domingo, janeiro 24, 2010

Fuga à responsabilidade?

Nas últimas semanas, autoridades e sociedade caboverdianas acordaram repentinamente para a violência juvenil. Na sequência de alguns crimes mais mediáticos, indivíduos, famílias e instituições lançaram-se numa espécie de catarse introspectiva à procura de razões pelo que vem acontecendo na cidade da Praia e noutros centros urbanos. O Chefe do Governo, confessou surpresa perante o fenómeno e rapidamente prestou-se a oferecer pistas para o enquadramento da questão. Em entrevista citada pela Inforpress, e registada no portal do governo, o Primeiro Ministro afirmou que “que a sociedade cabo-verdiana está excessivamente partidarizada e que o discurso dos partidos e dos políticos, pela sua agressividade, têm contribuído para aumentar o nível da violência na sociedade cabo-verdiana”. Questionado sobre o papel do Governo, o PM apressou-se a dizer que o executivo tem cumprido o seu papel, mas cabe às outras entidades (…) assumir as suas responsabilidades no combate à violência. Reacção típica! Sempre que o Governo é confrontado com algum problema liga a ficha da desresponsabilização. Aponta o dedo a outros, jura que está a fazer o seu melhor e exige que os governados assumam as suas responsabilidades. Aconteceu recentemente com a epidemia da dengue. Enquanto autoridade máxima da saúde esquivou-se em assumir a responsabilidade pela não tomada de medidas atempadas para a evitar. Isso não o impediu de culpar as câmaras municipais, ao mesmo tempo que fazia apelo a não politização da questão como forma de calar críticas à sua actuação. Comportamento similar tivera perante manifestações de insegurança da população. Nesse caso os culpados eram os “excessos garantísticos da Constituição da República” ou os tribunais e juízes que se recusavam a cooperar com a polícia na luta contra o crime. Um combate, segundo um governante, que não se compadecia com questões sebentárias do tempo da universidade. Nesse mesmo comprimento de onda, as culpas pelo elevado desemprego entre os jovens já os foi atribuído – não querem trabalhar - assim como também se procurou responsabilizar o sector privado nacional e os empresários pela insuficiente dinâmica do País. O Governo salva a si próprio, repetindo incansavelmente que já fez a sua parte e que não tem nada que assumir se os resultados da governação ficarem aquém do prometido. Nas acções de desresponsabilização do Governo um alvo é repetidamente fustigado: o pluralismo. Atribui-se aos partidos e aos políticos a responsabilidade pela crispação, a violência e a intolerância. Na entrevista, citada pelo Inforpress, o Primeiro Ministro defendeu que é preciso uma avaliação das atitudes, dos discursos e dos actos dos políticos, no sentido de se poder “valorizar mais a vivência democrática” no país, combatendo a “violência que existe na sociedade cabo-verdiana”. O problema é que quem faz essas declarações é um político e é o presidente do partido no Poder. É evidente que não está a fazer mea culpa ou a autoflagelar-se. O mais provável é que esteja engajado numa ofensiva contra outros partidos, contra outras opiniões e contra o direito de se exigir responsabilidade aos governantes. Só assim se compreende a mensagem passada que se o governo se submeter ao contraditório e a opiniões contrárias, a sociedade corre o risco de ver aumentada a violência no seu seio. O Artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelece que a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública, Mas que (…) essa força pública é instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada. Ou seja, ao Estado dá-se o monopólio de violência. Mas essa violência só é legítima na defesa dos direitos dos indivíduos e enquanto servir o interesse geral. O Estado caboverdeano é um Estado fraco. Mas não é fraco por falta de recursos para o exercício da autoridade. Tem recursos suficientes. O que lhe parece escapar é legitimidade completa aos olhos da sociedade. A legitimidade que deriva da percepção geral de que o exercício do Poder serve, a todo o momento, o interesse público. E que está a ser ganha todos os dias a luta contra as tentações de se deixar instrumentalizar para atingir objectivos partidários, de se omitir ou de se intrometer em vários sectores para salvaguardar interesses particulares e de deixar-se arrastar para o fundo num mar de ineficiência e de ineficácia, sob o peso de nomeações políticas, de ambições incontroláveis e da incompetência decorrente da reivindicação de legitimidades outras, que não a democrática. Quando, como no caso grave do Zimbabwe de Robert Mugabe, não se vence diariamente essa batalha o resultado é a desgovernação, a crispação extrema da política e a violência social generalizada. No caso extremo da Somália tem-se um Estado falhado. O artigo 1º da nossa Constituição é peremptório quanto ao que é essencial para a perenidade da comunidade de homens livres: “o fundamento da Paz e da Justiça encontra-se no respeito pela dignidade humana e no reconhecimento da inviolabilidade e da inalienabilidade dos direitos do Homem”. Por tudo isso vê-se que é de extrema gravidade sugerir que, de alguma forma, a violência juvenil no País resulta da aplicação dos princípios que consubstanciam e norteiam a existência do Estado de direito democrático, como o pluralismo, a subordinação do Estado á Constituição e às leis e a liberdade de expressão e de informação. O Estado tem a obrigação central de assegurar a ordem e a tranquilidade públicas para poder garantir a Liberdade. Não pode passar a ideia de estar a perder batalhas contra o crime, omitindo-se no que obviamente são intervenções preventivas incontornáveis. Em três áreas, particularmente, o Estado caboverdeano vem pecando ao longo dos anos por falta de políticas consequentes: consumo da droga, consumo do álcool e o comércio de armas: Na droga, não confrontou o problema da cocaína barata, chamada popularmente de pedra, mas conhecida em todo o mundo como crack, e a sua ligação como os casso bodi. Os efeitos do crack são efémeros, mas fortes e altamente viciantes. Duas experiências com a droga podem ser suficientes para se tornar num tóxico-dependente, vendendo tudo, e mais, para alimentar o vício. A não assunção do que noutros países se chamou de epidemia de crack foi grave. Famílias ficaram por saber o que de facto afligia os filhos. A comunicação social tardou em passar a mensagem que se consumia uma outra droga, mais perigosa do que a padjinha. Redes de receptadores consolidaram-se nas ilhas para comercializar o produto das vendas de mercadorias roubadas. O grogue, mau e barato, disfarçado em caipirinhas, pontches, licores e estomperódes, tornou-se bebida de eleição dos jovens nos meios urbanos e também rurais do País. Disponível para consumo em mercearias, bares e balaios de vendedeiras de rua, e preferido por muitos pelos seus efeitos intoxicantes imediatos, o grogue falsificado tem conhecido um boom extraordinário. A produção cresceu muito e, na ausência de um esforço dirigido do Estado para pôr cobro à situação, também aumentaram exponencialmente os prejuízos causados. Os produtores do bom grogue sucumbiram no combate desigual, assim como também perderam o Tesouro, em receitas não cobradas, e o País, em exportações não realizadas, por incapacidade de colocar em mercados externos um produto de qualidade garantida. O alcoolismo, engendrado pela ausência de regulação, tem, por outro lado, provocado a sobrecarga dos serviços de saúde, a destruição de famílias, o corte a meio de vidas e carreiras e a diminuição da produtividade nacional em horas de trabalho perdidas. Certamente que não é estranho às explosões de violência juvenil o facto de se tolerar o comércio e o consumo ilegais de produtos, crack e mau grogue, indutores de alterações de comportamento. Particularmente, quando as leis e as autoridades são permissivas em relação ao acesso e porte de armas e é mínima a pressão social ou de grupo para não se andar armado e não ameaçar outros, brandindo armas. A experiência dos outros mostra que a proliferação de armas na população aumenta a probabilidade do seu uso para resolver conflitos pessoais e cometer crimes. A Polícia Nacional, segundo estatísticas oficiais, até 2008, apreendeu 1.961 armas (1.283 pistolas, 488 revólveres e 190 espingardas), sendo 8% de fabrico artesanal, os chamados boca bedjo. E pode ser só a ponta do icebergue. O Estado caboverdiano precisa passar à ofensiva e cobrir os flancos que tem deixado abertos no domínio da droga, do grogue falso e do porte de armas. É urgente que o governo faça avançar leis para controlar a venda, porte e uso de armas de fogo e de outros instrumentos letais. A questão do grogue tem que ser resolvida a bem da economia rural de muitas regiões do país, a começar pela ilha de S.Antão, mas com ganhos globais para os proprietários de cana, os produtores de grogue, os exportadores, e os consumidores. Na luta contra a droga não se pode descurar as interligações internacionais do tráfico mas deve-se procurar transformar as desvantagens da insularidade em vantagens, imprimindo uma maior flexibilidade à actuação das forças da ordem. Para o sucesso no combate ao crime e á violência não pode haver dúvidas sobre o seguinte: O pluralismo, a tolerância e a vivência democrática dependem muito da subordinação, sem ambiguidades, do Estado à Constituição e às Leis. E capital social necessário para controlar paixões, introduzir propósito alargado nas actuações individuais e justificar sistemas de compensação baseado no mérito emerge naturalmente do exercício da cidadania plena e da aquisição de cultura cívica. A nossa sociedade tem tensões de origem múltipla e a nossa esperança em as resolver reside em aprofundarmos cada vez mais a institucionalização da nossa democracia. Não em a denegrir e minar com tentativas de fuga à responsabilidade.

domingo, janeiro 10, 2010

Quando impera o “expedientismo”

No Boletim Oficial de 28 de Dezembro último, foram publicadas duas Resoluções do Governo, concernentes à problemática da energia, que autorizam a Ministra da Economia a negociar e a contratualizar com empresas portuguesas, dispensando concursos, público e limitado, e a adjudicar obras, em ajustes directos A primeira, a Resolução nº 43/2009, justifica a autorização com a necessidade urgente de elaborar e concretizar um plano energético renovável para o arquipélago de Cabo Verde, um Plano de Investimentos em infra-estruturas que viabilize as metas desse plano, um Atlas das fontes de energia renováveis, um quadro legal que viabilize e apoie esse plano. A segunda, a Resolução nº 44/2009, reage à possibilidade de uma situação de emergência energética nas ilhas do Sal e de Santiago a partir do verão de 2010. Dois dias depois da publicação das resoluções, a Ministra assinou com a empresa Tecnologia, Representações e Comércio (TRC) a instalação imediata de dois grupos térmicos de produção de energia como futuro back up de duas centrais de aproveitamento da energia solar, ainda por construir. Uma semana depois, no dia 5 de Janeiro, contratualizou com a empresa GeSto Energia, S.A do Grupo Martifer a feitura do plano para as energias renováveis e com a Martifer Solar a instalação de duas centrais fotovoltaicas. As múltiplas incongruências no processo, designadamente o facto de se optar primeiro e fazer o plano depois, ou então autorizar a negociação hoje e assinar contratos amanhã, justificam-se, na óptica do Governo. O dinheiro existe. Está disponível uma linha de crédito de 100 milhões de euros, avalizada por Portugal num quadro de apoio às suas exportações de bens e serviços. E se, de acordo com o preâmbulo da segunda resolução, só há uma única empresa portuguesa no sector “escolhido”, então, a “negociação” só pode ser instantânea. A dúvida é se Cabo Verde ganha com tais processos. Porque o País aumenta a sua dívida pública e obriga-se a soluções sem estudos prévios e fora de um quadro de políticas públicas adequadamente definidas. Por outro lado, dificilmente fica melhor preparado para construir o seu próprio sector exportador, quando está demasiado preocupado em ir ao encontro das necessidades dos outros em exportar. 2010 é um ano pré-eleitoral. O Governo, certamente, não olhará a meios para evitar que se retire todas as ilações de uma década de políticas desastrosas no sector de energia. Não quer que se lembre como manipulou as tarifas para a sua vantagem política, descapitalizando a Electra e quebrando a confiança de parceiros estratégicos. Ou como, por muito tempo, esquivou-se a assumir a responsabilidade pelo que se passava na empresa, não obstante ter negociado e assinado o contrato de concessão com Electra, acompanhado do plano de investimentos e do acordo tarifário. Para depois, em sucessivos actos, simultaneamente arrogantes e ingénuos, forçar a saída dos parceiros e deixá-los ir, ilibados de quaisquer responsabilidades na mobilização de 250 milhões de dólares previstos para o financiamento da Electra em 15 anos. Os parceiros ficaram livres até da responsabilidade pela amortização dos primeiros investimentos no valor de 70 milhões feitos sob a sua direcção. A emissão de obrigações pela Electra, em 2007, avalizada pelo Estado, não trouxe dinheiro fresco para o investimento na empresa. Serviu para o pagamento dos parceiros. Contraía-se uma dívida para pagar outra. As dificuldades conhecidas da empresa fazem do pagamento dos juros das obrigações um pesadelo e da restituição, em 2012, do capital da primeira série de obrigações, no valor de 1 milhão e 142 mil contos, uma missão quase impossível. Cabe ao Estado, enquanto avalista, assumir, em caso de não cumprimento. O problema é como reflectir isso no Orçamento, precisamente quando o défice orçamental se aprofunda, a dívida externa aumenta e as receitas tendem a decrescer. O episódio recente de entrada do INPS no capital da Electra dá indícios de como o Governo, provavelmente, vem contornando o problema. O INPS acode a ELECTRA em mais de 500 mil contos para fazer face a necessidades urgentes. No momento seguinte, perante a impossibilidade da empresa em pagar e do Estado em entrar com esse montante para não agravar o défice, o empréstimo é transformado em acções. O instituto de segurança social vê-se assim, constrangido a ser accionista, mesmo que o não confesse e recorra à possibilidade de rentabilidade futura da Electra para se justificar, quando tal depende de investimentos vultuosos por fazer e de garantias seguras, que não tem, da não manipulação política das tarifas. Entretanto, torna-se co-responsável por uma empresa que cada vez se atola em dívidas múltiplas à medida que, de expediente em expediente, o Governo procura driblar os problemas sérios da falta de investimento e de uma política energética global para o país. Há um mês atrás decidiu-se pelo break up da Electra em várias empresas. Segundo o comunicado do Conselho de Ministros de 26 de Novembro as novas empresas continuarão nas áreas de produção, transporte, distribuição e comercialização de electricidade e como concessionárias da rede de transporte e distribuição de electricidade e água. Com essa medida não se vê qual a alteração profunda de filosofia sobre o que actualmente existe, considerando que o País é um arquipélago e a descontinuidade territorial já faz a empresa funcionar como um aglomerado de entidades autónomas. A par com os custos acrescidos de gestão, a solução encontrada, aparentemente só abre o caminho para entrada de capitais privados nas ilhas de maior rentabilidade, deixando no sufoco, ou a mercê das disponibilidades públicas, as ilhas como menor potencial. Com tal projecto de reestruturação dá-se impressão de movimento quando o mais provável é que se está simplesmente a acomodar soluções já existentes na ilha do Sal e na Boavista e outras previstas no interior de Santiago. Uma abordagem diferente, em sintonia com o que se passa no mundo com a criação dos chamados smart grid, teria a rede eléctrica no seu centro. A rede é do domínio público e constitui um monopólio natural. Separando o sector da produção ter-se-ia uma empresa de transporte e distribuição de energia cujo negócio central seria comprar energia o mais barato possível, garantir acesso a produtores com base em energia eólica e solar, eliminar as ineficiências, perdas e roubos, e chegar ao maior número de consumidores. Tal empresa desenvolveria uma outra cultural empresarial, virada para a satisfação dos clientes e a contenção dos custos de electricidade, distinta da actual da Electra que é preponderantemente uma cultura de produtora de energia. O Governo, porém, parece preferir saltar de expediente em expediente e seguir o caminho de maior facilidade. Por isso é que governantes no sector já deram voz a toda espécie de soluções para a energia. Até a energia nuclear já teve o seu momento. Para além da energia eólica, que estudos diversos apontam um vasto potencial em Cabo Verde, têm-se referido a energia das ondas do mar, a geotermia. Agora de repente, via as Resoluções do Governo referidas, sabe-se que o interesse imediato vai para a energia solar e que duas centrais fotovoltaicas no total de 5 Megawatts vão ser adquiridos de Portugal. É interessante notar que Portugal neste sector está, relativamente, no início, enquanto que em relação à energia eólica (15,03% da electricidade), segundo o jornal Público de 6 de Janeiro, é o segundo país do mundo, logo atrás da Dinamarca (mais de 20%). Fica-se numa espécie de deriva no sector energético quando não se trabalha no quadro de uma estratégia que consubstancia uma visão compreensiva para o sector, defina as prioridades e estabeleça a sequência de acções num plano de execução. O resultado é que entram a condicionar as decisões, para além das restrições específicas das linhas de crédito, interesses outros designadamente os de apresentação rápida de obras em tempo de eleições. Sem falar de eventuais constrangimentos ainda existentes nas relações com a EDP, empresa que hoje se perfila como a quarta mundial em energia eólica. A leveza como se assume medidas no sector é, ainda, ilustrada pela forma como se procurou sensibilizar no sentido de poupança de energia. As acções centraram-se na iluminação e reduziram-se essencialmente a esses exercícios públicos de entrega de lâmpadas de baixo consumo às populações, presididos por ministros e outros putativos doadores. Um esforço no sentido de criação de incentivos para, nomeadamente promover a utilização de electrodomésticos de maior eficiência energética e substituir as soluções actuais de aquecimento de água por soluções solares passivas, criando vários postos de trabalho no processo e aumentando a renda familiar disponível, ficam em banho-maria. O resultado é que, em vez de políticas públicas claras, tem-se um manto de retalhos, cosidos ad hoc, onde reina a falta de transparência e interesses diversos se entrincheiram, elevando os custos e pondo em questão os objectivos pretendidos. Prejudicada fica também a própria forma como a população vê a actuação dos governantes e dos políticos em geral, quando, recorrentemente, soluções apresentadas como definitivas para os problemas rapidamente se revelam insuficientes ou insustentáveis a prazo. O cinismo quanto à actuação dos poderes públicos agrava-se ainda mais quando há omissões no discurso oficial como aconteceu recentemente em relação ao aeroporto de S.Vicente. Só depois da inauguração da capacidade do aeroporto em receber voos internacionais é que se veio a revelar que afinal tais operações só podem ser diurnas. A reacção quase de resignação perante mais uma expectativa frustrada - mesmo que se diga que não foi alimentada, mas também não foi contrariada - não deixa de ser debilitante para o espírito da combate, de perseverança e de crença num futuro melhor que se quer permanente nas pessoas. É o preço que se paga quando as autoridades insistem no “expedientismo”. Leva inevitavelmente a uma relação entre governantes e governados menos do que a honesta, prejudica a transparência e, em termos de resultados, os custos, muitas vezes, acabam por ser maiores do que os benefícios.

terça-feira, dezembro 29, 2009

Em prol do pluralismo

A sociedade caboverdeana ainda lida mal com o pluralismo. O exercício do contraditório e o confronto de ideias são, muitas vezes, tidos como perda de tempo. Consenso parece o nirvana nas relações na esfera pública. È celebrado mesmo significando na maior parte dos casos o desejo de uma parte em submeter a outra em nome de interesses profundos da Nação com os quais diz estar indissoluvelmente ligados. Encontros de socialização, organizado pelos poderes públicos e invariavelmente iniciados e encerrados por membros do Governo, tornaram-se no modelo preferido de interacção com a sociedade. Na generalidade dos casos não passam de um ritual onde se simula a discussão pública de matérias, já aprovadas pelo Governo. As dificuldades com o pluralismo advêm, em boa medida, do facto de, ainda, ser visto, em sectores poderosos de influência política e ideológica, como uma espécie de dádiva à sociedade. Diz-se que resultou de uma decisão da abertura política. A insistência nesse ponto responde à preocupação de justificar o regime de partido único e os seus dirigentes. Segundo eles a decisão no sentido do pluralismo só foi possível quando a sociedade se mostrou pronta para isso, ao contrário do que aconteceu nos primeiros 15 anos. Um dos problemas com esse argumento é que apresenta o pluralismo como um processo gradual. Daí, é um passo para se cair na tentação de o limitar, consoante o grau de maturação sócio-político que se presume existir no momento, de o dosear, em nome do pragmatismo na tomada de decisões, e, mesmo, de o sacrificar, pontualmente, por razões de Estado. Prejudica o aprofundamento do pluralismo a incapacidade de extrair na plenitude o sentido da sua consagração na Constituição de 1992. Pluralismo não é um ganho, muito menos, uma dádiva. Resulta directamente do respeito devido à dignidade humana de cada indivíduo. Suporta-se no reconhecimento da inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos do Homem como fundamento da comunidade humana, da paz e da justiça, assim como está estabelecido no artigo 1º, nº1 da Constituição. Realiza-se, quando se aceita que há um limite a partir do qual nenhuma autoridade, muito menos a autoridade política do Estado, deve procurar coagir a consciência do indivíduo para o levar a ser o que não é e o que não quer ser. Regimes totalitários distinguem-se pela sua profunda negação do pluralismo. E definem-se pela disposição em ir para além desse limiar e a partir daí encetar a construção do homem novo. A derrota estrondosa desses regimes, simbolizada na Queda do Muro de Berlim, revelou o quão a natureza humana e o desejo de liberdade são obstáculos intransponíveis nas tentativas de engenharia do homem novo. A desumanidade desses projectos ficou patente nas crueldades, nas humilhações e na miséria que fizeram passar largas centenas de milhões de pessoas, por todo o mundo, em fomes provocadas, massacres, prisões, torturas e campos de reeducação. O totalitarismo ficou desacreditado mas isso não significa que impulsos de natureza totalitária deixaram de se manifestar. Isso é visível em muitos dos ataques ao sistema de partidos, ao parlamento e a órgãos de comunicação social. Como bem disse o grande diplomata americano George Kennan, o busílis da questão é que há um bocadinho de totalitário enterrado algures, lá muito para o fundo, em todos e cada um de nós. Por isso mesmo é essencial manter uma democracia funcional, de respeito pelos direitos fundamentais e dotado de um Estado cumpridor da Constituição e das Leis. A centralidade da democracia em manter os checks and balances (pesos e contrapesos) nas manifestações da natureza humana é realçada pelo filósofo Reinhold Niebuhr quando diz: “é o desejo de justiça do Homem que torna a democracia possível, mas é a tendência do Homem para criar injustiças que faz a democracia indispensável. O contencioso à volta das origens do pluralismo em Cabo Verde dificulta a eliminação de valores e práticas, particularmente na actuação de instituições do Estado, que não o favorecem. Um exemplo recente é a comemoração do dia da comunicação social em Cabo Verde. Devia saltar à vista imediatamente que a tomada da Rádio Barlavento no dia 11 de Dezembro de 1974 não seria a melhor data para se celebrar a liberdade de expressão, a liberdade de informação e a garantia de expressão e de confronto de ideias das diversas correntes de opinião nos meios de comunicação social do Estado. Essa data marcou o fim das rádios e jornais privados e o início da institucionalização da comunicação social a uma só voz. O processo de centralização numa rádio nacional única, então desencadeado, nem poupou a rádio Voz de S. Vicente, nascida nesse dia. Não existe uma sensibilidade crítica quanto ao limite do que é permitido ao Estado e aos seus dirigentes fazer sem ferir o direito das pessoas à sua consciência, às suas convicções e às suas ideias. É-se particularmente insensível quando se trata da juventude e da infância. A Constituição da República em vários artigos condiciona, firme e claramente, a relação do Estado com os jovens e as crianças. Assim o artigo 49º alínea c) proíbe o Estado de programar a educação e o ensino segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas. No artigo 81º nº 4 garante aos pais o direito e o dever de orientar e educar os filhos em conformidade com as suas opções fundamentais. No artigo 74º do direito dos jovens restringe o apoio do Estado aos jovens exclusivamente à realização dos objectivos constitucionais (desenvolvimento da personalidade, gosto pela criação livre, sentido do serviço à comunidade e integração em todos os planos da vida activa). E mesmo assim não deve ser nunca de forma directa mas em cooperação com organizações de pais e outras organizações, designadamente juvenis, como estabelece o nº 4 desse mesmo artigo. Essas restrições constitucionais, que claramente proíbem a influenciação politico ideológica das crianças e jovens, são basicamente ignoradas. Notícias, reportagens e imagens televisivas dão conta de encontros, palestras, aulas nos liceus em que crianças e adolescentes são compelidos a ouvir discursos de dirigentes políticos vestidos da autoridade do Estado. È evidente que o que está na Constituição é uma reacção forte a toda a instrumentalização de crianças e jovens nas organizações de massa verificada durante o regime de partido único. Mas também é uma acção defensiva para garantir o pluralismo na sociedade evitando que futuros cidadãos sejam arregimentados em fase ainda frágil e permeável por forças poderosas alcandoradas no aparelho do Estado. O que aconteceu com o dia das crianças é elucidativo em vários aspectos. Até 2004 era festejado em todas nas escolas no 1º de Junho. A partir do momento em que voltou a ser feriado, as notícias do dia convergem invariavelmente para encontros de grupos de crianças com o Primeiro Ministro ou com o Presidente da República. Uma outra ameaça ao pluralismo é intervenção excessiva do Estado na divulgação do trabalho governamental. O Governo tem miríades de oportunidades no parlamento, em forum, workshops, cerimónias de lançamento de primeira pedra, visitas, inaugurações e entrevistas para transmitir a sua mensagem e divulgar o trabalho governamental com toda a transparência. Parece que não lhe chega. Resolveu montar uma máquina específica para fazer isso, mas sem qualquer restrição, mediação ou contraditório. Ou seja, resolveu forjar uma máquina de propaganda. Para isso pôs no Orçamento de Investimento o montante de 30 mil contos, acrescido de mais 3 mil contos em comunicação e imagem. Fica-se com uma ideia das prioridades do governo quando se compara esse montante com os 43 mil destinados a Cabo Verde Investimentos. Ou o trabalho, supostamente essencial para economia que é a atraccão de investimentos e a criação de novos empregos, não merece mais ou, então, para o Governo, o trabalho de propaganda está acima de outras considerações de momento. Por isso, também, é que não tem rebuços em destinar à propaganda 2 mil contos mais do que os 31 mil contos que o Estado transferia aos municípios para a actividade de Promoção Social. É evidente que a liberdade de informar, de ser informado e de acesso à informação é seriamente posto em causa quando o Governo torna-se excessivamente agressivo na sua comunicação com a sociedade. A comunicação social em Cabo Verde é frágil. Os três jornais são semanários e têm residência na capital. A informação radiofónica e televisiva é essencialmente feita através de órgãos públicos. Em tal ambiente, são inevitáveis os estragos quando o governo usa fundos públicos fabulosos para, em programas sofisticados de televisão, passar o seu ponto de vista do impacto das suas políticas, sem qualquer hipótese de competição de outras correntes de opinião. Sofre o pluralismo, inibe-se o cidadão que se sente coagido a seguir as posições do governo e mitiga-se a democracia com a proclamação de que as obras são patrióticas e portanto não sujeitas a críticas. No fim do dia, acaba-se sempre por sacrificar a verdade e em pôr em causa a relação honesta que os governantes devem ter com o País. Puralismo e tolerância andam de mãos juntas. Não há uma sem outra. Enfraquecendo o pluralismo, a intolerância aumenta, a crispação e a violência política atingem outros patamares. Nesta época de Natal que se quer de Paz e de Justiça é fundamental que todos se lembrem do dito: ninguém é inocente mesmo quando se acredita que tudo o que está a ser feito é com a melhor das intenções. Poder corrompe e a única forma de conter os seus nefastos efeitos é através da evolução gradual das instituições, com bem referiu o presidente John Kennedy. Essa evolução só é possível com pluralismo. O próximo ano será do recrudescer da agitação pré-eleitoral, que entrou antes de tempo com o surgimento da crise. Só será um ano proveitoso se se souber manter um ambiente plural gerador de tolerância para aceitar a diversidade de posições e interesses e para escutar diferenças de opinião. Um novo rumo irá ser traçado para o País. É essencial que os cidadãos não se sintam constrangidos na discussão das propostas e em fazer livremente as suas escolhas.

quinta-feira, dezembro 17, 2009

Cabo Verde 1989-90: Cai o 1º dominó em Africa

Comemorou-se no passado dia 9 de Novembro o décimo quinto aniversário da Queda do Muro de Berlim. As imagens desse extraordinário dia ocuparam mais uma vez os ecrãs das televisões em todo o mundo. Milhões reviveram os momentos por que passaram no seu próprio país até conseguirem libertar-se do comunismo. Muitos outros milhões lembraram-se como a queda do Muro lhes trouxe esperança. Como regimes totalitários em todos os continentes de repente deixaram de meter medo e multidões derramaram-se nas ruas clamando pela Liberdade, pela Democracia e pelo direito a uma vida melhor, mais próspera, mais justa. Ao longo do 1989, nos então satélites da União Soviética, a revolução democrática já se tinha posto em movimento. Na Polónia, Lech Walesa, o líder do movimento sindical Solidariedade desde 1980, já tinha causado brechas suficientes no regime, abrindo caminho para um primeiro governo não comunista, em Setembro. Hungria, nos fins de Outubro, precipitava-se rapidamente em direcção ao multipartidarismo. Quase duas semanas depois da queda do Muro de Berlim, em Novembro, Checoslováquia viveu a sua Revolução de Veludo e o fim do jugo soviético. Na Roménia a experimentação comunista iria terminar de forma sangrenta com o fuzilamento de Ceaucescu e da sua mulher no dia de Natal. O ano 1990 arrancou com as imagens macabras dos Ceaucescu a assombrar todos os ditadores por esse mundo fora. Em Fevereiro, na União Soviética, o partido comunista deixou cair da Constituição o artigo 6º que o consagrava como força e guia da sociedade e do Estado. Dias depois, em Cabo Verde, o então partido único, o PAICV anunciava a abertura política. Num comunicado emitido a 19 de Fevereiro predispôs-se a abandonar a sua condição de força dirigente da sociedade e do Estado, o célebre artigo quarto, numa revisão constitucional a realizar-se na legislatura pós 1991. Eleições pluripartidárias só seriam realizadas em 1995. Samuel Huntington, o grande cientista político americano, considerou as democratizações em cadeia que se verificaram na sequência da queda do Muro de Berlim como parte de Uma Terceira Vaga de Democracia, que iniciara 25 anos antes com o 25 de Abril em Portugal. Cabo Verde falhou em apanhar a onda democrática de 1974. Por isso, em 1990, era um dos dominós em queda, no quadro do que Ken Jowit, recorrendo á analogia dos dinossauros, chamou da Extinção Leninista, ou seja, o desaparecimento repentino, acelerado e compreensivo de regimes leninistas em todo o mundo. A assinatura do Acordo de Independência de Cabo Verde a 19 de Dezembro de 1974 culminou acontecimentos, verificados no arquipélago poucos meses antes, que serviram essencialmente para entregar os destinos do país nas mãos de um único partido, o PAIGC. Uma cumplicidade tinha-se desenvolvido entre a cúpula desse partido e elementos chaves do Movimento das Forças Armadas (MFA), próximas do partido comunista português. Na sequência da denúncia de uma intentona contra os dirigentes do PAIGC, nunca provada, desencadeou-se, com a ajuda da tropa portuguesa, um movimento de supressão da oposição, da liberdade de expressão e do pluralismo. As forças políticas, UPICV (União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde) e UDC (União Democrática Caboverdeana) foram perseguidas e os seus dirigentes presos, enviados para o Campo de Tarrafal e posteriormente levados para o exílio em Portugal. As rádios calaram-se com a tomada da Rádio Barlavento em S.Vicente a 9 de Dezembro, passando a partir daí a transmitir a única voz do PAIGC. Para o Dr Almeida Santos, o negociador –mor da descolonização portuguesa e um dos signatários do Acordo, em entrevista concedida ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, tudo se passou da seguinte forma:(…) os militares fizeram pressão para que houvesse descolonização rápida. Também houve um ultimato de lá para cá, a dar cinco ou oito dias para o Governo português entregar o poder ao PAIGC, sob pena de entregarem eles lá. (…) Chamei o Pedro Pires. Pedi-lhe que aceitasse uma consulta popular. Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. Ganham a legitimação democrática do novo poder. Nunca mais será discutido. Se você o recebe da mão de militares, toda a vida será discutido. (…) Assinámos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92 por cento. Elaboraram uma Constituição. Acabou. Salvámos a face". Com o Acordo consagrou-se o desvio dos caminhos da democratização iniciado pelo 25 de Abril. Enquanto Portugal ganharia uma Constituição liberal e democrática em 1976, Cabo Verde ficaria com um regime contrário ao exercício das liberdades e pouco eficaz em potenciar oportunidades e recursos disponibilizados para o desenvolvimento. Treze anos depois, em 1988, a cúpula do regime deparava-se com o fracasso das suas políticas económicas e com os sinais dos tempos evidentes nas políticas de perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência) de Mikhail Gorbatchev na União Soviética. O III Congresso do partido, em 1988, com o lema um mundo em transformação, devia ser de fuga em frente. Perante a perspectiva de 40% de desemprego nas zonas urbanas num futuro próximo, expressa no Ante Projecto das Teses ao III congresso, pendia-se finalmente pela extroversão económica e pela atracção do investimento externo. Em resposta à pressão crescente para o exercício das liberdades ensaiava-se a introdução do conceito de sociedade civil, a par com a insistência nas organizações de massas. Mas, passado o congresso, tudo acabou por ficar, essencialmente, por aí: no campo das boas intenções. O partido voltou a insistir nos seus princípios leninistas de partido de vanguarda e de fidelidade ao centralismo democrático. A abertura económica viu-se bloqueada nas disputas ideológicas internas, reflectindo a desconfiança contra o sector privado nacional e o investimento directo estrangeiro. A ideia da sociedade civil, de acordo com João Pereira Silva, num artigo do jornal Tribuna de Março de 1990 ,“a questão política mais importante,... a questão da necessidade da existência de uma sociedade civil livremente organizada, [foi] ...resolvida por uma votação que cortou o debate a meio”. Uma segunda tentativa de fuga em frente viria verificar-se com a abertura política de 1990, sob a pressão irresistível de destruição do ecosistema que até ali tinha permitido a existência de regimes totalitários. Tarde demais. A dinâmica local e global era já outra e o regime iria cair a 13 de Janeiro de 1991. O facto de Cabo Verde esperar quinze anos para aderir à Terceira Vaga da democracia não custou ao País só em liberdades individuais. Também manteve incipiente a instituição de um Estado moderno e de Direito e impediu a constituição de um stock adequado de capital social e humano, hoje reconhecido como indispensável a um crescimento económico acelerado e à uma luta efectiva contra o desemprego estrutural. Países africanos como o Botswana e as ilhas Maurícias, que optaram por governos democráticos, um estado de Direito moderno e uma economia privada e de inserção dinâmica na economia mundial, deram saltos extraordinários. Dados oficiais coloca-os, hoje, respectivamente, nos 13000 e 12000 mil dólares per capita (PPP), enquanto Cabo Verde fica pelos 3400 dólares. Se se tiver em conta que, com a independência nacional, Bostswana partiu de uma base 80 dólares per capita e Cabo Verde de uma base de 200 dólares, vê-se o potencial de crescimento económico perdido. Poder absoluto, preconceitos ideológicos e falta de visão convergiram durante anos para atrasar o que podia ser uma evolução do País mais dinâmica, sustentada e abrangente. As sequelas desse atraso, não obstante as profundas reformas iniciadas a partir dos anos noventa, ainda se fazem sentir e constituem um extraordinário empecilho ao aproveitamento pleno das potencialidades do País e das oportunidades que recorrentemente aparecem. A Constituição da República, o contrato que une a comunidade de caboverdianos livres e obriga o Estado de Cabo Verde, os seus orgãos e os seus dirigentes, define como seus princípios básicos a soberania popular, o pluralismo de expressão e de organização política democrática e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais. A ética republicana exige que não se use a glorificação do passado como subterfúgio para imprimir uma nova vida a valores e princípios contrários à Constituição. Estão especialmente impedidos disso os titulares dos órgãos de soberania que juraram cumprir e fazer cumprir a Constituição. O passado deve ser visto à luz dos valores de hoje. Para que, quando evocado, a Nação se una, se engrandeça e se mobilize para construir o futuro de Liberdade e de prosperidade para todos.

domingo, novembro 29, 2009

Orçamento do Estado 2009 -discurso parlamentar

O Governo através da Sr Ministra de Finanças vem afirmando que o actual Orçamento do Estado é ambicioso e prudente. Na nossa opinião o que lhe falta em ambição sobra-lhe em imprudência. Compreende-se. É um orçamento que quer gerir expectativas e visa a sobrevivência política da actual maioria. Por isso, os fins justificam os meios. Ou como disse o Sr. Primeiro Ministro no ano eleitoral de 2005, é hora da chupeta.

A crise veio revelar que o Rei ia nu. As acções, omissões e teimosias do Governo já tinham desperdiçado oportunidades várias. Antes da crise já era evidente que o governo não iria cumprir a promessa da legislatura em fazer o país crescer a dois dígitos e baixar o desemprego para um dígito. Depois da crise temos este orçamento que insiste essencialmente nas mesmas políticas, com o agravante que agora endivida pesadamente o País para as aplicar.

A Sra. Ministra das Finanças compara favoravelmente a taxa de crescimento de Cabo Verde com a taxa de economias maduras com a dos Estados Unidos ou da União Europeia. Aliás com a generalidade dos países, com excepção da China e da Índia.

A falácia nesse raciocínio fica evidente quando se correlaciona taxa de crescimento e emprego. A América com a taxa de crescimento de 4, 5 % aproxima-se do pleno emprego. Enquanto que Cabo Verde com tal crescimento está longe do seu crescimento potencial e convive com desemprego a mais de 22%. Economias maduras crescem essencialmente com base na produtividade e na inovação, enquanto economias em desenvolvimento têm muito ainda a ganhar com a diminuição de custos de transacção e de contexto e com o aumento de eficiência dos seus mercados. Daí a disparidade das taxas de crescimento.

Crescimento está intimamente ligado ao modelo económico adoptado. O Governo insiste numa economia baseada no trinómio CONSUMO, AJUDA e IMPORTAÇÔES. Por isso o crescimento é raso, não se criam empregos suficientes e a pobreza não é reduzida. Com este orçamento, o governo mantém o modelo falhado, mas face à diminuição dos donativos mostra-se disposto a substituir AJUDA com DÍVIDA. Pior emenda que o soneto.

A Sra. Ministra de Finanças diz que os créditos são concessionais e há que os aproveitar. O problema é que só são concessionais na aparência. Têm taxas de juro baixas mas impõem condições custosas: restringem quem pode fazer as obras, onde se pode comprar bens e serviços e em quê se pode aplicar o crédito. Já avisava Adam Smith que “pessoas com a mesma actividade económica quando se encontram, inevitavelmente a conversa termina com uma conspiração contra o público ou então em alguma conivência para aumentar os preços”. Observadores vários põem em mais de trinta por cento o empolamento geral do custo das obras.

Mas há outros custos para o país. Custos a curto, médio e longo prazo. A curto prazo, perde-se no emprego que se podia ter gerado com uma outra gestão e uma outra escolha de prioridades para o uso do crédito. A médio prazo, Cabo Verde perde por não ter aproveitado uma oportunidade de infraestruturação para dar dimensão ao seu sector de construção civil. A longo prazo, sem empresas internacionalizadas e sem um sector de exportação activo, todos perdem com o sufoco das dívidas por pagar e com os custos de infraestruturas de racionalidade económica duvidosa ou marginal.

A Sra. Ministra das Finanças desafiou a Oposição a ir à Internet e ali encontrar imitadores das soluções de estímulo fiscal propostas. O problema é que todos dispensam tal originalidade que só tem sentido no quadro de uma economia com base em consumo, ajuda/dívida e importações. Para quem já viu que tem de crescer, e depressa, e de forma sustentável, o estímulo fiscal tem uma outra lógica. Vai para as empresas que criam emprego e incentiva o desenvolvimento de sectores de exportação de bens e serviços, sem descurar as necessidades dos mais vulneráveis em tempos de dificuldades.

Cabo Verde tem que abandonar o modelo CONSUMO, AJUDA/DÍVIDA e IMPORTAÇÕES e ir por um caminho que privilegie PRODUÇÃO, INOVAÇÃO E EXPORTAÇÕES. É o caminho certo para a solução rápida do emprego. Cabo Verde aprendeu isso quando arrancou com indústrias exportadoras e o desemprego baixou para os 17% em 2000. Recentemente voltou a confirma-lo com o Turismo. Mas como da outra vez a falta de visão deste Governo serviu para enfraquecer o sector exportador levando, primeiro, à perda de milhares de postos de trabalho na indústria e, mesmo antes da crise, à falta de dinâmica no turismo traduzida, designadamente, na baixa taxa de retorno dos turistas

O Orçamento do Estado ora apresentado peca ainda por falta de transparência designadamente no que respeita à relação com o sector empresarial do Estado (Electra, TACV, ASA, IFH) e o nível de risco com poderá incorrer a médio prazo,. A Sr. Ministra de Finanças, por exemplo refere-se a um subsídio de 100 mil contos á TACV como sendo a única intervenção financeira do Estado nessa empresa. Mas pergunta-se o que é o crédito de um milhão e mais de contos que a ASA vem concedendo á TACV, senão um subsídio do Estado disfarçado. Amanhã se a ASA tiver problemas será o Tesouro a acarretar com as consequências.

Como aconteceu aliás com a Electra. A empresa foi descapitalizada subsidiando o preço de energia e agua aos consumidores enquanto o Governo beneficiava das vantagens políticas de não alteração significativa dos preços mesmo após dois ou três aumentos do preço de combustível. O resultado viu-se na saída do parceiro estratégico, nos graves problemas no sector de energia e água que, ainda hoje, se debate com o problema de falta de investimento suficiente para suprir as necessidade do crescimento do país. O Governo há dias referiu-se aos 10 milhões de contos já investidos. A previsão no momento de privatização em 1999 era de 25 milhões contos em 15 anos. É evidente que se está muito aquém do que já se poderia ter feito com uma outra gestão que não a desastrosa feita por este Governo. Os custos disso tudo espalham-se por aí em produtividade perdida por falta de energia e em despesas não previstas na aquisição de grupos de geradores privados.

Concluindo, quero dizer que perante este orçamento e a insistência do Governo em políticas falhadas quem fica sem pernas para andar não são as críticas da oposição mas sim os milhares de caboverdianos no desemprego e que não vêm no trabalho temporário previsto a solução para os seus problemas.

domingo, novembro 08, 2009

A Crise, o Pós Crise e a Nova Atitude

O livro “A Crise, o pós Crise e a Nova atitude” é uma colectânea de textos escritos entre 2007 2 2009. O objectivo pretendido com a sua publicação é de contribuir para o debate sobre o futuro no momento em que ficou claro para todos que o País está a perder a luta contra o desemprego, a meio de omissões várias e de opções erradas. Fala da crise porque a crise marcou o fim de um período. Um período caracterizado pelo crédito fácil e pela expansão rápida do comércio internacional, e , por isso, cheio de oportunidades extraordinárias. O facto de ter chegado ao fim e a as oportunidades não terem sido aproveitadas devidamente obriga a pensar e a procurar saber o que falhou. Como é que num tempo de vacas gordas Cabo Verde não conseguiu diminuir o desemprego e crescer a níveis aceitáveis? . Como é que em vez de desemprego a menos 10%, como prometido no programa de governo de 2006, temos desemprego a mais 22%. Em vez de crescimento económico a dois dígitos, o País anda 5 %. Como é possível que os empreendimentos milionários, anunciados Governo, não se realizaram? O livro quer ser parte do debate necessário neste momento que é de viragem na economia mundial. Em muitos outros países debates similares estão a ser feitos. O mundo pós crise exige uma outra atitude. E é fundamental que se procure saber os contornos da nova atitude . Para daí, se encontrar os ingredientes certos que poderão trazer sucesso na luta contra o desemprego e permitirá o país crescer de forma sustentável e na liberdade. Vê-se pelos textos no livro que a forma de governar terá que mudar para que oportunidades não sejam desperdiçadas. Terá que mudar para que grande parte da população, e particularmente da população jovem, não perca esperança de ter rendimento próprio, derivado do seu trabalho. Terá que mudar para que as ilhas, todas elas, tenham dinâmica económica que lhes garanta voz , estabilidade social e demográfica, e protogonismo cultural para contribuírem para a diversidade na caboverdianidade e neutralizarem a ultracentralização no país. A relação Estado e economia tem que mudar. Governar não pode significar insistir numa relação controleira e parasitária da economia em que, de um lado, o Estado o emperra e, do outro, o Estado sufoca. Os cidadãos, as empresas não podem ficar sujeitos à ineficácia dos serviços do Estado, a começar pela morosidade da justiça. Perde-se, em direitos e em serviços não prestados com qualidade e em tempo útil. Conflitos não são dirimidos, nem direitos de propriedade e direitos contratuais ficam seguros. Quem governa deve assumir em pleno as responsabilidade de governação e sujeitar-se ao escrutínio de todos. E não meter-se num jogo de escondidas quando os problemas surgem ou fica claro as consequências de omissões graves. Quem, por exemplo, se responsabiliza pela não realização até agora de vários empreendimento de peso em S.Vicente. Ou o estado em que se encontra a ilha do Sal quanto ao saneamento, vias de acesso, e segurança ? quem não confrontou o problema das migrações entre as ilhas e não soube responder, em tempo próprio, aos problemas da habitação, de saúde pública, de fricções culturais e tensões inflacionistas? Quem geriu mal o sector de energia e água de obrigando o investidor a incluir nos seus cálculos a os custos do fornecimento instável desses factores? Quem não soube lidar com a imigração de tal forma que, segundo o documento do Governo sobre a Segurança, dos entre 15 a 20 mil imigrantes menos de 2 mil está legal no país e essa imigração é composta por gente sem qualificação profissional? Ouvindo o Governo, a culpa é de todos com excepção dele próprio. É culpa das empresas ,das câmaras e até dos jovens. Já se ouviu que eles não têm emprego é porque não querem. Este estado de coisas já deu no que deu. No excessivo desemprego e no crescimento económico abaixo do potencial. Há que mudar. Outros estão a fazê-lo por que sabem o mundo pós crise será uma realidade completamente diferente. E a prosperidade das nações dependerá de quem melhor souber adaptar-se aos desafios do que vêm aí. Deseja-se que o livro seja uma das muitas contribuições, a vir, espera-se, de todos os quadrantes, para uma assunção plena de uma nova atitude face ao mundo e às exigências de desenvolvimento de Cabo Verde.

sexta-feira, novembro 06, 2009

Ser ou não ser ilha

Ir para uma ilha ou morar numa ilha significa entregar-se a uma vivência com limitações mas também com gratificações. A ilha, separada do continente, não poucas vezes, é remota, isolada e de difícil acesso. Mas a presença constante do mar ameniza o clima e dá tranquilidade face a ameaças exteriores. A pequenez territorial e o isolamento vaticinam um ecossistema frágil e uma economia pequena e dependente. De tempos em tempos, a ilha vê-se arrebatada por desenvolvimentos políticos, económicos ou militares, verificados algures, e tem surtos de crescimento, para logo depois voltar ao ritmo habitual. Geralmente apresenta processos evolutivos, tanto de plantas e animais como ainda de grupos humanos, diversos dos do continente, fenómeno que Charles Darwin pôde comprovar nas suas viagens por ilhas e arquipélagos. Por tudo isso, e mais, a ilha entra no imaginário dos continentais como paradisíaca, oásis de tranquilidade, exótica e livre dos males que assolam os continentes

Ser ilha pode trazer algumas vantagens se a condição insular for traduzida em produtos que vão de encontro aos desejos de paz, sossego e entretenimento dos que a procuram. À partida, porém, é fonte de extraordinárias desvantagens devido à pequenez do território e à população geralmente diminuta. Quando, então, o País é arquipélago, as desvantagens crescem exponencialmente devido á necessidade imperiosa de se investir em cada ilha, repetindo infraestruturas já existentes noutras, como forma de viabilizar a sua ligação com um mundo mais amplo. 

As desvantagens são múltiplas e permanentes. As vantagens, pelo contrário, têm que ser identificadas a cada passo e com o olho atento nas tendências evolutivas do mundo global. Janelas de oportunidades devem ser exploradas no momento em que se abrem e agressivamente mantidas as qualidades da ilha que melhor a posicionam para as pôr em bom uso. Uma atitude positiva face ao mundo deve caracterizar o ilhéu, mesmo quando as desvantagens de ser ilha perdida no meio do mar ameaçam esmagá-lo. Não pode sucumbir ao fatalismo, à vitimização e à tentação de se erguer na dependência dos outros. Isso só leva ao assistencialismo não dignificante, ao crescimento das desigualdades, à medida que alguns apropriam-se desproporcionalmente dos fundos disponibilizados no quadro das ajudas, e à fraca atenção dada ao crescimento económico criador do emprego.       

A atitude certa deve ser diminuir o impacto das desvantagens. O mundo moderno dos transportes rápidos, das telecomunicações seguras e céleres e da internet como suporte universal de transferência de conteúdos fornece alguns dos meios para isso. Mas é preciso visão estratégica e políticas públicas adequadas para fazer com que actos individuais de expressão e afirmação, conjugados com o esforço de venda de bens e serviços pelas empresas e com o elevado espírito de serviço público das instituições do Estado , resultem numa economia dinâmica, competitiva e articulada com o exterior.

Potenciar as vantagens implica manter os ingredientes essenciais que levam as pessoas a optar por ilhas para férias, para estadias prolongadas ou para residência permanente. Segurança, saúde pública e ambiente sociocultural estimulante, mas sem choque cultural, são dos primeiros ingredientes a ter em consideração. As dificuldades do turismo em Cabo Verde, manifestas na fraca taxa de retorno dos turistas, estão intimamente ligadas às insuficiências que se notam, precisamente, nesses sectores. A insensibilidade das autoridades, face ao que exigia acção decisiva para ultrapassar as dificuldades, já custou muito ao País em oportunidades perdidas.

Cabo Verde não pode dar-se ao luxo de perder as suas poucas vantagens, por incúria ou por falta de compreensão da natureza das ameaças que o país pode vir a confrontar-se. De entre as potenciais ameaças sobressaem a ameaça demográfica e ameaça das epidemias por visarem a própria essência da nação e a sua existência futura.

Ter uma pequena população de 500 mil almas,  dispersa por nove ilhas, levanta sempre o espectro de uma ameaça demográfica. Particularmente, quando se tem um acordo de livre circulação com uma região com 200 milhões de habitantes cujo rendimento per capita é cinco ou mais vezes menor do que Cabo Verde. A ameaça torna-se real na ausência de uma política de imigração inteligente, criando  situações como as descritas no Plano de Segurança Interna do Governo (pgs. 50 e 51): (…) “Em 2006, estavam em Cabo Verde 15000 a 20000 imigrantes dos quais só 1800 eram residentes legais”.(…) “A esmagadora maioria destes imigrantes em Cabo Verde são homens entre os 17 e os 40 anos de idade, sem qualificação profissional e professam a religião islâmica”. (…)“Notícias da imprensa escrita, em 2008, davam conta da existência de cerca de 11 mesquitas em todo o Cabo Verde e da conversão, em média, de um caboverdiano/dia à religião muçulmana, especialmente mulheres, que a troco de dinheiro casavam com imigrantes, permitindolhes, pela via da naturalização, adquirir a nacionalidade caboverdiana”. (…) “Por dia, do total de cidadãos de Estados CEDEAO que entram legalmente em Cabo Verde por via aérea, quinze acabam por permanecer no território em situação irregular (dados respeitantes apenas ao aeroporto da Praia)”.”(…) “Na ilha da Boavista a presença de imigrantes, em 2006, tinha chegado a um número aproximadamente igual à população de Sal-Rei de 2500 habitantes”.

A epidemia do dengue que assola vários pontos do território nacional vem lembrar a fragilidade do País perante as doenças endémicas nos dois lados do Oceano Atlântico. Esse mais recente assalto do exterior a Cabo Verde não veio sem aviso. É um assalto de há algum tempo previsível, considerando que o mosquito aedis aegpti vem se proliferando pelas ilhas desde de Agosto de 2008, data em que a sua presença foi oficialmente reconhecida.

A falta de comprometimento das autoridades na preservação das vantagens das ilhas voltou a manifestar-se perante mais esta ameaça. Identificado o mosquito do dengue não se desencadeou um esforço nacional, dirigido e efectivo, para o eliminar. Nem se fez o suficiente para controlar a entrada de pessoas contaminadas e evitar que fossem picadas por mosquitos, contribuindo para a propagação da doença. As autoridades omitiram-se mesmo quando a população pressentiu que confrontava algo novo, identificando a doença como sacudim djam bem.. O Governo só viria a despertar quando o número de casos chegou aos milhares, ou seja, quando, provavelmente, a maioria da população da Praia já tinha tido contacto com o vírus. Isso, porque em oito a dez pessoas infectadas, em média, só uma desenvolve a doença.

Os problemas que vêm na esteira dessas ameaças têm sido atirados para debaixo do tapete, mesmo quando se experimenta na pele os seus efeitos em termos de quebra de crescimento económico, de desemprego elevado e de perdas de receitas. O Governo não assume as suas responsabilidades e deixa nas entrelinhas que tudo é efeito da crise. O facto, porém, é que, antes da crise, já se verificava forte quebra no fluxo turístico, em consequência de investimentos não realizados no saneamento, saúde pública e noutras infraestruturas e de medidas efectivas não tomadas no domínio da segurança e do controlo da imigração.

As autoridades têm que se mostrar proactivas na defesa do que nos distingue e nos dá vantagens como ilhas ao mesmo tempo que, seguramente, se deve diminuir as distâncias e os custos de comunicação com o mundo. As políticas públicas devem traduzir uma visão estratégica própria e não simplesmente ir ao reboque de políticas que se suportam em fundos vindos do estrangeiro, HIV/SIDA, cancro de mama e gripe das aves, colocando em segundo plano outras patologias que, provavelmente, andam a exigir mais atenção.

Em relação à imigração é evidente que qualquer política deve ter em devida consideração não só o número actual da população  e as taxas esperadas de seu crescimento, no curto e médio prazo, como também incluir tratamento diferenciado a ser dispensado às diferentes ilhas. A riqueza cultural do país depende da sua capacidade em manter a sua diversidade e em renovar as condições para que cada ilha continue a contribuir para a caboverdianidade. Isso tem que ser protegido.

Quanto às epidemias, a erradicação do paludismo e do dengue terá que ser considerado um desígnio nacional e estratégico. Tudo leva crer que é possível realiza-lo.

Nos anos 1960 o paludismo desapareceu de Cabo Verde. Na época usou-se muito o insecticida DDT, um produto que até agora é considerado o melhor para combater a malária. A Organização Mundial de Saúde, numa decisão tomada a 15 de Setembro de 2006, recuperou o DDT, após décadas de proibição, autorizando o seu uso pulverizado nas paredes das casas como repelente dos mosquitos do paludismo. Segundo Daniel Roberts, professor de medicina tropical, num artigo publicado no jornal New York Times de 20 de Agosto de 2007, experiências feitas indicam que, diferentemente de outras insecticidas que só funcionam no contacto com os insectos, DDT fornece repelência espacial, impedindo os mosquitos de entrar nas residências. No mesmo artigo ele sublinhou que o produto é particularmente efectivo para o mosquito da dengue e da febre amarela.

Somos ilhas, não podemos permitir que as vantagens em sê-lo desapareçam ou vão somar-se às desvantagens.

         Publicado pelo jornal A Semana de 6 Novembro de 2009

sexta-feira, outubro 16, 2009

Avançar com a revisão constitucional

No Relatório sobre a Situação de Justiça entregue na Assembleia Nacional a 2 de Outubro, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) reitera a sua convicção de que “a instituição do concurso público como único meio de acesso à carreira judicial, permanece de indiscutível valia.  E explica: Concurso público, “ ao mesmo tempo que acode imperativos constitucionais e de transparência, postula a prevalência do critério do mérito na selecção”.
O posicionamento do CSMJ mostra-se necessário porque, não obstante a Constituição ter criado, dez anos atrás, o Tribunal Constitucional e instituído o princípio do concurso para o preenchimento das vagas no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tudo continua como antes. A não definição de um horizonte temporal para implementação das normas constitucionais deu azo a que se assistisse, durante toda esta década, à politização permanente da questão, resultando na situação actual. Ainda hoje, o País não está dotado de um tribunal constitucional. Os juízes da única instância de recurso judicial, administrativo, fiscal, aduaneiro e militar continuam a ser designados por órgãos de poder político. A reforma do sistema de justiça continua emperrada porque as forças políticas não chegam a acordo em como, e quando, materializar as alterações do sistema, estabelecidas na revisão constitucional de Novembro de 1999.

O último episódio deste drama político iniciou-se há um ano atrás quando o partido no Governo, sem adequada consulta prévia dos outros partidos e recusando contactos ao mais alto, tentou impor legislação que consolidaria um sistema híbrido na justiça caboverdiana. Segundo a proposta de lei do Governo, um dos juízes do Supremo Tribunal Judicial seria designado pelo Presidente da República, e não através de concurso público. A recusa da Oposição em validar tal proposta mostrou a urgência de se proceder a uma revisão da Constituição. Revelava-se imperativo eliminar a alínea l) do nº 1 do art. 134º da Constituição da República que confere ao PR o poder de nomear um juiz do Supremo Tribunal
Desencadeado o processo de revisão constitucional, os três projectos de revisão apresentados por deputados das duas bancadas parlamentares convergiram na supressão do referido artigo, sem que tenha havido qualquer negociação prévia. Um consenso sobre o obstáculo maior à reforma de justiça ficou assim estabelecido logo após a entrada do último projecto de revisão. É só ver o artigo 10º, o n º1 do artigo 23º e o nº 2 do art. 23º respectivamente, e em ordem de entrada, dos projectos de revisão do deputado Humberto Cardoso (MpD), do projecto de 21 deputados do PAICV e do projecto de 18 deputados do MpD. A questão que se pode colocar é porque ainda não se foi avante com a revisão constitucional para ultrapassar esse obstáculo e, na sequência, prosseguir com as reformas do sector.
Analisando as iniciativas políticas, que se sucederam a partir de não aprovação do pacote de Justiça, nota-se a repetição do mesmo padrão de comportamento que, nestes últimos dez anos, manteve o status quo actual. O início do processo de revisão constitucional a 10 de Novembro de 2008 não impediu o Governo de, duas semanas depois, propor de urgência e fazer aprovar com a sua maioria o alargamento do Supremo Tribunal de Justiça. Apesar das justificações apresentadas, mostrou-se, posteriormente, que não era a eficácia da justiça, que poderia resultar do aumento do número de juízes, o móbil principal da iniciativa. No Relatório sobre a Situação da Justiça de 2009 lê-se que o aumento de juízes “sequer foi acompanhada da alocação de meios financeiros necessários à aquisição de mobiliários e equipamentos para os gabinetes dos dois novos Juízes Conselheiros”.

O que o Governo pretendia era renovar o STJ no modelo antigo, em que o Presidente da República e a Assembleia Nacional designavam juízes, e insuflar-lhe mais cinco anos de vida. E é o que veio a acontecer quando, em Janeiro de 2009, conseguiu o apoio da então liderança do MpD, na base da promessa de um mandato limitado para o novo STJ. Mandato esse, porém, que só poderia ser limitado em sede de revisão constitucional. Revisão, que ainda está por acontecer, cujo processo é interrompido periodicamente por acusações, num jogo em que o MpD não dá mostras de ganhar.

O processo de revisão constitucional, que poderia levar à supressão dos principais obstáculos à reforma de justiça, até porque já nos projectos iniciais era claro que havia o entendimento de base para isso, foi posto nas mãos de uma comissão eventual. Composto por deputados do PAICV, por deputados do MpD e o pelo deputado da UCID, sem que este tivesse apresentado qualquer projecto, a comissão partidarizou em extremo os seus procedimentos. As acusações periódicas, o posicionamento público permanente sobre as questões mais delicadas, a rejeição da discussão de questões de regime também abertas em projecto de revisão apresentado, levou a que os seus trabalhos resultassem num impasse.
A constituição dá aos deputados o poder de apresentação de projectos de revisão, com exclusão do Governo e dos Grupos Parlamentares precisamente para evitar que o processo seja completamente sequestrado pela lógica partidária. Por isso, quando não se seguem os procedimentos certos, quando não se deixa imbuir do espírito que imana do processo e que o distingue de outros actos legiferantes o caminho fica aberto para a barganha partidária ou mesmo intra-partidária.
O facto dos dois grandes partidos se encontrarem em ano de eleição de líderes e de definição de estratégias para o futuro não facilita entendimentos ao nível constitucional. Há naturalmente uma turbulência interna que dificulta o traçar de posições claras. Por isso não estranha que não se chegue a compromissos certos em muita matéria. Ou que compromissos, aparentemente já assentes, sejam postos em causa no dia seguinte.
Não admira, pois, que, em tal ambiente de definições políticas futuras, uma matéria como é  a supressão do poder do Presidente da República em nomear um juiz do Supremo Tribunal de Justiça não sejam apanhada no torvelinho das sensibilidades intra-partidárias. E que isso constitua um obstáculo para se fazer a revisão mesmo que publicamente se apresentam outras razões. 
É claro para todos que a eleição de José Maria Neves com o apoio ostensivo de quem já mostrou comandar votos dos militantes, pelo menos na Praia, não parece ter aquietado as sensibilidades. Pelo contrário. Manifestam-se em frentes como remodelação ministerial, candidato presidencial e, ainda privadamente, na questão da composição dos órgãos a sair do congresso. E tudo leva a crer que também o descarrilamento periódico dos trabalhos da comissão eventual traduz essas tensões internas.
No actual momento de redefinição das forças políticas, poderia, talvez, ser vantajoso para todos avançar com a revisão constitucional pela razão por que se justificou, em primeiro lugar, o arranque do processo: Supressão da alínea l) do n.1 do artigo 134 da Constituição. Outras questões também importantes podem esperar um aprofundamento do debate nacional e a aproximação de posições necessária e, eventualmente, serem consideradas numa revisão extraordinária. O MpD e o PAICV têm conjuntamente deputados suficientes, mais de quatro quintos dos deputados, para, a qualquer momento, dar à Assembleia Nacional poderes extraordinários de revisão.

Em relação às leis de Justiça, a revisão constitucional mínima retiraria o impedimento estrutural. Ficaria espaço para as duas bancadas negociarem os entendimentos necessários para criação, ou não, de tribunais de relação, para o reforço da inspecção judicial e para uma maior autonomia administrativa e financeira do sector judicial. O consenso essencial existe. Falta agir em consequência e não procurar justificativas para não o fazer.  

       Publicado pelo jornal A Semana de 16 De Outubro de 2009

sexta-feira, outubro 02, 2009

Seriedade nas respostas

Nações ganham em carácter quando, confrontadas com situações determinantes da sua existência futura, reagem com maturidade e firmeza: Não escondem nem suavizam os factos; avaliam corajosamente em como acções passadas contribuíram para a realidade actual, sem cair na armadilha da vitimização; e movem-se decididamente para um outro patamar de resolução dos seus problemas. 
As crises, vindas de fora ou originadas de dentro, podem ser momentos definidores. São oportunidades de mudança se a consciência nacional, sem subterfúgios, absorve o impacto total dos seus efeitos e encara as consequências de não alteração de rumo.  
O mundo vive uma crise profunda. Felizmente, evitou-se que a crise financeira não resultasse numa reedição da Grande Depressão dos anos trinta do século passado. Não se conseguiu, porém, evitar o desemprego de milhões de pessoas, a travagem no crescimento económico, a brusca contracção do comércio internacional e os efeitos da escassez de crédito.
A crise tem um culpado identificado, o sector financeiro. Um sector que insistiu em auto regular-se, seguindo os ditames do mercado, mas que veio a revelar-se oportunista e ganancioso. Sorvia percentagens cada vez maiores dos ganhos da economia ao mesmo tempo que, sem transparência, submetia tudo e todos a riscos excessivos, camuflados nos seus instrumentos financeiros complexos. O resgate do sector implicou extraordinários recursos que vão pesar nos bolsos dos contribuintes e na economia por vários anos.
O mundo pós-crise que emerge reclama respostas novas e firmes. Nesse sentido vão as medidas postas em práticas em vários países e absorvidas na última reunião do G-20, designadamente, um plafond para os vencimentos dos executivos bancários e regulação do crédito de certos produtos financeiros como os “derivatives”. Em vários países a economia está-se adaptar ao novo ambiente de menos exuberância financeira, maiores constrangimentos em energia e expectativa de alterações climáticas. O processo de globalização reajusta-se ao menor fluxo internacional de capitais, à crescente influência da China, Brasil e Índia, e ao fim da divisão entre países exportadores com enormes reservas externas e países importadores com crédito barato, disponibilizado pelos outros, e défices fiscais excessivos.  
São os novos tempos. E por todo o lado surgem novas respostas. Na América luta-se por uma nova estrutura de cuidados de saúde, pela eficiência energética e pela qualidade do ensino a todos os níveis. Em Portugal a preocupação incide sobre a necessidade de inovar e exportar. Na China expande-se o mercado interno para compensar a diminuição de exportações, etc., etc.  
Aqui em Cabo Verde finalmente constata-se que se vive novos tempos. Mas não os novos tempos do resto do mundo. Aqui proclama-se que os novos tempos resultam do governo ter cumprido grande parte do seu compromisso. A auto-satisfação não deixa ver a crise no mundo e no País. Por isso as novas respostas anunciadas mais parecem medidas de gestão de expectativas em ano pré-eleitoral do que actos de governação responsável. O 13º mês para os funcionários do Estado e outras despesas surgem sem que se explicite como e quanto irá crescer a economia de modo a gerar receitas para as cobrir.
O discurso de sedução do Governo parece colocar o País sempre fora deste mundo. Primeiro, a crise não o atingia. Depois, quando os capitais escassearam e o fluxo turístico diminuiu o Governo apressou-se a declarar que o País estava protegido dos  efeitos da crise, não obstante o aumento do desemprego e a quebra de receitas públicas.  O optimismo dos governantes mantém-se alto à custa de empréstimos externos e das obras onde os aplica, sem muita preocupação com a relação custos e benefícios. 
A realidade nua e crua é passada ao lado. Não foram atingidas as duas grandes metas do Governo constantes do seu Programa (página 8): atingir taxa de crescimento económico a dois dígitos; reduzir a taxa de desemprego a níveis inferiores a dois dígitos. Esta falha grave não é assumida. O governo desculpa-se dizendo que o desemprego é estrutural. Esquece que, para a nação caboverdiana, o acto de apresentação do Programa ao Parlamento significa que o governo ponderou devidamente as suas propostas e que as deve ter considerado absolutamente realistas. O voto de confiança que solicitou e recebeu do Parlamento suporta-se nessa assunção básica. Não pode, anos depois, simplesmente varrer para debaixo do tapete o compromisso central de governação.  
Porque é  que não explica aos caboverdianos as razões do insucesso da luta contra o desemprego, mesmo em tempo de vacas gordas? Como é que da expectativa, gerada em 2006, de baixa de desemprego para menos de 10%, se chegou, três anos depois, em 2009, à situação actual de 22% de desemprego? Não se concretizaram os investimentos externos previstos? Ficaram aquém dos resultados esperados a estratégia de desenvolvimento do hub aeroportuário e do serviço internacional de transbordo? Não se encontrou um novo rumo para o sector industrial? A agro-pecuária não se expandiu o suficiente e não evoluiu para produtos de maior valor acrescentado? Será que já beneficia de um mercado nacional unificado? A pesca deixou-se ficar essencialmente pela sua condição artesanal? As promessas de uma economia de conhecimento, suportada numa população jovem bem formada nas ciências, com competência linguista e qualificada nas tecnologias de informação e comunicação, não se materializaram? E a praça financeira, particularmente a offshore, conseguiu ganhar dimensão e criar postos de trabalho qualificados e bem remunerados?
Em qualquer país o sucesso na atracção de capitais externos, na execução de estratégias de desenvolvimento e na criação de condições para competitividade futura das empresas e para a inovação de produtos e processos depende muito do ambiente de negócios existente. E nessa matéria Cabo Verde não está bem. O relatório do Banco Mundial sobre a facilidade de fazer negócios ainda situa Cabo Verde entre os piores. No Doing Business 2010 é o 146º em 183 países no mundo. Em Africa, ocupa o vigésimo lugar, atrás do Lesotho, Malawi e Gambia.  
Em ambientes pouco facilitadores de negócios intenções de investimento muito dificilmente se realizam, novos empreendimentos confrontam-se com demasiados obstáculos, empresas existentes mostram relutância em crescer e em diversificar e é excessivo o risco, seja de entrada, de inovação e de desenvolvimento de novos mercados. Tudo isso ficou demonstrado nos últimos anos. Cabo Verde teve oportunidades múltiplas de aproveitar o crédito fácil, o crescimento do comércio internacional e a e forte procura de novos destinos turísticos para fazer crescer a sua economia e lutar decisivamente contra o desemprego. Falhou. A crise não provocou o falhanço, como se vem sugerindo, à laia de desculpas. A crise, ao alterar drasticamente as condições vantajosas então existentes, só veio revelar o tempo perdido.  
Reformas capazes de alterar o ambiente de negócios são possíveis se houver visão e vontade. Ruanda, o país dos tutsi e dos hutus e do genocídio de triste memória de há 15 anos atrás, um país muito mais difícil de governar do que Cabo Verde, conseguiu num ano passar do 143º lugar na facilidade de negócios para o 67º. No almoço oferecido por Obama a 25 chefes de Estado e de Governo africanos em Setembro, o presidente do Ruanda, Paul Kagame, foi convidado conjuntamente com os presidentes da Libéria e da Tanzânia para introduzir um tema de debate, como reconhecimento pelas reformas realizadas.  
Em Cabo Verde, o foco não está nas reformas. O discurso oficial centra-se na governança. Good governance é apresentada como recurso estratégico É mesmo dado como o petróleo de Cabo Verde porque propicia recursos externos que, actuando como uma renda, permite ao Estado manter uma posição cimeira e controleira sobre a economia, a sociedade e os indivíduos. Por isso, as reformas ficam para trás enquanto o
Governo concentra-se em passar a imagem que mais se adequa às expectativas e à agenda dos países doadores e de organizações multilaterais. Erguem-se todas as bandeiras, abraçam-se todas causas e seguem-se todos os modismos sem muita preocupação com os conteúdos e a sua aplicabilidade ao País Opta-se pelo que gera fluxos monetários exteriores a curto prazo e coloca-se em segundo plano a consolidação da economia nacional e a sua sustentabilidade futura.  
O mal não está em projectar uma imagem boa para o exterior. O mal é  ficar por aí e subordinar tudo a isso. O mal é manter o Estado num círculo vicioso que o faz incapaz de mudar e de introduzir reformas na economia. E sem reformas dificilmente o país poderá tornar-se atractivo ao investimento externo e produzir o ambiente de negócios propício à criação e expansão de um tecido empresarial moderno, competitivo e capaz de gerar postos de trabalho que ponham o desemprego abaixo dos 10%.  
A incapacidade de fazer descer a taxa de desemprego para os níveis do ano 2000 prova que como estratégia é insuficiente para garantir a sustentabilidade da economia e propiciar qualidade de vida e níveis de rendimento crescentes aos caboverdianos. De facto, a par das boas palavras de Hillary Clinton, Cabo Verde precisa, e urgente, de boas palavras de potenciais investidores, boas palavras dos empresários e boas palavras dos utentes dos serviços do Estado. 

      Publicado pelo jornal A Semana de 2 de Outubro de 2009