segunda-feira, abril 16, 2018

Importância maior da justiça em tempos de crise

Vivem-se tempos difíceis nas democracias. Por toda a parte notam-se sinais de crise nas instituições: o papel dos partidos é altamente criticado, substitui-se o exercício do pluralismo por lutas tribais sectárias, condimenta-se o discurso público com demagogia e populismo e o protagonismo político é cada vez dominado por personalidades que não escondem a sua apetência pelo poder autocrático.
 Em tal ambiente a degradação da vida pública é inevitável e quando atinge um certo limiar praticamente só o poder judicial a par com uma imprensa livre ficam em posição de a conter. No Brasil é o que se passa com as investigações de corrupção nos vários estratos da classe política e que já levou muita gente à prisão. Nos últimos dias culminou com o processo dramático da prisão do ex-presidente da república Lula da Silva.
O problema é que tanto nestes como noutros casos – por exemplo, na Itália com a operação Mãos Limpas de Antonio di Prieto e em menor escala em países como Portugal e Espanha, mas também em França, Israel e alguns outros países sul-americanos – pelo facto dos alvos serem políticos e a condenação ter consequências políticas diz-se que há sinais de judicialização da política e rapidamente surgem acusações de politização da justiça. Tais suspeições sobre as instituições do poder judicial podem ter o efeito de alastrar a crise para os últimos baluartes do sistema democrático, deixando abertas possibilidades que a história já demonstrou desembocarem directamente em ditaduras. No Brasil é um facto que o ambiente de desconfiança gerado pelas investigações de corrupção e agravado com o processo de destituição da presidente Dilma Rousseff já provocou uma crise de grandes proporções de tal forma que ninguém garante que a realização de eleições em Outubro será suficiente para legitimar o governo, restaurar a confiança nas instituições e abrir o caminho para as reformas urgentes no sistema político. Mas parece que, não obstante dúvidas quanto à forma de agir de alguns elementos da magistratura e do poder judicial, mantem-se um capital de confiança que a submissão de Lula à ordem de prisão veio confirmar. Evitou a convulsão geral que podia levar ao seu descrédito. Com o Estado de Direito confirmado nos seus elementos essenciais haverá menos dificuldade em iniciar o processo de relegitimação das instituições, diminuir a extrema polarização e reduzir o espaço de manobra para populistas e forças anti sistema remanescentes dos tempos da ditadura militar.
A importância de nas democracias tudo se fazer para manter credível o poder judicial é relembrada pelos actos sistemáticos dos pretendentes ao poder autocrático e ditatorial. Todos visam nos seus esforços desacreditá-lo. Ao fazê-lo, retiram às pessoas o instrumento fundamental para ver dirimidos os conflitos, para administrar a justiça e proteger direitos fundamentais em particular contra abusos e actos discricionários e arbitrários perpetrados pelo próprio estado. Não é por acaso que na América de Trump inaugurou-se uma pressão sem precedentes sobre juízes, procuradores e polícias. Ou que na Turquia de Erdogan muitos juízes foram presos e a independência dos tribunais está ameaçada na Polónia e na Hungria. De facto, se o império da lei não é assegurado, facilmente qualquer regime inicialmente democrático poderá entrar numa deriva em direcção a um regime iliberal que não respeita direitos fundamentais e que tudo fará para não ser arredado do poder. Manter intacto, competente e independente o poder judicial é essencial para afirmação da democracia e garantir a estabilidade. Esse objectivo porém não pode ser somente dos políticos, mas também da sociedade, dos médias e das diversas organizações da sociedade. Deverá vir ainda dos magistrados, da sua dedicação, esforço e conhecimento em manter o prestígio da profissão, a confiança das pessoas na justiça e a expectativa que não obstante todo o respeito pelas garantias de defesa, a justiça será feita em tempo útil.
O estado avançado da globalização que se vive actualmente coloca desafios extraordinários aos países e suas populações. Enfrentam nalguns casos perdas sem precedentes de postos de trabalho, têm dificuldades em manter a competitividade no mercado internacional e estão ansiosos em relação ao futuro porque não há certeza que a prazo vai-se conseguir manter a capacidade, conhecimento e know-how globais para continuar a aproveitar as oportunidades que vão surgindo no plano global. Insatisfação, incertezas e ressentimento podem constituir uma mistura complicada que as pessoas na sua ânsia de fazer ouvir a sua voz, de chamar quem governa à responsabilidade efectiva na gestão dos recursos públicos e de clamar pelo cumprimento das promessas feitas podem correr o risco de atirar para fora a proverbial “água com o bebê” e apoiar oportunistas e autocratas sacrificando no processo o construído durante décadas de democracia e desenvolvimento.
Cabo Verde, inserido como está na economia mundial e sob pressão de fazer o desenvolvimento acontecer, reproduz em boa medida as insatisfações com o sistema político que se notam noutras paragens. Também aqui as instituições democráticas estão sob tensão e num processo de descredibilização progressiva. Contrariamente ao que se vê em outras paragens, aqui o poder judicial não tem o crédito desejável para o qualificar como um baluarte do Estado de Direito que a tudo resistisse. As deficiências do sector da justiça, a percepção de impunidade acompanhada de sentimento de insegurança e a dificuldade da própria classe dos magistrados em se auto-regular numa perspectiva de mais eficácia, maior competência e mais celeridade colocam os juizes numa posição altamente vulnerável. Os ataques que têm recebido de diferentes quadrantes demonstram a sua fragilidade que também em certo sentido é fragilidade da própria democracia e do Estado de Direito. Ora, não é aceitável que tal fragilidade persista principalmente nestes tempos em que a democracia, como dizem certos autores, encontra-se em “recessão”.
Na revisão constitucional de 2010 foram transferidos competências e meios para as magistraturas e esperava-se mais comprometimento, mais competência e menos morosidade na administração da justiça. A situação que se constata hoje no sector da justiça, em certa medida sitiada com acusações, que não são resolvidas num sentido ou noutro, vindas de polícias, advogados e cidadãos comuns não é salutar para ninguém. Há que colocar a justiça e em particular as magistraturas numa base mais sólida, menos corporativista, mais comprometida com as necessidades da sociedade e mais ciente do seu papel histórico único de contribuir para a construção, consolidação e salvaguarda do Estado de Direito em Cabo Verde.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 854 de 11 de Abril de 2018.

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