sexta-feira, outubro 16, 2009

Avançar com a revisão constitucional

No Relatório sobre a Situação de Justiça entregue na Assembleia Nacional a 2 de Outubro, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) reitera a sua convicção de que “a instituição do concurso público como único meio de acesso à carreira judicial, permanece de indiscutível valia.  E explica: Concurso público, “ ao mesmo tempo que acode imperativos constitucionais e de transparência, postula a prevalência do critério do mérito na selecção”.
O posicionamento do CSMJ mostra-se necessário porque, não obstante a Constituição ter criado, dez anos atrás, o Tribunal Constitucional e instituído o princípio do concurso para o preenchimento das vagas no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tudo continua como antes. A não definição de um horizonte temporal para implementação das normas constitucionais deu azo a que se assistisse, durante toda esta década, à politização permanente da questão, resultando na situação actual. Ainda hoje, o País não está dotado de um tribunal constitucional. Os juízes da única instância de recurso judicial, administrativo, fiscal, aduaneiro e militar continuam a ser designados por órgãos de poder político. A reforma do sistema de justiça continua emperrada porque as forças políticas não chegam a acordo em como, e quando, materializar as alterações do sistema, estabelecidas na revisão constitucional de Novembro de 1999.

O último episódio deste drama político iniciou-se há um ano atrás quando o partido no Governo, sem adequada consulta prévia dos outros partidos e recusando contactos ao mais alto, tentou impor legislação que consolidaria um sistema híbrido na justiça caboverdiana. Segundo a proposta de lei do Governo, um dos juízes do Supremo Tribunal Judicial seria designado pelo Presidente da República, e não através de concurso público. A recusa da Oposição em validar tal proposta mostrou a urgência de se proceder a uma revisão da Constituição. Revelava-se imperativo eliminar a alínea l) do nº 1 do art. 134º da Constituição da República que confere ao PR o poder de nomear um juiz do Supremo Tribunal
Desencadeado o processo de revisão constitucional, os três projectos de revisão apresentados por deputados das duas bancadas parlamentares convergiram na supressão do referido artigo, sem que tenha havido qualquer negociação prévia. Um consenso sobre o obstáculo maior à reforma de justiça ficou assim estabelecido logo após a entrada do último projecto de revisão. É só ver o artigo 10º, o n º1 do artigo 23º e o nº 2 do art. 23º respectivamente, e em ordem de entrada, dos projectos de revisão do deputado Humberto Cardoso (MpD), do projecto de 21 deputados do PAICV e do projecto de 18 deputados do MpD. A questão que se pode colocar é porque ainda não se foi avante com a revisão constitucional para ultrapassar esse obstáculo e, na sequência, prosseguir com as reformas do sector.
Analisando as iniciativas políticas, que se sucederam a partir de não aprovação do pacote de Justiça, nota-se a repetição do mesmo padrão de comportamento que, nestes últimos dez anos, manteve o status quo actual. O início do processo de revisão constitucional a 10 de Novembro de 2008 não impediu o Governo de, duas semanas depois, propor de urgência e fazer aprovar com a sua maioria o alargamento do Supremo Tribunal de Justiça. Apesar das justificações apresentadas, mostrou-se, posteriormente, que não era a eficácia da justiça, que poderia resultar do aumento do número de juízes, o móbil principal da iniciativa. No Relatório sobre a Situação da Justiça de 2009 lê-se que o aumento de juízes “sequer foi acompanhada da alocação de meios financeiros necessários à aquisição de mobiliários e equipamentos para os gabinetes dos dois novos Juízes Conselheiros”.

O que o Governo pretendia era renovar o STJ no modelo antigo, em que o Presidente da República e a Assembleia Nacional designavam juízes, e insuflar-lhe mais cinco anos de vida. E é o que veio a acontecer quando, em Janeiro de 2009, conseguiu o apoio da então liderança do MpD, na base da promessa de um mandato limitado para o novo STJ. Mandato esse, porém, que só poderia ser limitado em sede de revisão constitucional. Revisão, que ainda está por acontecer, cujo processo é interrompido periodicamente por acusações, num jogo em que o MpD não dá mostras de ganhar.

O processo de revisão constitucional, que poderia levar à supressão dos principais obstáculos à reforma de justiça, até porque já nos projectos iniciais era claro que havia o entendimento de base para isso, foi posto nas mãos de uma comissão eventual. Composto por deputados do PAICV, por deputados do MpD e o pelo deputado da UCID, sem que este tivesse apresentado qualquer projecto, a comissão partidarizou em extremo os seus procedimentos. As acusações periódicas, o posicionamento público permanente sobre as questões mais delicadas, a rejeição da discussão de questões de regime também abertas em projecto de revisão apresentado, levou a que os seus trabalhos resultassem num impasse.
A constituição dá aos deputados o poder de apresentação de projectos de revisão, com exclusão do Governo e dos Grupos Parlamentares precisamente para evitar que o processo seja completamente sequestrado pela lógica partidária. Por isso, quando não se seguem os procedimentos certos, quando não se deixa imbuir do espírito que imana do processo e que o distingue de outros actos legiferantes o caminho fica aberto para a barganha partidária ou mesmo intra-partidária.
O facto dos dois grandes partidos se encontrarem em ano de eleição de líderes e de definição de estratégias para o futuro não facilita entendimentos ao nível constitucional. Há naturalmente uma turbulência interna que dificulta o traçar de posições claras. Por isso não estranha que não se chegue a compromissos certos em muita matéria. Ou que compromissos, aparentemente já assentes, sejam postos em causa no dia seguinte.
Não admira, pois, que, em tal ambiente de definições políticas futuras, uma matéria como é  a supressão do poder do Presidente da República em nomear um juiz do Supremo Tribunal de Justiça não sejam apanhada no torvelinho das sensibilidades intra-partidárias. E que isso constitua um obstáculo para se fazer a revisão mesmo que publicamente se apresentam outras razões. 
É claro para todos que a eleição de José Maria Neves com o apoio ostensivo de quem já mostrou comandar votos dos militantes, pelo menos na Praia, não parece ter aquietado as sensibilidades. Pelo contrário. Manifestam-se em frentes como remodelação ministerial, candidato presidencial e, ainda privadamente, na questão da composição dos órgãos a sair do congresso. E tudo leva a crer que também o descarrilamento periódico dos trabalhos da comissão eventual traduz essas tensões internas.
No actual momento de redefinição das forças políticas, poderia, talvez, ser vantajoso para todos avançar com a revisão constitucional pela razão por que se justificou, em primeiro lugar, o arranque do processo: Supressão da alínea l) do n.1 do artigo 134 da Constituição. Outras questões também importantes podem esperar um aprofundamento do debate nacional e a aproximação de posições necessária e, eventualmente, serem consideradas numa revisão extraordinária. O MpD e o PAICV têm conjuntamente deputados suficientes, mais de quatro quintos dos deputados, para, a qualquer momento, dar à Assembleia Nacional poderes extraordinários de revisão.

Em relação às leis de Justiça, a revisão constitucional mínima retiraria o impedimento estrutural. Ficaria espaço para as duas bancadas negociarem os entendimentos necessários para criação, ou não, de tribunais de relação, para o reforço da inspecção judicial e para uma maior autonomia administrativa e financeira do sector judicial. O consenso essencial existe. Falta agir em consequência e não procurar justificativas para não o fazer.  

       Publicado pelo jornal A Semana de 16 De Outubro de 2009

sexta-feira, outubro 02, 2009

Seriedade nas respostas

Nações ganham em carácter quando, confrontadas com situações determinantes da sua existência futura, reagem com maturidade e firmeza: Não escondem nem suavizam os factos; avaliam corajosamente em como acções passadas contribuíram para a realidade actual, sem cair na armadilha da vitimização; e movem-se decididamente para um outro patamar de resolução dos seus problemas. 
As crises, vindas de fora ou originadas de dentro, podem ser momentos definidores. São oportunidades de mudança se a consciência nacional, sem subterfúgios, absorve o impacto total dos seus efeitos e encara as consequências de não alteração de rumo.  
O mundo vive uma crise profunda. Felizmente, evitou-se que a crise financeira não resultasse numa reedição da Grande Depressão dos anos trinta do século passado. Não se conseguiu, porém, evitar o desemprego de milhões de pessoas, a travagem no crescimento económico, a brusca contracção do comércio internacional e os efeitos da escassez de crédito.
A crise tem um culpado identificado, o sector financeiro. Um sector que insistiu em auto regular-se, seguindo os ditames do mercado, mas que veio a revelar-se oportunista e ganancioso. Sorvia percentagens cada vez maiores dos ganhos da economia ao mesmo tempo que, sem transparência, submetia tudo e todos a riscos excessivos, camuflados nos seus instrumentos financeiros complexos. O resgate do sector implicou extraordinários recursos que vão pesar nos bolsos dos contribuintes e na economia por vários anos.
O mundo pós-crise que emerge reclama respostas novas e firmes. Nesse sentido vão as medidas postas em práticas em vários países e absorvidas na última reunião do G-20, designadamente, um plafond para os vencimentos dos executivos bancários e regulação do crédito de certos produtos financeiros como os “derivatives”. Em vários países a economia está-se adaptar ao novo ambiente de menos exuberância financeira, maiores constrangimentos em energia e expectativa de alterações climáticas. O processo de globalização reajusta-se ao menor fluxo internacional de capitais, à crescente influência da China, Brasil e Índia, e ao fim da divisão entre países exportadores com enormes reservas externas e países importadores com crédito barato, disponibilizado pelos outros, e défices fiscais excessivos.  
São os novos tempos. E por todo o lado surgem novas respostas. Na América luta-se por uma nova estrutura de cuidados de saúde, pela eficiência energética e pela qualidade do ensino a todos os níveis. Em Portugal a preocupação incide sobre a necessidade de inovar e exportar. Na China expande-se o mercado interno para compensar a diminuição de exportações, etc., etc.  
Aqui em Cabo Verde finalmente constata-se que se vive novos tempos. Mas não os novos tempos do resto do mundo. Aqui proclama-se que os novos tempos resultam do governo ter cumprido grande parte do seu compromisso. A auto-satisfação não deixa ver a crise no mundo e no País. Por isso as novas respostas anunciadas mais parecem medidas de gestão de expectativas em ano pré-eleitoral do que actos de governação responsável. O 13º mês para os funcionários do Estado e outras despesas surgem sem que se explicite como e quanto irá crescer a economia de modo a gerar receitas para as cobrir.
O discurso de sedução do Governo parece colocar o País sempre fora deste mundo. Primeiro, a crise não o atingia. Depois, quando os capitais escassearam e o fluxo turístico diminuiu o Governo apressou-se a declarar que o País estava protegido dos  efeitos da crise, não obstante o aumento do desemprego e a quebra de receitas públicas.  O optimismo dos governantes mantém-se alto à custa de empréstimos externos e das obras onde os aplica, sem muita preocupação com a relação custos e benefícios. 
A realidade nua e crua é passada ao lado. Não foram atingidas as duas grandes metas do Governo constantes do seu Programa (página 8): atingir taxa de crescimento económico a dois dígitos; reduzir a taxa de desemprego a níveis inferiores a dois dígitos. Esta falha grave não é assumida. O governo desculpa-se dizendo que o desemprego é estrutural. Esquece que, para a nação caboverdiana, o acto de apresentação do Programa ao Parlamento significa que o governo ponderou devidamente as suas propostas e que as deve ter considerado absolutamente realistas. O voto de confiança que solicitou e recebeu do Parlamento suporta-se nessa assunção básica. Não pode, anos depois, simplesmente varrer para debaixo do tapete o compromisso central de governação.  
Porque é  que não explica aos caboverdianos as razões do insucesso da luta contra o desemprego, mesmo em tempo de vacas gordas? Como é que da expectativa, gerada em 2006, de baixa de desemprego para menos de 10%, se chegou, três anos depois, em 2009, à situação actual de 22% de desemprego? Não se concretizaram os investimentos externos previstos? Ficaram aquém dos resultados esperados a estratégia de desenvolvimento do hub aeroportuário e do serviço internacional de transbordo? Não se encontrou um novo rumo para o sector industrial? A agro-pecuária não se expandiu o suficiente e não evoluiu para produtos de maior valor acrescentado? Será que já beneficia de um mercado nacional unificado? A pesca deixou-se ficar essencialmente pela sua condição artesanal? As promessas de uma economia de conhecimento, suportada numa população jovem bem formada nas ciências, com competência linguista e qualificada nas tecnologias de informação e comunicação, não se materializaram? E a praça financeira, particularmente a offshore, conseguiu ganhar dimensão e criar postos de trabalho qualificados e bem remunerados?
Em qualquer país o sucesso na atracção de capitais externos, na execução de estratégias de desenvolvimento e na criação de condições para competitividade futura das empresas e para a inovação de produtos e processos depende muito do ambiente de negócios existente. E nessa matéria Cabo Verde não está bem. O relatório do Banco Mundial sobre a facilidade de fazer negócios ainda situa Cabo Verde entre os piores. No Doing Business 2010 é o 146º em 183 países no mundo. Em Africa, ocupa o vigésimo lugar, atrás do Lesotho, Malawi e Gambia.  
Em ambientes pouco facilitadores de negócios intenções de investimento muito dificilmente se realizam, novos empreendimentos confrontam-se com demasiados obstáculos, empresas existentes mostram relutância em crescer e em diversificar e é excessivo o risco, seja de entrada, de inovação e de desenvolvimento de novos mercados. Tudo isso ficou demonstrado nos últimos anos. Cabo Verde teve oportunidades múltiplas de aproveitar o crédito fácil, o crescimento do comércio internacional e a e forte procura de novos destinos turísticos para fazer crescer a sua economia e lutar decisivamente contra o desemprego. Falhou. A crise não provocou o falhanço, como se vem sugerindo, à laia de desculpas. A crise, ao alterar drasticamente as condições vantajosas então existentes, só veio revelar o tempo perdido.  
Reformas capazes de alterar o ambiente de negócios são possíveis se houver visão e vontade. Ruanda, o país dos tutsi e dos hutus e do genocídio de triste memória de há 15 anos atrás, um país muito mais difícil de governar do que Cabo Verde, conseguiu num ano passar do 143º lugar na facilidade de negócios para o 67º. No almoço oferecido por Obama a 25 chefes de Estado e de Governo africanos em Setembro, o presidente do Ruanda, Paul Kagame, foi convidado conjuntamente com os presidentes da Libéria e da Tanzânia para introduzir um tema de debate, como reconhecimento pelas reformas realizadas.  
Em Cabo Verde, o foco não está nas reformas. O discurso oficial centra-se na governança. Good governance é apresentada como recurso estratégico É mesmo dado como o petróleo de Cabo Verde porque propicia recursos externos que, actuando como uma renda, permite ao Estado manter uma posição cimeira e controleira sobre a economia, a sociedade e os indivíduos. Por isso, as reformas ficam para trás enquanto o
Governo concentra-se em passar a imagem que mais se adequa às expectativas e à agenda dos países doadores e de organizações multilaterais. Erguem-se todas as bandeiras, abraçam-se todas causas e seguem-se todos os modismos sem muita preocupação com os conteúdos e a sua aplicabilidade ao País Opta-se pelo que gera fluxos monetários exteriores a curto prazo e coloca-se em segundo plano a consolidação da economia nacional e a sua sustentabilidade futura.  
O mal não está em projectar uma imagem boa para o exterior. O mal é  ficar por aí e subordinar tudo a isso. O mal é manter o Estado num círculo vicioso que o faz incapaz de mudar e de introduzir reformas na economia. E sem reformas dificilmente o país poderá tornar-se atractivo ao investimento externo e produzir o ambiente de negócios propício à criação e expansão de um tecido empresarial moderno, competitivo e capaz de gerar postos de trabalho que ponham o desemprego abaixo dos 10%.  
A incapacidade de fazer descer a taxa de desemprego para os níveis do ano 2000 prova que como estratégia é insuficiente para garantir a sustentabilidade da economia e propiciar qualidade de vida e níveis de rendimento crescentes aos caboverdianos. De facto, a par das boas palavras de Hillary Clinton, Cabo Verde precisa, e urgente, de boas palavras de potenciais investidores, boas palavras dos empresários e boas palavras dos utentes dos serviços do Estado. 

      Publicado pelo jornal A Semana de 2 de Outubro de 2009

segunda-feira, agosto 03, 2009

Estado da Nação 2009

A transformação de Cabo Verde, apregoada pelo Governo do PAICV, falhou. O crescimento económico de dois dígitos não foi atingido. O desemprego nunca baixou ao nível do ano 2000. Muito menos chegou ao nível de um dígito prometido pelo Governo. A culpa não é da crise. O Governo foi imprevidente enquanto durou o tempo das vacas gordas. O rei vai nu apesar das vestimentas virtuais tecidas pela propaganda e pela manipulação despudorada da televisão estatal. Questionado sobre o desemprego o Sr. Primeiro-Ministro desculpa-se dizendo que é estrutural. Isso é confissão de fracasso. O estrutural não é fatalismo. Resulta de políticas e muda com políticas certas. A China, a India e o Brasil alteraram o estrutural, e os resultados vêem-se no crescimento e na diminuição efectiva do desemprego e da pobreza. Em Cabo Verde, as projecções oficiais e do PAICV de 1988 apontavam para 40% de desemprego em 1995. Alterações estruturais nos anos 90 como a implantação da democracia e a reestruturação da economia mudaram tudo. O País foi lançado para níveis de crescimento, dos mais altos de sempre, e o desemprego caiu até cerca de 17% em 2000. A incapacidade nos últimos nove anos em melhorar os índices de crescimento e de emprego prova que pouco se aprofundou na mudança do “estrutural”. Ficou-se, essencialmente, pela cosmética. O aproveitamento de oportunidades pecou por falta de estratégia. Para isso contribuiu a instabilidade do Governo no sector da economia. Já se vai na quinta equipa ministerial. Várias razões explicam o não aprofundamento das reformas. Empresários recentemente apontaram a ideologia, desconfiada e insensível em relação ao sector privado, como uma delas. Uma outra razão é a centralização do Poder. O Governo do PAICV quando forçado a escolher entre controlar ou facilitar o desenvolvimento, invariavelmente escolhe controlar. Praticamente, nenhum dos projectos imobiliários turísticos anunciados se concretizou. Ficaram pelo caminho a meio de questiúnculas de terrenos e obstáculos da Administração Pública. Ainda uma outra razão é a obstinação em controlar os recursos disponibilizados ao País. O Governo vê o desenvolvimento como uma dádiva sua às populações. Espera gratidão em retorno. É só ver o entusiasmo como se tem entregue ás linhas de crédito. Não parece importar-se muito que o crédito também visa subsidiar empresas portuguesas. Nem que o endividamento externo não compensa em empregos e em crescimento. O ganho político instantâneo de lançar pedras e inaugurar parece-lhe suficiente. Particularmente, quando na prática já terminou a legislatura sem ter cumprido as promessas fundamentais e importa agora fazer campanha, gerir expectativas e tentar mais um mandato. O impacto da má gestão, ontem e hoje, sente-se no desemprego excessivo dos jovens. O esforço na educação não foi acompanhado da criação de empregos à altura dos conhecimentos adquiridos e expectativas criadas. O desenvolvimento do capital humano em Cabo Verde não tem constituído um factor de atracção de investimentos. O Governo falhou em criar um sistema de ensino de qualidade. E a solução não é adiar o momento de desemprego para depois do ensino superior. Um ensino superior nacional a expandir demasiado rápido (vai em 8000 alunos) e a partir de um ensino secundário de qualidade duvidosa. É evidente que Cabo Verde precisa de mudar de atitude. Facilidades externas não devem reproduzir um sistema rentista que o País paga com desemprego de dois dígitos e muita pobreza. O Estado não pode ser usado para aumentar a dependência das pessoas delapidando o pouco capital social existente. Há que dar a maior importância ao capital humano, tendo como termo de comparação os standards mundiais em termos de competência linguística, matemática e ciências. A crise marcou o fim de uma era. O modelo económico e social actual falhou em garantir rendimento e na criação de emprego, mesmo em situação favorável. É urgente mudar. Cabo Verde precisa de uma nova liderança. Texto completo da intervenção no http://humberto.cardoso.googlepages.com/estadodanação2009(novaliderançaprecisa-s

terça-feira, junho 23, 2009

Faz de Conta

Em todo o mundo o velho debate sobre o papel do Estado na economia ressurgiu com força. A crise financeira, que rapidamente se desenvolveu numa crise económica, com a diminuição do consumo, quebra de produção e ameaças de deflação, e numa crise social, com o desemprego crescente, obrigou, em muitos países, a uma intervenção estatal massiva e abrangente, sob forma de estímulo fiscal. O actual reaparecimento do Estado como entidade de último recurso para estabilizar a economia, via a criação de procura, sanar o ambiente de negócios, com novas medidas de regulação e restabelecer a confiança no sistema financeiro, com acções musculadas no sistema bancário e afins, veio renovar discussões antigas, ressuscitar velhos preconceitos e animar esperanças em certos quadrantes políticos mais à esquerda.

Os resultados das eleições europeias de há duas semanas, dando vitória aos partidos do centro direita na generalidade dos países da União Europeia, diminuíram consideravelmente o entusiasmo dos sectores da esquerda. Aparentemente, a descrença das populações no mercado não se verificou, nem as pessoas mostram-se dispostas a conceder, de forma permanente, meios excessivos de intervenção ao Estado, sob que pretexto for. Sondagens feitas nos Estados Unidos, citadas pelo colunista do New York Times David Brooks, em Maio último, confirmam o mesmo sentimento. Os americanos não se deixam embalar pelo Estado, mesmo face aos benefícios do pacote de mais de 700 biliões de dólares aprovado por Obama. Nem se deixam levar pelo populismo na crítica ás práticas da classe empresarial que estiveram na origem da crise. E, muito menos, perdem o sentido da responsabilidade individual em contribuir para a prosperidade pessoal e familiar.

Em Cabo Verde o debate Estado versus mercado, finanças públicas versus economia, interesse público versus interesse privado ganhou um outro ímpeto, na sequência de posicionamentos públicos de empresários nacionais mais afectados pela crise internacional e das respostas que obtiveram do Governo. Os empresários confirmaram a quebra no crescimento económico particularmente nos pontos do País mais ligados à economia mundial e os seus efeitos tanto para as empresas como para as pessoas que, em cada vez maior número, se vêem sem emprego e sem fontes alternativas de rendimento. O Governo respondeu declarando que no momento, fundamental é a garantia de tranquilidade por parte do Estado. Segundo o Sr. Primeiro Ministro, em entrevista a Orlando Rodrigues (13/6/09), para que todos os funcionários possam receber no fim do mês, para que possamos fazer todas as transferências, para que o Estado possa assumir todos os seus compromissos.

Duas perspectivas do País sobressaem dessa troca de conversa. Numa fala-se de empresas enquanto entidades essenciais á criação de riqueza e que no processo transformam poupança em capital, garantem rendimento aos seus empregados e criam mais valia, que podem reinvestir, ampliando o emprego e aumentando a produção nacional e as exportações. O Estado nessa perspectiva depende dos impostos sobre os rendimentos das pessoas e das empresas e das receitas do IVA, o imposto sobre a actividade económica. Noutra perspectiva o Estado coloca-se acima da actividade económica, alimenta-se dela quando pode mas não tem um interesse fundamental na sua dinâmica. O foco do interesse do Estado são os fluxos de financiamento externos como doações, empréstimos concessionais, ajuda orçamental e linhas de crédito especiais Com tais fluxos o Governo consegue alimentar o sistema no qual as populações mantêm-se subordinadas ao Estado, a classe média e empresarial fica dependente de favores e acessos privilegiados e faz-se política com a gratidão compelida nas pessoas pelas realizações feitas.

Face à situação concreta que se vive na Ilha do Sal de quebra de crescimento económico, do aumento do desemprego e do recrudescer dos problemas sociais e de segurança, a reacção do PM na entrevista citada é de, afirmar que os compromissos com a ilha “estão a ser rigorosamente atendidos”. E cita a questão dos terrenos e dos registos. Para logo depois remeter as outras questões para uma Sociedade de Desenvolvimento Turístico Integrado a criar, adiantando, entrementes, que não há “património para viabilizar esta sociedade”.

Na prática está-se de facto a confessar que não há resposta concertada para a crise económica em Cabo Verde. E isso sente-se nas ilhas mais expostas à economia mundial e onde a presença do Estado e das suas ramificações é menos concentrada. Mais, a ausência de resposta não resulta simplesmente de falta de meios. Muita vezes é uma questão de prioridades. Prioridades que não económicas mas sim politicamente determinadas. Por exemplo, em termos de construção de estradas há algo mais prioritário do que o acesso aos hotéis na ilha do Sal?

Ou então é “o faz de conta” ? Proclama-se o Turismo como motor da economia. Afirma-se mesmo que Cabo Verde está na moda. E fica-se por aí?!

Não se dá uma resposta efectiva ao problema de Segurança nas ilhas de vocação turística. Não se desenvolve uma política de imigração nem se cria um quadro de suporte a migrações internas. Ignora-se o problema habitacional criando problemas sociais graves e aumentando o custo de vida com implicações directas na competividade geral do destino turístico. Não se perspectiva uma política de saúde para o futuro que contemple e concilie as necessidades da população das ilhas com as dos residentes e visitantes que se pretende atrair. Os objectivos da educação e da formação profissional, no essencial, mantêm-se divorciados da actividade económica considerada estratégica.

Pelo contrário, paralisam-se projectos em S.Vicente e noutras ilhas em disputas de propriedade de terrenos com câmaras municipais e privados. Constrange-se fortemente a construção civil, em plena crise, com medidas de limitação de registo de terrenos só ultrapassadas há três semanas atrás, e em parte, por um decreto lei do Governo. Dá-se  prioridade à construção de certas infraestruturas em detrimento de outras com impacto económico imediato. Por exemplo, em S.Vicente, avança-se com a estrada Baía Calhau abrindo uma zona virgem da ilha e adia-se não se sabe para quando o sistema rodoviário que do aeroporto e contornando a cidade do Mindelo deve servir os projectos, por implementar, de Salamansa, Baia das Gatas, Flamengo,  Calheta, Palha Carga  e Calhau. Mesmo o aeroporto, que deveria ser sido factor de aceleração dos projectos, só vai funcionar já em plena crise e sem um número significativo de quartos construídos na ilha.

O faz de conta” do governo em relação à economia nacional não é de hoje. Dá nomes sonantes aos ministérios e deixa morrer, por razões essencialmente ideológicas, o esforço já realizado na atracção de indústrias para a exportação, com custos em milhares de postos de trabalho. Confrontado com dois programas americanos, o AGOA e o MCA, ignora basicamente o AGOA que pressupõe a atracção de investimentos, constituição de empresas, criação de postos de trabalho e exportações para o mercado americano, mas abraça entusiasticamente o MCA, um programa de ajuda pública.

Não intervém de forma compreensiva na contenção e diminuição dos custos de transacção derivados das relações com a administração pública e empresas públicas. Deixa ao mercado livre sectores cruciais como os transportes marítimos inter ilhas não obstante as permanentes falhas de mercado e a não consecução do objectivo de unificação do mercado nacional. Escuda-se atrás da prestação do serviço mínimo para algumas ilhas como se tal serviço, de cariz essencialmente social, substituísse medidas de política económica.

Mostra-se incapaz de utilizar os investimentos públicos e a compra de bens e serviços dos organismos do Estado para dar suporte a uma política de densificação do tecido empresarial do país. A relação mínima entre os investimentos nas infraestruturas e as empresas nacional exemplifica essa falta de sensibilidade. No mesmo sentido vai o fraco aproveitamento que o sector privado caboverdiano nos ICT fez dos muitos milhares de contos de investimento público na governação electrónica. Mesmo quando há investimento directo estrangeiro não há um esforço de criação de um ambiente próprio para o surgimento de clusters ou empresas conexas via um quadro de incentivos adequados e a regulação de actividades económicas.

Das empresas porém espera, muitas vezes, um comportamento de conformação às suas necessidades políticas de momento. Ilustra isso o braço de ferro que o Governo fez com a ELECTRA e com outras empresas, designadamente as de transporte, para as obrigar a absorver os custos dos aumentos sucessivos dos combustíveis e não os passar aos consumidores, evitando ónus político ao Governo. Sabe-se hoje as consequências desse tipo de pressão na Electra: os investimentos não realizados, os enormes custos suportados pelos consumidores, o fim da parceria estratégica e ainda a falta de um plano coerente e previsível de investimento em energia e água.

Tácticas diversas são usadas para pôr pressão sobre as empresas e conseguir delas a aquiescência aos interesses do momento do Governo. Interesses esses que, diferentemente do que o PM diz na entrevista citada, nem sempre coincidem com o interesse público, designadamente quando se trata de ganho político imediato. O efeito geral dessas tácticas é perda da eficiência e da competitividade das empresas.

Uma dessas tácticas é o recurso ao discurso populista e à retórica anti capitalista. Os tempos de crise mostram-se propícios a isso. Assim acusam-se os empresários de defenderem interesses particulares como se por definição não o fossem. Cabe ao Estado,  orientado pelo Governo,  criar o ambiente adequado para que a prossecução do interesse particular resulte no interesse público. Mas quando o governo procura ganho político imediato o que parece a defender é o interesse particular do partido que o sustenta E isso, de facto, é que não cabe na ética republicana, a que todos os sujeitos públicos estão obrigados.

Mas acusa-se os empresários para se poder desresponsabilizar perante o que pode vir a acontecer às empresas. Mas as empresas não simplesmente os empresários. São também gente empregada, são expectativa de rendimentos para as famílias e esperança para os à procura de trabalho. Defender o interesse público não pode ser simplesmente garantir os vencimentos dos funcionários. È também assegurar-se do ambiente próprio para o desenvolvimento empresarial do país. Da actividade das empresas é que deve vir a o essencial da riqueza que proporcionará os meios para que o Estado pague os seus agentes e desempenhe o papel que todos dele esperam  designadamente na segurança, na administração da justiça, na redistribuição de rendimentos, na saúde e na educação.

O que menos Cabo Verde precisa neste momento  é de um simulacro de luta classes que intimide os empresários e convide ao conformismo. Depois das oportunidades perdidas ou mal aproveitadas, o mínimo que se exige é que o país ganhe consciência dos reais desafios que enfrenta. E aí o Governo tem uma especial responsabilidade. Espera-se que deixe “o faz de conta” na construção da economia nacional e não se deixe levar só pelas facilidades que conjunturalmente uns e outros vão oferecendo ao País.

        Publicado pelo jornal A Semana de 23 de Junho de 2009

domingo, maio 24, 2009

Malefícios da gratidão política

John Adams, o 2º presidente dos Estados Unidos e um dos pais fundadores da república, em 1787-88, avisou num dos seus escritos que gritos de gratidão têm enlouquecido mais homens e estabelecido mais despotismos no mundo do que todas as outras causas possíveis. Mais avisou que líderes políticos a declararem-se despidos de interesses pessoais e motivados somente pelo amor pelo povo não constituem garantia de liberdade.

A Africa está repleto de exemplos de como a utilização da política de gratidão pelos protagonistas da independência tem sido desastrosa. Exigir gratidão foi a via encontrada para se arrogar o direito ao exercício do Poder com exclusão de todos. Com isso dividiu-se a sociedade e legitimaram-se tácticas políticas de exploração de diferenças étnicas, linguísticas e religiosas. Construíram-se cumplicidades continentais para garantir o reconhecimento do direito dos heróis da luta anti colonial ao Poder nos seus países.

Subsequentemente o controle dos recursos naturais e da ajuda externa serviu para perpetuar a exploração do sentimento de gratidão das populações. No sistema rentista instituído, governar passou a significar dar prendas às pessoas, realizar sonhos das populações, e contemplar grupos seleccionados com acesso a recursos ou a oportunidades. Actos do governo transformaram-se em rituais diários de demonstração da generosidade dos governantes e de manifestações de gratidão das populações,   altamente mediatizados via comunicação social, em especial a televisão.

As consequências vêem-se na história pós independência da generalidade dos países africanos: Guerra civil, golpes de Estado e atraso económico indiscutível, particularmente quando comparados com a Coreia do Sul e Singapura, países que nos primórdios da independência, tinham o mesmo rendimento per capita do Gana e da Nigéria. Onde, então, houve luta armada anti colonial a política de gratidão resultou, quase sempre, em guerra civil. Zimbabwe, Moçambique e Angola são casos paradigmátios.

A turbulência política na Guiné Bissau é o exemplo mais recente e notório da verdade nas palavras de John Adams. Trava-se aí uma variante da guerra civil. De uma primeira fase de eliminação de potenciais ou imaginários adversários com o massacre dos antigos comandos africanos e outras figuras guineenses, o PAIGC entrou em intermináveis conflitos internos que dilaceraram o país. O culto de gratidão pelos combatentes da independência pôs o destino da Guiné nas mãos deles e tem justificado a sua permanência no Poder, não obstante a desgovernação de décadas a que sujeitaram o País. O resultado é que hoje, segundo Aristides Gomes, antigo primeiro-ministro, citado pelo Público de 9/6/2009, “os políticos dependem de tal forma do apoio de facções poderosas nas forças armadas que o país se tornou impossível de governar. As forças armadas não são mais um exército no verdadeiro sentido do termo, mas uma mescla de várias milícias”.

Nelson Mandela destaca-se de todas as manifestações despudoradas de ganância de Poder em Africa. Figura central da luta anti-apartheid na Africa do Sul não se candidatou para mais um mandato após realizar o seu desígnio de construção de uma democracia multi-étnica, multiracial e multicultural. O seu gesto teve significado similar ao do general George Washington que se retirou para a vida civil logo que terminou a guerra da independência. O mesmo George Washington que, mais tarde, chamado a servir a jovem república como presidente, retirou-se ao fim do segundo mandato, para que a voz do povo nas urnas tivesse expressão mais distinta e clara, criando o precedente de dois mandatos universalmente referenciado.

Robert Mugabe, pelo contrário, é o exemplo acabado de como um herói da guerra da independência se sente no direito de até destruir o país, se o seu poder for questionado. Logo após a independência, procedeu ao aniquilamento de rivais do ZAPU, também combatentes da independência. Posteriormente desferiu ataques contra a minoria branca destruindo a economia do país no processo. O espectáculo do Zimbabwe, um país outrora dos mais prósperos na região, a ser engolido pela hiperinflação, é elucidativo do que acontece quando reina o despotismo de quem reivindica eterna gratidão pelos seus feitos no passado.

O mais complicado é a complacência generalizada em relação aos actos destrutivos de Mugabe. Demonstra o quão muitos se revêem na política de gratidão. E como as narrativas de vitimação, do esclavagismo e do colonialismo são instrumentais para a manutenção do Poder em Africa.

Cumplicidades extraordinárias são forjadas no esforço permanente de controlo da memória pública dos acontecimentos históricos. A exaltação da luta pela independência e dos seus protagonistas ou heróis caminha lado com uma leitura oficial e unidimensional da história que a justifica. Por isso, gera permanentes divisões na sociedade e insiste que o presente seja sempre visto com os olhos do passado. O País vê-se roubado de coesão social, capacidade de governança e perspectiva do presente e futuro para que se eternize o poder dos que se fazem proclamar “melhores filhos”.

Causa alguma estranheza a cumplicidade das antigas potenciais coloniais na manutenção de narrativas independentistas. E a deferência demonstrada em relação aos seus protagonistas oficiais. Talvez resultado de interesses económicos, de complexos de culpa ou, ainda, de resquícios de paternalismo. Em todos os casos, só os ajudam no controlo da memória pública e, por essa via, a munirem-se dos meios de manutenção no governo ou de regresso ao Poder.

Mesmo em situações extremas como as da Guiné-Bissau, em que se assiste à implosão progressiva do país e a sua transformação num Estado falhado, não se vai ao fundo do problema. Deixa-se ficar pelas recomendações de sempre: eleições urgentes e criação de forças de interposição. Insiste-se mesmo que eleições presidenciais continuem marcadas para o dia 28 de Junho, não obstante o assassinato recente de um candidato presidencial e de um deputado proeminente. Espera-se que a realização das eleições restaure a ordem constitucional. Como se isso fosse possível, tendo em conta a ausência do controlo civil das forças armadas e de garantias de segurança e, também, a falta do esclarecimento completo dos assassinatos do Presidente da República e do Chefe de Estado Maior.

O PAIGC tem mais de dois terços dos deputados desde das eleições de Novembro de 2008. Vê-se que o país continua nas suas mãos, mas a Guiné continua sem segurança, sem governo e sem perspectivas de desenvolvimento. O Presidente Obama no seu discurso de Cairo de 4 de Junho deixou claro que “só eleições não fazem uma democracia de verdade”. É preciso, segundo ele, “manter o poder por meio de consentimento, não de coerção; é preciso respeitar os direitos das minorias e participar com espírito de tolerância e compromisso; é preciso colocar os interesses do povo e os trabalhos legítimos do processo político acima do partido”.

Em Cabo Verde, os acontecimentos na Guiné são vistos num misto de pena e ansiedade. Pena porque se trata de destruição progressiva de um país próximo, que em muitos caboverdianos, por uma razão ou outra, traz boas recordações. Ansiedade porque sempre que a Guiné está na berlinda  põe-se o problema da real herança histórica do PAIGC. Do que ele foi, o que fez e em quê se transformou. E assim é, porque, também em Cabo Verde, há uma pressão constante no sentido do controlo da memória pública.

Não houve luta armada em Cabo Verde mas instalou-se um regime de partido único na base de uma legitimidade, adquirida na guerra na Guiné. Os líderes sentiam-se justificados na gratidão que o povo lhes devia pela independência alcançada e por terem vertido sangue e demonstrado livre de interesses próprios. O problema nesta construção ideológica é que se tratava de história contada, não de história vivida nas ilhas. O controlo dos elementos da narrativa teria que ser o mais estrito possível para evitar contradições, incoerências e revelações demolidoras. Daí a “dança” com a Guiné.

É ali que tudo se tinha passado. Dali é que vinha a legitimidade, mas também podia vir elementos destrutivos. Manteve-se durante cinco anos a ilusão da Unidade Guiné-Cabo Verde contra toda a evidência da violenta interna do PAIGC, demonstrada na morte de Cabral. Convinha aos desígnios do Poder em Cabo Verde. Hoje esforça-se por determinar uma data para o descalabro da Guiné, para evitar que a verdade contamine quem ainda reivindica o legado da luta de libertação. Por isso, uns dizem que foi depois do golpe contra Nino, outros garantem que foi com o Nino, outros ainda vão ao tempo do Luís Cabral e às valas comuns. A realidade é que conflitos dentro do PAIGC e as formas sumárias de os resolver vêm de longe, do Congresso de Cassacá em 1964, como testemunha Amílcar Cabral na obra “Palavras de Ordem”. Depois da independência, essa cultura política foi simplesmente extrapolada para o país todo, no quadro do partido-estado.  

A preocupação com o controlo da memória pública, após quase duas décadas de democracia e de legitimação do exercício do Poder pelo voto livremente expresso, demonstra que políticas de gratidão estão vivas e activas na sociedade caboverdiana. Há, certamente, quem quer alavancar as suas chances políticas, cobrando dívidas de gratidão por factos passados, favores prestados e benesses dispensadas.

Não é estranho a isso a insistência num nacionalismo que se sustenta mais de lutas de fora do que de vivências de dentro, que vive mais do passado do que dos desafios do presente e que mais desune do que une. Também não é estranho que se inculque um sistema de referência onde governos são valorizados pelo volume de ajuda angariada, a governação fica, muitas vezes, por grandes gestos sem consequência e a dependência das pessoas é activamente alimentada pelo Estado. Como também não é estranho que se mantenha o timbre fortemente partidarizado da acção do Estado, a comunicação social pública dentro da narrativa libertária e a Educação sob controlo ideológico, actualmente até com inputs directos do Primeiro Ministro para crianças e adolescentes, em aulas especialmente fabricadas.

Rejeitar a cultura política que elege dívidas de gratidão como sustentáculo da actividade política é fundamental para a Liberdade, para a contínua institucionalização do país em direcção ao ideal da boa governança e para que Cabo Verde deixe de se mirar no passado e projecte o futuro, realçando os valores do mérito, da criatividade e da capacidade de execução e inovação.   

  Publicado pelo jornal A Semana de 22 de Maio de 2009

sexta-feira, maio 08, 2009

Emprego, o mercado e o futuro

O Governo, em matéria de emprego, parece ter deixado cair a toalha ao chão. Solicitou um debate parlamentar sobre emprego e formação profissional. Já praticamente a fim do seu mandato e sem ter cumprido o objectivo da legislatura de baixar o desemprego a níveis inferiores a 10%, o convite à Oposição só pode significar que se esgotou em termos de soluções próprias.

E isso não se esconde com o frenesim habitual de membros do Governo a se espalharem pelas ilhas a falar de formação profissional e empreendedorismo e a prometer a construção de centros de formação. Formação profissional é útil para responder ás necessidades do mercado em trabalhadores qualificados. Por si mesmo não cria emprego. Pode tornar as pessoas empregáveis. Mas isso, se houver procura, ou seja, se houver crescimento da economia, se os mercados estiverem organizados e se o exercício da profissão for regulado de modo a evitar informalidade no acesso ao trabalho.

Crescimento económico não aconteceu nas taxas que podiam contribuir para debelar significativamente o desemprego. Com a crise, o investimento público, focalizado em infraestruturas, não se tem revelado capaz de arrastar o resto da economia e manter o ritmo de crescimento. Consequências disso são visíveis ao nível do emprego e do rendimento das pessoas mas também das receitas do Estado, como bem disse a Sra. Ministra das Finanças.

A unificação do mercado nacional que, num país arquipélago e de pequena população, poderia trazer um factor de escala para alguma produção nacional não atingiu níveis desejados. S. Antão continua cortada do resto do país por causa dos milpés, Brava e Maio estão praticamente isoladas e as comunicações entre as outras ilhas sofrem os efeitos da precariedade das ligações, inadequação dos barcos e constrangimentos vários ao nível dos portos e serviços neles prestados. O Governo insistiu na construção de rede de estradas nas ilhas e descurou as “auto-estradas” entre as ilhas, as linhas marítimas. Sem movimento garantido inter ilhas fica-se muito aquém de retirar os benefícios possíveis da construção das estradas. A estrada Porto Novo Janela, por exemplo,  compreende-se em grande parte se houver um esforço redobrado de unificação económica de S.Vicente e S Antão que gere mais circulação de pessoas e bens.

A organização do mercado pressupõe que se reconheça, designadamente, onde é capaz de funcionar em pleno, onde é imperfeito, onde se deve condicionar a entrada de operadores e onde não é possível substituir a presença do Estado. E, também, que se aja em consequência.

As ligações marítimas inter ilhas são claramente um sector que não pode ser deixado unicamente nas mãos do sector privado. A exemplos de outros espaços arquipelágicos como os Açores onde se subsidia o transporte marítimo, o Governo de Cabo Verde deve ter respostas à altura. Subsídio, concessões, licenças ou intervenção directa, devem ser considerados com vista à unificação do mercado interno como forma de potenciar a produção nacional .

Subsídios têm sido estigmatizados, muitas vezes sob pressão do FMI, devido a  preocupações legítimas com o possível impacto orçamental no presente e no futuro. Não se tem, talvez, em devida conta os ganhos derivados do efeito multiplicador na economia que, a verificarem-se, diminuem o risco orçamental.

O resultado é que ligações como as que ligam Praia ao Maio e Brava ao Fogo não gozam de um contrato próprio incluindo subsídios. Contrato esse que ao estabelecer frequência certa do barco, ou seja criar previsibilidade na ligação, abre o caminho para o crescimento progressivo do movimento de carga e passageiros nos dois sentidos e consequente aumento do emprego e produção na ilha. O subsídio inicial para cobrir a diferença entre o custos e as receitas derivadas de carga e passageiros, tende a diminuir com o crescimento do tráfico. E, a prazo, a terminar mesmo, com a viabilização da rota. Mais arriscado parece é a insistência do Governo em soluções que comprometem o Estado com subsídios sem serviço imediato, Cartas de Conforto na emissão de obrigações, sem o aparente suporte de activos, e presença problemática do Primeiro Ministro em OPOs (Oferta Pública de Obrigações) de empresas privadas.

A ajuntar-se à falta de visão na organização do mercado nacional, vêm as omissões na regulação. Um dos exemplos mais gritantes é a produção e distribuição do grogue. Mesmo os efeitos desastrosos do elevado alcoolismo em todo o País, particularmente no mundo rural e entre os jovens não levam as autoridades a ter uma posição forte e corajosa.

O País não tem cana sacarina suficiente para produzir os muitos hectolitros de grogue  consumidos anualmente. A diferença entre a oferta e a procura é coberta por mistelas diversas destiladas livremente, sem obviamente qualquer controle de qualidade e de nível de toxicidade. O resultado é que o “mau” grogue acaba por deslocar o “bom” grogue de cana, deprimindo os preços, arruinando os proprietários de cana ou forçando-os a juntarem-se à produção ilegal. A desconfiança generalizada em relação ao Grogue faz o produto perder mercado tanto no país, entre as classes mais abastadas e no mercado do turismo, como não consegue atingir o seu potencial enquanto produto de exportação para o mercado étnico das comunidades na América e na Europa. Perdem os proprietários, perde o Estado com a produção ilegal, não tributada, e perdem os exportadores.

A distribuição não regulada, por outro lado, tem consequências sociais graves pelo impacto directo nas famílias, na produtividade do trabalho, nos custos das estruturas de saúde e nas demandas feitas ao sistema de segurança para pôr cobro aos tumultos causados pelo uso excessivo do álcool. Fica evidente que aceitar-se que se venda, em todo o lado, cálices de grogue por 10 escudos, ou que se deixe generalizar misturas adocicadas para disfarçar o mau gosto do grogue e atrair jovens mulheres a bebidas fortes, não traz quaisquer ganhos ao País. Em vez de criar trabalho e gerar divisas com exportações, a produção do Grogue destrói pessoas, compromete a produtividade nacional e onera o Estado. É tempo de se agir inteligentemente, mas resolutamente, para regular o sector e pôr cobro ao problema.

A intervenção qualificada do Estado num economia pequena e insular como a caboverdiana pode ser um factor importante de crescimento. Desde logo pelo facto da própria presença do Estado através dos salários pagos, serviços prestados, bens e serviços comprados, fluxo de pessoas induzidos e eventos criados afectar tudo à sua volta. Modular o impacto do Estado de forma a que, designadamente, favoreça a concorrência entre empresas, contribua para uma maior qualidade nos produtos e serviços prestados, e incentive a emergência e desenvolvimento de novos mercados deve constituir uma parte importante das medidas de política económica do Estado. As opções de descentralização, o modelo de aprovisionamento de bens e serviços, as formas adoptadas na prestação dos serviços do Estado e mesmo a organizações de eventos públicos devem ter em devida consideração o peso e a influência que a acção do Estado poderá ter nas pequenas economias das ilhas, para melhor as potenciar.  

O sector energético é um sector a pedir uma intervenção qualificada do Estado. Uma intervenção que vá além da simples procura de financiamento para formas convencionais de produção de energia e água. Ou fique por acções, também financiadas do exterior, como é caso das entregas mediatizadas de lâmpadas de baixo consumo.

Onde estão as outras medidas de promoção da poupança nos consumidores? Se a tendência do futuro – futuro que já foi o presente poucos meses atrás no preço de petróleo a 145 dólares - é do aumento do preço dos combustíveis fósseis sob o impulso da procura, como ficar pela actual política de preços de combustível? O objectivo parece ser, tão somente, proteger o orçamento do Estado de choques futuros. Quando o que importa, agora e no futuro, é modelar comportamentos dos consumidores, consentâneos com a inevitabilidade do aumento dos combustíveis, logo que a economia mundial saia da recessão actual.  

Por outro lado, como não criar possibilidades de emprego com novos mercados criados pela regulação do sector energético. Uma decisão, por exemplo, de favorecimento de colectores solares térmicos para a produção de água quente para hotéis, blocos de apartamentos e outros edifícios em detrimento de termoacumuladores eléctricos criaria espaço para o surgimento de empresas de montagem, instalação e manutenção dos colectores. Ganhar-se ia em novos empregos e na poupança de energia com proveito directo para os consumidores, para os fornecedores de energia e para a balança de pagamentos do País. No mesmo sentido ir-se ia com acções de política dirigidas para instituir a certificação energética dos edifícios.

A grande oportunidade que poderá abrir-se ao País está num comprometimento forte, sério e abrangente no domínio dos biocombustíveis, particularmente do biodiesel a partir da purgueira. A purgueira, jatropha curcas, é uma planta decididamente adaptada em Cabo Verde cujo óleo já fez parte da economia das ilhas como produto de consumo local e de exportação. Das plantas oleaginosas é a que mais se pode retirar óleo: até 40% da sua massa. Depois de um processo de refinação que é fundamentalmente de transesterificação, o óleo resulta em biodiesel e glicerina. O biodiesel pode ser misturado com o diesel num blend a diferentes percentagens. Na Nova Zelândia, em Fevereio deste ano,  fez-se mesmo a experiência de misturar 50-50 o biodiesel da purgueira com o Jet Fuel para operar um dos reatores de um Boeing 747-400.

Com uma capacidade de produção por colheita e por hectare de cerca de 1800 litros de óleo, a purgueira a pode ser a cash crop que o mundo rural caboverdiano, há muito tempo, procura. Dá-se muito bem em zonas semi-áridas e de terrenos marginais e não compete com as plantas alimentares. Importa neste momento é que se crie um mercado para o óleo da purgueira.

 E isso faz-se definindo por lei a percentagem do diesel em Cabo Verde que deverá ser biodiesel. A exemplo da Directiva da União Europeia de 2003 que aponta para uma percentagem de biodiesel de 5.75 % na Europa até 2010 e de leis noutros países que estipulam percentagens muito mais elevadas de 20%. Com isso, grandes ganhos podem ser vislumbrados: ganho para os agricultores e para a população rural; ganho para o país porque haveria menos importações de combustíveis fósseis; ganho para o ambiente com um combustível menos poluente. Ganhos futuros em vendas de crédito de carbono.

Acordos público-privado do género do que foi assinado na semana passada com a GeoCapital  denota o interesse dos poderes públicos. Mas há que agir de forma decidida para criar espaço para o biodiesel,  a partir do óleo da purgueira, no mercado global do diesel em Cabo Verde, avaliado em mais de 96 mil toneladas e um total de 11 milhões de contos.

No mundo globalizado de hoje ganhos importantes vão para quem consegue ver as tendências a emergir e posicionar-se para as explorar. Os empregos novos assim criados têm maior possibilidade de sustentabilidade a prazo. Para o País, saber antever o futuro e adaptar-se rapidamente ás suas exigências pode ser a fórmula ganhadora. Nessa perspectiva, mais do que talvez a formação profissional , uma grande qualidade no ensino das ciências, da matemática e das línguas no nível básico e secundário parece mais vantajoso. Uma base sólida permite que rapidamente as pessoas adquirem novas qualificações e mudem de profissão, conforme a dinâmica do mercado.

É matéria para se continuar a reflectir.

         Publicado pelo jornal A Semana de 8 de Maio de 2009 

domingo, abril 26, 2009

A importância da diferença

Em Cabo Verde já se vive um ambiente político pré eleitoral. Não obstante o facto de se estar a mais de dezoito meses das eleições legislativas, previstas para Janeiro de 2011.

A crise mundial pôs um fim prematuro a qualquer esperança que a actual governação do País seria capaz de cumprir os dois grandes objectivos da legislatura: o crescimento de economia a mais de 10% e o debelar do desemprego para níveis abaixo dos 10%. Não o fez no tempo das vacas gordas do crédito fácil, de expansão rápida do comércio internacional e de forte crescimento mundial. Ninguém espera que o faça no momento actual que já é chamado de Grande Recessão, para caracterizar a maior contracção da economia mundial desde da Grande Depressão de 1929.  

A crise, constituindo o fim de um ciclo e muito provavelmente de um modelo de  crescimento, impõe reflexões profundas e urgentes. De como as diferentes economias foram, por ela, apanhadas, como acabaram por ficar afectadas e que perspectivas têm de minorar o impacto e adaptarem-se às novas relações económicas que irão emergir. A preocupação com o futuro é mais premente em países como Cabo Verde que ficaram muito aquém de retirar o proveito possível, quando as condições eram mais favoráveis. 

Há a consciência que já é o futuro em discussão. Porque só políticas novas e uma renovada legitimidade irão dar tempo e energia á governação. Nessa perspectiva já se assiste o governo e o partido que o suporta a lançarem-se na ofensiva para se manterem no Poder. E a Oposição a ser espicaçada para se revelar como uma verdadeira alternativa.

Cabo Verde vive um momento de verdade. Tem que se confrontar com o facto de não obstante os níveis de crescimento atingidos não conseguiu, em mais de oito anos, baixar o desemprego para valores iguais, e muito menos inferiores, aos do ano 2000. Também tem que encarar o facto de não ter conseguido alargar a base da sua economia, deixando-a perigosamente a suportar-se sobre o turismo, como bem alertou o FMI no seu relatório de Julho de 2008. E ainda com o facto de hoje ser classificado como País de Rendimento Médio e ver progressivamente diminuir ajudas e empréstimos concessionais.   

Respostas adequadas devem ser encontradas:
  • Para questões sobre a natureza e a qualidade dos investimentos que até podem mexer com os números no PIB mas falham em alargar a estrutura produtiva e em criar empregos sustentáveis;
  • Para se saber  porque o País ainda não se mobilizou para adquirir uma cultura de serviços e desenvolver nas pessoas um espírito cosmopolita  traduzido, designadamente, na atitude certa para com o mundo e em competência linguística relevante;
  • Para se determinar o papel que o Estado deverá ter na economia nacional, o peso limite permitido na absorção dos recursos nacionais, o impacto que a descentralização, ou não, das suas estruturas poderá ter sobre a economia local das ilhas;
  • E, também, de como fazer para se passar da actual situação de dependência do Estado para uma outra de autonomia do indivíduo em que o exercício pleno dos direitos se conjuga com o sentido de responsabilidade e de pertença.

Respostas só podem ser encontradas no exercício do contraditório, em ambiente de liberdade e com elevado sentido de justiça. Pressupõem a existência de diferenças, o respeito pela diferença e a condenação da arrogância totalitária, patrioteira e moralista que insiste na inutilidade da diferença.

A democracia liberal tem nos seus fundamentos o exercício das liberdades, particularmente a rainha das liberdades, a liberdade de expressão e de informação. Ou seja, a democracia liberal não só pressupõe a diferença como vive das suas múltiplas manifestações e interacções. Compreende-se, assim, porque não há democracia sem partidos políticos e como é importante mantê-los não obstante as suas notórias insuficiências e imperfeições.

Em momentos críticos, como o actualmente vivido em Cabo Verde, é de suprema importância que os partidos sejam chamados a exercer em pleno o seu papel. Têm a responsabilidade de criar soluções de governo e devem colocar-se à altura. Ou seja, devem dizer quem são, o que representam e que políticas propõem. Com isso dinamizar o debate nacional, fazendo com a sociedade tenha uma ideia dos desafios existentes e das possíveis vias para os enfrentar e vencer. O espectáculo do exercício da democracia na América, que produziu Barak Obama, deve ser fonte de inspiração, para se discutir e encontrar soluções de políticas e de liderança para o País, na encruzilhada em que também se encontra.

O período pré eleitoral actual não deve focalizar-se unicamente nas personalidades pretendentes a líderes e nos relatos de intrigas palacianas, que acompanham a expressão das ambições. Mais do que nunca urge discutir o País. Para isso é fundamental que os partidos se dêem a conhecer, afirmem as diferenças e confrontem políticas nos diferentes sectores de governação.

O MpD e o PAICV são os dois partidos da área de governação. Como tal têm responsabilidades acrescidas. Não devem deixar deslizar-se para posturas de simples protesto ou de contra poder. Uma tentação que não é simplesmente de quem, conjunturalmente, está na oposição. Também quem governa, no alto da sua arrogância pode reagir às tentativas de fiscalização e de limitação da governação com protestos que o escusam de prestar contas e mostrar-se responsável. E pode agir como contra poder quando nega à oposição os poderes de check and balance que a Constituição lhe confere. 

Os dois partidos pilares do sistema político caboverdiano surgiram em momentos diferentes da História do País. A matriz ideológica diferenciada e a cultura política que a acompanha são tributárias das respectivas trajectórias.

O PAICV, o velho partido único, evoluiu para o campo socialista do tipo europeu. Em consonância com os tempos e no governo após 2001, a exemplo de partidos socialistas na Europa, aproximou-se mais do centro político e tornou-se, na prática, herdeiro de políticas iniciadas pelo MpD nos anos noventa. A defesa do Acordo Cambial, a implementação das reformas fiscais e o desenvolvimento do sector financeiro e de regulação ilustram isso.

O MpD, inicialmente  um movimento anti - partido único, define-se pelas tarefas que se impôs após a vitória de 13 de Janeiro de 1991. Tarefas essas em consonância com o mundo saído da queda do comunismo e do fim da Guerra Fria: a construção das instituições democráticas, a começar pela Constituição da República, e a reestruturação da economia caboverdiana, visando construir uma economia de base privada, inserida na economia mundial, a partir de uma economia estatizada, essencialmente autárcica.

No essencial ao longo dos quase quinze anos de vigência democrática os dois partidos mantiveram os elementos essenciais da sua matriz ideológica. O PAICV dá a aparência de suavizar os seus contornos, pressionado pelas instituições e procedimentos democráticos. O MpD sofreu dissensões internas em 1993 e 1998, ano do Acordo Cambial, em reacção às reformas económicas em curso, mas manteve o rumo. Na prática, tirando as nuances e focalizando no essencial, pode-se ver que o PAICV procura apresentar-se como o partido do Estado, o partido social e o partido das questões identitárias. O MpD mostra-se como o partido da Constituição e das liberdades, o partido da descentralização e o partido da iniciativa privada e da autonomia do indivíduo e da sociedade civil.  

As políticas do PAICV convergem no reforço do Estado na relação com os indivíduos, a sociedade e a economia. Resultam no elevar do nível de centralização do País e de aumento da dependência das pessoas. O partido alimenta-se de questões identitárias (nacionalismo, africanização, género, língua, etc.) aproveitando-se da motivação e forte sentimento de pertença que assola os indivíduos quando se posicionam em campos antagónicos. Sociologicamente o PAICV aparenta ser o partido da elite urbana que gravita á volta do Estado seja na Administração Pública, seja nas empresas, outrora públicas e hoje privatizadas. Compreende-se pois que insista sempre que o critério para avaliação do Governo seja o de capacidade de captação de ajuda e de outros fluxos externos. Na cadeia alimentar sustentada por esses fluxos ganha quem está no topo, ou seja quem está com o Estado.  

Em contrapartida o MpD aparenta ser o que alguém, uma vez, chamou o partido de bóias frias, o partido dos mais pobres, dos menos escolarizados e dos mais velhos. Em Cabo Verde os partidos políticos, grosso modo, não reflectem a base social que normalmente estão associados a partidos de direita e de esquerda. A razão para isso está no facto do sistema económico do País, alimentado de fora desde da sua fundação, desenvolveu um sistema rentista em que os privilegiados estão no Estado. Nas populações chega um fiozinho das ajudas, ficando a parte de leão nas elites, sob várias formas. O chamado desemprego estrutural é, em grande parte, consequência do modelo que privilegia captação de ajudas sobre a produção e a exportação de bens e serviços. A persistência do nível de desemprego a mais de 20% da população, não obstante os avultados investimentos feitos e os anúncios de entrada de milhões em investimento directo estrangeiro, é a demonstração completa do fracasso do modelo.

O que faz do MpD um partido popular e de multidões é a esperança que os deserdados do regime rentista de captação de ajudas têm de ver nascer no país uma economia nacional, inserida no mundo, capaz de assegurar empregos sustentáveis e de proporcionar rendimentos crescentes e maior qualidade de vida ás pessoas. Isso naturalmente colide com os interesses de quem beneficia da aproximação do sistema rentista. E não só. Também colide com medos atávicos em boa parte da sociedade caboverdiana, que ainda vê no Estado a salvação em caso de crises profundas. Medos esses que estão sempre debaixo da superfície e, às vezes, ardilosamente reavivados.

Mover o país para frente e colocá-lo na posição de criar trabalho para todos, e assim efectivamente combater a pobreza, deve ser o ponto focal do debate para as eleições legislativas. Questões relacionadas, como sejam o papel do Estado, a descentralização, a eficácia de justiça, a segurança, a educação e a saúde deverão ser equacionadas.
Os partidos políticos têm a responsabilidade de condução do processo. Que o debate se inicie. E que, para cada caboverdiano, fique claro qual é afinal a distinção entre um e outro partido e as opções de desenvolvimento propostas. 

    Publicado pelo Jornal A Semana de 26 de Abril de 2009

sexta-feira, abril 10, 2009

Oficializar o crioulo? Porquê a pressa

A questão de oficializar ou não o crioulo ganhou uma outra dinâmica com a apresentação do projecto de revisão constitucional, apresentado por um grupo de deputados do PAICV. Anteriormente a questão, ciclicamente, recebia impulsos políticos de diferentes quadrantes. Momentos houve, no passado recente em que Ministros, Primeiro-Ministro e o próprio Presidente da República se desdobraram em declarações, pontuadas por elementos de retórica nacionalista, clamando pela sua oficialização.

A pressão pela oficialização do crioulo tem um conteúdo essencialmente ideológico.
 No projecto de revisão constitucional, o PAICV quer “dignificar” o crioulo face ao português. Assim propõe que o nº 1 do artigo 9º da Constituição passe a ter o seguinte texto: 1. São línguas oficiais da República o Cabo-verdiano, língua materna, e o Português. Com isso pretende retirar o crioulo de algum suposto estatuto inferior e finalmente libertá-lo da opressão da língua portuguesa. O facto porém é que, em Cabo Verde, diferentemente de outros países onde se procura oficializar línguas maternas, não há discriminação do crioulo.  

Fala-se crioulo no Parlamento, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e os Ministros falam crioulo com o País através dos órgãos de comunicação social, nenhum cidadão está impedido de fazer declarações nos Tribunais em crioulo e a Administração Pública responde a solicitações colocadas oralmente pelos utentes. No País, não há uma elite que só fala a língua do colonizador, como acontece em outras sociedades racialmente mistas, designadamente nas Caraíbas. Também não se acusa de elitismo os escritores, intelectuais e políticos que, no dia a dia, só falam português. Não se pode, pois, seriamente, erigir o crioulo como uma putativa língua de resistência em confronto com o português. Só se for para atiçar chamas nacionalistas em proveito próprio.

O crioulo parece ter emergido do estado de isolamento, abandono e pobreza extrema vivido nas ilhas que não permitiu a subsistência de uma comunidade metropolitana homogénea capaz de impor a sua língua ao resto da população. Como aconteceu, por exemplo, no Brasil, mas também, na generalidade das colónias europeias nas Américas.

Procurando a origem dos crioulos, Derek Bickerton, um linguista norte-americano da Universidade de Hawai e autor do livro “Dinâmica das Línguas Crioulas”, diz que o estudo do crioulo do Hawai demonstra que o processo inicia-se, em ambientes poliglotas forçados, com uma linguagem de recurso, o chamado pidgin, caracterizado por variações, de pessoa para pessoa, consoante a sua origem étnico-linguística. E que na sequência disso as crianças nascidas em tal ambiente apropriam-se do pidgin dos pais e vizinhos, imprimem-lhe uma estrutura, padronizam o seu uso e fazem a língua aceitável para gerações sucessivas de crianças.

Um fenómeno que parece indiciar a existência de uma gramática universal inata, como defende Noam Chomski, o linguista do MIT. Bickerton concorda com o modelo gramatical inato mas diz que só não é suprimido nas comunidades onde a língua de comunicação é o pidgin, ou seja, em comunidades sem uma língua estruturada preponderante. Para ele, a língua crioula nasce quando essa estrutura gramatical inata absorve e modela os vocábulos já disponíveis.

Steven Pinker, professor de ciências cognitivas no MIT relata um caso no seu livro The Language Instint que parece confirmar esse processo. Nas primeiras escolas de surdos- mudos na Nicarágua as crianças reunidas pela primeira vez desenvolveram a partir dos gestos de comunicação que traziam de casa um conjunto de sinais com as características e as limitações de expressão de um pidgin. A leva seguinte de alunos mais novos aprenderam esse pidgin e, ainda, segundo Pinker, reinventaram a linguagem, agora já com gramática, uma maior versatilidade e outra capacidade expressiva. E a gramática revelou-se similar à dos crioulos falados.  

Os estudos referidos mostram-se pertinentes em vários aspectos. Põem de lado a ideia de que o crioulo teria importado a sua gramática de alguma língua africana que, até agora,  ninguém parece ter identificado. Por outro lado, ao ressaltarem o carácter inato das estruturas gramaticais, ajudam a compreender a resistência que as crianças manifestam em abandoná-las. E levam a considerar as possíveis implicações no ensino e na aprendizagem da segunda língua.

Do efeito surpreendentemente resistente do crioulo caboverdiano fala Baltazar Lopes da Silva no seu livro Dialecto Crioulo: “Bem cedo o crioulo das ilhas deve ter disposto de uma estrutura coerente e de um vocabulário bastante para as necessidades; e, assim, bem cedo, ao que me parece, o homem crioulo se sentiu idiomaticamente auto-suficiente. Acrescentou ainda que a aproximação [do português] tem balizas nítidas que a contem dentro de limites naturais. E os limites são, na essência, o sistema morfológico, definitivamente simplificado e fixado há séculos e o  agenciamento sintáctico do discurso”.

A resistência do crioulo é também visível no facto de, em matéria de uso da língua, Cabo Verde ir à contra corrente do que se passa na generalidade dos países africanos, designadamente dos PALOP. Nesses países, as línguas europeias dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais e continuam a ganhar terreno, suportando-se na crescente urbanização e escolarização. Em Cabo Verde, apesar dos altos níveis de educação e de urbanização, o crioulo continua inabalável na sua condição de língua materna.

A ansiedade, com a imaginada perda de terreno do crioulo em relação ao português, só existe nos círculos que procuram tirar proveitos políticos de conflitos identitários exacerbados. Para o cidadão comum não há crise. E nem há para os escritores, músicos e artistas diversos que têm conseguido passar com sucesso para o mundo inteiro a alma e a arte caboverdianas, sem quaisquer constrangimentos.

A Constituição estabelece no nº2 do artigo 9º que o Estado deve promover  as condições  para  a  oficialização  da   língua  materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa. Uma dessas condições seria a estandardização da escrita do crioulo, com impacto em duas áreas: a comunicação escrita do/e com o Estado e a língua de ensino.

Em termos de comunicação a oficialização obrigaria a que todos os documentos do Estado fossem disponibilizados em crioulo para quem quisesse acede-los nessa língua. A Administração Pública teria que se tornar apta a responder a solicitações escritas dos cidadãos, sem equívocos provocados pelo desconhecimento de uma escrita padronizada. Os custos que tudo isso acarretaria poderão não se justificar. Corre-se o risco de subutilização ou por falta de alfabetização generalizada no crioulo ou por falta de interesse.

No ensino, a somar aos custos de produção e publicação de manuais juntar-se-ia, a exemplo do que se passou noutras paragens, designadamente Aruba e Curação, a reacção dos pais. Uns a querer a educação só em português para os filhos em escolas privadas e outros a resignarem-se e a ficar por escolas públicas onde se ensina em crioulo. Em África, a grande maioria dos países tem uma única língua oficial, que também é língua do ensino, a todos os níveis. Poucos se aventuraram em levar as línguas maternas para o sistema de ensino

O argumento de uso do crioulo para facilitar os alunos nos primeiros anos só parece ter sentido porque o Estado falha em propiciar às crianças o acesso ao português desde da tenra idade. A consagração constitucional da língua portuguesa como língua oficial obriga o Estado a agir no sentido, por exemplo, de redefinir todo o pré-escolar como o centro focal do esforço nacional em tornar verdadeiramente bilingue o caboverdiano. O caboverdiano não é bilingue por deficiência do seu crioulo, mas sim por falhas no domínio do português. E é isso que urge remediar.

O Governo com o decreto-lei nº8/2009 aprovou um alfabeto para a escrita caboverdiana, o chamado ALUPEC. Não ficou definido uma forma padronizada de escrita. Simplesmente fez-se uma opção de como escrever o crioulo nas suas diferentes variantes. E, provavelmente, não foi boa opção ter seleccionado o alfabeto fonético – fonológico, em detrimento do alfabeto etimológico. 

O próprio preâmbulo da lei dá conta do uso generalizado do alfabeto etimológico nas publicações dos escritores, poetas e ensaístas caboverdianos nos séculos dezanove e vinte. Assim fala de Adolfo Coelho, Cónego Teixeira, Napoleão Fernandes, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltasar Lopes, Dulce Almada, B.Leza, Sergi Fruzoni, Luís Romano, Jorge Pedro Barbosa, Ovídio Martins, Kaoberdiano Dambará, Kwame Kondé, Emanuel Braga Tavares, Ano Nobo, Manuel d´Novas e muitos outros. A experiência no uso do alfabeto fonético – fonológico, para além do caso do António Paula Brito no século dezanove, só a registar trabalhos na recolha e transcrição de tradições orais, obras do doutor Manuel Veiga, actual Ministro da Cultura, e algumas traduções de clássicos portugueses feitos por José Luís Tavares. 

O alfabeto etimológico aparenta ter uma outra vantagem, para além do seu uso abrangente por vários autores ao longo de mais de um século. O crioulo é classificado como uma língua neolatina. Quase a totalidade do seu léxico deriva de línguas latinas. Num ambiente em que, em simultâneo, se aprende duas línguas, português e crioulo, ou mais de duas línguas (português, crioulo, francês e mesmo inglês), obrigar as crianças caboverdianas a escrever palavras com a mesma origem etimológica, usando alfabetos diferentes, causa a maior apreensão. O nível actual de rigor ortográfico dos alunos no ensino primário e secundário já traz sérias preocupações a pais e professores. Imagina-se a evolução dos alunos com a generalização do uso do ALUPEC .

Quanto á variante do crioulo a adoptar na padronização necessária para a oficialização do crioulo, isso não parece fácil, nem despido de controvérsias. Baltazar Lopes dizia que “Era preciso que já existisse uma literatura, um passado literário escrito para nós podermos escolher um crioulo padrão” . E advertiu, “não confundamos viabilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI… mas o português [escrito] só no século XIII”.

Em Cabo Verde, a abertura constitucional para a oficialização do crioulo existe mas as condições adequadas terão que ser criadas. As autoridades devem ser pacientes e resistir à tentação de usar uma questão tão séria, e com implicações múltiplas e complexas, para o presente e futuro do País, como elemento de agendas político-partidárias, ou outras.

       Publicado pelo Jornal A Semana de 10 de Abril de 2009 

sábado, março 28, 2009

Custos e Benefícios

Na semana passada, o Presidente de Portugal, professor Cavaco Silva, alertou para a necessidade de não se confundir custos com benefícios. “Uma estrada é toda ela custos. O benefício é o trânsito que passará nela. Se não houver trânsito, não há benefício, é zero. O investimento de um empresário é custo, o benefício é a sua produção. Se não produzir nada, não ganha”.Cavaco Silva acrescentou, ainda, que “isto não quer dizer que alguns não ganhem”. Por exemplo, “se uma estrada não tiver trânsito, há um que ganha, o empreiteiro, e há um que perde, o [contribuinte] que paga impostos”.

De facto, investimentos públicos justificam-se pelo seu impacto sobre o rendimento e qualidade de vida das pessoas e pelo efeito de arrastamento que demonstrarem ter sobre a economia nacional. Espera-se dos investimentos, realizados pelo Estado, que promovam o surgimento de empregos permanentes, directos e indirectos. Que aumentem a competitividade geral das empresas e do país, via diminuição dos custos de factores e a valorização do capital humano. E que, conjuntamente com outras despesas públicas, contribuam para o desenvolvimento e sofisticação de mercados no plano interno, traduzido em novas oportunidades de negócio e no fomento das exportações.

Por isso investimentos públicos devem ser concebidos e realizados de modo a que os seus efeitos sejam profundos, complexos e duradoiros. Não podem ficar por objectivos de curto prazo. Muito menos, serem feitos, simplesmente, para satisfazer interesses pontuais e partidários do Governo.

Mesmo hoje, em tempo de crise, em que um papel central é atribuído ao investimento público para sacudir muitos países do torpor da recessão económica, não se perde de vista o alcance e a consequência estrutural, que deverá ter no médio e longo prazo. E compreende-se. Recursos para os investimentos públicos ou resultam da captação da poupança interna, reduzindo a disponibilidade para o investimento privado e para o consumo, ou, então, da mobilização de fluxos externos. Em qualquer dos casos, muito provavelmente, o País endivida-se ainda mais.

Face à perspectiva da dívida, interna ou externa, importa, seguramente, que as decisões tomadas sejam ponderadas quanto aos custos e benefícios. E cuidem para que os efeitos multiplicadores esperados na economia resultem em crescimento e aumento de rendimentos. Com isso se expande a base futura de receitas do Estado e evita-se que o serviço da dívida provoque desequilíbrios orçamentais, perturbadores da estabilidade macroeconómica, a médio prazo, e em sobrecargas para as gerações futuras.

Para a realização dos seus objectivos amplos, é fundamental que o processo decisório relativamente aos investimentos públicos seja seguido, devidamente. À partida respeitando os princípios constitucionais que devem reger as operações do Estado designadamente justiça, transparência, boa fé e imparcialidade. Mas também, tendo em  consideração, os efeitos no ambiente económico a curto, a médio e a longo prazo.

Isso quer dizer que o Estado, por opção do Governo, não deve se colocar na posição de escolher ganhadores no processo económico. Por via de favores, de acessos especiais e de condicionamento de outros não deve eliminar a concorrência e possibilitar, a alguns, lucros fabulosos. Nem deve permitir extracção de rendas á custa do erário público, da criação de monopólios privados ou da extorsão dos consumidores.

Nessa perspectiva o Governo falhou ao permitir a especulação nos terrenos de Cabo Verde. Fez a ganância de alguns subir a níveis elevados, encareceu o investimento no país com a proliferação de intermediários e acabou por inviabilizar muitos projectos nos braços de força que se envolveu por razões partidárias. Não serviu aí o interesse público.

Também não serviu o interesse público quando não soube pôr de pé uma politica energética coerente. Foi incapaz de encontrar um novo parceiro estratégico para substituir a EDP na Electra e optou por recorrer a privados, seleccionados a dedo, para lhes entregar áreas de produção com consumo certo, pago e crescente. Está a acontecer nas ilhas do Sal, S. Antão e Boavista. Já se tinha verificado na ilha de Santiago com os chamados produtores independentes na venda de electricidade, em momento de carestia grave de energia na Capital.

Irá acontecer em breve na produção de água para os municípios do interior de Santiago entregue por 35 anos a uma empresa que, pelas informações por ela disponibilizadas na Net, parece mais um start-up à volta de uma universidade italiana. Um acordo feito e anunciado em 2007, um ano antes de se aprovar e publicar o decreto-lei (Novembro de de 2008) que o poderia enquadrar. 

Em todos esses casos não se vislumbra ganhos para os consumidores, nem a melhoria da competividade da ilha e, muito menos, estímulos a empresários nacionais, seja para expandir os negócios, seja para aproveitar as oportunidades emergentes. Mesmo assim, o governo justifica-se dizendo que a situação, no momento, assim o exige. Mas não explicita a que custo, presente e futuro, e as razões porque aí se chegou.

No processo de decisão não se pode perder de vista o impacto que os investimentos irão ter na economia local. Isso quer dizer, por exemplo, que não pode ser indiferente ao Estado se o investimento público emprega, ou não, caboverdianos. Se os trabalhos são, ou não, feitos por empresas caboverdianas. Se no fim do programa de investimentos as empresas nacionais estão mais, ou menos, preparadas para competir no mercado internacional ou se tornaram capazes de desenvolver um sector de exportação. E se a carteira de trabalhos do Estado criou oportunidades para o surgimento de novas empresas.

Por isso é de se perguntar ao Governo: Após os 46 milhões de contos, mais de 400 milhões de euros,  de investimento em obras públicas, como estão as empresas caboverdianas de construção civil? Sólidas, mais produtivas? Passaram a ter maior capacidade de realizar obras nacionais em competição com empresas estrangeiras? Quais são as perspectivas de internacionalização?

É de perguntar também, depois dos milhões investidos no governçaõ electrónica, quantos empregos foram gerados no sector das tecnologias de informação e comunicação, quantas empresas foram criadas e quais as perspectivas de Cabo Verde vir a exportar serviços nesse sector.

É ainda de perguntar: Face á emergência energética que se vive no mundo em geral, com particular acuidade em Cabo Verde, como é que os investimentos do Estado nesse sector tem servido para dar maior autonomia energética ao país, criar oportunidades para o aparecimento de empresas, num sector que é claramente de futuro garantido, e desenvolver uma cultura e uma expertise nacional em eficiência no uso da energia e água.

Definitivamente é de perguntar se é necessário que o executivo da FAO em Cabo Verde fale da “ falta de informação sobre os volumes de produção, os preços, as necessidades de cada ilha” e do facto de “como não foi feito esse diagnóstico parece mais fácil importar frutas e verduras de outros países” para se ver o óbvio. Para se ver que investimentos em barragens, prospecção de água, sistemas de regas e outras obras no  mundo rural só têm sentido se se conseguir extrair benefícios. E benefício significa produção, significa acesso a mercados, significa vendas. 

Investir em S. Antão e manter o embargo dos produtos agrícolas é arcar com custos sem praticamente quaisquer benefícios. Os persistentes índices de pobreza da ilha são elucidativos a esse respeito. Também, investir e não desenvolver circuitos de comercialização, que faça do País todo, e particularmente as cidades e os centros turísticos, um mercado potencial para a produção de cada localidade de Cabo Verde, só tem o efeito de aprofundar o desânimo das populações. É mais uma esperança gorada acompanhada dos custos inerentes: custos pessoais, materiais e de fibra de uma sociedade.  

Um outro custo que sistematicamente vem se confundindo com benefício é a formação profissional. Para o Governo formação profissional é a bengala de que se socorre para dizer que está a fazer algo para diminuir drasticamente o desemprego. Só que raramente  se disponibiliza para dizer quantos formandos realmente conseguiram emprego. Ou como é que a produtividade do trabalho se alterou com entrada de pessoas formadas no mercado. E como é que, com a regulação da entrada nas profissões, se diminuiu o informal, se melhorou a qualidade e se fez os salários evoluírem de acordo com a produtividade.

Ouve-se que está a montar mais cursos. Fica-se com a impressão de que algo não vai bem quando se publicita outros projectos para microfinanciar os formandos. Aparentemente, não conseguiram emprego e o Estado procura  transforma-los em empresários. Ou seja, os custos de formação não resultaram em benefícios significativos para as pessoas nem para a economia. Face a isso a resposta do Estado é mais custos, mas agora em forma de crédito. É a vitória do surrealismo, mas há quem ganhe no processo, na sua montagem.

Por tudo isso é evidente que, para manter em perspectiva a complexidade de objectivos pretendidos nos investimentos públicos e evitar desperdícios e desvios do interesse público, deve-se garantir a transparência do processo. O parlamento e os partidos de Oposição têm um papel central em assegurar-se de que o governo é, a todo instante, accountable pelos actos que pratica.

A tão propalada credibilidade do País depende essencialmente da percepção no exterior e nas organizações internacionais de como o Poder é controlado. De como o processo decisório está constrangido a seguir a legalidade e está sujeito à sindicância permanente da oposição e da sociedade.

Por isso, trabalha contra a credibilidade externa de Cabo Verde não é quem questiona e fiscaliza os actos do Governo. E não interessa muito como nos específicos apresenta o seu caso. Interessa essencialmente que o pode fazer, e sem restrições. A forma e a efectividade das acções são internamente avaliadas pelo eleitorado.

Observadores no exterior não entram na política local. Avaliam o grau de fiabilidade do País a partir da forma como o Poder lida com os limites instituídos. È como se fizessem uso de um velho adágio, glosado: diz-me como tratas as minorias e a oposição e dir-te-ei quem és.

De todo esse exercício o fundamental é que o País ganhe. Que não fique sobrecarregado com dividas internas e externas. Nem se coloque eternamente na dependência da generosidade, duvidosa às vezes, dos outros. Pelo contrário, que crie condições para a prosperidade de todos.