domingo, junho 22, 2008

 

O Erro de António Carreira

    Humberto Cardoso

                                                      (Novo Jornal de Cabo Verde, Agosto de 1997/Revista Cultura N. 2 – 1998)

 Toi Mulato (....) referia-nos que nhô João Joana lhe contou que no princípio do mundo, a Terra era uma mulher muito bonita e muito infeliz. Vendo os seus filhos morrer por falta de comida, saía todas as noites a vaguear e ia chorar nos cumes das rochas os seus amores perdidos. Ela tinha-se casado com um moço leviano que nunca lhe aparecia inteiro, mas sim partido em pinguinhos de água. A Terra ficava sempre com gana do amor incompleto do seu marido. E este saía pouco depois., a visitar as mães-de-filho que tinha por esse mundo fora.

                                                                                          In "Chiquinho", Baltazar Lopes

Um olhar por Cabo Verde e pelo seu povo deixa a impressão forte de se estar perante um fenómeno extraordinário e único. Cabo Verde parece um lugar onde dois mundos confluíram para se encontrarem, onde duas raças se esforçaram para se cruzarem e onde a história é feita mais de histórias de sofrimento do que de alegria. A realidade, porém, é outra: há um só mundo, e é novo, não há uma raça, existe o Cabo-verdiano, e a história são estórias de esperança.

Quem vem de fora, de outras paragens, onde a cor da pele informa e é enformada de história, de preconceitos, de reacções e de ressentimentos, vê-se, de repente, no meio de uma gente, basicamente, distraída e olvidada quanto às variantes em traços fisionómicos e quanto às nuances de cor entre uma tez escura e outra clara de que são portadores os pais, os irmãos, os primos, os vizinhos e os patrícios das outras ilhas.

A sensação de bem-estar, que é logo experimentada, provém, em grande parte, do alívio de se alijar da carga racial, ou seja, da consciência aguda de que se é de uma raça e que as outras pessoas sabem disso e que modelam o seu comportamento e a sua relação social com base nisso. É um alívio e um prazer análogo à sensação de flutuação que a imersão na água nos deixa experimentar ao contrabalançar a força opressora da gravidade.

Passando de uma ilha para outra, depara-se com o mesmo povo, não obstante as diferentes e contrastantes paisagens visitadas e as nuances culturais locais percebidas. Um povo com uma existência de séculos e com uma resiliência cultural que lhe permitiu emergir e crescer como entidade cultural autónoma, a partir de um meio onde prevalecia a envolvência cultural portuguesa.

Sobreviveu às constantes ameaças à sua existência e à sua própria génese postas, designadamente, por sistemas económicos de base esclavagista; por regimes de propriedade negadoras de uma base própria de subsistência às famílias, pela emergência, com o comércio triangular, do fenómeno global do racismo, e, fundamentalmente, pelas terríveis fomes que pressagiavam o seu desaparecimento da face da terra. Ao longo dos séculos foi lançando raízes cada vez mais fortes à medida que ia surgindo, em todos os pontos do arquipélago, nos interstícios das relações económicas e sociais dominantes, e que adoptava formas de existência impermeáveis aos efeitos erosivos e corrosivos de um ambiente socioeconómico e político hostil.

A consciência e o orgulho de si próprio, que não obstante as amarguras de existência o Cabo-verdiano foi capaz de gerar, deixaram-lhe marcas profundas que se manifestam numa ligação profunda à terra e à sua gente e, também, na capacidade de sobreviver face às mais terríveis situações e face aos maiores neutralizadores como o tempo e a distância. As comunidades no exterior são eloquentes a este respeito.

Cabo Verde surpreende, ainda, pela sua proximidade do mundo ocidental, em termos culturais e civilizacionais.

A cultura cabo-verdiana não resultou do cruzamento das culturas europeia e africana, ao contrário do que se veicula e do que, dada a situação geográfica das ilhas, aparentemente seria lógico. Cruzamento de culturas pressupõe a existência de comunidades distintas e com dinâmica cultural autónoma, capazes de um diálogo gerador de uma síntese muito especifica.

Vários factores concorreram para o não aparecimento dessas tais comunidades autónomas em Cabo Verde, ou seja, para que nunca se pudesse falar, com propriedade em Casa Grande e Senzala nas ilhas. No arquipélago, encontrado desabitado, a cultura que se soergueu e se diferenciou ao fim de um certo tempo só podia ter como referência básica elementos da matriz cultural portuguesa da época. Beneficiou, contudo, dos apports culturais trazidos por indivíduos ou grupos de indivíduos, provenientes de diferentes paragens, que se fixaram no arquipélago ou que por aqui passaram.

A este respeito, o que aconteceu em relação ao crioulo é paradigmático;

I – 99% dos seus vocábulos têm origem directa na língua portuguesa, particularmente a falada nos séculos quinze e dezasseis, o que evidencia a condição dessa língua como matriz básica da língua cabo-verdiana; 2 – o crioulo, apesar da envolvência cultural portuguesa de séculos em Cabo Verde, revela-se completamente autónomo em relação a língua portuguesa. Não estranha, pois, que o que aconteceu com o crioulo, a expressão central da entidade cultural cabo-verdiana, se tenha verificado com os demais elementos que formam o corpo da cabo-verdianidade.

Tentar compreender estas realidades, vividas por todos os cabo-verdianos e acessíveis a todos os estrangeiros, pela via de um modelo que assume e estipula as origens da sociedade cabo-verdiana numa sociedade escravocrata existente entre 1460 e 1878, é tarefa impossível.

António Carreira e os seus seguidores procuram fazer precisamente isso e o resultado lógico de tal exercício não pode deixar de se revelar, no mínimo, bizarro, a olhos de quem conhece o país e o povo.

Modelos constroem-se a partir de descrições esquemáticas de sistemas, teorias ou fenómenos com base em propriedades conhecidas ou inferidas. São extremamente úteis na compreensão global da realidade em estudo, podendo ajudar na previsão da evolução do sistema ou do comportamento do mesmo em ambientes com determinados parâmetros. Mas, enquanto instrumentos cognitivos abstractos, os modelos só se mantêm quando justificados pelos factos, ou seja, quando conseguem explicar fenómenos, justificar coerências internas de fenómenos, aparentemente, dispares e prever evoluções futuras.

O modelo avançado por António Carreira no seu livro Cabo Verde"Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)'' e usado sistematicamente nas suas obras seguintes, e por outros autores, para compreender e interpretar Cabo Verde não resiste ao teste dos factos e da realidade cabo-verdiana.

O modelo de Carreira parte do seguinte:

• O povoamento de Cabo Verde realizou-se com uma minoria europeia, naturalmente dominadora, e com africanos, trazidos como escravos.

• Cabo Verde desempenhou um papel como entreposto no comércio de escravos

• A estrutura produtiva no arquipélago baseava-se em trabalho escravo.

O primeiro aspecto que chama a atenção no modelo de Carreira é o facto de as suas assunções fundamentais em nada se distinguirem dos factores que condicionaram a actual estrutura social, racial e cultural de muitos países das Américas e das Antilhas e, também, de países como S. Tomé e Príncipe. Isto é mesmo sublinhado por António Carreira (obra citada, pg.2l) quando afirma que "a política económica e os processos seguidos na ocupação do espaço e no desenvolvimento dos dois grupos de ilhas (Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe) foram em quase tudo coincidentes quase iguais”.

A discrepância manifesta-se quando se compara as sociedades actuais de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, das Antilhas e das Américas. Cabo Verde destaca-se imediatamente como um caso à parte. A sua fisionomia actual pouco tem a ver com a fisionomia do Brasil, da Jamaica, do Haiti ou dos estados americanos do Sul. Face a isso, é de se contestar as assunções referidas, quando aplicadas à realidade das ilhas. O próprio Carreira confessa não compreender como é que, não obstante a similaridade de processos, a coincidência de várias vicissitudes históricas, e, basicamente o mesmo stock humano, a sociedade cabo-verdiana e a sociedade são-tomense sejam tão diferentes.

Assim, ele diz, na parte introdutória do livro Cabo Verde: "Formação e extinção de uma Sociedade Escravocrata (1460-I878)”, pg.22, o seguinte: (...) a despeito dos dois grupos de ilhas terem conhecido idêntica prosperidade económica e passado por quase iguais dificuldades, nas de Cabo Verde, dentro da sua extrema pobreza, a miscigenação prosseguiu sem paragens, levando à formação de uma comunidade com costumes, hábitos, comportamentos e língua fundamentalmente portuguesa, ao passo que nas de S. Tomé, segundo parece, os resultados dos contactos raciais e culturais podem ser considerados insignificantes se os compararmos como os atingidos naquele arquipélago.

Para se poder avaliar o que de diferente realmente se passou em Cabo Verde, impõe-se que se tenha na devida perspectiva certos factos históricos:

Primeiro,

• Cabo Verde foi descoberto em 1460, 32 anos antes de Cristóvão Colombo ter chegado às Antilhas e 40 anos antes de Pedro Álvaro Cabral desembarcar no Brasil.

• Cabo Verde foi encontrado deserto e, portanto, sem povos ou culturas autóctones.

• Cabo Verde originalmente esteve para ser povoado nos mesmos moldes que os Açores e a Madeira o foram. O clima constituiu um forte dissuasor da fixação de europeus e obrigou á importação de escravos da costa africana.

O povoamento de Cabo Verde tinha o objectivo duplo de apoiar na investida comercial na costa africana e de ser uma base avançada na navegação mais a sul em direcção à Índia e ao Brasil. A exploração económica das ilhas, nos moldes feitos posteriormente em outras paragens, não estava nos planos dos recém-chegados portugueses.

O comércio de escravos constituía, então, simplesmente, uma parte de um comércio muito mais abrangente na costa africana. A criação das grandes economias de plantações nos EUA, no Brasil e nas Antilhas, verificada na segunda metade do século XVI e no século XVII, é que iria centrar no comércio de escravos toda a actividade mercantil na costa ocidental africana, através do tristemente célebre comércio triangular. E, para base de apoio à instalação e à consolidação de tal circuito, viria a construção ideológica e racista da inferioridade da raça negra, como forma dos envolvidos se justificarem pelo enorme sofrimento causado e pela extrema ganância que os levara a instituir esse tráfego monstruoso.

Até o século XVII, o comércio de escravos que, desde a origem dos tempos, se verificara em todos os continentes e envolvera os mais diferentes povos, seja como escravos, seja como compradores de escravos, não tinha uma base racial, nem se desenvolvia por instigação de sentimentos racistas. O processo em Cabo Verde de povoamento, de consolidação social e de génese de uma sociedade própria, viu-se, em boa medida, poupado dessas tensões, por duas razões:

 l – por se ter iniciado muito antes do modelo escravocrata das plantações se ter instalado nas novas terras;

2 – porque o arquipélago caiu no declínio e no isolamento assim que foram criadas as condições para o comércio em massa de escravos, isto é evidente pela miscigenação notória da população, pelo reconhecimento dos filhos pelos europeus e pela pratica de libertação de escravos, todas, actividades que, por subverterem os próprios alicerces das sociedades escravocratas, baseadas no sistema das plantações, viriam a ser condenadas vigorosamente.

Segundo,

•A economia das ilhas assentou-se, desde o início, na condição de entreposto comercial, gozando de privilégios monopolistas.

• A agricultura, a criação de gado e outras actividades económicas, como a confecção de pano, eram marginalmente subsidiárias da actividade central do comércio na região.

• Actividades económicas autóctones no arquipélago estavam fortemente condicionadas pelo fraco, inconstante e imprevisível regime de chuvas.

• As ilhas não tinham como defender-se dos ataques dos corsários

As condições oferecidas pela coroa portuguesa para povoar o arquipélago de Cabo Verde revelaram-se, desde o início, frágeis, pouco motivadoras e insustentáveis a médio e longo prazo. Baseadas essencialmente no monopólio do comércio na região, só se mostrariam atraentes enquanto se conseguisse manter afastados os concorrentes estrangeiros e enquanto interesses na metrópole não contradissessem os interesses dos moradores de Santiago. Alternativas ao comércio na costa africana não existiam, e a exiguidade de terras e a fraca pluviometria vaticinavam, desde os primórdios do povoamento, a inevitabilidade do colapso da economia das ilhas.

O comércio na região ocidental africana muito dificilmente podia tornar-se um factor de acumulação de riqueza nas ilhas e de gestação de uma estrutura produtiva interna, a prazo sustentável. A agricultura e a pecuária nas ilhas seriam sempre de subsistência e, marginalmente, fornecedoras de matérias-primas para fins industriais, como algodão, urzela, sementes oleaginosas, açúcar e peles. A quase impossibilidade de gerar recursos próprios e também de participar com produtos originários no comércio na região fazia a prosperidade do arquipélago suportar-se numa base estreita e frágil, aleatória e potencialmente provocadora de conflitos terríveis as receitas alfandegárias.

Duas economias desenvolviam-se, paralelamente, no arquipélago; uma economia mercantil, baseada na cidade de Ribeira Grande, e uma economia agro-pecuária de subsistência, no interior de Santiago e em ilhas como Fogo, Boavista, Sto. Antão e S. Nicolau. Poucos pontos de contacto existiam entre essas duas economias, salientando-se, de entre eles, o fornecimento de escravos para o trabalho agrícola e a produção de panos para a troca na costa africana, sendo ambas as actividades marginais para as respectivas economias.

A perspectiva de perda do monopólio e as fugas sucessivas dos barcos ao controle dos moradores de Santiago ameaçavam permanentemente a actividade mercantil. A possibilidade de fomes, de caos social e de mortes por inanição era uma constante da vida no mundo rural, devido às secas cíclicas. Os ataques dos corsários provocavam perturbação geral com particular impacto na actividade mercantil e na manutenção da estrutura agrária; baseada no regime de morgadios e no trabalho escravo.

Os furos sucessivos ao monopólio, a concorrência de estrangeiros e, posteriormente, a proibição feita aos moradores de Santiago de fazerem comércio nos Rios da Guiné destruíram a actividade mercantil do arquipélago. Com o comércio foi também o seu santuário, a cidade de Ribeira Grande na ilha de Santiago, a primeira cidade portuguesa nos trópicos.

O abandono da cidade de Ribeira Grande marcou uma nova era na vida de Cabo Verde. A partir daí, as ilhas ficaram basicamente entregues a si próprias, rareando cada vez mais os contactos com o mundo. A economia agro-pecuária de subsistência, a única então possível e na total dependência das chuvas, quase não permitia o crescimento da população. A estratificação social existente, nela baseada, suportava uma erosão permanente, devido aos sérios problemas e descontroles provocados pelas secas e, após o desaparecimento da cidade de Ribeira Grande, devido ao corte do fluxo de novos escravos que realimentava o seu sistema de trabalho no campo.

Terceiro

• O relativo isolamento do arquipélago e a existência no limiar de sobrevivência foram factores de erosão e de transformação das relações sociais originárias.

• A ocupação da terra, nas ilhas que não Santiago e Fogo, realizou-se com gente de terra e na base de pequenas propriedades, marginalmente fazendo uso do trabalho escravo.

• Alforrias e fugas de escravos eram uma constante da vida desde os primeiros tempos.

A ocupação das ilhas por uma minoria, branca e europeia, e por mão-de-obra, escrava e de raça negra, prefigurava a criação de relações sociais altamente hierarquizadas e polarizadas. A reprodução dessas relações pressupunha uma dinâmica de revigoração do protagonismo, branco e europeu, e uma outra dinâmica de alimentação do contingente, escravo e negro. Tais dinâmicas, porém, só seriam sustentáveis se a estrutura económica erigida tivesse capacidade de acumulação e de expansão a taxas aceitáveis e atraentes.

Os condicionalismos de existência em Cabo Verde, particularmente a baixa e irregular pluviosidade, desde logo, retiraram qualquer esperança de uma economia dinâmica que alimentasse um fluxo de europeus de qualidade e sustentasse importações sucessivas de escravos. Não se verificando isso, as relações sociais originárias ficavam em permanente tensão e, após erosão significativa, acabariam por ceder.

O isolamento do arquipélago e a ausência de um fluxo de europeus, particularmente de mulheres europeias, rapidamente conduziu a um processo de miscigenação e, na sua sequência, às primeiras alforrias. A polarização social, antecipada nas relações sociais de origem, desmoronava-se com o aparecimento de mestiços e mulatos reconhecidos pelos pais e que, em alguns casos, até herdavam. É evidente que em tal ambiente, pouco espaço haveria para antagonismos exacerbados de carácter racial.

As dificuldades crescentes em obter escravos e o seu preço cada vez mais inflacionado impuseram sérias restrições à reposição do contingente de escravos. Estes, muitas vezes, aproveitavam-se de momentos de crise, como fomes e ataques de corsários, e fugiam para os montes ou para outras ilhas. Outros ainda eram alforriados pelos próprios donos se, por exemplo, não tinham meios para os sustentar.

A exigência de mão-de-obra escrava era maior nas ilhas de Santiago e Fogo. A estrutura de propriedade nessas ilhas baseava-se no regime de morgadios, com as suas grandes extensões de terra para serem cultivadas. A importação de escravos, que se susteve por algum tempo era basicamente para satisfazer essa procura, causando no processo tensões várias: cada novo contingente de escravos continha em si próprio a ameaça de regresso a relações originárias e já completamente desfeitas.

Outrossim a existência dos morgadios tendia a manter uma estrutura social vertical hierarquizada e, por causa disso, indutora de problemas sociais diversos. Os mulatos e os forros, não sendo escravos e não tendo terras, viam-se e sentiam-se como excluídos e marginalizados e eram vistos pela classe dos morgados como um factor de perturbação. Entretanto, a fragilidade do sistema económico, social e político não permitia um controle adequado dos escravos, levando que muitos andassem fugidos pelos montes e constituíssem ameaças a pessoas e a propriedade.

 Nas outras ilhas, reinava a pequena propriedade e a necessidade de mão de obra escrava era muito menor. Em pouco tempo, nem isso se fazia sentir, chegando-se a ponto de na ilha de S. Antão e em pleno século XVIII, a Coroa ter ordenado a libertação de todos os escravos. As relações sociais nessas ilhas eram mais distendidas, tinham uma natureza mais horizontal e não sofriam as tensões bruscas de chegadas de novos contingentes de escravos. Dentro do isolamento global do arquipélago, eram ainda mais isoladas, o que lhes deixava uma maior margem de manobra em termos de experimentação humana e de relações sociais.

Em conclusão, pode-se afirmar que, contrariamente à tese de António Carreira, se alguma vez houve um plano para criação de uma sociedade escravocrata em Cabo Verde, esse plano falhou completamente.

Falhou porque

• Ninguém conseguiu pôr de pé uma economia de base escravocrata pela simples razão de que em Cabo Verde não chove e não há, portanto como aguentar Casas Grandes e Senzalas.

• A existência no limiar de sobrevivência, com pequenos e aleatórios picos de prosperidade e regulares rectificações malthusianas da população do arquipélago, forçou relações sociais e raças originárias à partilha de um destino comum, pontuado por extremos, desfigurando-as e esvaziando-as no processo.

• Nas situações-limite vividas em Cabo Verde surgiu uma outra gente, uma outra cultura e outras relações entre as pessoas que efectivamente bloquearam tentativas subsequentes de implantação de regimes económicos e sociais escravocratas.

Ao modelo de Carreira, claramente inconsistente com as características da evolução humana nas ilhas, deve ser contraposto um outro modelo, que facilite uma abordagem compreensiva das complexidades da vida no arquipélago ao longo dos séculos e que seja capaz de dar conta da actual fisionomia humana, social e cultural do país. António Carreira, nos estudos de investigação que efectuou e que incidiram essencialmente sobre Santiago, socorreu-se de certas e, muitas vezes, aparentes similaridades da história económica e social dessa ilha com as realidades do sistema de plantações, existente noutras paragens, para adoptar o modelo escravocrata na procura do entendimento do fenómeno cabo-verdiano.

Estudos posteriores seguiram-lhe as pisadas e, hoje, o modelo escravocrata é geralmente aceite, não obstante as suas múltiplas insuficiências, designadamente as seguintes:

• Não explica o que se passou nas outras ilhas

• Não explica as diferenças fundamentais da sociedade cabo-verdiana actual em relação a outras sociedades noutras paragens, elas sim tributárias de sistemas escravocratas:

• Não explica a unidade orgânica Cultural de todo o povo cabo-verdiano.

Pelo contrário, pode e já foi usado para

• dividir o país em uma parte, vista como berço ou matriz da entidade cabo-verdiana a ilha de Santiago, ou um dos seus concelhos , e outras partes, dadas como assimiladas, na linguagem de alguns, em que os elementos salientes da matriz mostram-se mais ou menos abotoados ou ligados a elementos importados do estrangeiro;

• Criar dicotomias artificiais entre regiões do país na base de preponderância do factor africano ou do factor europeu;

• Introduzir elementos valorativos de pureza e/ou de falta de pureza do que é cabo-verdiano;

• Justificar caracterizações da população cabo-verdiana, encontradas em enciclopédias e outros livros de referência por esse mundo fora, que nos dividem em 71% de crioulos ou mulatos, 28% de negros e 1 % de brancos.

Impõe-se, portanto, encontrar um modelo da génese da entidade e da identidade cabo-verdiana que resista ao teste dos factos, que permita antecipar os obstáculos na mobilização do capital social necessário para vencer o desafio do desenvolvimento e que seja um instrumento poderoso de reforço da Nação cabo-verdiana.

Da análise dos documentos históricos sobre Cabo Verde, o que salta à vista não é o facto de haver escravos (escravos havia por toda a parte) ou que se procurasse instalar um sistema escravocrata no arquipélago. O que chama a atenção é, precisamente o falhanço completo dessas tentativas e a emergência, imediatamente a seguir, de um novo ser cultural, vibrante de vida e armado de uma língua própria, cujo protagonismo para além das ilhas, mesmo no século XVI, deixou marcas ainda visíveis na língua falada na Casamansa, na Guiné-Bissau, e, do outro lado do Atlântico, na ilha de Curaçau.

Pode-se, pois, afirmar que a entidade cabo-verdiana surgiu e vingou no terreno prenhe de possibilidades, deixado pelos colapsos sucessivos das tentativas de estruturação da economia de Cabo Verde com base em sistemas escravocratas.

A fragilização e o colapso do sistema económico escravocrata abria caminho para experimentações humanas e sociais. A dinâmica que tais experimentações conseguiam adquirir variava de lugar para lugar, de região para região e de ilha para a ilha e dependia da força relativa dos elementos inibidores no meio circundante. Condicionavam especialmente essas experimentações a estrutura da propriedade existente no sítio, a presença forte do poder administrativo, o nível de recursos naturais na ilha ou na região e as características do fluxo de novos escravos que se conduzia para aí. Todas essas experimentações vieram revelar uma ligação orgânica profunda que lhes permitia reforçarem-se mutuamente, apesar do seu distanciamento geográfico, e assumirem-se como os preconizadores de uma entidade cultural única em todo o arquipélago.

A miscigenação, que acompanhou, a par e passo, tais experimentações, provocou um salto qualitativo na consciência de si próprio do cabo-verdiano: não se reconhecia em qualquer das raças estabelecidas e não se sentia compelido a pertencer ou a aproximar-se delas. Termos como branco, na linguagem comum, passaram a ter um outro significado que não a cor da pele ou a designação de raça.

A cabo-verdianidade, que ia emergindo, afirmava-se como uma entidade cultural a par da entidade portuguesa, que lhe servira de matriz; isto é ilustrado, de forma, clara e inequívoca, na dinâmica da própria língua crioula que, rapidamente, se constituiu na língua materna do novo ente cultural, excluindo qualquer outra e, particularmente, a língua portuguesa.

A universalidade do fenómeno cabo-verdiano no espaço do arquipélago manifestava-se no facto de tocar e afectar todas as classes sociais e na forma como absorvia pessoas que, vindas de outras paragens, se fixaram nas ilhas. Tal sucesso testemunhava a força vibrante, criadora e sustentada que irrompia, quando as relações sociais prevalecentes se desmoronavam sob o impacto das fomes, da diminuição da actividade mercantil, da perda de receitas aduaneiras e, ainda, dos ataques dos piratas.

Mas as experimentações, que se iam verificando, aqui e acolá, nas diferentes ilhas, não conseguiriam prevalecer no ambiente socioeconómico envolvente, nem teriam a possibilidade de coalescer no fenómeno global da cabo-verdianidade se a trajectória seguida na evolução da vida do arquipélago, ao longo dos séculos, não fosse uma linha muito fina entre a vida e a morte. Do facto só se pode retirar esta constatação: o cabo-verdiano é o produto cultural de uma existência no limiar da sobrevivência.

As situações-limites, vividas anos sem conta, em consequência das secas devastadoras, que lançavam milhares para morte, e da ausência de alternativas sustentáveis para a economia do arquipélago, induziram plasticidade nas relações humanas existentes e despoletaram muita imaginação e criatividade na construção de novas relações entre os indivíduos e entre estes e o meio circundante. A entidade cultural ímpar que é o cabo-verdiano poderia emergir, mas não sem passar por um parto longo e extremamente doloroso.

Pode-se tomar o abandono da cidade de Ribeira Grande como início dessa longa caminhada para a emergência e a consolidação da cabo-verdianidade. Sem a actividade mercantil da cidade, a única alternativa à actividade agro-pecuária desaparecia e não havia mais importação de factores potencialmente atentatórios à experimentação, que se verificava nas ilhas. Talvez, por isso, a memória colectiva dos cabo-verdianos não regista, nem demonstra nostalgia e, muito menos, canta a perda dessa cidade, sendo para todos uma cidade dos portugueses, que ficou para trás na memória dos tempos.

As gentes das ilhas, deixadas, à sua sorte, souberam estabelecer canais múltiplos de comunicação através dos quais partilhavam informações sobre o esforço titânico que todas e cada uma vinham desenvolvendo na libertação de relações sociais preestabelecidas e na construção de uma existência mais em consonância com o ambiente envolvente e mais solidária nas dificuldades extremas. Os frutos desse diálogo de séculos manifestaram-se de forma exuberante quando, pela primeira vez, a sociedade rural cabo-verdiana se urbanizou e criou a sua primeira cidade Mindelo, em S. Vicente.

O efeito de cidade que S. Vicente exerceu sobre todo o arquipélago foi demonstrativo da autenticidade e da universalidade das diferentes formas de expressão que vinham sendo criadas, de forma aparentemente isolada, em cada ilha. A interacção dessas expressões no ambiente cosmopolita de cidade deu às contribuições separadas de cada ilha uma amplitude e uma abrangência que provocou no povo do arquipélago o reconhecimento de si próprio e que permitiu-lhe visionar a dimensão exacta do seu património cultural.

A morna é o exemplo mais espectacular disso tudo. Criado na Boavista, adquiriu maturidade na Brava com Eugénio Tavares e, levado para S. Vicente, atingiu foros de universalidade, afirmando-se como a música dos cabo-verdianos. Hoje, a Cesária vem confirmando isso perante plateias de todos os continentes.

Desde a independência nacional que um segundo round de urbanização se está a verificar em direcção à cidade da Praia, participando nela gente vinda de todos os pontos do país, mas particularmente do interior de Santiago. A criação, e o desenvolvimento da Capital da Nação está a ser acompanhada, também, de uma exuberância cultural, com particular destaque para formas culturais que, até agora, têm sido específicas do interior da ilha de Santiago. O país inteiro está à espera de enriquecer o seu património cultural com as contribuições que naturalmente resultarão da interacção dessas formas de expressão no novo espaço urbano.

Da compreensão da dinâmica das ilhas na forja do cabo-verdiano, avançada pelo novo modelo, chega-se a conclusão que, para o bem de Cabo Verde, é preciso aumentar os canais de comunicação, desenvolver plataformas comuns de acção e explorar sinergias possíveis entre elas. O maior crime que se pode cometer contra cada uma delas e contra Cabo Verde é governar ou administrar as ilhas como se de mundos à parte se tratassem.

O novo modelo ajuda a descortinar caminho a seguir na afirmação do carácter único de Cabo Verde no mundo e, ao mesmo tempo, propicia, a cada cabo-verdiano, os elementos para, tranquilamente, se ver e se orgulhar da sua identidade e do seu património cultural. As dúvidas, resultantes de raciocínios extremados de certas pessoas que, fazendo uso do modelo de Carreira, questionam a própria existência da cabo-verdianidade e acusam o cabo-verdiano de racista em relação aos negros africanos, mostram-se sem nenhum suporte quando vistas à luz do novo modelo.

Atitudes racistas nunca tiveram grande expressão em Cabo Verde e, de qualquer forma, as que existiam viram-se superadas na forja do cabo-verdiano. Reacções de estranheza só podem ser de natureza cultural e civilizacional. Não se pode esquecer que o cabo-verdiano é cristão e toda a sua forma de ver a si próprio e ao mundo baseia-se na tradição cristã, mostrando, naturalmente, alguma dificuldade em funcionar com pessoas com uma outra filosofia de vida ou com outras tradições e crenças religiosas.

A adopção do modelo, que postula a emergência da entidade cabo-verdiana a partir de uma existência no limiar da própria sobrevivência, leva não só à compreensão de certas características muito peculiares e únicas do cabo-verdiano como também a assumir que tais situações extremas terão criado handicaps graves na sociedade. Muitos dos problemas, com que a sociedade hoje se depara na sua marcha para a modernidade (ausência, nas pessoas, de espírito de equipa, de espírito associativo e de espírito cívico; incapacidade geral das organizações sociais em ganhar autonomia e promover o surgimento da sociedade civil; deficiências na instalação e na maturação organizacional de instituições sociais e de instituições do Estado; dificuldades surpreendentes no desenvolvimento do sentido do interesse geral e do interesse público; pobreza do exercício do poder do Estado) poderão ter as suas raízes nos referidos handicaps.

É fundamental que nos saibamos munir de instrumentos conceptuais adequados à compreensão da complexidade da emergência e da existência da entidade cabo-verdiana. O desenvolvimento do país depende da construção de uma visão, a partir da qual se possa fazer a mobilização e congregação do esforço cabo-verdiano na realização do sonho de gerações: Cabo Verde orgulhoso das suas origens e do seu destino e triunfante sobre as fatalidades da sua existência.

quinta-feira, maio 08, 2008

Regresso dos ex-PCD: take-over hostil?

Ontem, a meio da campanha eleitoral para as autárquicas, o MpD, o eleitorado e a sociedade caboverdina foram apanhados de surpresa pelas declarações do presidente do MpD, Jorge Santos e do ex-líder do PCD, Eurico Monteiro. Segundo o Expresso das Ilhas online de 7 de Maio, Jorge Santos regozijou-se pelo regresso ao MpD dos que ele chama de ex-dirigentes do PCD. O ex-líder, por sua vez, justificou-se e justificou os outros 28 subscritores, explicitando os pontos de conveniência política do momento que determinaram a aceitação do convite do presidente do MPD. Os militantes do MpD viram-se, de repente, forçados a olhar para dentro do partido quando, no momento, todos se sentem ligados numa unidade funcional voltada para fora, dirigida para a sociedade. E todos se revêem numa união de esforços que visa influenciar, motivar e consolidar o eleitorado necessário para vencer as autárquicas. Por sua vez, o eleitorado e a sociedade caboverdiana quedaram-se face a um desenvolvimento partidário súbito, com um potencial de consequências a curto e a médio prazo. O frenesim e a ansiedade nos comentários online que se seguiram aos anúncios e às conferências de imprensa são indicadores do desassossego que o acto político do presidente do MpD e dos ex-dirigentes do PCD desencadeou. A informação dada pelo mesmo jornal online que a declaração foi assinada a 21 de Abril e que só a meio de campanha, a 7 de Maio, foi trazido a público deixou a forte impressão de se tratar de uma manobra política à procura de uma oportunidade para se revelar. Uma impressão ainda vincada por outros aspectos associados a esse facto político. Um deles é o facto do presidente do MpD, num acto que ultrapassa as suas competências estatutárias, ter dirigido pessoalmente um convite de entrada no partido a um grupo que ele mesmo identifica como ex-dirigentes de um outro partido, conhecido por ter uma história pública de mais dez anos de hostilidade ao MpD. Um outro aspecto é todo esse acto público de entrada colectiva constituir uma fuga às normas, aos processos e procedimentos estatutários de ingresso no partido, designadamente as do artigo 13º dos estatutos, e ser, em particular, uma violação da alínea m do artigo 10º, que proíbe facções ou grupos organizados. Ainda um outro é a questão da Declaração de entrada, assinada pelos 29 subscritores, poder sugerir, a meio de campanha, a criação de uma frente unida, talvez uma coligação informal do MpD com ALGO que tem líder (porta-voz) e membros/subcritores, sem porém se se assumir como entidade distinta, mas que, entretanto, já negociou os seus elementos nas listas autárquicas. Para qualquer observador isso parece mais um processo de take-over do partido. Uma tomada hostil porque em nenhum ponto na declaração os ex-PCD renegam a ideologia hostil e contrária ao MpD que professaram no passado e justificaram as coligações feitas com forças políticas adversárias ao governo do MpD. Pelo contrário, numa analogia sugestiva em que dizem que o PAICV de hoje não é o mesmo do de Aristides Pereira fica subentendido que também o MpD de hoje não é o de Carlos Veiga, o MpD com quem entraram em dissidência violenta. Ou seja, quem mudou foi o MpD. Não foram eles. Por isso, entram hoje. A reunião ontem da Comissão Política do MpD para essencialmente se congratular com a vontade expressa do grupo dos 29 mostra o conluio ao mais alto nível e a despreocupação irresponsável com os óbvios problemas políticos e estatutários que tal operação coloca. A surpresa e a desinquietação de militantes, eleitorado e sociedade foram exacerbados pelo momento escolhido para a declaração. Todos estão em plena campanha eleitoral. Para os ex-dirigentes do PCD o timing é perfeito. Justifica-se pelo facto do grupo querer legitimar a sua entrada, associando-se à uma eventual vitória nas eleições autárquicas, vitória que nos seus cálculos já antecipam. Para o MpD e para a sua campanha eleitoral, porém, a declaração do grupo dos 29 só traz riscos: risco de distracção, risco de perda de uma imagem de coerência e solidez ideológica e risco de quebra de confiança na sua integridade futura. Eventuais benefícios só existiriam se o grupo dos 29 tivesse eleitorado próprio e pudesse adiciona-lo ao eleitorado do MpD, algo que na política ninguém pode garantir. Mais, a verificar-se, só teria efeito nos municípios onde o grupo tivesse presença significativa, ou seja, na cidade da Praia. Em tudo isto o que salta à vista é que o objectivo de vencer as eleições autárquicas poderá ser prejudicado simplesmente porque alguns movem-se, em antecipação, para se posicionar no pós eleições, sem ter em consideração que as suas manobras afectam negativamente os resultados eleitorais. E isso, porque ambição cega. E cega porque se insiste em não ver e em não aceitar que ambições pessoais são bem vindas no partido, mas elas só são legítimas e ou se legitimam se se movem dentro do partido, se se realizam com o partido e se nunca vão contra o partido.

terça-feira, abril 22, 2008

Denúncia ou chantagem política?

O PAICV volta a acusar o MpD de ligações com o mundo da droga. No sábado, na presença do Primeiro-Ministro, Felisberto Vieira, contrapondo-se à candidatura do MPD para a Câmara da Praia, disse: nós não engordámos no dinheiro de privatização nem recebemos comissão do narcotráfico através de advogados amigos. A 23 de Janeiro de 2006, no dia das eleições legislativas, o Primeiro Ministro referiu-se explicitamente a indícios graves, de que houve compra de votos na véspera das eleições, com dinheiro da droga. Entre as declarações do PM e as afirmações de sábado passaram mais de 800 dias. As acusações subjacentes continuam a ser, substancialmente, as mesmas. Toda a gente está perplexa. Afinal, quem dirige o Estado em Cabo Verde? Quem comanda e supervisiona a Polícia Judiciária e a Polícia Nacional? Quem tem a responsabilidade primeira de definição da política criminal, e também, de garantir a sua execução? Como podem os governantes colocaram-se na posição de denunciantes quando a eles é que foi dada a legitimidade, os meios e os recursos do Estado para pôr cobro a quaisquer ilegalidades? Como podem alijar a responsabilidade perante a Nação e deixar a Procuradoria-Geral assacar com todo o ónus da inacção perante crimes desta natureza? Também é caso para perguntar: O acto de denúncia pública significa impotência do Governo? Impotência perante a inércia ou resistência de organismos competentes do Estado em investigar, acusar e punir o crime? Ou será uma forma de pressão, de chantagem que politicamente o partido do Governo usa contra a Oposição. Chantagem a funcionar em dois sentidos: Um, colocar o MpD na defensiva, a esquivar-se para não enfiar a carapuça e, no processo, a distrair-se da luta eleitoral. Talvez o objectivo desejado por Felisberto Vieira no seu comício. Outro, provocar uma quebra de confiança nos eleitores, na sociedade caboverdiana e mesmo na comunidade internacional quanto à possibilidade da Oposição ser Governo. Provavelmente o resultado procurado pelo Primeiro Ministro com as suas declarações à saída de uma assembleia de voto, no dia das eleições legislativas. A gravidade disto tudo não pode ser minimizada, nem desculpada, dizendo que se trata simplesmente de tricas políticas de campanha. São declaração de altos dirigentes do Estado e do partido no Governo. Ou são verdadeiras e, nesse caso, pode-se legitimamente perguntar: se há indícios de crime ou há dados concretos, porque é que Polícia Judiciária não agiu, não investigou, não deu conta dos resultados ao Ministério Público e a Procuradoria da República não acusou e os Tribunais não julgaram. Quem impediu a polícia judiciária de investigar? A sua Lei Orgânica dá-lhe autonomia para isso, designadamente em matéria de tráfico, suborno, corrupção. Aliás deve-se, talvez, começar por perguntar quem forneceu os dados ao Governo? Se não foi a polícia, porque é que o governo não os fez chegar à Judiciária e à Procuradoria Geral? Se foi a polícia que os obteve, quem a impediu, posteriormente, de dar os passos seguintes no processo: investigação, instrução, acusação. Se, porém, se trata simplesmente de uma invenção, de uma calúnia, onde é que fica a credibilidade do Estado de Cabo Verde quando o seu principal dirigente, o Primeiro-Ministro, serve-se do seu cargo para fazer acusações de tamanha gravidade. Acusações que, como talvez nenhuma outra, põem em causa a imagem de Cabo Verde. De facto, se o crime organizado no narcotráfico já penetrou a classe política com financiamentos de campanha e de compra de votos, quem garante que outros sectores da sociedade, da economia, da polícia, do Estado, também não foram tornados permeáveis ao dinheiro sujo. Acreditamos que não é assim. Que a corrupção em Cabo Verde não atingiu os níveis que tais acusações, se fossem verdadeiras, implicariam. Todo este triste e degradante espectáculo e a total irresponsabilidade, que quem o protagoniza revela, simplesmente demonstram as consequências desastrosas de se insistir na cultura política que afina pelo diapasão: os fins justificam os meios.

segunda-feira, abril 21, 2008

Má governação em evidência?

Períodos eleitorais são normalmente extraordinariamente elucidativos acerca das formas de actuação dos diferentes actores políticos. Deixam, particularmente, a claro as tentativas de instrumentalização do Estado em benefício dos interesses partidários da força política que suporta o Governo. Revelam, para além de toda a retórica e a propaganda oficial, as ainda frágeis bases de governança ou governabilidade do País. Vem-se se multiplicando, nos últimos tempos, alguns sinais de má governação. Governança, ou como o PAICV prefere, governação, significa respeito pelo primado da Lei, a transparência e prestação de contas na actuação dos governantes e ambiente institucional adequado para a criação, desenvolvimento e implementação de políticas públicas. De facto, há indícios de má governação quando o Governo desdobra-se em reuniões de conselho de ministros descentralizados nos meses que precedem as autárquicas. Pelo menos cincos se realizaram nos últimos três meses. E alguns foram seguidos de apresentação de candidatos do partido no Governo às eleições municipais. Quanto aos efeitos na resolução dos problemas das localidades e das populações, a posição, por exemplo, do presidente da comissão instaladora de S.Salvador é esclarecedora: utopia, nenhuma resposta concreta, as pessoas não têm oportunidade para os esclarecimentos adicionais e terem as informações, …na prática deixa as pessoas mais angustiadas. Ou seja, trata-se basicamente um show off de onde se procura, simplesmente, extrair ganhos partidários. indícios de má governação quando membros do Governo, frequentadores assíduos dos seus municípios de origem, em missões de Estado poucas vezes ligadas às suas competências específicas, se apresentam como candidatos às autárquicas. A impressão que fica é que de há muito vêm-se preparando para tal, com óbvios prejuízos para a acção do Estado e para a relação do Estado com o Poder Local. O Estado perde porque a intervenção do membro do Governo submete-se à necessidade de se construir a sua imagem junto às populações como futuro candidato autárquico. E, de passagem, envenena-se a relação com a câmara porque os seus actuais titulares são vistos como rivais directos na corrida eleitoral. Há indícios de má governação quando o partido no Governo, recorrentemente, recruta para os principais cargos autárquicos funcionários públicos, que ganharam proeminência nos concelhos enquanto chefes de serviços desconcentrados do Estado que lidam com as populações. Os agentes do Estado, segundo a Constituição, estão exclusivamente ao serviço do interesse público e estão obrigados a agir com respeito estrito pelos princípios de justiça, isenção e imparcialidade não podendo beneficiar ou prejudicar outrem em virtude das suas opções político-partidárias. Tornar, designadamente, chefes de delegação de Educação, de serviços de Agricultura, do ICASE em instrumentos de actividade partidária não abona para a qualidade, a lealdade e a solidariedade que, em nome dos interesses das populações, devem caracterizar as relações entre os órgãos municipais e os serviços do Estado nos concelhos. Também, decididamente não ajuda muito no estabelecimento de boas relações institucionais Estado/Poder Local a decisão de preparar o director geral de descentralização, do Ministério que tutela os municípios, como candidato a presidente de uma das câmaras. Há indícios de má governação quando todos os presidentes das comissões instaladoras dos novos municípios são apresentados pelo partido no governo como candidatos a presidente da câmara. Ao mesmo tempo que o esforço do Estado e a solidariedade nacional traduzida nos investimentos públicos extraordinários feitos nesses municípios são dados pelo próprio primeiro-ministro, em ambiente de campanha eleitoral, como obra pessoal dos presidentes das comissões instaladoras, transformados em candidatos. A instrumentalização de meios e recursos do Estado para fins partidários é também neste caso por demais evidente. Há indícios de má governação quando na presença do Sr. Primeiro Ministro em Santa Catarina na ilha do Fogo, pela boca do presidentes da comissão instaladora, o País fica definitivamente a saber que o pintar de amarelo as obras do Estado é parte de um esforço de criação da uma onda amarela claramente identificável com o partido no Governo. Que a cor amarela em palácios de justiça, aeroportos, centros de saúde, escolas, centros de juventude etc etc é a manifestação de um partido em permanente campanha, usando recursos do Estado, aproveitando-se das obras do Estado e servindo-se da exposição mediática privilegiada dispensada às cerimónias oficiais para influenciar os eleitores. Há indícios de má governação quando o Gabinete de Assessoria de Imprensa do Primeiro Ministro edita no mês das eleições autárquicas uma revista de propaganda oficial, a revista Ilhas, ricamente financiada pela publicidade de grandes empresas privadas do país. Das muitas questões que tal financiamento suscita, uma é inescapável, pelas suas graves implicações: A decisão comercial dessas empresas privadas em fazer publicidade numa revista do Governo visa o quê!? Certamente que não é para atingir clientes potenciais dos seus produtos e serviços, considerando que a revista pela sua própria natureza não tem uma estratégia comercial. Só pode, então, ser agradar ou ficar nas boas graças do Sr. Primeiro Ministro que é quem assina o editorial da Revista. Se assim é, à impropriedade do aproveitamento de subvenções privadas para propaganda do partido no Governo, em vésperas de eleições, junta-se o potencial de criação de relações promíscuas dos poderes públicos com o sector económico em que todos, o País, os cidadãos e os agentes económicos saem a perder. Em Cabo Verde, avançar no sentido da boa governança obriga a que se dê combate permanente à tentação de se reinstalar o partido/Estado em Cabo Verde. O esforço de construção institucional do Estado de Direito deve ser acompanhado de uma profunda renovação da cultura política. E a relação com os cidadãos terá que deixar de se caracterizar pelo paternalismo, pelo aprofundamento da dependência das populações e pelo recurso à instrumentalização do Estado para influenciar o eleitorado.

quinta-feira, abril 10, 2008

O Partido/Estado em onda amarela

                  
            aeroporto da Boavista


Anteontem no telejornal o candidato do PAICV para as autárquicas no município de Santa Catarina no Fogo disse, em tom desafio, que 11 casas de habitação social tinham sido construídas e entregues a mulheres chefes de família, todas pintadas de cor amarela, cor da onda amarela. Ao seu lado estava o presidente do PAICV e também primeiro-ministro a apoiar a sua candidatura e a prometer outras benesses à população. As declarações do candidato, e também presidente da comissão instaladora do município, retiraram qualquer dúvida, a quem ainda a tivesse, das razões porque obras e edifícios do Estado, materiais de publicidade de empresas públicas e instituições do Estado sistematicamente destacam o amarelo. É a onda amarela do PAICV que cresce todos os dias com os recursos do Estado e se mostra em todos os pontos do país, em todas as cerimónias oficiais e em todos os telejornais que dão conta da actividade do governo da República. O descaramento não podia ser maior. O abuso dos meios e recursos do Estado não podia ser mais escandaloso. O desprezo pelos princípios democráticos da liberdade, do pluralismo político, e da existência de um Estado, instrumento de consecução do interesse público, e não de quaisquer interesses, não podia ficar mais patente. Hoje realiza-se mais um Conselho de Ministros Descentralizado, desta feita em S. Salvador do Mundo. No telejornal, certamente que o país passará a saber que a onda amarela já chegou a esse município e que mais uma vez um presidente da comissão instaladora de um município irá ser apresentado como candidato às eleições autárquicas. Que as obras, financiadas pelo Estado ao longo dos três anos de criação de condições para o município funcionar e estar á altura de eleger os seus próprios órgãos de forma livre e justa, são, afinal, obras do presidente da comissão instaladora. E que por isso ele merece ganhar, depois de todos estes anos de campanha eleitoral. Face a isto tudo questões se colocam: Onde é que neste ambiente opressivo do peso ideológico e partidário do Estado, de atropelo de princípios essenciais à coesão e confiança no seio da comunidade nacional e de desvio de persecução do interesse público a favor de interesses privados encontrarão os cidadãos, particularmente os mais novos, forças para acreditar na igualdade de oportunidades? Como poderão libertar todas as energias na realização pessoal, profissional, empresarial, e, no processo, imprimir dinâmica necessária ao desenvolvimento do país, se aperceberem que o sentido de fairness na sociedade não existe, que o mérito não é reconhecido e que a criatividade é vista com desconfiança num mundo ainda nostálgico do monolitismo?

quarta-feira, abril 09, 2008

Excesso nos efeitos de renúncia?

A questão dos efeitos de renúncia de mandato nos órgãos municipais aparece de forma recorrente nos debates políticos nacionais, particularmente em tempo de eleições autárquicas. De facto, o artigo 59 dos Estatutos dos Municípios determina que os que renunciarem ao mandato não podem concorrer às eleições subsequentes que se destinam a completar o mandato dos anteriores eleitos nem nas eleições que iniciem o novo mandato. O problema é que a restrição de direitos políticos, do direito fundamental de ser eleito, como consequência do exercício do direito de renúncia só é prevista na Constituição para o presidente da república. É o que diz o nº 2 do artigo 133º: se o Presidente da República renunciar ao cargo não poderá, a partir da data da renúncia, candidatar-se para um novo mandato nos dez anos seguinte. Compreende-se que assim seja considerando que o presidente da república é um órgão singular e a renúncia ao cargo leva necessariamente à convocatória de eleições no prazo de noventa dias. Esse artigo evita que tensões ou conflitos resultantes do papel moderador do presidente da república na sua relação com os outros órgãos de soberania, Assembleia Nacional e Governo, desemboquem numa inesperada eleição presidencial com características de um autêntico plebiscito aos actos do presidente. Deixar a possibilidade ao PR de renunciar e voltar a candidatar-se constituiria uma tentação muito grande em situações de crise política, quando o que se pretende é que relações entre órgãos de soberania sejam marcadas pela serenidade na tomada de posições. Problema similar não existe ao nível municipal. Os órgãos municipais, a Câmara e s Assembleia Municipal, são órgãos colegiais. A renúncia de um dos titulares não acarreta novas eleições. É substituído imediatamente por um dos suplentes. Por isso o impacto político desestabilizador é mínimo se não nulo. Não se vê, portanto, razões ponderosas para penalizar a renúncia ou constranger o seu uso. Aos Deputados da Nação, por exemplo, a Lei não põe quaisquer impedimentos ao exercício do direito de renúncia ou define efeitos do acto em termos de restrições no acesso a órgãos de poder político. A dissonância representada pelo artigo 59 dos Estatutos dos Municípios compreende-se, porém, se se tiver em conta que a norma muito provavelmente é uma norma reactiva. Nos fins de 1994, princípio de 1995 o país assistiu à cena da renúncia colectiva da Câmara Municipal de S.Vicente, orquestrada pelo seu então presidente Onésimo Silveira. Apesar de se desconhecer na Lei essa figura de renúncia colectiva, o Governo de então permitiu que a manobra política fosse levada até às suas últimas consequências. Ou seja, aceitou a ideia de que com a renúncia colectiva a Câmara Municipal de S.Vicente tinha perdido o quórum de funcionamento. E permitiu que os que renunciaram continuassem tranquilamente a administrar o município e que se apresentassem como candidatos para terminar o mandato que tinham deliberadamente interrompido. Posteriormente, via legislação, o Governo procurou evitar a repetição de situações análogas. Só que a norma criada é excessiva em termos de restrição de direitos e procura responder a situações improváveis e que só aconteceram uma vez devido à complacência das autoridades que detêm a tutela da legalidade da actividade municipal. Porque restringe direitos fundamentais sem se justificar pela necessidade de equilíbrio e funcionamento do sistema político, a norma 59 do estatuto dos municípios revela-se de duvidosa constitucionalidade. Urge, pois, que seja revista em sede do poder legislativo ou de fiscalização da constitucionalidade para que deixe der ser um obstáculo irrazoável a candidaturas às eleições autárquicas.  

domingo, março 30, 2008

Carta aos Deputados do MpD

A carta de renúncia do Presidente do Grupo Parlamentar, de 25 de Maio, aponta como razões a necessidade de se dedicar às actividades de campanha enquanto candidato. Refere-se explicitamente à uma certa incompatibilidade em termos de tempo e dedicação entre as actuais funções e a condição de candidato a presidente da Câmara Municipal da Praia. A renúncia parece justificar-se pela necessidade de não prejudicar o Grupo Parlamentar. A realidade, porém, é que os prejuízos já foram feitos. A actividade do GP decresceu consideravelmente ao longo do ano 2007. A partir de Outubro minguou-se e o resultado é que nos seis meses deste ano parlamentar não se interpelou o Governo uma única vez, não se propôs qualquer debate e nem sequer se fez uma simples declaração política. O GP ficou por iniciativas legislativas relativas aos símbolos nacionais e ao cerimonial da República e ainda por uma outra sobre usucapião que, por desatenção política, foi esvaziada pelo Governo. Nos últimos dois meses as sessões têm se reduzido, pela primeira vez na história do Parlamento, a 1 dia e meio de trabalho em Fevereiro e a dois dias em Março. As razões que terão o PAICV em diminuir a actividade parlamentar e, por essa via, a pôr em causa a credibilidade do Parlamento e dos deputados, são absolutamente compreensíveis. As do MpD, líder de oposição e a sofrer os efeitos de bloqueios na sua comunicação com o País, para ser cúmplice nisso, já são mais difíceis de entender. Por isso, considerando os estragos feitos, não é por mais uma sessão, a sessão de Abril, antes das eleições de 18 de Maio que o grupo iria ressentir das dificuldades de tempo e dedicação do seu líder parlamentar. A justificação terá que ser outra. É evidente que o timing escolhido resulta da dinâmica de interesses no partido. Interesses que já encontraram residência no Grupo Parlamentar, prejudicando este e pondo em causa a credibilidade do partido. E que pretendem continuar na mesma senda avançando com soluções inadequadas. Compete, porém, aos deputados, sem excluir a participação de outros órgãos do partido, nos termos dos estatutos, encontrar uma solução de direcção. Uma solução que rapidamente faça recuperar o Grupo Parlamentar do nadir da sua actuação política e projectá-lo como o instrumento privilegiado de credibilização do MpD como alternativa de governo. O mandato de dupla origem - povo e partido - dá aos deputados uma responsabilidade muito especial. A sua prestação no Parlamento tem a dupla função de fiscalizar o governo e exercer o contraditório e, ainda, manter credível uma alternância de governo. Os privilégios de mandato do deputado justificam-se pelo serviço que prestam à República de assegurar o sistema plural de governo e garantir alternância. Interesses espúrios no partido não podem nem devem bloquear esse serviço fundamental. O País e o MpD esperam que os Deputados sejam capazes de eleger uma nova direcção que vá para além desses interesses e coloque o Grupo Parlamentar do MpD à altura dos desafios de hoje e de uma governação de Cabo Verde cada vez mais complexa, num mundo em mudanças rápidas e profundas.  Humberto Cardoso    27 de Março/2008

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Stand Down

Uma vez mais o Movimento para a Democracia fica em sobressalto sob o impacto de acções e declarações dos seus ex-presidentes. A inesperada entrada em cena de Gualberto do Rosário como possível candidato às autárquicas em S.Vicente repete o mesmo padrão de interferências na vida do partido já constatado em outros momentos cruciais da vida política nacional e partidária. Isso foi notório em 2004 após a extraordinária vitória do MpD nas autárquicas. O processo de escolha do candidato do partido a primeiro ministro que se seguiu às eleições e que devia culminar na Convenção do MpD foi sujeita a manobras violentas dos ex-presidentes. Gualberto do Rosário, posicionou-se, então, para presidente do MpD enquanto líder de Sintonia, movimento ao qual, segundo ele, os candidatos Agostinho Lopes e Ulisses Correia e Silva também pertenciam. Ou seja, a sua candidatura esvaziava as dos outros dois. A sua posterior desistência e o subsequente apoio dos activistas do Sintonia a Agostinho Lopes deixaram a forte impressão que tudo se tratara de um jogo com vista a neutralizar o Ulisses. Carlos Veiga, por sua vez, lançou um apoio firme mas discreto à candidatura de Jorge Santos, um ex-militante do MpD com mais de dez anos afastado das lides partidárias. A guerrilha interna tinha voltado a instalar-se após três anos de crescimento, maturação e afirmação do MpD enquanto partido de oposição, três anos que culminaram na maior vitória autárquica de sempre. A convenção de 2004 consagrou o regresso das tricas políticas. A solução de liderança encontrada provocou uma queda brusca e estrondosa nas expectativas de observadores nacionais e estrangeiros quanto à possibilidade do MpD ganhar as eleições legislativas. Durante o ano de 2005 o País pôde ver o PAICV a recuperar-se enquanto o MpD mostrava-se incapaz de se tornar credível como alternativa de governo. As duas derrotas sucessivas, legislativas e presidenciais, são, em boa parte, consequências directas desse estado de coisas. Em 2003, sinais dessas interferências dos ex-presidentes já se tinham manifestado. Na Praia, um auto proclamado grupo de reflexão, onde Carlos Veiga, alguns militantes do MpD e altos dirigentes do PCD pontificavam, desencadeou uma iniciativa com vista à coligação do MpD e do PCD nas eleições autárquicas. Negociações foram encetadas e um acordo só não se concretizou devido a notória arrogância do PCD. Reclamava mais peso político do que os seus resultados eleitorais alguma vez demonstraram. Via-se como um partido de generais mas sem soldados, enquanto o MpD tinha soldados sem comando. A barganha proposta era clara: ceder generais e obter tropas. As autárquicas de 2004 revelaram o bluff. O MpD foi sozinho para a vitória. Não obstante isso, o grupo de reflexão manteve-se na mesma linha. Mas adoptou uma outra linguagem: Regresso ao ano noventa. Para o grupo, o regresso a uma pretensa idade de ouro de unidade no partido seria a chave para ganhar outra vez as eleições. Como hoje se sabe os resultados eleitorais de 2006 fizeram cair por terra essa abordagem nostálgica da política. Uma abordagem que em vez de preparar o partido para confrontar os desafios do presente e do futuro do país fá-lo viver numa miragem, esperando que a História se repita mais uma vez. Mas, as lições de 2006 não foram devidamente apreendidas. Diluíram-se nas acusações de fraude eleitoral. A consequência directa disso é a eleição de Jorge Santos na mesma base com que se tinha apresentado em 2004: restaurar a unidade do partido com o regresso dos que saíram em dissidência nos anos noventa. A dinâmica recente do partido é reveladora a esse respeito. O MpD aparenta hoje a face de um partido que foi infiltrado por dirigentes de partidos desaparecidos ou moribundos. De facto, alguns dos novos aderentes não se limitaram a entrar e a percorrer, humilde e construtivamente, o caminho de qualquer outro militante que se inicia ou se reencontra com o partido. Literalmente guindaram-se para posições regionais e nacionais de decisão e estratégia política. Hoje, apesar das derrotas das legislativas e das presidências, o MpD insiste em provar nas autárquicas que NOVENTA o fará ganhar outra vez. O impacto do protagonismo recente de Gualberto do Rosário deixa claro que afinal todos os ex-presidentes mantêm intactos os seus soldados e a sua rede de influência. Coexistem e conservam sempre a possibilidade de negociar entre si, mesmo que, momentaneamente, um ou outro esteja na mó de baixo. Ganham porque se mantêm pessoalmente influentes. Não é certo, porém, que o MpD ganhe com esse tipo de jogo de influências no seu seio. Realmente, as de facto facções dentro do partido não representam visões, estratégias ou formas de acção distintas. Se assim fosse o partido beneficiaria da dinâmica que o confronto proporcionaria. As facções são estéreis per si porque dependentes de glórias antigas e tributárias de relações do passado. Isso nota-se na deriva recente do discurso político para o populismo esquerdista totalmente incaracterístico do MpD que modernizou Cabo Verde, construindo a democracia liberal e constitucional e lançando as bases da inserção na economia mundial. Democracia implica a existência de alternativas políticas de governo viáveis e credíveis. Isso pressupõe necessariamente partidos políticos capazes de acompanhar, fiscalizar e contrariar a governação a passo e passo e, ainda, de perceber os tendências actuais e futuras do mundo. Ou seja, partidos capazes de fornecer soluções múltiplas ao país de como lidar com os desafios que a cada momento se colocam. A saúde do sistema político depende muito da saúde interna dos partidos. De modo o que se passa no seio deles não é somente problema dos militantes e dos amigos próximos. É também de todos os cidadãos caboverdianos que hoje se revêem no pluralismo político e sentem no dia a dia a importância de se ter uma oposição firme, combativa, fiel aos princípios e valores da República e com uma visão séria e distinta para o País. Para isso é fundamental que o partido não fique com os olhos postos no passado, nas glorias do antigamente e nos mitos que circunstâncias específicas produziram. È tempo para se dizer aos ex-presidentes que, assim como no passado souberam reconhecer o momento para se erguerem - stand up - pelo País e pelo Mpd, vem um tempo que os chama à retirada, a um stand down. O extraordinário papel que tiveram nas lides partidárias e nacionais aconselha a uma maior descrição nas lides com o partido actual. Só assim se conservam como referências fundamentais do partido e da unidade da sua herança e trajectória. Só assim podem libertar o MpD para, hoje, encontrar o caminho certo e continuar a servir Cabo Verde com a mesma energia, criatividade e determinação com que se distinguiu no passado.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

É a atitude, ....!

Já estamos em 2008. Os desafios que 2008 e os anos seguintes irão colocar a Cabo Verde são extraordinários. A graduação para o grupo de países de rendimento médio pôs fim a dezenas de anos de ajudas substanciais e de empréstimos concessionais, ou seja, de empréstimos com juros baixos e pagamentos a longo prazo. A entrada para a Organização Mundial do Comércio (OMC) obriga a uma inserção na economia mundial num ambiente de menor protecção do empresariado e da iniciativa privada nacional, de maior exposição à concorrência de operadores externos, no fornecimento de bens e serviços ao mercado interno, e de diminuição de receitas do Estado, devida ao desarme tarifário faseado, incluído no acordo de adesão. Nessas condições não será fácil gerar um nível de crescimento económico, capaz de resolver o problema grave de desemprego e de criar uma expectativa e uma confiança, em todos os caboverdianos, de que o seu rendimento e as suas condições de vida irão melhorar, paulatina mas seguramente, nos próximos tempos. A tarefa ficará mais difícil se não houver o engajamento forte e continuado da sociedade caboverdiana. Não é perceptível que a sociedade se tenha apercebido da natureza e magnitude dos problemas. Talvez, porque os governantes se omitiram, ou falharam em os comunicar de forma clara, precisa e compreensiva. Ou, então, porque se caiu na via do facilitismo e do eleitoralismo. Anuncia-se o turismo, as infraestruturas e a formação profissional como peças, provavelmente mágicas, de um puzzle que, resolvido, resultará automaticamente no desenvolvimento almejado. O discurso do Natal do Sr. Primeiro Ministro foi uma oportunidade perdida de colocar os desafios do país na devida perspectiva e de dar um sinal do que se impõe fazer para que eles sejam vencidos. Foi de facto um discurso de auto elogio e na via da mesma propaganda sistemática que o governo vem brindando o país, não obstante a pretensa humildade do “tivemos juntos”, “conseguimos juntos”. Ficou de fora, por exemplo, chamar a atenção para a importância fulcral de mudança de atitude e de postura do Estado e da sociedade no sentido de uma maior autonomia, iniciativa e liberdade dos indivíduos face ao Estado. Também, não pôs ênfase devido no reconhecimento do mérito e na necessidade do desenvolvimento do capital social, com as implicações conhecidas: mais confiança entre pessoas e entre pessoas e instituições públicas; mais civismo; e condenação pública do clientelismo, do uso indevido de bens públicos e do enriquecimento fácil pela via de contorno ou violação de regras. Muitos ainda pensam que recursos naturais constituem a chave para a riqueza das nações. Sonha-se com petróleo ou gás natural. Na ausência destes concede-se a outras actividades, por exemplo, o turismo as qualidades mágicas de enriquecimento rápido e diz-se: turismo poderá vir a ser o petróleo ou o diamante de Cabo Verde. A crença na renda, não interessando a sua origem, ouro, petróleo, diamante, ou, ainda, ajuda externa, domina o imaginário caboverdiano, apesar de repetidamente na história da humanidade se ter revelado falsa, e mesmo catastrófica, para os países que nela persistem. Não só arrebata o imaginário como impregna a atitude das pessoas e das instituições. E aqui está o busílis da questão. Sabe-se hoje que o desenvolvimento só acontece num setting cultural certo, onde reina a confiança. A confiança que resulta designadamente da igualdade de todos perante a lei, do respeito pela propriedade, dos tribunais fazer cumprir os contratos e proteger os direitos fundamentais, e da segurança, face ao uso abusivo do poder do Estado e face ao crime. Ora, em Cabo Verde acredita-se que um indivíduo só ganha adicionando o que subtrai aos outros num jogo de soma zero. A ideia marxista de exploração ainda afecta as relações laborais. A desconfiança generalizada entre pessoas dificulta qualquer forma de cooperação para atingir objectivos colectivos. Avança-se não adicionando esforços através de potenciação das qualidades de colegas, membros e associados mas sim tirando pessoas do caminho, pela via da intriga e da focalização no negativo, ou pela via passiva do oportunismo, free riders, em que se deixa aos outros o ónus de questionar, reivindicar, denunciar. O outro lado disto é o sistema de favores que tal ambiente propicia. O Estado favorece certos interesses, indivíduos ou empresas. Entre a administração pública e os utentes a relação não é de serviço publico mas de quem presta favores. A relação entre governantes, representantes municipais, instituições públicas diversas e as populações não é de estimular, de facilitar e de reconhecer iniciativas individuais e de grupo, orientadas para o bem comum nos domínios económico, social e cultural. Privilegia-se a relação vertical, o doador e o recipiente, o exibicionismo de que quem dá e a gratidão de quem recebe, a reprodução da dependência, as relações de poder que podem vir a ser úteis em períodos eleitorais. Nesse quadro compreende-se a ausência de uma cultura de serviço em Cabo Verde. Ninguém gosta de ser visto a servir, a acomodar as necessidades dos outros e a satisfazer os seus desejos. Quem serve expõe-se a ser visto como menor numa sociedade onde transacções entre pessoas ou entidades querem-se verticais, denotando as relações de Poder entre elas. A antipatia e mesmo hostilidade visíveis nas pessoas que prestam serviços é, em parte, reacção a essa percepção de inferioridade. Perante tudo isto vê-se que é crucial para Cabo Verde uma mudança de atitude. De todos! O País tem que produzir em vez de viver da renda que até agora a ajuda externa representava. Para produzir tem que confiar que a vida pode e deve ser um jogo de soma positiva. E que todos podem ganhar. Mas para isso a cooperação entre indivíduos é fundamental e um sentido de fairness deve ser cultivado, o mérito reconhecido e as regras cumpridas. Já estamos atrasados. Há uma oportunidade no Turismo e até agora só se viu especulação na perspectiva rentista. A cultura de serviço essencial para uma economia de serviços ainda não existe. O espírito empresarial necessário para potenciar o turismo sofre revezes todos os dias no choque com os múltiplos obstáculos representados pelo informalismo da economia, a falta de sensibilidade do Estado, a persistência do sistema de favores e os custos de transacção e de contexto, que persistem por aí e sustentam pequenos interesses já bem entrincheirados. Parafraseando um slogan de campanha de Bill Clinton: É a atitude, .....!


sexta-feira, dezembro 21, 2007

Políticas Públicas. Onde Param?

A forma como em Cabo Verde acções, normalmente enquadradas em políticas públicas, são levadas à prática dá, muitas vezes, a impressão de seguir lógicas outras que não a eficácia, em termos de resultados, e a eficiência, na utilização dos meios. Fica-se com a sensação que tendem a incidir sobre um aspecto do problema, e nem sempre o principal. Outras vezes, parecem servir mais quem os desencadeia e sustenta e menos os seus supostos alvos. Noutras vezes, ainda, acontecem essencialmente não por serem prioritárias mas sim porque há um financiamento disponível e impõe-se ou mostre-se conveniente utilizá-lo. É o sentimento que se tem depois de quase todos os dias se assistir na comunicação social, particularmente na televisão, ao desfile de seminários, workshops, fora, formação e por aí adiante, cada um segurando o seu pedaço dos problemas do País. Imagine-se logo toda a indústria que vive desses eventos: da criação em série deles, dos estudos, da montagem, do fornecimento de coffee breaks, etc. Por outro lado, compreende-se a cobertura mediática sempre garantida à representante das Nações Unidas: a preocupação em manter contente as fontes de financiamento. Diz-se que tudo isso é consequência do alto nível de dependência. Talvez se esteja mais próximo da verdade dizendo que deriva, em boa parte, de interesses instalados no País que aprenderam a viver, e bem, do sistema de ajudas, empréstimos e doações. Deve-se, porém, perguntar onde ficam as políticas públicas nesse mar de interesses. Um mar onde cumplicidades locais se conjugam com desejos de burocracias internacionais e multilaterais em avançar projectos de estimação e em impor uniformidade de processos e procedimentos, sem muita consideração pelas realidades locais. De facto, fica-se com a impressão que políticas públicas deixaram de ser definidas e executadas por quem de Direito: as estruturas de governação democrática. Terão sido substituídas por amálgamas de acções, cada uma com os seus patrocinadores, agentes e beneficiários, resultando em ineficiências que o País, a prazo, acaba sempre por pagar. Desde dos fins de Outubro está em marcha acções de prevenção do cancro de mama nas mulheres. Sensibilização diversa, cartazes e spots na televisão têm sido as vias escolhidas. Organizações como ICIEG, Verdefam, Morabi, OMCV colocaram-se à frente dessas acções. Muito bem. O cancro de mama é a principal causa de morte das mulheres entre os 35 e o 65 anos nos países em que as doenças infecciosas já foram efectivamente debeladas, emergindo as crónicas como as mais mortíferas. Cabo Verde foge a esse padrão: não é o cancro de mama o mais frequente e mortífero, mas sim o do colo do útero. Porquê!? Aparentemente não se sabe a razão profunda. Estudos epidemiológicos ainda não foram feitos. Porém uma coisa é certa: denota um grande défice em termos de prevenção. Por isso causa estranheza que, em projectando uma campanha de prevenção de cancro de mama, não se faça em simultâneo uma campanha para prevenir o cancro com maior incidência, o do colo do útero. O público alvo é o mesmo: mulheres. Hoje sabe-se seguramente que o cancro do colo do útero é causado pelos tipos 16 e 18 do Vírus do Papiloma Humano (HPV). Sabe-se também que é transmitido por via sexual. A prevenção desse cancro aparentemente é mais simples do que o de mama cujas causas são diversas e de natureza mais complexa. Testes de citologia com relativa frequência, designadamente os chamados papanicolau, evitariam muitos casos. As vacinas colocadas no mercado desde de Junho de 2006 pela Merck já levaram muitos países a assumirem a necessidade de vacinar todas as meninas a partir dos 12 anos, antes do início da vida sexual. Isso porque constata-se que o HPV está espalhado na população e importa chegar ás meninas antes de qualquer contacto. Os homens, mesmo portadores do HPV, não têm sintomas e passam facilmente o vírus em qualquer relação sexual não protegida. Considerando estes últimos aspectos não se compreende bem que gastando tanto dinheiro no combate ao HIV/Sida, 15 milhões de dólares (2002-2008), empréstimo de Cabo Verde junto ao Banco Mundial, em acções, às vezes, de eficácia duvidosa, não se o utilize de forma mais compreensiva. Designadamente para prevenir as doenças sexualmente transmissíveis e instruir as mulheres no cumprimento de certas regras no tocante a exames periódicos. E também que não se destine uma maior fatia desse dinheiro para, concomitantemente com o combate à SIDA, se equipar instalações de saúde, em todas as ilhas, com meios de análise que permitam o diagnóstico em tempo dessa doença, traumatizante e mortífera, para a mulher caboverdiana . O Governo tem a obrigação de dirigir a execução de políticas públicas não se deixando substituir nas suas funções por iniciativas de grupos de interesses, NGOs ou outras organizações com agendas únicas ou demasiado estreitas. Isso, contudo, não significa que não deva facilitar a participação de todos, procurando ganhos de eficiência mas nunca descartando a responsabilidade, primeira e última, pelo bem público, exigível aos governantes nas democracias. Veja-se o tempo que as autoridades levaram a fazer a ligação directa da chamada pequena criminalidade, os caçubodi, com o uso crescente da cocaína barata, o crack ou base ou pedra como é conhecida em Cabo Verde. Não obstante o bem financiado programa de luta contra a droga. Está-se ainda à espera que a consciência dos perigos do crack, da forma como se difunde, vicia e causa criminalidade seja levada á sociedade. É preciso, por exemplo, ultrapassar a forma escamoteada como o problema é, muitas vezes, tratado nos órgãos de comunicação social para que os cidadãos, as famílias e as comunidades tenham a verdadeira percepção do que estão a enfrentar. Por tudo isso pouco importa que os governantes se mostrem em todas as cerimónias de aberturas e fechos dessas acções, se com a presença e os discursos de circunstância pouco elucidam ou mobilizam. O que todos esperam é que sejam executantes efectivos de políticas públicas, às quais essas acções devem organicamente integrar ou convergir.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

O caminho de regresso

O Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros na tarde do dia 19 de Novembro anunciou que o Conselho Europeu tinha acabado de dar o seu acordo político ao princípio da Parceria Especial entre Cabo Verde e a União Europeia. A notícia, já conhecida horas antes, colocara o País em ambiente festivo. Os órgãos de comunicação social públicos encontravam-se num estado de euforia total. Nas múltiplas intervenções de felicitações ao País e aos seus governantes todos se referiam ao acordo de parceria de Cabo Verde com a União Europeia como facto. Em nenhum momento se perguntou quando é que a República de Cabo Verde e a União Europeia assinaram ou assinariam tal acordo. Também quando é que o acordo seria apresentado ao Parlamento para ratificação nos termos do artigo 178 da Constituição. Tais questões nunca foram colocadas. Optou-se por uma linguagem pública vaga, sem rigor nem precisão nos conceitos mas que globalmente tinha o efeito de induzir a população numa falsa percepção dos desafios do país, dos meios que estão ao seu alcance para os enfrentar e das verdadeiras relações que tem ou pode ter com outros países e regiões económicas e politicas. No anúncio do Sr. Ministro estão as palavras acordo, princípio, parceria especial. O que oficialmente se quis dizer é que o Conselho Europeu deu acordo, ou seja concordou, com o princípio de uma parceria especial. A escolha feita das palavras para o anúncio, induziu porém uma outra ideia: a ideia de um acordo, ou seja, como dizem os entendidos, de um tratado em forma simplificada, firmado entre partes. Obviamente que isso não foi inocente. A ambiguidade gerada serviu a propaganda oficial. Exaltou a vitória política do Governo. E mobilizou o partido do Governo para desferir ataques contra adversários políticos, logo depois destes, levados pela retórica oficial, terem se juntado ao coro de homenagens e passado uma imagem de consenso nacional quanto a matérias essenciais de política externa. Mesmo em momento de regozijo nacional não se abandonou a atitude habitual de acusar os outros de anti patriotismo por razões de opinião, de negar trabalho já feito (minimização do Acordo de Cooperação Cambial) e de pôr em causa a construção democrática dos anos noventa, que lançou o País no caminho da modernidade. Com isso certamente que o País e a sociedade caboverdiana não ficaram melhor capacitados para dar conteúdo ao princípio da parceria especial que a UE acordou em desenvolver com Cabo Verde. Os objectivos pretendidos, no quadro dessa parceria, de comunhão de valores da democracia, de respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos e pelo Estado de direito democrático e, ainda, de abertura económica para o mundo correm o risco de se diluírem e se perderam por razões espúrias de manutenção do poder e de luta partidária. Ao mesmo tempo fragilizam-se as bases da institucionalização essencial a uma governança (gouvernance, governance) de nível progressivamente superior que a crescente globalização exige e que a luta contra as novas ameaças não prescinde. E o desafio do desenvolvimento pode não ser ganho se não for encarado com a postura certa de indivíduos, da sociedade e do Estado. Alguém uma vez disse que quem falha em avaliar o passado com os valores do presente não tem futuro. De facto, se não se compreender que a decisão do Conselho da Europa, em aceitar o pedido de Cabo Verde de juntos desenvolverem uma parceria especial, suporta-se na crença que há na sociedade caboverdiana uma forte vontade de convergência com os valores europeus de liberdade individual, de democracia e de liberdade económica, todo o esforço arrisca-se a ficar aquém do desejado. Para isso é preciso pôr na devida perspectiva a trajectória do país. A independência em 1975 tinha lançado Cabo Verde numa deriva para longe desses valores. O partido único, ideologicamente inimigo das liberdades, atrasou por quinze anos a entrada de Cabo Verde na Terceira Vaga de democracia, iniciada com o 25 de Abril em Portugal. A aventura da unidade Guiné-Cabo Verde e as políticas de reafricanização dos espíritos geraram uma atitude de confronto com as economias mais dinâmicas que tornou o país hostil ao investimento externo, ao turismo e alimentou políticas autárcicas desastrosas. As únicas ligações com o mundo desenvolvido (Europa, Estados Unidos) eram basicamente passivas através das importações, ajudas e remessas de emigrantes. Durante o mesmo período as ilhas Maurícias, por exemplo, cresciam a taxas elevadas com exportações para Europa e América, impulsionadas pelo investimento directo estrangeiro. Hoje o rendimento per capita das Maurícias ultrapassa os seis mil dólares enquanto o de Cabo Verde não passa muito dos dois mil dólares. A estagnação económica que caracterizou o fim da década de oitenta precipitou o descrédito do regime. Com o 13 de Janeiro, Cabo Verde iniciou o caminho de volta seja em termos de valores, seja no domínio económico. A Constituição de 1992, a construção das instituições democráticas, a liberalização do comércio externo, a abertura ao capital estrangeiro, o fomento do sector privado nacional, o desenvolvimento do sector financeiro, as privatizações, são etapas de uma jornada de regresso à economia mundial, naturalmente cheia de escolhos, mas que resultou. A transição de uma economia estatizada, fechada, hostil à iniciativa privada e ao capital estrangeiro foi feita sem os traumas que outras sociedades, em condições similares, sofreram. A média de crescimento de 8,5% no período 1995-2000 dá conta do sucesso obtido na transição do sistema económico, nas reformas e na modernização da economia. O Acordo Cambial de 1998 assinado com Portugal em 1998 e ratificado pela Assembleia Nacional foi instrumental na criação de confiança na condução das políticas económicas. O Acordo determinou o peg do escudo caboverdiano, primeiro, ao escudo português e, depois, ao euro. Com o acordo os governos de Cabo Verde ficaram obrigados a seguir políticas orçamental e fiscal criteriosas e em convergência com os critérios de Maastricht no tocante ao défice orçamental e à dívida pública. Isso ficou, reflectido, designadamente, na Lei do Enquadramento Orçamental e na obrigação constitucional dos partidos políticos no parlamento negociarem uma maioria de dois terços para alterar os impostos. Ou seja, regras de governança ficaram estabelecidas, garantindo que, independentemente da cor dos governos saídos das eleições, o caminho só podia ser um: o caminho da liberdade, do aprofundamento da democracia e da abertura e integração com o mundo. O reconhecimento de tudo isso por parte da UE deve reforçar a convicção dos caboverdianos em continuar o caminho de maior autonomia para os indivíduos, de criação de oportunidades para todos, de incentivo à iniciativa privada e de um maior cosmopolitismo. De evitar é a tentação de usar os recursos eventualmente disponibilizados pela UE para aumentar a dependência das pessoas em relação ao Estado. O Ministro dos Negócios Estrangeiros disse em Maio de 2007 aos ministros da UE com a pasta de desenvolvimento que o pedido de parceria não era parte de uma estratégia para conseguir recursos adicionais. O pedido tinha, sim, origem, segundo o Ministro, na ambição caboverdiana de aceleração do processo de desenvolvimento, de promoção e da segurança, da democracia, da liberdade, e do respeito dos direitos dos homens. Espera-se que assim seja.

segunda-feira, agosto 27, 2007

Ganhos de civilização

Na semana passada o Senhor Presidente da República desencadeou o processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade de algumas normas da lei de investigação criminal, recentemente aprovada na Assembleia Nacional. Um acto quase inédito em Cabo Verde, não obstante as óbvias situações que, no passado, requereram tal uso do poder moderador do PR. Um exemplo recente disso foi a legislação sobre o IVA, que veio a provar-se inconstitucional em sede de fiscalização sucessiva e abstracta, requerida pelos deputados do MpD, mas que, nos três anos que vigorou, já tinha prejudicado enormemente os caboverdianos e a economia do país. O pedido formulado pelo PR ao Tribunal Constitucional incide essencialmente sobre a norma que reduz as competências do Ministério Público na condução e supervisão do processo de investigação criminal, a favor de uma liberdade excessiva da acção da polícia. Questões de maior importância enformam essa norma. A sua apresentação deixa ver a opção deste Governo em soltar as polícias de um certo controlo jurisdicional, exigido pelo Constituição e já com tradução consequente nos estatutos dos magistrados judiciais e do ministério público e no Código de Processo Penal, uma opção reveladora de derivas securitárias. A sua alteração significaria mudanças inviesadas no estatuto dos magistrados sem o processo legislativo próprio. A sua aprovação por maioria absoluta levaria à violação dos artigos 175º, alínea e, 159º, nº 4 e 160º, nº3, todos da Constituição, que prescrevem maiorias de dois terços dos deputados para matérias respeitantes ao estatuto dos magistrados judiciais e do ministério público. O grupo parlamentar do MPD veio a público relembrar que as preocupações do PR são as mesmas patentes no parecer unânime da Comissão Especializada dos Assuntos jurídicos e Constitucionais da A N. Com uma diferença, os deputados do PAICV, membros dessa Comissão, perante a teimosia e a arrogância do Governo, desculparam-se, retractaram-se e quase que se auto-criticaram, na Plenária, dando o dito pelo não dito. O resultado foi o espectáculo do Plenário da Assembleia Nacional, renegando o parecer unânime da sua Comissão de Assuntos Jurídicos e Constitucionais, só para satisfazer a ânsia de governantes em fazer aprovar leis sem a maioria estabelecida pela Constituição. É evidente que perante isso o PAICV não tem argumentos. E quando não tem, passa para a demagogia mais torpe e para insultos pessoais dos mais miseráveis. Na quarta-feira passada, na rádio e televisão, o País viu o PAICV, mais uma vez, a acusar a oposição democrática, o MPD, de aliança com criminosos e com o crime. E porquê?! Porque o MPD objecta quando o PAICV quer ultrapassar as garantias de defesa instituídas na Constituição, restringir gravemente os direitos dos cidadãos e retirar ao poder judicial, por um lado, a tutela e a defesa desses direitos e, por outro, as competências necessárias para garantir que o Estado, particularmente, a Polícia, aja e actue eficazmente, mas sempre dentro dos limites da Lei. O PAICV insiste com essa ideia peregrina, mas perigosa, de que, se a polícia tivesse mais poderes, ou seja, se estivesse mais solta das amarras da lei, o crime seria efectivamente combatido e todos se sentiriam seguros. A realidade histórica, nossa e de outros povos, prova que essa crença é absolutamente falsa e ilusória. Estados policiais e Estados com obsessões securitárias para cima dos direitos dos cidadãos e do controlo jurisdicional não diminuem significativamente o crime. Mas os abusos da polícia aumentam extraordinariamente. O Estado torna-se, de facto, no maior criminoso, prendendo, torturando e assassinando cidadãos, em muitos casos, aos milhares e até milhões, como é de conhecimento de todos. Nós em Cabo Verde temos experiência directa de várias situações durante o Regime do Partido Único, em que cidadãos ficaram completamente à mercê da violência do Estado, sofrendo prisão, sevícias e morte prematura. Porque não se lhes reconheciam direitos e porque os tribunais não tinham poderes para os defender e para conter a sanha do Estado e das Forças de Segurança. O 31 de Agosto de 1981 em S.Antão deve sempre lembrar-nos o que significa estar-se completamente indefeso perante a fúria do Estado e das forças policiais. O PAICV é que, na sua denegação da história, parece não querer aprender. De facto, os direitos fundamentais na Constituição e a independência do poder judicial nunca protegeram os criminosos. Eles nem chegam a um porcento da população. A Constituição protege sim contra abusos do poder a maioria de mais de 99 por cento, que não comete crimes. Mas também, aqueles que tiveram o infortúnio de infringir a lei, assegurando, a todo o momento, o respeito pela sua dignidade humana e o cumprimento das suas garantias de defesa. Isso é um sinal de civilização. É fundamental que o PAICV absorva definitivamente estes ganhos civilizacionais do povo de Cabo Verde, para podermos, tranquilamente, discutir a melhor política criminal e ponderar sobre a melhor forma de a executar.

terça-feira, agosto 21, 2007

RTC: servidão pública ou partidária?

O Festival da Baía das Gatas é o maior evento turístico de Cabo Verde. Realizado anualmente nos 3 dias do fim de semana de Lua Cheia em Agosto, é um factor chave de marcação de férias de verão para muitos estrangeiros e emigrantes e, também, para nacionais, residentes nas outras ilhas. O movimento nos hotéis, bares, restaurantes, lojas, táxis etc, que resulta da chegada de milhares de pessoas a S. Vicente contribui extraordinariamente para a economia da ilha. E aponta o caminho para o desenvolvimento de S.Vicente como a ilha/cidade de eventos. De facto, o fenómeno de Baía das Gatas, em que a cidade parece deslocar-se para mais de doze quilómetros durante dois dias, ilustra a disposição da população do Mindelo em participar massivamente e com entusiasmo em todos os eventos sejam eles, Carnaval, festividades de fim do ano, festival de teatro, festas de romaria etc. Visitantes, nacionais e estrangeiros, rapidamente envolvem-se em tudo. A leveza e a descontracção da interacção social convidam a uma participação activa, quase eufórica, no frenesim, criado pelos grandes eventos. Isso faz da experiência sanvincentina uma referência importante na perspectivação de um turismo em Cabo Verde que vá além do turismo de mar e sol. Não se compreende, pois, a omissão da Televisão Pública na transmissão do festival da Baía das Gatas para o país e para o mundo, limitando os efeitos económicos do festival e os seus objectivos de promoção de S.Vicente e de Cabo Verde como destino turístico. De facto não se compreende para quê ter uma televisão do Estado se ela não se sintoniza com as grandes apostas de desenvolvimento económico, social e cultural. Custos em estabelecer um link hertziano a partir da Baía e na deslocação do pessoal justificaram a ausência. Razões similares parecem não ter sido um óbice à presença da RTC em S.Nicolau a fazer a cobertura/propaganda do Governo em reportagens escandalosamente longos. Nada, porém, justifica que a RTC não potencie os vultuosos investimentos da sociedade, do empresariado local, das Câmaras Municipais e do Estado na promoção de Cabo Verde, designadamente os já feitos no âmbito da realização do festival de 2007. Por outro lado, ninguém pode acreditar que a RTC faça o bom uso do dinheiro da taxa de televisão e dos valores que lhe são transferidos do Estado, impostos pagos por todos, quando opta por gastar meios valiosos em futilidades televisivas ou servindo interesses partidários do Governo em vez de prestar serviço público. Tudo fica ainda mais estranho quando se percebe que a RTC, na Baía das Gatas, podia obter conteúdos únicos, sem pagar cachet ou direitos aos artistas ali presentes, e recusa-se. Ou seja, a RTC põe-se na posição caricata de querer que alguém lhe pague o acesso grátis a conteúdos valiosíssimos de Paulino Vieira e de muitos outros artistas nacionais e estrangeiros?! Conteúdos que, ao longo dos anos, poderiam constituir material de horas e mais horas de programação e de possível distribuição por outras vias?! Por aí vê-se que a RTC não dá muita importância à obtenção de conteúdos legítimos e de particular interesse para o país e para a promoção dos seus músicos, quando isso envolve algum custo ou esforço em particular. Provavelmente são os maus hábitos adquiridos no desrespeito pela propriedade intelectual e artística. Desrespeito notório no passar sistemático de filmes e de música sem pagar direitos, contribuindo para inviabilizar o cinema em Cabo Verde e retirando incentivos aos artistas e criadores nacionais. Desrespeito fatal para um país em que a cultura é um dos poucos bens exportáveis. Cultura que só pode constituir-se em valor, hoje e amanhã, se for devidamente protegida, se a pirataria for combatida e se os criadores forem justamente recompensados. O Governo que tem responsabilidades na comunicação social tem obrigação de exigir à RTC que preste serviço público. Uma das vertentes desse serviço é precisamente constituir-se em exemplo de respeito pelos direitos de autor. Uma outra vertente é que assegure as condições para expressão e o confronto de ideias das diversas correntes de opinião sejam elas políticas, filosóficas ou estéticas. Uma outra ainda é que dê espaço e amplifique os esforços de comunidades e ilhas em se darem a conhecer ao país e ao mundo, sem discriminação de qualquer espécie. Ficar de fora de um evento como o Festival de Baía das Gatas, com todo o alcance e implicações desse evento, revela o quão a RTC vem-se desviando das obrigações e do código de conduta exigível ao serviço público. E ser público significa, em essência, ser de todo o País: o Cabo Verde, física e culturalmente, diverso e plural.

segunda-feira, agosto 06, 2007

Sem Rumo

Lá vamos nós outra vez. O Governo já lançou mais um balão. O balão nuclear. No passado recente foram lançados, entre outros, os balões do petróleo, do gás natural e da parceria especial com a União Europeia. Este último balão, já bastante inchado de expectativas criadas pelas sucessivas declarações do Governo desde 2002, viu-se repentinamente reduzido a uma bolha, não de sabão, mas de Cotonu. Segundo um despacho da Inforpress de 10 Julho, citando fonte governamental, a parceria especial deverá, afinal, ser a exploração de todas as potencialidades do acordo de Cotonu, o acordo assinado, no ano 2000, entre os países ACP (Africa, Caraíbas, Pacífico) e a União Europeia. Grande novidade. Mas não foi certamente isso que os caboverdianos imaginaram e sonharam ao ouvirem insistentemente o discurso da parceria especial. Decididamente que não foi a pensar em Cotonu que muitos, particularmente na emigração, votaram. Mas, como diz o brasileiro, o Governo nem está aí. E passa à frente. Agora temos o nuclear para resolver o problema da energia. Vieram os russos com uma proposta de venda de energia eléctrica a partir de uma barcaça com dois reactores nucleares. O Ministro da Economia, segundo o jornal asemana, já acha a ideia interessante, já anuncia que vai permitir a redução drástica dos custos de energia e já escolhe a ilha de Santiago para acolher o barco. Lançado, o balão expande-se por si mesmo no vacum, deixado pela ausência de políticas e de investimentos atempados para responder às necessidades presentes e de médio prazo do país e, particularmente, da cidade capital. Entretanto, questões sérias pairam no ar: a central é dos russos. Não a vendem. O preço seria superior a 200 milhões de dólares e iriam contra as normas do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Só pode ser operada por eles, e, sendo móvel, podem levá-la a qualquer momento. De 12 em 12 anos tem ser mesmo levada de volta para manutenção. Quem fica a fornecer energia? E no caso de manutenção ou avaria de um dos reactores, quem irá suprir a diferença energética? Quer isso dizer que a central flutuante não dispensa investimento em igual potência em terra, para cobrir todas as eventualidades? Se é assim, porque arriscar-se numa tecnologia que não pode ser transferida, numa produção que não pode ser controlada e numa relação com empresas de um país que já demonstrou vontade, em várias situações complicadas, de usar a carta de energia para pressionar os outros. Porque apostar num sistema que pode ser altamente ameaçador para o ambiente ou transformado em ameaça letal por desastres naturais ou acções terroristas, e que não deixa margem para a intervenção do país hóspede na prevenção ou contenção de estragos. O País gostaria de conhecer os pormenores do processo de decisão do Governo nesta matéria. Ou será que tudo isto é para ganhar tempo e simular trabalho no campo energético onde é cada vez mais evidente as consequências das omissões e das más decisões do Governo. De facto, a Rosenergoatom ainda não tem micro centrais atómicas. Está a construir um protótipo que ficará pronto em 2011 e que já está destinado para o porto de Severodvinsk, no mar Branco. Naturalmente que só depois de testar e certificar o protótipo é que outras micro centrais nucleares poderão servir os objectivos da empresa em vender energia e água para outros países. Considerando as urgências de Cabo Verde e o tempo necessário para adequar o país com uma dessas centrais, muito dificilmente se pode compreender a forma como o Governo aborda e agita uma matéria tão séria. Ou compreende-se: é o hábito arreigado de substituir actos de governação por propaganda e de gerar expectativas, inflamá-las e capturar votos no processo. Se as coisas correm mal, porque não se planeou adequadamente ou não se agiu em tempo, vem a outra parte, a desresponsabilização e o lançar culpas a governos anteriores, à oposição, a factores externos ou a agentes privados. A questão energética é vital para o Pais. É tempo do Governo deixar de se comportar nesta matéria como uma galinha tonta, saltitando de solução para solução (produtor independente, eólica, solar e agora nuclear), e governe.

segunda-feira, maio 14, 2007

Urgência duvidosa

A questão do crioulo recebeu recentemente mais um dos seus cíclicos impulsos políticos. Ministros, Primeiro-Ministro e Presidente da República têm-se desdobrado em declarações, pontuadas por elementos de retórica nacionalista, clamando pela sua oficialização. A Constituição já estabelece no nº 2 do art. 9º que o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna, em paridade com a língua portuguesa. O País está à espera que o Governo enuncie e implemente as medidas necessárias. Tudo leve a crer que um dos principais objectivos a atingir com essas medidas seria a estandardização da escrita do crioulo. De facto quando se fala de urgência na oficialização crioulo está-se a pensar, essencialmente, em duas áreas que tal acto teria impacto: a comunicação escrita do/e com o Estado e a língua de ensino. E isso porque, diferentemente de outros países onde o respectivo crioulo foi oficializado, não há discriminação no uso da língua oral. Fala-se crioulo no Parlamento, quando convém, o PR, o PM e os Ministros falam crioulo com o País através dos órgãos de comunicação social, nenhum cidadão está impedido de fazer declarações nos Tribunais em crioulo e a Administração Pública responde a solicitações colocadas oralmente pelos utentes. Em Cabo Verde não há uma elite, como no Haiti, que só fala português. Ninguém acusa de elitismo os escritores, intelectuais e políticos que, no dia a dia, só falam português. Não se pode, pois, seriamente, erigir o crioulo como uma putativa língua de resistência em confronto com o português. Só se for para atiçar chamas nacionalistas em proveito próprio. O crioulo parece ter emergido do estado de isolamento, abandono e pobreza extrema vivido nas ilhas que não permitiu a subsistência de uma comunidade metropolitana homogénea capaz de impor a sua língua ao resto da população. Como aconteceu, por exemplo, no Brasil, mas também, na generalidade das colónias europeias nas Américas. Na Africa, as línguas europeias dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais e, mesmo após a independência, continuam a ganhar terreno, suportando-se na crescente urbanização e escolarização. Se há algo para reflectir é porquê os caboverdianos parecem não ir nessa corrente. Apesar dos altos níveis de educação e de urbanização o crioulo continua inabalável na sua condição de língua materna. Sem stress. Os políticos são os únicos ansiosos perante a imaginada perda de autenticidade que resultaria da aprendizagem da história e cultura caboverdiana em português. Mas para o cidadão comum não há crise. E nem há para os escritores, músicos e artistas plásticos que têm conseguido passar com sucesso para o mundo inteiro a alma e a arte caboverdiana, sem quaisquer constrangimentos. O que se verifica, porem, é falta de uma demanda significativa para expressão escrita em crioulo. Isso manifesta-se na parca produção e também no fraco interesse do público leitor pelas obras existentes. Reflecte-se, ainda, na inexistência de jornais em crioulo, como acontece em Aruba, Curação e outras ilhas crioulas. Tudo isso leva a crer que o esforço de oficialização poderá traduzir-se num grande desperdício. O Estado obrigado a ter todos os seus documentos em português e crioulo standard, com todo os custos que isso acarretará, correrá o risco de ver isso tudo subutilizado, ou por uma falta de alfabetização generalizada no crioulo ou por falta de interesse. O argumento de facilitação dos alunos nos primeiros anos só parece ter sentido porque o Estado falha em propiciar às crianças caboverdianas o acesso ao português desde da tenra idade. Sabe-se hoje dos estudos das ciências cognitivas que as crianças até cerca de onze anos de idade têm a possibilidade de aprender várias línguas em simultâneo e a um bom nível. A consagração constitucional da língua portuguesa como língua oficial obriga o Estado a agir no sentido, por exemplo, de redefinir todo o pré-escolar como o centro focal do esforço nacional em tornar verdadeiramente bilingue o caboverdiano. O caboverdiano não é bilingue por deficiência do seu crioulo mas sim por falhas no domínio do português. E é isso que urge remediar. Quanto à viabilidade literária do crioulo já dizia Baltasar Lopes que “para o crioulo ser língua literária é necessário que exista um background escrito. Era preciso que já existisse uma literatura, um passado literário escrito para nós podermos escolher um crioulo padrão” . E acrescenta, “não confundamos viabilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do português data do século V ou VI… mas o português [escrito] só no século XIII”. Os países africanos, na generalidade, têm uma única língua oficial, a língua herdada do tempo colonial, que também é língua do ensino a todos os níveis. Em Cabo Verde, a abertura constitucional para a oficialização do crioulo existe mas as condições adequadas terão que ser criadas. Os governos devem ser pacientes e resistir à tentação de usar uma questão tão séria, e com implicações múltiplas e complexas, para o presente e futuro do País, como elemento de agenda político-partidária.

segunda-feira, maio 07, 2007

Duplicidades

O Primeiro Ministro de Cabo Verde no discurso de encerramento do Simpósio sobre o 1º Centenário da Geração do Movimento Claridoso, resolveu, a dado passo, ser claro no que pretendia transmitir: Apelou a que enterremos de vez as rivalidades improdutivas. Manifestou o desejo de um claro distanciamento, particularmente da parte dos jovens, em relação a determinados pseudo-debates datados e estéreis que em nada contribuem para o fortalecimento da ideia de Nação. E exortou a uma certa cidadania cultural reconhecível na capacidade de saber defender e promover a Cultura enquanto espaço privilegiado de consenso. Facilmente se reconhece aí os elementos recorrentes da ofensiva ideológica permanente que mantém o País sob tensão e procura dobrar a sociedade e controlar os indivíduos: O denegrir do pluralismo, a imposição de tabus e o elogio do consenso. São elementos visíveis, por exemplo, no ataque lançado pelo representante da Fundação Amílcar Cabral à tese de doutoramento do Gabriel Fernandes. Elementos de ataque sempre que algo contrarie os cânones da ideologia, outrora legitimadora do regime de partido único. Nessa perspectiva, o centenário de Baltasar Lopes da Silva constituía um problema. Não se podia deixar de referenciar a data mas também não interessava uma atenção excessiva capaz de abranger a totalidade e a complexidade da vida do Grande Homem. E, raciocinando de que não há melhor defesa do que o ataque, o Governo assumiu as comemorações e erigiu a capital como seu centro, relegando para o segundo plano S Nicolau e S. Vicente, onde subsiste com maior fulgor a memória das longas décadas de vivência de Baltasar nas ilhas. De centenário de Baltasar Lopes passou-se a centenário da geração dos claridosos. O foco das atenções foi desviado para o papel que outras personalidades, eventualmente, tiveram no eclodir da Claridade, enquanto movimento literário e cultural. Diluiu-se Baltasar. Curiosamente, uma figura que foi uma preocupação, se não obsessão de muitos, conferencistas, políticos e colunistas, foi o Amílcar Cabral. E não se percebe porquê. Ele não foi claridoso, não pertence à geração que pretensamente está-se a celebrar o centenário, e pelo que diz Dulce Almada, citada por Gabriel Fernandes, Amílcar sempre se apresentava como guineense. Ou percebe-se muito bem. Baltasar Lopes é o caboverdiano que muitos sentem que rivaliza com a figura mítica do Amílcar Cabral, criada pelo PAIGC. Por isso, a nota de quinhentos escudos com a imagem de Baltasar Lopes sempre incomodou. Imagine-se o regozijo com que, em certos quadrantes, foi recebida a iniciativa desconcertante do Banco de Cabo Verde de, no ano do centenário, eliminar a imagem do Baltasar das notas. A duplicidade da actuação do Governo não augura nada de bom para propostas com as do PM de criar bolsas de criatividade. O desejo de controlar a produção cultural é evidente. Como é também o de manter tabu sobre certas matérias. Por outro lado, a disposição em condicionar os criadores com favores ou desfavores, conforme os casos, é por demais manifesta. A protecção da propriedade intelectual, que deveria ser a primeira opção de suporte aos criadores, porque lhes garante independência e sustentabilidade na criação, não parece estar nas preocupações do Governo. A pirataria, particularmente do material audio-visual, impera sem que o Estado afirme a sua autoridade. Ficam prejudicados os artistas nacionais e deixa-se estar a ideia da edificação de uma indústria de cultura no reino da propaganda, sem tradução efectiva para o concreto. O Governo não tem o direito de impor uma agenda cultural ao País. Ao Estado está simplesmente reservado o papel de promover a actividade cultural nas suas múltiplas expressões, deixando de lado tentações de intérprete da história e de juiz de correntes artísticas e culturais. Impõe-se que o Governo se resuma nestas matérias ao papel que lhe é exigível no ambiente de pluralismo e de liberdade de expressão e de informação, que deve caracterizar a nossa democracia.