segunda-feira, novembro 17, 2008

Nós e a Crise

Na sexta feira passada o Banco Central de Cabo Verde actuou face à crise que avassala o mundo. Alterou em 50 pontos a taxa directora lançando a taxa de redesconto para 7.5% e a taxa de facilidade de cedência para 8.25%. O objectivo é controlar os fluxos da balança de pagamentos e a inflação. Os aumentos das taxas praticadas pelo BCV têm o condão de, pela via do encarecimento do crédito, travar o consumo e, por aí, conter importações dissipadoras das reservas externas. Também no sentido inverso, taxas mais favoráveis incentivam emigrantes a fazer depósitos em Cabo Verde. Com isso pretende-se conservar algum conforto ao nível de reservas e garantir estabilidade do peg da moeda caboverdiana ao euro.  

A actuação do BCV verifica-se num momento em que bancos centrais em todos os continentes movem-se para assegurar liquidez ao sistema financeiro internacional e restaurar confiança entre os seus operadores. Procura-se evitar que o aperto ao crédito lance a economia real na maior das crises desde da Grande Depressão de 1929. Até agora tem sido bastante limitado o sucesso conseguido pela operação conjunta de bancos centrais e governos. Medidas como seguro dos depósitos, injecção directa de capitais via compra de acções nos grandes bancos e garantia do Estado a novos empréstimos não conseguiram evitar que o espectro de recessão económica paire e já assombre o mundo inteiro.

Países que dias, semanas atrás achavam-se a salvo da crise por não se terem envolvidos com os chamados produtos financeiros tóxicos, subprime e outros derivativos, vêem-se agora no olho do furacão. De facto já não é só a Islândia, mas também outros países como a Ukrânia e a Hungria, a  solicitar pacotes salvadores do FMI. Amanhã poderá ser a Rússia, a Africa do Sul ou o Brasil, países que pensaram estar protegidos atrás das enormes reservas externas acumuladas na base de vendas em alta de matérias-primas, produtos agro-pecuários, petróleo e metais preciosos.

Ninguém consegue prever a dimensão da recessão global que se aproxima. Nem como afectará a economia de países e regiões. Tudo leva a crer, porém, que o mundo saído da crise não será o mesmo. O que permitiu o crescimento de um sector financeiro de bancos de investimento, fundos de risco (hedge funds), e fundos privados de investimento (private equity), armado de produtos, cada um mais esotérico do que o outro, paralelo ao sector bancário e com um mínimo de regulação. 

Poderá vir a ser um mundo em que a actual distribuição do poder económico terá representação adequada nos centros de decisões das organizações internacionais de supervisão da economia mundial. Particularmente as de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, criados em 1946, que ainda espelham a relação de forças saída da II Guerra Mundial.

Países como a China, o Brasil e a India não podem ficar de fora. Devem assumir responsabilidade comensurada com o seu peso nos fluxos globais. De facto, na origem dos problemas financeiros de hoje também se encontra o ambiente de crédito barato nos países desenvolvidos. Países com largas reservas externas como a China, para evitar a valorização da sua moeda, reinvestiram muito das suas reservas na América, fazendo baixar as taxas de juro e contribuindo para o endividamento das famílias. No processo geravam forte procura para os seus produtos e garantiam crescimento das exportações, o sector motor da economia.

A crise veio, porém, demonstrar que não é possível manter por muito tempo o mundo dividido em países com grandes excedentes e países com enormes défices na balança comercial, sem que algo acabe por ceder. A extrema interligação de todas as economias na fase actual da globalização não permite que ninguém fique incólume quando isso acontece. É o que se vê hoje.   

Economias pequenas como a caboverdiana são as mais vulneráveis. Não têm dimensão para condicionar em favor próprio as relações económicas internacionais. O mercado interno é exíguo e não pode compensar, em tempos de recessão global, pela queda na procura de bens e serviços nos mercados externos. Em existindo recursos naturais, a recessão também faz cair os preços das matérias-primas, contribuindo para perda de receitas externas.

No caso concreto de Cabo Verde, a situação é ainda mais grave. Não tem recursos naturais e tem uma base exportadora exígua que, segundo o relatório de Julho do FMI,  restringe-se cada vez mais ao turismo. Quer dizer que a sua sustentabilidade económica e financeira actual depende dos fluxos financeiros que poderá mobilizar. No ambiente de crise essa dependência excessiva do exterior e de factores que não tem controle directo, pode tornar-se crítica.

Porque as remessas de emigrantes são afectadas pelo nível de emprego e pelas expectativas de crescimento nos países de acolhimento. A diminuição do investimento directo estrangeiro, em consequência de fortes constrangimentos ao crédito ao nível internacional, já é sentida na quase paralisia do sector imobiliário e turístico, em várias ilhas. A ajuda externa não deixará de se ressentir, no futuro próximo, com as dificuldades orçamentais dos países doadores, derivadas das acções de restauro de confiança no sistema financeiro. E a capacidade do Estado em contrair empréstimos para investir em infraestruturas e no sector energético sofrerá certamente com o encarecimento inevitável do crédito nos mercados de capitais.

No mundo inteiro todos estão a preparar-se para maus momentos a curto e a médio prazo. A preocupação em muitas paragens é de aproveitar a crise para um renovado olhar sobre o país, a sua sociedade e a sua economia. Procura-se vislumbrar o que de essencial se precisa fazer para elevar a produtividade nacional, tornar as empresas nacionais competitivas e o país atractivo para capitais estrangeiros, visitantes e turistas.

Cabo Verde não é excepção. Não pode ver-se como imune ao que se passa lá fora. A fotografia macroeconómica actual até pode mostrar-se tranquilizadora para alguns. Mas, em ambiente de crise, fragilidades não aparentes podem emergir e mudar tudo. É o que aconteceu na Islândia e noutros países. Na Hungria, no  Brazil e na  Austrália, por exemplo, empréstimos individuais e empresariais, feitos em moeda estrangeira e a taxas mais baixas do que as praticadas ao nível nacional, que até recentemente sustentaram investimentos diversos e expansões rápidas na imobiliária, agora, com a valorização do dólar e do yen japonês, contribuem para a queda do valor das moedas desses países e a fuga de capitais.

Recentemente, de diferentes quadrantes políticos, institucionais e empresariais vieram sugestões no sentido de total liberalização de capitais em Cabo Verde. Isso não obstante a experiência negativa da crise financeira de 1997 que da Tailândia, Indonésia e Coreia do Sul passou para o  Brazil, a Rússia e a Argentina. Esses países, muitos deles com peg fixo no dólar, sofreram os efeitos do chamado hot money, os capitais de curto prazo que podem entrar e sair rapidamente e que, em certas circunstâncias, podem ser altamente destabilizadores, mesmo quando, aparentemente o quadro macroeconómico não prenuncie problema nos os fundamentals da economia. Espera-se que a falada facilitação de acesso a crédito exterior directamente por privados nacionais à cata de taxas de juro mais baixas, a ter-se concretizada, não se revele, hoje, como mais um ingrediente na fragilização da balança de pagamentos do País.

A pequenez da economia nacional e a fraca densidade empresarial limitam, por outro lado, os instrumentos que o Estado poderá socorrer-se para estimular a economia e fazer face à crise. Isso porque qualquer aumento da procura tem efeito directo nas importações, com as consequentes tensões nas reservas externas. Diferentemente do que se passa noutros países, onde estímulos fiscais têm o efeito de arrastamento na economia nacional porque uma parte considerável de bens e serviços são produzidos localmente. Isso não significa naturalmente que o Estado não deva procurar responder às dificuldades das populações, particularmente das mais vulneráveis e que mais sofrem com os efeitos da crise, designadamente com os efeitos de diminuição de remessas de familiares e da alta de preços devido à  inflação.

Todos os países procuram responder à crise reajustando as prioridades nacionais e mobilizando a vontade nacional. Baixa-se mesmo a tensão política. Dada a especial vulnerabilidade de Cabo Verde esse exercício é urgente.

 À partida, porém, parece evidente que o Estado deverá orientar-se resolutamente para estimular actividades económicas em áreas de serviços particularmente de exportação que criam emprego e potenciam o fluxo turístico para Cabo Verde. No sector da educação a atenção nacional deverá focalizar-se intensamente na qualidade. A estruturação do mercado de trabalho poderá potenciar o esforço nacional na formação profissional, na criação do emprego e no aumento da produtividade. A eliminação dos múltiplos entraves à unificação do mercado nacional certamente introduziria uma nova dinâmica na economia nacional. A organização de uma oferta de serviços com base na cultura caboverdiana claramente é uma opção a fazer.

Tempo de crise. Oportunidade para deixar para trás ilusões de dependência e fazer o que dignifica os indivíduos e engrandece a Nação.  

         Publicado no Jornal ASemana de   Novembro de 2008

sexta-feira, novembro 14, 2008

Fazer mais

Tempo de crise pode ser o momento de mudar a forma de fazer as coisas. Para Emanuel Rahm, o braço direito de Obama,  a regra número um é: nunca desperdiçar uma crise. É oportunidade para criar vontade e ultrapassar definitivamente inércias, vícios e métodos gastos. Oportunidade para um olhar mais atento sobre a qualidade dos resultados obtidos e para a necessidade de um retorno maior e duradoiro de tudo quanto a sociedade no seu todo investe, particularmente,  através da acção do Estado.

Deixar projectos de desenvolvimento como os de S.Vicente passar por uma verdadeira odisseia é o que não pode acontecer. Nem tão pouco deixar a cúpula do sistema judicial em Cabo Verde chegar à situação anómala em que se encontra actualmente com todos os mandatos dos juízes terminados há mais de seis meses.   

De facto, vistas bem as coisas, o que está descrito nas reportagens do jornal asemana de 17 e de 31 de Outubro sobre os projectos em S.Vicente parece puro surrealismo. Não é compreensível nem aceitável que projectos potenciadores do crescimento e emprego fiquem anos dependentes da guerrilha institucional entre Governo e câmaras municipais. Em vários casos, só se avança com os projectos quando o investidor ou promotor concorda em pagar mais uma quantia ao Estado, a ajuntar-se ao que já tinha pago à Câmara.

Parece que não interessa a perda de um, dois, três ou mais anos nesse braço de ferro. Não interessa se, entretanto, janelas de oportunidades retraem-se e se a bolha na imobiliária, cuja exuberância também fazia-se sentir em Cabo Verde, arrebenta com efeitos globais desastrosos. Nem causa muita preocupação que provavelmente ter-se-à de aguardar, por mais uns anos, o ressurgimento de um forte interesse na imobiliária turística e de segunda residência.

Nas referidas reportagens da jornalista Constança de Pina, fica-se a saber que desde do Verão 2007 o projecto do Viana Club Resort estava bloqueado enquanto decorriam as negociações com o CI. Também o administrador do projecto de Salamansa diz que há o mais de dois anos que estão em diálogo com a CI para tentar desbloquear o processo. O Cesária Resort, segundo a reportagem, em três anos já gastou milhões em consultores e já enfrentou situações complicadas. Não há previsão ainda para o início das obras. Só o projecto do Fortim del Rei já deu o passo de assinar com uma empresa construtora.

A impressão que se fica é que os múltiplos e complexos efeitos da execução desses projectos na economia, na sociedade e nas pessoas são postos em segundo plano. E que a atenção das autoridades é arrebatada pela questão dos terrenos. Razão para isso não é o desejo de transmitir imagem de segurança jurídica na titularidade dos terrenos nem o de evitar especulação no preço dos mesmos. É para se saber quem se impõe e quem retém os proventos da venda de terrenos. Se as receitas ficam para o Estado, para as câmaras ou se vão para os particulares.     

De acordo com o decreto legislativo 3/93 as ZDTIs são essencialmente zonas identificadas pelas suas condições geográficas e pelo valor paisagístico as quais o Estado dota de planos de ordenamento turístico com vista a gestão adequada do uso e ocupação do solo. A lei prevê a possibilidade de expropriação de terrenos nas ZDTIs mediante declaração de utilidade pública, mesmo os pertencentes aos municípios. O que na lei é acessório e instrumental, a titularidade dos terrenos, na prática, passa a ser o essencial, em detrimento do que, em primeiro lugar, obriga o Estado: dotar essas zonas de um Plano de Ordenamento Turístico.

Isso ficou evidente na forma como o Governo em Agosto último procura resolver o problema do projecto da Salamansa Sands, há mais de dois anos em negociações. Segundo o jornal asemana, o Projecto de Salamansa Sands tinha sido aprovado pela CI e pela CMSV e projectava criar 1286 postos de trabalho. Em nota de 30 de Julho de 2008 a CI fazia saber aos Deputados que já tinha acordado com os promotores que eles anulavam a escritura pública que detinham dos mais de 500 hectares em Salamansa e a que a CI afectaria de novo o terreno mediante um novo preço.

Tudo leva a crer que o acordo não foi avante. O BO de 25 de Agosto trouxe a decisão do Governo de criar uma ZDTI de 506 hectares na Salamansa. Com isso ficou evidente a instrumentalização do processo de criação das ZDTIs. Salamansa já tinha plano de ordenamento turístico aprovado pelas autoridades competentes. Dotar a zona de um plano turístico não foi, por conseguinte, a razão de fundo da decisão tomada. Só podia ser a possibilidade de expropriar os terrenos num quadro de conflito com a Câmara Municipal.

Conflitos dessa natureza têm sede própria para serem dirimidos: os tribunais. Mas o Governo opta por resolve-los politicamente. Pela força, sem considerar como, com isso, torna precário o direito de propriedade. E as opções não terminam aí. Há ainda a via legislativa. Novas leis, porém, implicariam avaliação de interesses em causa, negociações, give and take, e respeito pelas regras, processos e procedimentos democráticos. Ou seja, tudo o que é necessário para a prossecução do interesse público na democracia. Mas que é anátema num ambiente político em que se prefere confrontos a compromissos, ao mesmo tempo que se apregoa amor louco pelo consenso. 

Certamente que não se realiza o interesse público quando se deixa estender indefinidamente uma situação que, independentemente da origem, resulta em que particulares, emigrantes, operadores económicos e investidores não conseguem fazer registos de terrenos em vários pontos do território nacional. Se há omissões na lei que sejam preenchidas, se surgem disputas que sejam resolvidas e ultrapassadas, se falta clarificação que decisões sejam tomadas em tempo útil. Evitar a asfixia da construção civil, com o seu potencial de emprego e efeito de arrastamento sobre o resto da economia devia sobrepor-se a outras considerações. Porque sem registo não há hipoteca, sem hipoteca não há credito, sem crédito as obras param ou não arrancam e sem obras o desemprego aumenta.

Não se pode prejudicar empreendimentos, vultuosos e sensíveis quanto ao momento de implantação, porque se falha no essencial que define a governação: a definição de objectivos e metas nacionais, a construção da vontade colectiva para os atingir e a persistência, não obstante os percalços, em os realizar.

E, no excuse, como diria Obama. A responsabilidade da governação pertence ao Governo eleito. Assim como não partilha com a população a responsabilidade primeira do Estado de assegurar a segurança, a tranquilidade e a ordem pública também não compartilha com as Câmaras e nem com a Oposição a responsabilidade central de implementar o programa político que fez sufragar nas urnas. Tem é que saber lidar com o sistema, com todas as suas salvaguardas, seja no domínio dos direitos fundamentais, dos direitos das minorias, dos direitos específicos das populações nos municípios e do que mais a Constituição e as Leis impõem.  

Este é o mar que se navega na democracia. E não é aceitável a desresponsabilização do capitão pelo desvio do rumo do navio porque ondas se fazem sentir com mais força e determinação.

Da mesma forma que não se aceita que o Governo venha desresponsabilizar-se culpando a Câmara pelo não andamento dos projectos em S.Vicente também não é de aceitar desculpas pelo adiamento de pacotes legislativos concernentes à Justiça. As condições para o impasse que se vive hoje foram postas em marcha há mais de cinco anos atrás.

A revisão constitucional de 1999 criou o Tribunal Constitucional (TC). Nos anos seguintes, uma lei orgânica desse tribunal e outra lei definindo o molde de acesso e a constituição do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deviam ser produzidas. O MpD apresentou projectos de lei nesse sentido e o PAICV recusou-se a viabilizá-las. No vazio legal que ficou, em 2003, o Conselho Superior de Magistratura nomeou três juízes  o Presidente da República um juiz, em moldes já ultrapassados pela revisão de 1999 e, por isso, constantes de disposições transitórias. A Assembleia Nacional recusou-se a eleger um juiz nesses moldes. O MpD argumentou que interesses partidários do PAICV impediam a criação do TC.

Em 2005, finalmente o PAICV e o MpD aprovaram por unanimidade a lei de instalação do TC, mas não se pode ir adiante porque o Governo recusou-se a prever verbas para esse Tribunal nos Orçamentos de 2006 e 2007. Provavelmente queria, por razões que nunca explicitou, que o mandato do actual STJ enquanto Tribunal Constitucional completasse cinco anos. Só que tardiamente apresentou a proposta de lei que define a nova forma de acesso ao STJ. Um mês depois do fim do mandato dos juízes. E é essa proposta que foi retirada porque simplesmente o partido no governo não aceita que deve negociar para chegar à maioria de dois terços dos deputados, imposta pela constituição para a aprovação de actos estruturantes da República.

A realização de políticas públicas falha quando se tem em sempre em mira ganhos políticos partidários instantâneos. Não é possível construir a vontade colectiva para a realização de políticas públicas pela via de encurralar o adversário, atirar sectores de interesses contra ele e desrespeitar o papel que o sistema lhe confere como garantia de equilíbrio e de co-participante, sob pena de bloqueio, em decisões chaves e estruturantes.

Em tempo de crise, tudo se acelera porque intervêm processos de criação do novo. Pode ser a oportunidade para se rever os métodos de acção e compreender, definitivamente, que na democracia a escolha de meios justos, legais e constitucionais é essencial para a consecução dos fins.

     Publicado no Jornal ASemana de 14 de Novembro de 2008

sexta-feira, outubro 24, 2008

Pela defesa do Poder Judicial

As sondagens do Afrobarómetro de 2008 apontam para uma quebra de 16% na confiança dos caboverdianos nos Tribunais, em relação ao ano 2005. A interpretação primeira é que essa quebra resulta da percepção pública de um nível de funcionamento dos tribunais abaixo do esperado. O relatório sobre a Situação da Justiça do Conselho Superior da Magistratura (CSM), apresentado ao Parlamento para discussão na próxima segunda feira, contradiz frontalmente essa assunção, sem deixar de reconhecer dificuldades e constrangimentos existentes no sistema.

No relatório o CSM chama a atenção para o facto que “qualquer avaliação da situação da Justiça com desconsideração pela autonomia e responsabilidade específica dos diversos subsistemas que integram o sector(…) pode concorrer para a desresponsabilização institucional uma vez que fomenta a expectativa e a ilusão de que a realização da Justiça ou que a Situação da Justiça depende tão somente dos Tribunais”. O Relatório constata ainda que “disfunções do sistema decorrentes de actos ou omissões dos outros Poderes do Estado, das outras instituições ou operadores judiciários, ou são minimizadas, ou são comodamente debitadas aos Tribunais”. E refere-se concretamente a fenómenos - a Função Policial e a sua ligação à percepção da segurança ou da insegurança dos cidadãos, bem como as disfunções do sistema prisional-. que se verificam a montante e a jusante do Sistema de Administração da Justiça e que concorrem para juízos desabonatórios da Justiça.

O CSM afirma peremptoriamente que os Tribunais assumem-se como um Poder, cioso da sua independência. Acrescenta porém que isso não deixa de gerar algum ressentimento, particularmente naqueles que se julgam detentores de um direito especial de impor aos juízes o acatamento das suas pretensões. Direitos especiais supostamente derivados do facto dos tribunais não serem órgãos de soberania de eleição directa.

A corresponder aos factos, as afirmações do CSM retratam uma situação de pressão real e actual sobre a Justiça em Cabo verde. E isso é um caso muito sério.

Um dos pilares fundamentais da democracia liberal e constitucional e do Estado de Direito democrático é a independência do Poder Judicial. A legitimidade do seu Poder, que não deve ser nunca posta em causa, vem da aderência estrita dos juízes à Constituição e às leis nas suas decisões. Para isso a  independência dos juízes é fundamental. Independência que implica irresponsabilidade pelas decisões tomadas e garantia de inamovibilidade.

Para a independência do Poder Judicial concorre ainda a operacionalização do princípio de separação e interdependência dos órgãos de soberania, princípio esse definidor do nosso sistema político. Razão porque, conjuntamente com os direitos fundamentais, constitui um limite material de revisão constitucional, não estando portanto à mercê de maiorias conjunturais.

Ora, nesse particular, de onde, no sistema, pode surgir o maior perigo para a independência dos Tribunais é precisamente do poder executivo, ou seja do Governo e da Administração que dirige e superintende. Daí que se deva tomar com um grano salis, com alguma reserva e cepticismo, as declarações do Sr. Primeiro-Ministro quanto a defesa da independência dos Tribunais pelo seu executivo. Facilmente governos recorrem, por exemplo, a considerações securitárias para impulsionar e justificar a expansão do poder executivo, à custa dos direitos dos cidadãos e da independência dos Tribunais. 

Em Cabo Verde, tentativas de condicionamento dos tribunais vêm-se tornando frequentes, como bem refere o Relatório do CSM. As insuficiências materiais, organizacionais e operacionais de quem tem a responsabilidade primeira de garantir a segurança dos cidadãos e combater o crime são minimizadas ou escondidas em ataques mais ou menos velados à Constituição, ás Leis e aos Tribunais e seus magistrados por, pretensamente, protegerem os criminosos. Certas declarações de entidades oficiais e, mesmo, de membros do Governo não dão combate a  essa interpretação enviesada e perversa. Pelo contrário.

Pode-se, provavelmente, concluir que não foi só a percepção de deficiências no  funcionamento dos Tribunais que levou a perda de confiança, registada pelo Afrobarómentro 2008. Também é sentida a guerrilha que lhes é movida a partir de certos quadrantes.

O Governo não esteve à altura no caso em que o Palácio de Justiça, na Praia, viu-se cercado por elementos da Polícia Nacional, por largas horas, enquanto se verificava a legalização de prisão de um agente. Aparentemente, houve quebra grave na cadeia de comando de uma força de segurança e subsequente ameaça a um órgão de soberania. Não há notícia de medidas tomadas então, nem posteriormente, para responsabilizar e prevenir situações de tamanha gravidade.

Questionado, em sede de audição pública pela Comissão Especializada de Assuntos Jurídicos sobre o papel do Ministério Público enquanto defensor da legalidade democrática e primeira linha de defesa da independência dos juízes, o Procurador Geral só deixou transparecer que há a decorrer um inquérito interno na polícia. Sete meses depois ainda está-se por um inquérito sobre algo, caracterizado pelo CSM como “insólito ajuntamento de polícias em manifesta e notória predisposição para condicionar ou desacatar uma decisão dos Tribunais” e que, para o qual, exigiu, publicamente, responsabilização disciplinar e criminal.

O suporte que o Governo e a Administração, o Poder Executivo, presta ao poder judicial  deve ir além de simples razões de solidariedade e lealdade institucionais. Garantir a independência dos Tribunais é boa governança. Disponibilizar recursos humanos em quantidade e assegurar formação especializada de magistrados judiciais e do ministério público e de funcionários das secretarias judiciais devem ser vistos como investimentos sérios na competitividade do país, particularmente na atracção de capitais. Ter tribunais céleres e magistrados especializados, capazes de responder, com competência, à complexidade crescente dos casos de disputas de propriedade, de cumprimento de contratos, de problemas laborais, de reclamações fiscais e de processos de falência diminui custos e minimiza riscos de investimento no País.

Por isso, espera-se que, com a entrada em vigor do novo regulamento do Cofre de Justiça,  condições estejam criadas para que as suas receitas sejam aplicadas, essencialmente,  no desenvolvimento do sector de Justiça. O Governo deve, com as suas opções orçamentais, assumir os custos de outros subsistemas do Estado, também importantes para a prossecução de Justiça e para garantia da tranquilidade e segurança da população.   

 A preocupação fundamental pela independência do Poder Judicial ganha uma dimensão no mundo actual de ameaças transnacionais, sofisticadas e altamente violentas. Os magistrados não podem recear pela sua integridade física nem pela da suas famílias, sob pena de perderem a sua independência e Justiça não se realizar. O Estado deve garantir a segurança dos magistrados, particularmente os que lidam com narcotráfico e lavagem de capitais. O Governo deve, com firmeza e determinação, mostrar a sua disposição em não permitir que o Poder Judicial seja intimidado. 

A independência dos Tribunais passará para um outro patamar com a plena implementação da Revisão Constitucional de 1999: A instalação do Tribunal Constitucional e a renovação do Supremo Tribunal de Justiça com juízes recrutados com prevalência do critério do mérito e por concurso. Toda a tentação de se ainda manter um Supremo Tribunal judicial híbrido com um juiz nomeado pelo Presidente da República, como está presente na proposta de lei do Governo agendada para a sessão do Assembleia Nacional de Outubro, deve ser descartada. Com o Tribunal Constitucional, o STJ já não terá matérias jurídico-políticas. Não se compreende que ainda vá manter nomeações políticas. É no mínimo incoerente e bole, profundamente, com o modelo adoptado pela Constituição na revisão de 1999.

Bom senso espera-se, para que se avance definitivamente com as reformas da Justiça.   

sexta-feira, outubro 10, 2008

Carácter em tempo de crise

Momentos de crise, e particularmente de crise generalizada como a que hoje o mundo se depara, são momentos de análise, de retrospecção e de contemplação interior de indivíduos, instituições e países. Avalia-se o carácter da Nação, a sua força interior e sua capacidade de reacção a mudanças inesperadas. Mas também, a sua energia, motivação e vontade de se adaptar a novos paradigmas de existência e de, criativamente, singrar e prosperar no mundo pós crise, que inevitavelmente se seguirá.

A meio da crise financeira que, de uma maneira ou outra, a todos afecta, as vulnerabilidades de Cabo Verde saltam à vista. O País depende essencialmente de fluxos externos, em forma de remessas de emigrantes, de ajuda externa e de investimento directo estrangeiro. Sem recursos naturais e com uma base de exportação de bens e serviços exígua, Cabo Verde precisa desses fluxos para se equilibrar em termos económico-financeiros.

A crise actual, pela a sua abrangência, interfere com todos os componentes do fluxo. As remessas dos emigrantes podem vir a diminuir com a travagem brusca e mesmo recessão das economias dos países hóspedes na Europa e na América. O investimento directo estrangeiro já está a sofrer com os fortes constrangimentos ao crédito. O volume de ajuda aos países menos desenvolvidos será provavelmente reponderado na situação actual em que os países doadores são confrontados com apertos orçamentais para fazer face ás novas responsabilidades. Têm que, por um lado, restaurar confiança perdida no sistema financeiro e, por outro, estimular a economia real com investimentos públicos, estímulos fiscais e apoios dirigidos a grupos vulneráveis.  

A actual crise poderá ser um toque de despertar para Cabo Verde. A acontecer, a Nação teria a oportunidade de avaliar se tem energia, estamina e vontade para prevalecer sobre as dificuldades. Se, em reacção aos sucessivos choques externos, a começar pelo choque dos anos 1999/2000 e passando pelo caso mais recente de alta do petróleo conjugado com o exacerbar dos preços dos cereais, soube renovar-se para enfrentar os tempos.

Se fez as reformas do Estado para o tornar mais eficiente na utilização dos recursos públicos e mais eficaz nas suas realizações. Se alterou no essencial a relação do Estado com a economia, deixando de ser agente de bloqueio para ser facilitador, regulador e  fornecedor de bens básicos como segurança, saúde, educação e infraestruturas estratégicas. Se mudou fundamentalmente a relação do caboverdiano com o Estado, passando o Estado a servir o direito à liberdade e à felicidade dos cidadãos em vez de se servir do Poder para os manter subservientes e gratos. Se, no processo, emergiu uma nova visão de desenvolvimento e novos valores e atitudes e uma nova ética de trabalho que reconhece no aumento da produtividade dos indivíduos, das empresas e do país em geral a base real da prosperidade e riqueza das nações.

Revelações recentes mostram que se ficou muito aquém desses objectivos.

É exemplo disso o que o Sr. Primeiro-Ministro afirmou no debate promovido pelo jornal “Asemana”. Foi peremptório em dizer que qualquer sondagem dirigida a jovens universitários em Cabo Verde revelaria que 95% quer entrar para o Estado. Contrariamente ao que, segundo ele, se verificaria com jovens americanos. Em igual percentagem, pretenderiam todos criar a sua empresa e construir a sua oportunidade.

Quando o Primeiro Ministro, no seu oitavo ano de governação, deixa escapar essa sua crença ou constatação, que legitimamente se poderá interpretar como uma confissão de falhanço de políticas, é de se perguntar o que é que afinal inspira, motiva e move o caboverdiano. Será possível que, trinta e três anos após a independência, o sonho caboverdiano continue a ser a função pública? Que seja o mesmo sonho daquele que, décadas atrás, tirando a emigração, só vislumbrava escape a uma existência de incertezas e de secas devastadoras, no ingresso seu ou dos filhos no Estado?

Se assim é, então, como conciliar esse sonho com a prosperidade que já põe o rendimento per capita dos caboverdianos acima dos dois mil dólares? Certamente que riqueza nacional necessária para isso não foi criada por pessoas a realizar o sonho de serem funcionários. Teve que vir de fora. E são esses recursos exteriores que expandiram as fileiras do Estado e ainda alimentam o sonho do funcionalismo público.

Há vinte anos atrás, Aristides Pereira, então presidente de Cabo Verde, apelou a que as frentes de alta-intensidade de mão de obra (FAIMO) deixassem de ser o local onde se degradava a consciência laboriosa do povo. De facto, prosperidade dada, renda recebida, subsídio garantido e outras formas de assistência, não são ingredientes para a construção de uma cultura de produção e de desenvolvimento, nem para o surgimento de uma ética de trabalho que privilegie esforço individual, iniciativa e cooperação para atingir fins colectivos. Pelo contrário, fomenta a atomização social e a luta entre indivíduos para melhor se posicionarem na cadeia “alimentar” criada e sustentada pela ajuda externa. Uma luta sempre acompanhada de laivos de mesquinhez, inveja e covardia.

O mundo criado pelo espírito assistencialista estiola a possibilidade de construção da confiança entre pessoas e entre elas e as instituições do Estado e bloqueia, ainda, o desenvolvimento de cultura cívica e a emergência da sociedade civil. Na corrida pelas nomeações e colocações, pelos favores e por oportunidades de lucros fáceis e rápidos, assiste-se ao contínuo desfiar do tecido social e consequente destruição de capital social. Paralelamente a essa corrida, e com ela intimamente imbricada, afirmam-se aqueles que constroem o seu poder, pessoal, político e económico, acotovelando os outros para serem eles a fazer os jeitos, a criar os acessos especiais e a escolher os ganhadores.

Em tal ambiente, os cidadãos vêem a sua liberdade comprometida pelo emaranhado de relações de gratidão e subserviência que os cerca e engole. O poder do Estado é ferido de ilegitimidade e de autoridade devido à falta de transparência, falta de isenção e repetidas demonstrações de não prossecução do interesse público. O desenvolvimento é comprometido porque não se compadece com actores sociais a funcionar como num jogo de soma nula, em que cooperação entre indivíduos é baixa e em que, para se avançar, subtrai-se em vez de se adicionar energias, esforços e vontades.

As sondagens do Afrobarómetro, publicadas em 2005 e em 2008, dão conta da gravidade da situação vivida em Cabo Verde. O nível de capital social é extremamente baixo. As pessoas não confiam umas nas outras. O Afrobarómetro de 2005 apontava para 94% a percentagem de caboverdianos que achavam que, “nas relações com outras pessoas se devia ter muito cuidado”. Compreende-se, assim, porque não se associam nem para actividades empresariais e muito menos para acções cívicas ou de natureza social. Os últimos resultados, apresentados no jornal Asemana de 10 de Outubro, põem em 75% e 80% a percentagem de caboverdianos que não são membros de qualquer associação seja ela, cívica, sócio-professional, religiosa, comunitária ou política. Fica a interrogação o que são, de facto, as dezenas ou centenas de associações, que proliferam pelo País e que usufruem de fundos do Estado e da cooperação internacional.

Ainda segundo o Afrobarómetro, o ambiente no País é de desinteresse pelos assuntos públicos. Em relação a 2005, os resultados de 2008 apontam para uma queda de 65% para 17% para os que seguem a vida nacional. Mais. O desinteresse é acompanhado de receios múltiplos. 52% dos entrevistados não falam de política  por medo de serem prejudicados pelos poderes instalados. Outros 35% dizem que em nenhuma circunstância participariam em marchas de protesto.  

No debate o Sr. Primeiro Ministro repetiu o celebrado motto das escolas de negócios: não há almoços grátis. De facto não há. Por isso, Cabo Verde paga, e bem caro, a sua prosperidade artificialmente criada e sustentada por remessas de emigrantes e ajuda externa. Cabo Verde  paga, e bem caro, o facto dos seus dirigentes terem sido incapazes de usar a almofada que essa assistência representava para lançar o País e as suas gentes na criação de uma economia produtiva. Cabo Verde paga, e bem caro, o facto dos seus governantes deixarem-se cair na tentação de usar os recursos postos á disposição do País para se sustentarem no poder, mantendo as populações dependentes e os seus fiéis contentes.  

O modelo de reciclagem de rendas esgotou-se. Como em todo o lado eleva a prosperidade geral até certo ponto. Depois, o desemprego instala-se e não diminui. As desigualdades sociais aumentam porque quem administra a renda tende a abocanhar uma parcela cada vez maior. Todos têm os olhos fixos no Estado á espera de oportunidade para se guindarem à posição de usufruir da parte mais choruda da renda. Entretanto, investimentos em sectores como educação, formação profissional, que só resultam num ambiente de gosto pelo conhecimento, de reconhecimento do mérito e de incentivo à criatividade e inovação, perdem-se em sonhos de lugar e salário seguro para toda a vida na Função Pública.

Ninguém, de facto, acredita na economia. A começar pelo próprio Estado. Quando surge uma oportunidade, a tendência é de a encarar como passageira e única e, de forma especulativa e quase parasitária, a explorar até ao osso. Sem preocupação de capitalizar sobre ela, de densificar o tecido empresarial para melhor a potenciar e sustentar e de a usar como possível base de projecção futura no quadro dinâmico das relações económicas mundiais.

Comparando a “performance” de Cabo Verde com quem nunca se devia e deixando ser seduzido pela própria propaganda, a governação delapida as reservas de energia dos caboverdianos e fragiliza o carácter da Nação. Até quando!?

Que a crise financeira, que teve na sua origem ganância e rendas fáceis e exorbitantes geradoras de desigualdades profundas, sirva para fazer o País arrepiar de caminho. Cabo Verde precisa seguir uma outra via que leve à prosperidade de todos, com dignidade, na liberdade e cultivando os valores de trabalho, de sacrifício que, ao longo dos séculos, permitiram ao seu povo ser o que é e afirmar-se, não obstante as maiores calamidades.