com a dinâmica mundial é que se ela perder o ritmo as consequências poderão tomar a forma de choque externo para o qual o país a braços com uma dívida pública pesada e na posse de uma base produtiva frágil e de limitada capacidade de exportações de bens e serviços dificilmente estará em condições de encaixar devidamente.
Christine Lagarde, a directora-geral do FMI numa intervenção na Universidade de Hong Kong, sexta-feira passada, congratulou-se com o forte crescimento de que beneficiam as grandes economias e também os países emergentes, mas chamou a atenção para os riscos que já se despontam no horizonte e que poderão em dois anos provocar uma perda de dinâmica com consequências para todos. Identifica riscos financeiros e fiscais, riscos geopolíticos e também o risco de guerras comerciais desencadeadas por medidas proteccionistas tomadas por iniciativa própria ou em retaliação a barreiras colocadas pelos outros. Por isso mesmo aconselha que de imediato todos os países se esforcem nesta conjuntura de “vacas gordas” para fazer as reformas necessárias para, por um lado, aumentar o potencial de crescimento das respectivas economias e, por outro, criar “almofadas” que lhes permitam ser mais resilientes face a choques externos. Conselhos que deveriam ser óbvios se, de facto, não existisse a tentação permanente de politicamente se cavalgar os bons tempos, adiar reformas urgentes e alimentar a ilusão que a bonança irá continuar sem necessidade de grandes mudanças.
O governo de Ulisses Correia Silva pôs como objectivo fazer o país crescer no mínimo a 7%. Até agora só se conseguiu atingir taxas de 3,8% em 2016 e 3,9% em 2017. Para 2018 a estimativa do BCV vai até 4,5 % do PIB, enquanto o FMI fica pelos 4,3%. A opinião de alguns economistas entre os quais o ex-governador do BCV, Carlos Burgo, é que o país está a crescer em torno do seu potencial. Crescer mais do que isso deverá implicar primeiro aumentar o potencial. E isso consegue-se com reformas profundas, investimento na capacitação da mão-de-obra e um esforço dirigido para aumentar significativamente a eficiência global da economia com particular enfase na diminuição dos custos de contexto, diminuição do custo de factores e melhorias significativas nos transportes marítimo e aéreo. Também é fundamental que se mantenha a atitude de abertura ao mundo na perspectiva de diversificar trocas comerciais, atrair investimentos, aumentar fluxos turísticos e aproveitar as oportunidades que a criação de cadeias de valores globais propiciam. Se isso é verdade para a generalidade dos países mais é para uma pequena economia e num país arquipelágico com diminuta população como Cabo Verde.
Infelizmente muito do discurso político que é aqui feito não é dirigido para colocar em devida perspectiva os problemas com que o país se depara para ultrapassar as suas ineficiências, melhorar a sua conectividade, ser competitivo e capacitar os seus jovens e toda a população. Isto é ilustrado quando, no processo de busca de soluções a discussão fica pela troca de epítetos como foi recentemente evidenciado pelo esgrimir de expressões como “neoliberalismo” e “socialismo escalavrado” que nada explicam e nada ajudam a resolver. O mesmo acontece quando se traz à baila a questão da diminuição dos custos da máquina do Estado, invariavelmente aparece um líder político a propor cortes, no número de deputados ou no número dos membros do governo. Parece que há vantagem junto ao público de se apresentarem como anti-políticos e anti-partidos. Entretanto a necessidade real de diminuir as ineficiências do Estado e aumentar a sua eficácia perde-se na demagogia e no populismo com que questão é tratada. Também nota-se algo similar quando face ao problema sério de uma cultura burocrática, centralizadora, hostil a negócios que se manifesta a todos os níveis do aparelho do Estado e da administração local responde-se com a regionalização erigida em autêntica panaceia para todos os males.
Entre os caminhos a não seguir na resposta a choques externos Christine Lagarde aconselha vivamente que se evite o proteccionismo particularmente na forma de tarifas alfandegárias. Ela diz que a História mostra que restrições de importação fere toda gente, especialmente os consumidores pobres. Acrescenta que “não só levam a produtos mais caros e limitam escolhas, mas também impedem o comércio de desempenhar o seu papel essencial em impulsionar a produtividade e disseminar tecnologias. No processo, diz ela, mesmo as indústrias protegidas acabam por sofrer à medida que se tornam menos dinâmicas do que os seus concorrentes estrangeiros”. A recomendação visa travar tendências em inverter o já conseguido nas relações de comércio internacional que até agora possibilitaram o crescimento sem precedentes do volume de transacções mundiais e com vantagens globais.
Este e outros problemas e soluções deviam merecer a atenção de todos visto que o está em causa é a viabilidade e a sustentabilidade de todo o desenvolvimento do país. A manter-se porém o discurso nos termos descritos e por todos conhecido a tendência será a sociedade polarizada ficar dominada pelo discurso partidário que afasta muitos que numa outra situação poderiam participar activamente na procura de soluções. Perdem as pessoas, prejudica-se a sociedade e adiam-se os problemas. Com o país numa encruzilhada devia ser aparente que não há tempo a perder e que o diálogo a todos os níveis deve ser encetado para que seja encontrada a melhor via para resolução de problemas. Espera-se que com o alerta do FMI cresça um sentido de urgência no que deve ser feito e que as forças políticas saibam encontrar formas de alargar o debate e colaborar no que for estruturante para o país e contribua para seu futuro.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 855 de 18 de Abril de 2018.

segunda-feira, abril 16, 2018

Importância maior da justiça em tempos de crise

Vivem-se tempos difíceis nas democracias. Por toda a parte notam-se sinais de crise nas instituições: o papel dos partidos é altamente criticado, substitui-se o exercício do pluralismo por lutas tribais sectárias, condimenta-se o discurso público com demagogia e populismo e o protagonismo político é cada vez dominado por personalidades que não escondem a sua apetência pelo poder autocrático.
 Em tal ambiente a degradação da vida pública é inevitável e quando atinge um certo limiar praticamente só o poder judicial a par com uma imprensa livre ficam em posição de a conter. No Brasil é o que se passa com as investigações de corrupção nos vários estratos da classe política e que já levou muita gente à prisão. Nos últimos dias culminou com o processo dramático da prisão do ex-presidente da república Lula da Silva.
O problema é que tanto nestes como noutros casos – por exemplo, na Itália com a operação Mãos Limpas de Antonio di Prieto e em menor escala em países como Portugal e Espanha, mas também em França, Israel e alguns outros países sul-americanos – pelo facto dos alvos serem políticos e a condenação ter consequências políticas diz-se que há sinais de judicialização da política e rapidamente surgem acusações de politização da justiça. Tais suspeições sobre as instituições do poder judicial podem ter o efeito de alastrar a crise para os últimos baluartes do sistema democrático, deixando abertas possibilidades que a história já demonstrou desembocarem directamente em ditaduras. No Brasil é um facto que o ambiente de desconfiança gerado pelas investigações de corrupção e agravado com o processo de destituição da presidente Dilma Rousseff já provocou uma crise de grandes proporções de tal forma que ninguém garante que a realização de eleições em Outubro será suficiente para legitimar o governo, restaurar a confiança nas instituições e abrir o caminho para as reformas urgentes no sistema político. Mas parece que, não obstante dúvidas quanto à forma de agir de alguns elementos da magistratura e do poder judicial, mantem-se um capital de confiança que a submissão de Lula à ordem de prisão veio confirmar. Evitou a convulsão geral que podia levar ao seu descrédito. Com o Estado de Direito confirmado nos seus elementos essenciais haverá menos dificuldade em iniciar o processo de relegitimação das instituições, diminuir a extrema polarização e reduzir o espaço de manobra para populistas e forças anti sistema remanescentes dos tempos da ditadura militar.
A importância de nas democracias tudo se fazer para manter credível o poder judicial é relembrada pelos actos sistemáticos dos pretendentes ao poder autocrático e ditatorial. Todos visam nos seus esforços desacreditá-lo. Ao fazê-lo, retiram às pessoas o instrumento fundamental para ver dirimidos os conflitos, para administrar a justiça e proteger direitos fundamentais em particular contra abusos e actos discricionários e arbitrários perpetrados pelo próprio estado. Não é por acaso que na América de Trump inaugurou-se uma pressão sem precedentes sobre juízes, procuradores e polícias. Ou que na Turquia de Erdogan muitos juízes foram presos e a independência dos tribunais está ameaçada na Polónia e na Hungria. De facto, se o império da lei não é assegurado, facilmente qualquer regime inicialmente democrático poderá entrar numa deriva em direcção a um regime iliberal que não respeita direitos fundamentais e que tudo fará para não ser arredado do poder. Manter intacto, competente e independente o poder judicial é essencial para afirmação da democracia e garantir a estabilidade. Esse objectivo porém não pode ser somente dos políticos, mas também da sociedade, dos médias e das diversas organizações da sociedade. Deverá vir ainda dos magistrados, da sua dedicação, esforço e conhecimento em manter o prestígio da profissão, a confiança das pessoas na justiça e a expectativa que não obstante todo o respeito pelas garantias de defesa, a justiça será feita em tempo útil.
O estado avançado da globalização que se vive actualmente coloca desafios extraordinários aos países e suas populações. Enfrentam nalguns casos perdas sem precedentes de postos de trabalho, têm dificuldades em manter a competitividade no mercado internacional e estão ansiosos em relação ao futuro porque não há certeza que a prazo vai-se conseguir manter a capacidade, conhecimento e know-how globais para continuar a aproveitar as oportunidades que vão surgindo no plano global. Insatisfação, incertezas e ressentimento podem constituir uma mistura complicada que as pessoas na sua ânsia de fazer ouvir a sua voz, de chamar quem governa à responsabilidade efectiva na gestão dos recursos públicos e de clamar pelo cumprimento das promessas feitas podem correr o risco de atirar para fora a proverbial “água com o bebê” e apoiar oportunistas e autocratas sacrificando no processo o construído durante décadas de democracia e desenvolvimento.
Cabo Verde, inserido como está na economia mundial e sob pressão de fazer o desenvolvimento acontecer, reproduz em boa medida as insatisfações com o sistema político que se notam noutras paragens. Também aqui as instituições democráticas estão sob tensão e num processo de descredibilização progressiva. Contrariamente ao que se vê em outras paragens, aqui o poder judicial não tem o crédito desejável para o qualificar como um baluarte do Estado de Direito que a tudo resistisse. As deficiências do sector da justiça, a percepção de impunidade acompanhada de sentimento de insegurança e a dificuldade da própria classe dos magistrados em se auto-regular numa perspectiva de mais eficácia, maior competência e mais celeridade colocam os juizes numa posição altamente vulnerável. Os ataques que têm recebido de diferentes quadrantes demonstram a sua fragilidade que também em certo sentido é fragilidade da própria democracia e do Estado de Direito. Ora, não é aceitável que tal fragilidade persista principalmente nestes tempos em que a democracia, como dizem certos autores, encontra-se em “recessão”.
Na revisão constitucional de 2010 foram transferidos competências e meios para as magistraturas e esperava-se mais comprometimento, mais competência e menos morosidade na administração da justiça. A situação que se constata hoje no sector da justiça, em certa medida sitiada com acusações, que não são resolvidas num sentido ou noutro, vindas de polícias, advogados e cidadãos comuns não é salutar para ninguém. Há que colocar a justiça e em particular as magistraturas numa base mais sólida, menos corporativista, mais comprometida com as necessidades da sociedade e mais ciente do seu papel histórico único de contribuir para a construção, consolidação e salvaguarda do Estado de Direito em Cabo Verde.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 854 de 11 de Abril de 2018.

segunda-feira, abril 09, 2018

Derivas

Assistiu-se no início desta semana a uma reunião inédita do Conselho de República. Foi a primeira deste segundo mandato do presidente Jorge Carlos Fonseca e trouxe novidades.
O conselho da república foi convidado a debruçar-se sobre a segurança no país e sobre a situação de seca. Para o efeito o PR endereçou convites ao ministro da Administração Interna e ao ministro da Agricultura, e também a especialistas em segurança e ao conselheiro de segurança do primeiro-ministro, como se pode ver no seu “post” no Facebook. Com a iniciativa, o PR rompeu com a tradição das reuniões do conselho da república viradas quase que exclusivamente para a marcação de eleições e alargou o escopo de actuação desse órgão auxiliar do presidente da república para matérias de política interna normalmente sob a alçada e direcção do governo. Também nos procedimentos inovou ao convidar directamente ministros para expor sobre temas da governação, tarefa que constitucionalmente cabe ao PM no cumprimento do seu dever de informar regular e completamente o presidente da república sobre os assuntos da política interna e externa do Governo e como membro do Conselho da República.
Na sua página do Facebook o PR disse que a reunião serviu para reforçar convicções, reavaliar políticas e medidas, mobilizar energias e vontades, acelerar procedimentos, alterar práticas e atitudes. O problema é que as recomendações para terem utilidade prática deveriam ser dirigidas ao governo, mas o conselho é órgão de consulta do PR no exercício das suas funções e não de consulta do governo. Os constitucionalistas portugueses referem-se à possibilidade em Portugal do PR, pela via de submissão de matérias diversas ao conselho do estado, de transformar esse órgão numa instituição de apreciação da vida política e da direcção política do governo e enquanto tal num “meio indirecto” de efectivar a responsabilidade do governo. Há aí essa possibilidade porque o governo é politicamente responsável perante o presidente da república e perante o parlamento. Não é o caso de Cabo Verde em que o PM só é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional e os ministros são responsáveis perante o primeiro-ministro e no âmbito do governo perante a AN e por conseguinte os contactos directos dos ministros com o PR devem ser feitos com assentimento do PM.
O presidente português Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou as audições no Conselho de Estado de figuras exteriores ao órgão com os convites dirigidos ao governador do Banco Central Europeu Mario Draghi na primeira reunião e recentemente ao presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker e ao director da Organização Mundial do Comércio. Para politólogos citados pela imprensa portuguesa os convites do presidente constituem actos de marketing institucional dirigidos para dar mais centralidade no debate político à Presidência da República. Mas certamente que convites dirigidos á figuras de instituições supra nacionais da União Europeia e internacionais não é mesma coisa que convidar membros do governo para discutir matéria de governação do país. Desde 2005 que no artigo 5 do regimento do conselho da república está prevista essa possibilidade que por sinal não resulta da Constituição mas não há notícia que alguma vez tenha sido aplicada nem pelos presidentes anteriores nem pelo actual presidente da república no seu primeiro mandato. E não é por acaso.
Nas democracias parlamentares a relação entre o presidente da república e o governo é muitas vezes de geometria variável. Se o governo é minoritário ou se num momento é politicamente enfraquecido a influência do PR tende a aumentar, mas se os governos gozam de uma maioria absoluta no parlamento não há grandes alterações no que se espera do PR nas suas múltiplas funções. Quando há governos maioritários, como é o caso de Cabo Verde nestes 27 anos de democracia, a norma é a estabilidade política sem grandes sobressaltos nas relações entre órgãos de soberania. Os equilíbrios existentes, porém, podem mudar se factores diversos já conhecidos de populismo e demagogia convergirem no enfraquecimento das instituições democráticas, como está a acontecer. Um sinal disso é a descredibilização do parlamento que vem de há vários anos e já alterou visivelmente a relação entre o governo e o parlamento. Nota-se na submissão deste àquele assim como nas ausências do primeiro-ministro do parlamento em momentos de fiscalização política, acto sempre criticado pelo actual partido maioritário quando era oposição parlamentar. A outra face da moeda é um relacionamento nunca visto entre o governo e a presidência da república no qual é palpável a crescente influência do PR.
Derivas na relação entre os órgãos de soberania acabam por mexer com o sistema político e afectar em particular a confiança das pessoas nas instituições. A falta de coerência e de consistência na actuação da classe política pode tornar-se norma como se viu no folhetim das alterações das taxas aduaneiras para proteger produtos locais em que a fuga à responsabilidade por eventuais prejuízos aos consumidores e à economia nacional foi generalizada. Poderá vir a verificar-se outra vez designadamente na questão da regionalização. Na proposta de lei apresentada ao parlamento já se viu que o apego à ideia de ilha/região caiu para o caso de Santiago que ficou com duas regiões ao mesmo tempo que se manteve no caso de ilhas com fraca base populacional e económica como Brava e Maio e que se obrigam ilhas efectivamente integradas como S. Vicente e S. Antão a serem regiões separadas. Em 2014 na discussão da composição do Conselho dos Assuntos Regionais o actual partido maioritário, então oposição, forçou o então governo a abandonar a proposta de fazer Santiago ser representado nesse órgão por dois elementos de Santiago Norte e dois de Santiago Sul. O MpD argumentou na altura que o total de quatro representantes de Santiago iria contrastar com o número de dois por cada ilha e estaria em contramão com o princípio que sempre vigorou na Constituição de 1992 de igualdade de representação das ilhas.
Hoje vê-se em vários sinais que o comprometimento em manter o sistema político no seu traço básico original não está garantido. Surgem forças a propor alterações no sistema do governo com reforço dos poderes presidenciais e outras a querer minimizar o parlamento e a democracia representativa. Com uma revisão da Constituição no horizonte é de evitar derivas que tragam desequilíbrios e aumentem a desconfiança das pessoas nas instituições. Há, por outro lado, que conter o impulso para o protagonismo exacerbado e, pelo contrário, preparar-se com integridade para servir, ciente de que a manutenção de um ambiente de paz e tranquilidade, funcionamento normal das instituições e o exercício competente das funções de cada um é fundamental para se ter liberdade e prosperidade.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 833 de 04 de Abril de 2018.

segunda-feira, abril 02, 2018

Tornar os debates produtivos

Depois de mais um debate parlamentar a sensação é que não é fácil mudar certos hábitos já arreigados de acção política. Olhando para além da poeira levantada nos confrontos nota-se que não há uma preocupação primeira com a criação de riqueza nacional, que o foco é posto na redistribuição e que a via escolhida para influenciação política ou o exercício do poder passa pelo controlo do acesso a recursos.
A dificuldade em mudar demonstra que décadas seguidas de aplicação de um modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa decididamente teve consequências graves e duradoiras na vida da nação. E isso é visível na forma como os problemas do país são equacionados e colocados no parlamento ou na comunicação social, assim como é claro nas atitudes e expectativas em relação ao presente e ao futuro que são sistematicamente alimentadas e reproduzidas.
O país debate-se com níveis altos de desemprego, mas mostra-se incapaz de pôr suficiente atenção na procura de vias para debelar esse flagelo. Devia ser óbvio que o desemprego só pode ser combatido com crescimento da economia a taxas mais altas do que as verificadas nos últimos anos. Devia, mas afinal não é. Assinou-se um pacto de concertação estratégica, mas parece que ficou submerso nos anúncios de manifestações e ameaças de greve e nos posicionamentos políticos que logo vêm atrás. O que devia traduzir preocupação de todos - não só com quem está empregado mas também com os desempregados e os com os novos que chegam ao mercado de trabalho e que precisam de uma economia dinâmica e competitiva para os absorver - não dá sinais de se concretizar. Prefere-se ficar com a ilusão que de alguma forma o Estado vai continuar a manter os postos de trabalho actuais.
As discussões intermináveis à volta das medidas de mitigação dos efeitos da seca fazem esquecer o problema de fundo que é a vulnerabilidade no mundo rural. Discutir ajuda externa e como distribuí-la no país parece ser o desporto favorito de muitos. É campo para populismo e demagogia, rivalidades e disputas de influência junto das pessoas. Sempre foi assim e é uma das razões por que a situação no meio rural não se alterou e a vulnerabilidade das populações se aprofundou. Num ano de seca extrema e em que o falhanço das políticas para o mundo rural ficou claro para todos o que mais se ouve para além dos arremessos políticos é a velha receita de fixar a população e desencravar as povoações. Por debater ficam as vias de como mover as pessoas para actividades mais produtivas, geradores de rendimento e com potencial de sustentabilidade que realmente diminua a sua vulnerabilidade.
Assim como o desemprego e as dificuldades das pessoas no campo não prendem a atenção por causa da sua utilidade na luta política, também faz-se por esquecer que o país tem a dívida pública acima dos 130% do PIB e que várias empresas estatais têm dificuldades financeiras que podem pesar ainda na dívida existente. Como é próprio de quem se habituou à ajuda externa, fica-se sempre à espera ou que a dívida seja perdoada ou que se resolva por si. Ninguém pensa nas enormes dificuldades que países como Portugal, Irlanda, Espanha e Grécia passaram por terem acumulado dívida a tal nível. Entretanto, também a questão é campo para picardias políticas e vontade para criar as condições para a conter e sanar financeiramente o sector empresarial do estado perde-se no jogo de culpar o outro e nas fugas à responsabilidade.
A verdade é que já devia ser evidente que o país tem de se mover num caminho que torne a economia competitiva e se criem condições para aumento da produtividade. A adequação da administração pública é essencial para isso, mas se noutras matérias dificilmente se encontra espaço para se chegar aos compromissos necessários, em matéria de administração não se vê como os atingir. É um facto constatado por todos e realçado pelos operadores económicos. Só que a administração pública é a arena principal de disputa e quando a política centra-se muito na capacidade do Estado em alocar recursos, facilitar acessos e criar oportunidades dificilmente as partes vão convergir nas reformas. E, se não há consenso para o crescimento e emprego com foco na iniciativa privada e acompanhada de medidas de atracção de investimento externo e de uma política de promoção de exportações de bens e serviços, ninguém vai achar necessário tomar as medidas que se impõem para se conseguir os níveis de eficiência e eficácia que o país tanto precisa.
Um outro empecilho a debates construtivos que podiam levar a encontrar as vias para fazer o o país crescer nas taxas desejadas e para resolver o problema de emprego e garantir rendimentos às pessoas tem a ver com a orientação a ser imprimida à economia nacional. Uma das consequências de demasiados anos a viver na dependência da ajuda externa foi que se deixou de olhar para fora e se fixou em olhar para dentro. Caiu-se numa espécie de paroquialismo que para o país arquipélago, de pequena dimensão e população pode revelar-se fatal, principalmente quando lógicas identitárias ganham impulso e rivalidades entre as ilhas são alimentadas. Da história de Cabo Verde se aprende que, nos casos em que o país conheceu algum momento de prosperidade, o crescimento resultou de uma ligação mais dinâmica à economia mundial. Para aprofundar essa ligação devem ir todas as políticas de promoção do sector privado e de atracção do investimento externo e o esforço de transformar Cabo Verde num destino turístico com valências múltiplas que aumentem a sustentabilidade do sector.
Melhorar o nível da política e elevar o debate é o grande desafio que hoje se coloca às democracias. Há que evitar por um lado a polarização que práticas populistas tendem a criar e, por outro, não se deixar tentar por vias simplistas para questões complexas que globalmente só vão contribuir para descredibilização da democracia. A resolução dos problemas de desenvolvimento dependem da capacidade em conseguir estabelecer os compromissos necessários para fazer as reformas e reorientar o país. Não se consegue isso, porém continuando a fazer a mesma política de sempre e a persistir nos mesmos debates estéreis que não deixa que caía o ilusionismo que por demasiado tempo tem mantido as pessoas alheias à realidade do país.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 852 de 28 de Março de 2018.