sexta-feira, setembro 25, 2015

Dia da Constituição



A Constituição democrática de Cabo Verde entrou em vigor no dia 25 de Setembro de 1992. Dezassete anos já tinham decorrido desde o dia da independência a 5 de Julho de 1975, quinze anos dos quais sob o regime de partido único. Com a Constituição de 1992, Cabo Verde consagrou-se como Estado de direito democrático tendo como fundamento o respeito absoluto pela dignidade humana. Os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos de corpo inteiro na sua própria terra, livres para se exprimirem, livres para escolherem quem os pode governar e livres para escolherem como podem ser felizes e prosperar. É estranho que um dia com tanta consequência não seja celebrado devidamente.
Vários países do mundo registam com solenidade o dia de adopção da Constituição, nalguns casos até como feriado nacional. A Espanha tem o seu dia da Constituição referente a 6 de Dezembro de 1978 que marca o fim do franquismo e Portugal tem o 25 de Abril que acumula o simbolismo da revolução contra a ditadura, das primeiras eleições livres e plurais e da entrada em vigor da Constituição de 1976. Outras democracias da chamada Terceira Vaga, em particular os que se libertaram de regimes totalitários e autoritários na sequência da queda do Muro de Berlim comemoram o dia em que se juntaram a outras nações na consagração dos valores da liberdade, da democracia e do primado da lei. Em Cabo Verde em anos anteriores já houve pontualmente iniciativas designadamente da Presidência da República, da Assembleia Nacional, de partidos políticos e de universidades a marcar a data, mas nada está institucionalizado.
O Parlamento que devia assumir-se como ponto focal da celebração da Constituição, recusa-se sistematicamente a esse papel. Não o faz no dia 13 de Janeiro, Dia Nacional da Liberdade e da Democracia e muito menos se disponibiliza para isso nos aniversários da entrada em vigor da Carta Magna do país. Em Espanha, por exemplo, nos dias anteriores ao feriado da Constituição, entre outras actividades, as escolas dedicam tempo especial a introduzir as novas gerações no estudo da Lei Fundamental do país. Em Cabo Verde, pelo contrário, nos feriados privilegiam-se referências à luta de libertação na Guiné-Bissau com base quase exclusivamente em elementos da historiografia oficial do PAIGC/PAICV. Nas comemorações dos 40 anos de independência, que se vêm arrastando meses a fio, o grosso das actividades tem sido dedicado à homenagem dos “libertadores” e dos protagonistas do regime de partido único que eufemisticamente se passou a chamar de “construtores do Estado”. Perante o paradoxo evidente de o Estado constitucional privilegiar nos seus actos públicos a homenagem a figuras de um regime nas antípodas da democracia é de se perguntar qual é, de facto, o nível de comprometimento das instituições estatais com os princípios e valores da Constituição de Cabo Verde.
O Estado que hoje se tem em Cabo Verde foi construído seguindo elementos referenciais que estão na Constituição de 1992, designadamente os de separação de poderes, da legitimação do poder pelo voto livre e plural, do respeito e garantia dos direitos fundamentais, da independência dos tribunais e da autonomia do poder local. Deverá continuar a evoluir e a consolidar-se seguindo esses princípios fundacionais. A realização das expectativas dos cidadãos de ter um Estado cada vez menos partidarizado, mais respeitador dos direitos fundamentais e da legalidade e com uma cultura de serviço público voltada para a eficiência e eficácia na relação com os utentes vai depender da atitude de todos os partidos e dos cidadãos no que respeita ao contracto social consubstanciado na Constituição da República. Essencial para isso será garantir a aceitação por todos das regras do jogo democrático, evitar ambiguidade ou ambivalência em relação aos seus princípios e valores e assegurar-se que a narrativa que a justifica é a do abraçar da liberdade e dos valores civilizacionais como a igualdade perante a lei, igualdade de oportunidades e o pluralismo enquanto motor da dinâmica social, económica e política. Seguir um outro caminho leva a ineficiências graves, crispação política e alguma incapacidade de gerar alternativas de políticas e de governação. 
Nas democracias, os rituais à volta do processo de eleições, de transferências de poder, de responsabilização política e de confirmação da independência do poder judicial são essenciais para manter alto o nível de confiança no sistema. Nessas democracias os partidos chamados do “arco da governação” mostram-se especialmente comprometidos com o regime constitucional. Podem ser ferozes opositores entre si, mas tacitamente revelam-se unidos na defesa das regras do jogo democrático. Feriados nacionais e outros momentos carregados de simbolismo nacional são usados para confirmar essa defesa intransigente de regime democrático. Em Cabo Verde não deveria ser assim?
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Setembro de 2015

sexta-feira, setembro 18, 2015

Cuidar da qualidade da democracia



Dados do Afrobarómetro publicitados na semana passada trazem informações no mínimo intrigantes. A percentagem de cabo-verdianos que consideram que as eleições de 2011 reflectem a escolha dos cabo-verdianos (54%) é a mesma que acredita que houve suborno no processo eleitoral. A percepção de que houve aumento de corrupção de 2011 para 2014 é acompanhada da ideia de que não há denúncias porque as pessoas têm medo das consequências (56%) e que os órgãos de comunicação social não são eficazes em revelar erros do governo e actos de corrupção.
A impressão que sobressai da sondagem é que está-se perante uma sociedade em que a funcionalidade das instituições e o exercício das liberdades foi de alguma forma comprometida. É o que basicamente deixa a entender a maioria dos sondados quando diz que há medo, que a liberdade de imprensa é limitada ou autolimitada e que o processo eleitoral sofre pressões. A dependência cada vez maior dos indivíduos em relação ao Estado seria a principal causa deste minguar da democracia. Dependência essa que acelerou nos últimos anos, à medida que, por um lado, o peso do Estado aumentou e predominam os investimentos públicos e, por outro, a economia não cresce o suficiente, o desemprego mantém-se alto e o sector privado nacional vive tempos difíceis.
Sabe-se que em situações similares de precariedade e de riscos diversos no futuro próximo a tendência das pessoas é agarrar no “certo e garantido” que vem do Estado. Ao enveredar por essa via de assegurar favores e acessos especiais contêm-se enquanto cidadãos atentos e críticos. Já uma outra motivação tem quem gere os recursos públicos. Aí a tentação é de usar as múltiplas oportunidades criadas pelas fragilidades do momento para a compra de lealdades e condicionamento de comportamentos particularmente em tempos eleitorais. A institucionalização de facto destas práticas de encontro de dadores e beneficiários pela via da repetição na televisão e em outros órgãos dá-lhes um ar de normalidade. Mas ninguém ignora o aproveitamento político  subjacente. Em momentos eleitorais, nacionais, locais e intrapartidários ouvem-se denúncias desse aproveitamento de recursos do Estado para ganhos eleitorais. Logo depois, porém, desaparecem numa espécie de buraco negro onde a percepção de que tais práticas fazem parte do “nosso normal” desculpa os que acusaram, iliba os alegados prevaricadores e isenta o Ministério Público e outras entidades fiscalizadoras do trabalho e da preocupação em verificar a veracidade das afirmações feitas publicamente.
Algum sentimento de que o “actual normal” não deve ser o normal desejado pode estar traduzido em parte nessa percepção do aumento da corrupção em certas entidades detentoras do poder concreto que afecta as pessoas no dia-a-dia. Da mesma forma a sensação de quase impotência perante o que se passa à volta poderá estar a manifestar-se na constatação de que os mídia não estão a ser eficazes em controlar os erros do governo e os actos de corrupção. Curiosamente, um sentimento similar surgiu há algum tempo atras, sendo ventilado em relação aos deputados e ao próprio Parlamento. A frustração com a aparente falta de efectividade do Parlamento levou então a uma espécie de crise de representação que trouxe à tona discussões várias à volta do parlamentarismo, dos sistemas eleitorais e do papel dos partidos políticos.
Algo que alguns podiam chamar de dissonância cognitiva poderá estar a verificar-se. Por um lado, as pessoas e a sociedade sentem-se apanhadas na teia da realidade criada pelo discurso oficial que basicamente anuncia “manhãs que cantam” com clusters diversos e água nas barragens. Por outro, no quotidiano vive-se num ambiente de letargia económica, de falta de perspectiva de emprego e de algum receio sobre o que a dívida pesada que o país acumulou poderá representar no futuro próximo. E todos estão a ver neste mundo de dificuldades crescentes as consequências de não se encontrar soluções para os problemas de endividamento do Estado. Perante tudo isto, não há o debate necessário que seria capaz de revelar a real situação do país e ajudar na ponderação das opções. Nem também a fiscalização adequada dos actos do governo como se pode extrair dos dados trazidos a público por este e outros jornais que dão conta de transferências de recursos públicos a associações diversas num processo que prima pela falta de transparência.
Na celebração de mais um Dia Internacional da Democracia (15 de Setembro) os dados trazidos pelo Afrobarómetro alertam para uma perda da qualidade da nossa democracia. Não é de estranhar, considerando que a democracia dificilmente pode dar frutos quando o peso do Estado se faz sentir cada vez mais a todos os níveis: económico, social e cultural. Democracia, sem uma sociedade civil por definição autónoma em relação ao Estado, não consegue consolidar-se. Faltará sempre pressão para se respeitarem as liberdades, para o Estado e seus agentes se sujeitarem à Lei e para se dar prioridade à criação das condições para que todos se realizarem e serem felizes e no processo contribuírem para a prosperidade geral. Problema grave surge quando actos que visam reproduzir a dependência e manter as pessoas sob controlo passam a ser a forma normal e o objectivo principal de fazer política. Aí, além da liberdade e da democracia, está-se a arriscar o futuro. Esta é armadilha que se tem evitar a todo o custo.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 16 de Setembro de 2015

sexta-feira, setembro 11, 2015

Mau sinal



As revelações vindas a público sobre as aplicações feitas do Fundo do Ambiente vieram confirmar o pior que se pode esperar da gestão de recursos públicos. Notou-se imediatamente a disparidade regional na distribuição dos fundos (Santiago 82 %, outras ilhas 18%), viu-se o potencial eleitoralismo e partidarização na selecção de projectos e parceiros(quase vinte mil contos para a Associação dos Amigos para o Desenvolvimento de Brasil-ASA) e ficou claro que outras razões que não a protecção do ambiente determinou a alocação dos fundos disponíveis (mais de dois mil contos para campas de combatentes).
A publicação neste número do jornal (pag.16 e 17) do quadro da distribuição de recursos do Fundo do Ambiente em 2013 e 2014 permitirá ao leitor tirar as devidas ilações quanto à motivação, razoabilidade e pertinência das escolhas feitas. O facto de o Fundo do Ambiente não ter todos os órgãos previstos no seu estatuto a funcionar já é deplorável. Piora quando, para supostamente colmatar as falhas institucionais, o Ministro chama a si as competências do Fundo porque, segundo ele, em declarações à imprensa “o Fundo não pode ficar parado porque as comissões não funcionam e que a lei lhe dá prorrogativas de movimentar o Fundo”. Movimentar significa na prática decidir qual é o projecto aprovado, quem é o parceiro e quanto cada um pode receber. É evidente que olhando para o quadro publicado das escolhas feitas dificilmente se pode dizer que o interesse público foi devidamente salvaguardado.
A gestão dos recursos públicos numa perspectiva partidária e eleitoralista vem sendo denunciada por vários actores políticos. Os partidos na oposição acusam a nível nacional o partido no governo de utilização eleitoralista dos dinheiros e meios do Estado e a nível local apontam o dedo ao partido maioritário nas câmaras municipais pela mesma razão. É um facto que o próprio Primeiro-Ministro reconhece que a administração pública directa, indirecta e local está partidarizada. Sendo assim, não estranha que haja uma percepção geral de que muitas das taxas e fundos criados nos últimos anos não são propriamente utilizados na persecução dos objectivos inicialmente preconizados. 
O que espanta é que não haja uma indignação geral contra isso. Talvez porque essas práticas são tomadas como normais e como parte integrante do que é fazer política, ser influente e ganhar votos. Em consequência, denúncias de situações gravosas de compra de votos em eleições nacionais autárquicas e intrapartidárias não resultam na penalização dos visados. Pelo contrário, insiste-se em acreditar que todos assim fazem e que são os mais espertos ou os mais efectivos que ganham. A partir daí é só um passo para o desenvolvimento de uma cultura política marcada pelo cinismo e pelo conformismo.
Em Cabo Verde, de há muito que se instituiu que governar é controlar. Durante algum tempo tudo se fez para que houvesse pensamento único e dependência total do Estado. Mudaram-se os tempos, e não sendo já possível advogar o alinhamento de todos pelo mesmo diapasão político, alimenta-se o desencanto com o pluralismo e o multipartidarismo. Entretanto não se deixa as pessoas despersuadirem da centralidade do Estado para o seu bem-estar, prosperidade e carreira e também dos meios, acessos e facilidades que pode disponibilizar a quem “merecer”. 
O quadro da distribuição de fundos pelas associações e outras ONGs é elucidativo do esforço em manter controlado as populações. É evidente que tal ambiente não evidencia o valor da autonomia, da iniciativa e da criatividade, enquanto ingredientes essenciais para se construir a riqueza das nações. Nem tão pouco deixa desenvolver as instituições inclusivas indispensáveis para que o esforço individual ou colectivo das pessoas sirva para colocar o país num caminho ascendente de crescimento económico e de criação de emprego. A opção que realmente se faz é pelo conformismo, pela dependência do Estado e até por pretensa neutralidade política.
Os dados do Afrobarómetro que vão ser divulgados hoje, quarta-feira, dão conta que a população já se apercebe dos níveis cada vez mais elevados da corrupção. É um mau sinal. Significa que as disputas e rivalidades no acesso aos favores do Estado aumentaram à medida que se tornou evidente que os enormes investimentos públicos não estão a produzir crescimento elevado e a criar emprego de qualidade. Uma inversão desta tendência só pode acontecer quando activamente se combater o centralismo e se evitar que as pessoas fiquem menos dependentes do Estado. Também quando a cultura administrativa dominante for substituída por uma cultura empresarial de procura de resultados que ponha enfase na produção e na qualidade da prestação de serviço.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 9 de Setembro de 2015

sexta-feira, agosto 28, 2015

Quando a história não une e divide


Tudo leva a crer que as comemorações dos 40 anos de independência de Cabo Verde vão continuar por mais alguns meses. Por resolução do governo publicado no BO de 19 de Agosto decidiu-se cativar mais 10 mil contos das verbas dos ministérios e outros serviços para cobrir despesas das comemorações no país e na diáspora. No texto desta resolução prevê­-se ainda a possibilidade de mobilizar fundos nas empresas públicas e na cooperação internacional para os mesmos fins.
As razões para se dar continuidade meses a fio às comemorações do dia da independência que é o 5 de Julho não são claras. À partida pode-se ver que dificilmente servem para renovar a unidade da nação como deve ser o seu propósito fundamental. O governo tem protagonismo excessivo na organização e financiamento das festividades e nas acções desenvolvidas tende-se a realçar o papel histórico do Paicv que é também o partido no governo. O facto de o país se encontrar em período pré-eleitoral não aju­da em nada. Pelo contrário, a percepção de que actos públicos do Estado podem ser aproveitados para se conseguir vantagem político-partidária deixa as suas marcas. A desconfiança dos cidadãos nestas matérias vê­-se confirmada quando, por exemplo, órgãos de comunicação social dão conta de que a ministra da Juventude e Emprego e também presidente do Paicv em visita ministerial a São Tomé e Príncipe aproveitou a oportu­nidade para pedir votos à comunidade cabo-verdiana para o seu partido nas próximas eleições; e ainda não começou a campanha.
Complicado nessas comemorações quase intermináveis é o facto de se ficar essencialmente pela exaltação de uma independência desconectada da liberdade individual e do pluralismo em flagrante contradição com os princípios e valores da Constituição de Cabo Verde e fora da tradição ci­vilizacional inaugurada com a declaração de independência dos Estados Unidos trezentos anos atrás. Uma consequência directa disso é deixar fora de qualquer reconhecimento as vítimas da independência sem liber­dade e os que ousaram resistir ao poder tirânico que se instalou nas ilhas durante os primeiros quinze anos. A reportagem desta semana sobre o 31 de Agosto de 1981 (pags.14-17) procura neste ano do quadragésimo ani­versário da independência preencher essa lacuna e relembrar o quanto custou a falta de liberdade.
A fixação em proclamados actos heróicos de alguns convenientemente seleccionados não permite que o país contemple o seu passado com o de­vido distanciamento e com a melhor compreensão dos factos. Muito me­nos o prepara para enfrentar os desafios do presente e do futuro próximo. Partidariza-se tudo e todas as razões são boas para se polarizar de forma antagónica a sociedade. Nos últimos dias até a chuva tem servido de arma de arremesso. Aparentemente uns seriam a favor da sua chegada e outros estariam a rezar e a usar provavelmente artimanhas pouco católicas para que ela não bafejasse as ilhas. O ridículo parece não ter limites. Com tais narrativas a circular, dificilmente se vai conseguir produzir o debate que o país precisa fazer para encontrar vias para sair da situação em que se encontra de crescimento raso e desemprego nos dois dígitos.
A decisão do governo em fazer do dia 12 de Setembro o dia do asso­ciativismo juvenil (BO 14 de Agosto) revela bem o apego oficial a uma historiografia própria do regime de partido único. Dá-se ao associativis­mo juvenil a mesma data de referência da Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC), a organização de massa dos jovens durante o regime de partido único. Sente-se nesta decisão do governo que não há uma preo­cupação em estabelecer uma relação do Estado com os jovens que seja completamente distinta, tanto em substância como na aparência, da re­lação que outrora existiu entre o partido, as organizações de massa e o Estado. Denúncias repetidas de manipulação política dos jovens feitas por estudiosos de movimentos juvenis particularmente em períodos elei­torais são reveladoras a esse respeito. Nisso mais uma vez Cabo Verde diferencia-se de experiências de países como Portugal, Itália e Alemanha que conheceram a indoutrinação política dos jovens num momento da sua história e que posteriormente desenvolveram sensibilidade especial perante qualquer tentativa de se voltar ao mesmo. Aqui a rejeição da po­litização dos jovens não existe apesar de vários artigos da Constituição se mostrarem contra a intromissão isolada e excessiva do Estado nos assun­tos da juventude.
Num outro registo, os últimos acontecimentos na Guiné-Bissau ilus­tram bem como supostas aderências à história levam à instabilidade e são obstáculo ao desenvolvimento. A demissão do governo com maioria parlamentar pelo presidente da república faz lembrar o quão ajustado foi a decisão em 1992 de dotar Cabo Verde de uma nova Constituição em vez de aceitar a proposta do PAICV em manter a Constituição de 1980 sal­picada de algumas normas permitindo eleições pluripartidárias. O semi­presidencialismo no texto constitucional de 1980 e revista em 1990 não vingou e Cabo Verde ganhou um regime parlamentar que possibilitou governos que duram uma legislatura enquanto a Guiné fazia o caminho inverso.
     Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 26 de Agosto de 2015

sexta-feira, agosto 14, 2015

PIB por ilhas



Finalmente temos os valores do Produto Interno Bruto (PIB) no intervalo 2007 e 20012 apresentados por ilhas. Um dado adicional são os valores distintos do PIB para a Cidade da Praia e para o conjunto dos restantes concelhos da ilha de Santiago. Foi um grande trabalho do Instituto Nacional de Estatísticas que só peca pela sua demora. De facto, com os valores do PIB e de outros indicadores relevantes do ambiente socio-económico do país especificados por ilhas, por concelhos e até por cidades pode-se ter uma ideia muito mais clara do processo evolutivo de cada uma dessas entidades. 
A partir de agora passa-se a avaliar melhor o impacto dos investimentos públicos realizados, as consequências das opções feitas na atracção do investimento nacional e estrangeiro, o grau de eficácia das políticas de facilitação de negócios e os resultados das apostas no capital humano. O grau de centralização do país e o sucesso ou falhanço das políticas de descentralização vão-se revelar com maior clareza. Opções de regionalização terão outros elementos de referência, o debate será mais produtivo, porque mais sustentado em dados, e a procura de soluções para desenvolver as ilhas e combater as assimetrias caminhará por vias confirmadas ou não por dados regulares e muito específicos.
Numa primeira abordagem dos dados apresentados pelo INE na semana passada nota-se imediatamente o seguinte: o forte crescimento do PIB da Boa Vista, a grande concentração de recursos na Cidade da Praia (39% do PIB Nacional), a realidade crua do interior de Santiago com um rendimento per capita menos de metade da média nacional e a situação das ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Maio, Fogo e Brava praticamente estagnadas e a perder população. Também é visível que não obstante os volumosos investimentos no sector da agricultura e pecuária os dados do INE apontam para um impacto pouco significativo do sector primário nos anos 2007 e 2012. No período referido a contribuição para o Valor Acrescentado Bruto da ilha não acrescentou ao que já existia em mais do que 1% nas ilhas de Santo Antão, Maio e um pouco mais na Brava. No sentido oposto, em S. Nicolau, Santiago e Fogo a participação do sector primário no VAB da ilha respectiva caiu de 2007 a 2012 por valores também à volta do 1%.
De uma primeira leitura já fica a impressão o quão limitado tem sido o impacto dos grandes investimentos na agricultura e pecuária. De facto, houve grandes investimentos na mobilização de água e na criação de redes de estradas no interior das ilhas mas talvez não se deu a necessária atenção para fazer o resto indispensável para o sucesso das políticas e garantir o retorno ao investimento feito. O resultado viu-se na continuada vulnerabilidade da população rural agora demonstrada neste ano de seca. Sem amparo e sem “pé-de-meia” os homens e mulheres do campo são obrigados a matar os seus animais pra sobreviverem no dia de hoje. Aliena-se o futuro para sobreviver no presente.
A duplicação do PIB da Boa Vista em cinco anos, por outro lado, ajuda a conjecturar qual pode ser um futuro de crescimento rápido no país se for conseguido a proeza de alinhar certos factores-chave. Aparentemente aconteceu na Boa Vista o que alguns estudiosos da economia do crescimento sublinham: Boa Vista, a ilha era, um diamante por ser descoberto e lapidado. Ou seja, tinha riqueza natural e Cabo Verde apresenta algumas vantagens comparativas na atracção da procura turística da Europa devido designadamente à sua distância a poucas  horas de voo e a proximidade cultural. Daí a construção de uma infraestrutura, o Aeroporto Internacional da Boa Vista, que possibilitou acesso à riqueza natural e materializou a vantagem comparativa. Foi suficiente para desencadear a dinâmica. Pena que não foram tomadas em tempo certo as outras diligências internas como as de garantir segurança, planear respostas ao crescimento e às solicitações da ilha nos mais variados domínios e de tudo fazer para que os investimentos externos e o fluxo turístico tivessem o maior impacto possível na economia local e nacional. Por isso é que muito do que aí acontece resulta mais da pressão da procura do que de um esforço de diversificação e de sofisticação da oferta.
Por último, nesta primeira abordagem é de fazer notar a importância do sector secundário e o impacto que pode ter no crescimento do PIB no aumento do emprego e nas exportações. Em S.Vicente verifica-se o maior crescimento da contribuição do sector secundário para o VAB. Deve ter compensado em parte a quebra no sector dos serviços de 2007 a 2012 e faz relembrar o que historicamente se sabe: a importância da industrialização na elevação permanente de milhares e em certos casos de milhões de pessoa para fora da pobreza e para um nível de rendimento da classe média. O programa AGOA pela suas facilidades de acesso ao mercado norte-americano procura ajudar a trilhar o caminho da industrialização. Não devíamos estar a desperdiçar a oportunidade oferecida. O Lesotho com mais de 40 mil postos de trabalho criados por causa do AGOA devia servir-nos de exemplo.  
Vamos continuar a ler estes dados do INE, esperar por mais e procurar tirar ilações que melhor ajudam o país no seu todo e também todas as suas parcelas no caminho do desenvolvimento.
Editorial do jornal Expresso das ilhas de 12 de Agosto de 2015

sexta-feira, agosto 07, 2015

Efectividade comprometida



A intervenção de cerca de mais de vinte minutos da Dra. Janira Hopffer Almada durante o debate sobre o Estado da Nação despertou atenção pelo seu carácter anómalo. Não foi discurso da Ministra do Emprego e da Juventude. Pretendeu ser algo mais. Para qualquer observador a intenção era dar protagonismo à presidente do Paicv. Só que na Assembleia Nacional e no debate sobre o Estado da Nação o destaque é para a intervenção do primeiro-ministro cujo governo é politicamente responsável perante o Parlamento. O facto porém de o ter feito e também do que depois se seguiu de quase despedida do PM, em plena sessão parlamentar, e ainda a mais de sete meses do fim da legislatura, não abona muito a favor do “regular funcionamento das instituições” que todos esperam e desejam.
A público tem chegado por várias vias indícios de tensões nas relações entre a nova liderança do Paicv, o seu grupo parlamentar e o governo. Este jornal em editorial por várias chamou a atenção para a necessidade de clarificação dessas relações. O nosso sistema de governo tem um primeiro-ministro nomeado pelo presidente da república sob proposta do partido vencedor das eleições. O novo governo só assume plenas funções depois de o parlamento ter aprovado uma moção de confiança por maioria absoluta dos deputados. Se no decorrer da legislatura há uma mudança na liderança do partido que suporta o governo ou uma outra alteração nas condições iniciais do mandato, o mais normal é que se enverede por um processo de reconfirmação do governo e da sua relação com a sua base parlamentar. Assim evitam-se quaisquer dúvidas quanto à sua legitimidade e assegura-se o normal funcionamento das instituições. Ninguém terá dúvidas onde reside o poder.
Ao não proceder desta forma, o sistema político sujeita-se a “ruídos” que com o passar do tempo tendem a ficar piores. Em Março deste ano o país assistiu ao espectáculo do posicionamento público da nova líder do Paicv e dos seus próximos no partido contra posições do grupo parlamentar maioritário e do próprio primeiro-ministro mesmo depois de a lei sobre o estatuto dos titulares de cargos políticos ter sido aprovada por unanimidade na AN. A questão para o sistema político não são as diferenças de opinião e a falta de alinhamento pontual nas estruturas partidárias. De facto, o que perturba é a forma como foram arejadas publicamente com ganhos para o populismo e para as forças anti-partido e anti-pluralismo e com perda e humilhação para o parlamento cabo-verdiano. 
Mesmo depois de tudo o que se passou não houve preocupação de seguir os procedimentos previstos na Constituição para relegitimar o governo. Informalmente a presidente do Paicv reafirmou a sua confiança no Dr. José Maria Neves enquanto primeiro-ministro e o líder parlamentar no seu discursos do 5 de Julho reiterou também a confiança da maioria parlamentar no governo. É evidente que seguir simplesmente por essas vias não é suficiente. Se momentaneamente traz alguma acalmia no seio do  partido, a realidade é que o governo sem uma moção de confiança e sem o programa  actualizado não tem a energia, o foco e a coesão interna que os momentos difíceis do país exigem. Quase que fica em formato de “governo de gestão”, com uma agenda que mais parece ser uma agenda eleitoral e sempre sujeita a sobressaltos causados por quem anseia antes de tempo governar ou já mostrar peso político. É só ver o que se passa no INPS e na TACV. Ruídos persistem e notam-se disputas por protagonismos nos actos do Estado. A coroar, o insólito como foi descrito acima acontece no debate sobre o estado da Nação.
Depois da “dispidida” do PM, que governo vai se ter? Um governo mais engajado na campanha eleitoral e com mais protagonismo da futura candidata do partido ao cargo de PM? Um PM em “modo” de saída a par com ministros ansiosos por chegar ao fim do seu tempo no governo? E o país como fica nesta corrida disparada para o poder que está a acontecer antes do tempo?
Uma das particularidades da democracia é o mandato certo. A renovação do mandato acontece num momento pré-estabelecido e em que por um tempo limitado alternativas são apresentadas e as disputas eleitorais têm lugar. Com este sistema garante-se a possibilidade de alternância, mas evita-se que a sociedade esteja a todo o momento sob as tensões extremadas do período eleitoral. Há tempo para governar e há tempo para campanha. Cria-se uma disfunção grave quando em vez de governar, ou seja, de trabalhar para o bem comum, se envereda pela campanha em que os interesses partidários se sobrepõem e condicionam tudo o resto. Ter o governo quase um ano antes das eleições numa postura em que a agenda eleitoral parece prevalecer sobre tudo o resto não é bom nem para o país nem para a democracia. Ao Presidente da República cabe o papel de assegurar o regular funcionamento das instituições. Depois do advento do populismo e do afundamento do Parlamento não podemos ter governo a meio gás, com ministros sem alento e a funcionar como veículo de interesses eleitorais. 
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Agosto de 2015 

segunda-feira, agosto 03, 2015

Debate do Estado da Nação 2015



Cabo Verde está a chegar ao fim do 3º mandato do governo de José Maria Neves com níveis de crescimento da economia dos mais baixos de sempre. Uma média de 1,4%  nos últimos cinco anos. Os níveis de desemprego também são dos mais altos. Oficialmente acima dos 15,8% mas com cada mais gente a abandonar qualquer esperança de conseguir trabalho. As perspectivas futuras não são animadoras.
Curiosamente há 25 anos atrás encontrávamos numa situação parecida. Depois de quinze anos do governo do PAICV a economia estagnava. O crescimento em 1990 foi de 0%. Também então os dirigentes não sabiam explicar. Não tinham a bengala da crise na Europa. José Brito, o então ministro da Cooperação, quando questionado na Assembleia Nacional Popular por que é que S.Vicente estava parado respondeu: “Já esgotámos grande parte das grandes infraestruturas que temos de criar. O problema de S.Vicente agora é de valorizar o que já investimos, o problema é de capacidade de fazer funcionar”. Esta parece ser a sina dos governos do Paicv. Até podem fazer obras. Com financiamentos de doadores, fazem obras. Quando os donativos diminuem, endividam o país e fazem obras. Os resultados prometidos, porém ninguém os vê. Os clusters não se materializam, os hubs não se constituem e os centro de negócios internacionais parecem miragens no deserto. Apesar dos investimentos, a sensação é que o país está parado. Parafraseando o engenheiro José Brito, não conseguem fazer funcionar essas infraestruturas. Por isso não são factor de maior produção de riqueza, de aumento de rendimentos para as pessoas e de expansão do tecido empresarial no país.   
Porque essa inabilidade dos governos do Paicv? Inabilidade constatada há 25 anos atrás e demonstrada outra vez hoje nestes anos de crescimento anémico da economia nacional apesar dos investimentos em mais de 600 milhões de contos.   A resposta só pode estar no ADN do PAICV. O PAICV é, como qualquer partido político, uma organização de poder. Mas é diferente dos outros por duas razões principais: acha-se dono do país e coloca-se na posição de credor eterno da gratidão do povo. Quer o povo na posição de devedor da gratidão e, por isso, quando governa, procura reproduzir o espírito de dependência e enredar as pessoas nas malhas do assistencialismo.
Para o Paicv exercer poder significa fundamentalmente controlar tudo. Particularmente quem pode dar e quem pode receber. A partidarização na administração pública, na relação com todas as organizações da sociedade, e na comunicação com o país não é obra do acaso. Espelha perfeitamente essa vontade de controlo. Vontade tão forte que sempre que forçado a escolher entre desenvolvimento ou controlo, escolhe controlo.
Um exemplo paradigmático aconteceu em 2007. Em Maio desse ano, na sequência de uma reunião do Conselho de Ministros especializado de economia em São Vicente, o então ministro José Brito anunciou investimentos de mais de um bilhão de dólares para a ilha. Pouco tempo depois ficou claro que tudo ia ficar em águas de bacalhau. A possibilidade de as câmaras do Sal, de S. Vicente e do Porto Novo virem a ter receitas extraordinárias pela venda de terrenos para os resort e hotéis antes das eleições autárquicas de 2008 foi motivo suficiente para que o governo com uma directiva suspendesse nas conservatórias o registo das propriedades. Até quem já tinha registado os terrenos como foi o caso da empresa Salamansa Sands viu o seu projecto bloqueado. A insegurança jurídica que se seguiu paralisou muitos outros projectos. Depois veio a crise e o momento foi-se. Muito do que podia ter sido feito não foi, com prejuízo directo para as populações das ilhas de Santo Antão, São Vicente e Sal e também para todo o país. Prevaleceu o desejo de controlo. 
Com esta atitude de sacrificar o país no altar do poder, o PAICV faz de Cabo Verde o campeão na perda de oportunidades. Quando uma aparece, a postura é a clássica do rentista. Procura-se tirar à cabeça todos os benefícios, particularmente os políticos. Depois do show off mediático, os investidores têm que lidar com a administração pública que o Sr. Primeiro-ministro já caracterizou de pouco sensível para com o sector privado e um dos principais factores do mau ambiente de negócios. O mais provável é que a administração pública simplesmente esteja a reflectir os valores de quem o dirige há quinze anos. De qualquer forma, se o investidor sobreviver aos atrasos, bloqueios e outras manigâncias da administração e começar a operar, vai-se deparar logo com outras faces do estado rentista. Caso recente é o turismo cabo-verdiano antes de se afirmar e atingir um fluxo de turistas respeitável começou a inflectir no seu crescimento devido ao peso de impostos e taxas. Pode-se estar a matar a galinha dos ovos de ouro, mas ninguém liga. A nação tem problemas sérios e o futuro não é claro.
Quinze anos depois as fragilidades do país mostram-se como bem revela o Banco de Cabo Verde no seu relatório anual: “elevados custos de contexto e de nível de risco nos projectos empresariais; défice de skills de gestão e de orientação para o negócio de grande parte dos empreendedores nacionais; desfasamento técnico-profissional entre a procura e a oferta de emprego; défice de infraestrutura e de produtos financeiros para micro e pequenos negócios; défice de infraestrutura apropriada (principalmente de transportes) que possibilite o aumento da economia de escala dos investimentos empresariais pela via da exportação”. Fragilidades que segundo o mesmo relatório condicionam a capacidade do país de beneficiar de uma eventual recuperação económica da Europa.
Para agravar mais a situação, o governo distraiu-se e distraiu o país com outras coisas. Enquanto a ministra das Finanças fazia a sua corrida para o BAD e o Primeiro-ministro entrava em campanha antecipada para as legislativas com a sua presença em quase todos os actos, grandes ou pequenos deste país, o Estado dava sinais graves de incompetência em várias situações: na gestão do pós-erupção na ilha do Fogo, no naufrágio do navio Vicente, na gestão do programa de Casa para Todos, no conflito laboral na Polícia Judiciária e na procura de um rumo certo para a TACV. Muitos outros problemas provavelmente estarão escondidos debaixo do tapete. A atitude do governo de se desresponsabilizar e de desvalorizar ou esconder os problemas sempre que confrontado com as consequências dos mesmos é extremamente nociva e perigosa. Não ajuda a sociedade cabo-verdiana a tomar consciência dos seus verdadeiros problemas e a desenvolver o diálogo livre e plural necessário para encontrar soluções.
Assim como no fim dos primeiros quinze anos do governo, o Paicv demonstrou que não sabia como fazer para que o país deixasse de gatinhar e aprender a correr em direcção ao desenvolvimento – algo que só viria a acontecer com a liberdade, democracia e o estado de direito. De novo, já num contexto diferente, está a deixar o país de gatas. Mal consegue andar ao ritmo de 1,4 por cento em média e está sobrecarregado com uma dívida pública que duplicou nos últimos cinco anos e já atinge o sétimo lugar das maiores dívidas públicas do mundo. É evidente que algo de profundamente errado está na forma de governar do Paicv. O partido tem consciência disso mas quer ganhar as próximas eleições. Na escolha do seu presidente em Dezembro de 2014 fez uma opção clara: entre escolher o Dr. Felisberto Vieiro que fazia campanha com referência aos valores de Cabral, o partido maioritariamente preferiu quem tinha demonstrado especial competência em, citando o Dr. Felisberto Vieira, usar verguinhas, bolsas de estudo e kits escolares para comprar votos. A mensagem do Paicv ao eleger a Dra. Janira Almada como presidente é inequívoca: sabemos que não vamos ganhar fazendo o país crescer a dois dígitos e baixando o desemprego para um dígito como outrora prometemos. Mas podemos ganhar usando os recursos do Estado para enredar o máximo possível de pessoas, particularmente jovens e vulneráveis numa malha em que por lealdade, gratidão ou mesmo coacção vão dar-nos o seu voto. Se alguém duvida de que esta estratégia está a ser seguida é só ver a televisão e seguir a Dra. Janira Almada a implementá-la todos dias. 
É evidente que Cabo Verde não vai ganhar nada com isso. É mau uso dos recursos do Estado. É destruir o caracter de um povo, submetê-lo ao assistencialismo e a outros esquemas degradantes de dependência.
A nação hoje mais do que nunca precisa de um governo que realmente acredita num Cabo Verde viável. Um governo que acredita que o cabo-verdiano exercendo sem peias a sua liberdade, afirmando a sua autonomia como pessoa e como cidadão, fazendo uso da sua criatividade e da sua energia e com os olhos postos na procura da sua felicidade, vai poder construir o desenvolvimento sustentado em Cabo Verde. Um governo que se preste a servir o país e se prontifique a criar as condições para que todos e cada um dêem um máximo de si para que Cabo Verde seja livre e próspero. Se outros o conseguiram, também nós o faremos.

*Intervenção na Assembleia Nacional, esta sexta-feira, 31, no último debate sobre o  estado da Nação desta legislatura.
* Deputado da Nação

quarta-feira, julho 29, 2015

Estado da Nação: Preocupante



O Banco de Cabo Verde (BCV) no seu Relatório Anual publicado no dia 23 de Julho deixa transparecer que, devido às fragilidades endógenas da economia nacional, o efeito de contágio de uma eventual recuperação da área do Euro será condicionado. Ou seja, não há certeza que Cabo Verde poderá aproveitar completamente uma maior dinâmica económica dos seus parceiros europeus. As razões apontadas pelo BCV são bastante significativas: “elevados custos de contexto e de nível de risco nos projectos empresa­riais; défice de skills de gestão e de orientação para o negócio de grande parte dos empreendedores nacio­nais; desfasamento técnico-profissional entre a procura e a oferta de emprego; défice de infraestrutura e de produtos financeiros para micro e pequenos negócios; défice de infraestrutura apropriada (principal­mente de transportes) que possibilite o aumento da economia de escala dos investimentos empresariais pela via da exportação”.
Dessas constatações do BCV pode-se concluir que, em grande parte, a chamada “agenda de transformação do governo” não atingiu os objectivos pretendidos. A administração pública continua a ser ineficaz e insensível na sua relação com os utentes, em geral, e com o mundo dos negócios, em particular. O sector privado nacional não passou ainda da sua fase incipiente. A educação e a formação não estão em sintonia com as necessidades do mercado de trabalho. Não se encontraram ainda mecanismos e vias adequadas para financiar pequenas e médias empresas. As infraestruturas construídas não foram as melhores ou as prioritárias se a intenção era ajudar a ganhar escala via exportações. Como diz o relatório do BCV, Cabo Verde só poderá ganhar com o spillover de uma maior dinâmica da economia europeia se for capaz de aumentar consideravelmente a seu capacidade produtiva e a sua resiliência, e isso foi profundamente posta em causa pelas insuficiências ou inadequação das políticas seguidas até agora. 
Entretanto, o país já atingiu ou mesmo ultrapassou os limites da dívida que pode ser sustentada. Dificilmente poderá continuar a endividar-se para fazer face aos défices ainda grandes que existem em termos de infraestruturas ou às insuficiências nos sectores de capacitação do capital humano ou nas reformas da administração na perspectiva de diminuição dos custos de contexto e de transacções. Com o investimento público limitado nos próximos tempos e o investimento privado desincentivado por vários factores, o país sujeita-se a anos de crescimento raso. Um quadro que torna ainda mais difícil servir a dívida existente, correndo-se o risco de falência quando esta ideia já não é mais um tabu, tendo em conta o que se passou nos últimos anos na Grécia.
Para os cidadãos em geral há a percepção de que apesar de se viver um frenesim de inaugurações, de lançamentos e de visitas pelas ilhas, as coisas não estão bem. Dez anos depois de serem anunciados os clusters ainda estão por se constituir e se tornarem no dínamo que, juntando empresas, universidades e mercados, gerariam crescimento económico e emprego massivo e de qualidade. Mesmo o turismo, que por todos é visto como o grande motor da economia, não consegue lograr os níveis de crescimento desejados. Há quem considere que é mau o ambiente de negócios no país e veja nisso a causa principal da aparente incapacidade de aproveitar oportunidades e de fazer fruir a iniciativa privada. Especificamente no domínio do turismo, economistas como o Doutor João Estevão, numa entrevista recente ao jornal A Nação, é claro em dizer que o sector tem crescido sob a pressão da procura mas que faltam propostasdo lado da oferta para aproveitar as complementaridades potenciais e transformá-las em oportunidades de investimento e de crescimento económico. Acrescenta ainda que o emprego em particular sofre com o declínio da actividade transformadora. Se indústrias existissem muitos dos jovens com escolarização secundária poderiam ser absorvidos, ajudando a criar um sector mais intenso em tecnologia e informação com ganhos para o país em termos de competitividade e de capacidade exportadora.
O desânimo e a frustração de muitos que estão no desemprego e dos outros muitos que engrossaram o número da população activa não ajudam em manter o espírito civil, a confiança e a solidariedade tão necessários para se poder guindar com garra os caminhos do desenvolvimento. Com isso cresce o sentimento de insegurança, aumenta o fosso social e aprofunda-se a desconfiança para com os governantes, os políticos e as instituições. A tentação de exercer o poder num estado de permanente eleitoralismo, de lutas permanentes para impor verdades convenientes e leituras históricas únicas, agravam a situação. O controlo sobre as pessoas que isso normalmente pressupõe, leva à adopção de políticas que favorecem o assistencialismo a dependência e com isso naturalmente mais frustração, rivalidades, discriminação e até violência. 
É evidente que há que fazer um outro caminho. Cabo Verde está numa encruzilhada enquanto país de rendimento médio. A sua evidente falta de preparação para enfrentar os rigores do mercado internacional e aí florescer no comércio entre as nações deve ser devidamente ponderada e os constrangimentos contornados ou limitados. Acreditar em Cabo Verde, na sua viabilidade como país, deve ser algo mais do que aretórica repetida nas cerimónias do 5 de Julho.

       Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 29 de Julho de 2015     

sexta-feira, julho 17, 2015

A História não valida injustiças



Recentemente no elogio fúnebre das várias vítimas de crimes raciais no Estados Unidos o presidente Obama foi peremptório ao afirmar: a história não pode ser uma espada para validar injustiças ou um escudo contra o progresso. Deve ser sim um manual para se saber como evitar repetir os erros do passado e como quebrar o ciclo. O aviso de Obama devia servir bem para temperar o fervor com que o Estado cabo-verdiano parece estar a abraçar a História contada pelos construtores do regime do partido único. Uma história feita à medida de alguns interessados em projectar uma imagem quase messiânica que os põe acima de quaisquer criticismos, presentes ou futuros. Paradoxalmente, o Estado que aceita isso é o mesmo que todos os anos pelo 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, serve-se de todos os subterfúgios para não celebrar com a solenidade exigida esses dois princípios e valores consagrados na Constituição da República. 
 O espírito prevalecente hoje em Cabo Verde é de respeito pelo pluralismo, de defesa pacífica de todas as ideias e de reconhecimento da igualdade de todos os cidadãos. Ninguém considera legítimo a utilização da violência para impor convicções políticas e estabelecer regimes contrários à liberdade e à dignidade das pessoas. Os símbolos nacionais, os monumentos e quaisquer outros objectos comemorativos devem ser tomados como pontos de encontro da comunidade nacional e venerados por tal. Não podem ser pontos de confronto, de ofensa e agravo. A memória democrática de como se chegou à liberdade deve ser preservada. Assim como devem ser reconhecidas as vítimas do regime repressivo que teve os seus pontos altos nas prisões de Maio/Junho de 1977 e de Agosto de 1981 em S. Vicente e S. Antão e noutras ilhas. Também não se pode esconder quem eram os principais responsáveis pela direcção do Estado. 
A generalidade dos países que deixaram a ditadura para trás procuram dar provas do renovado gosto pela liberdade. Um dos gestos simbólicos de maior importância são as condecorações feitas pelo presidente da república. A coerência dos actos de reconhecimento da nação pela luta pela liberdade e consolidação das instituições democráticas normalmente requer que se criem novas medalhas e novas ordens honoríficas. Em Portugal, com a III República, deixou-se a Ordem do Império, e criou-se a Ordem da Liberdade para homenagear quem se notabiliza na luta pela democracia e pela sua consolidação. Na Espanha democrática criou-se a Ordem de Mérito da Constituição e medalhas da liberdade encontram-se por todos os países democráticos tanto os novos como a Estónia como os antigos a exemplo dos Estados Unidos e da França. A própria Rússia deixou para trás a Ordem de Lenine que vinha da antiga União Soviética.
A opção até agora feita em Cabo Verde de não criar outras ordens honoríficas faz com que o país fique só com as ordens criadas durante o regime de partido único. As emendas feitas em 1996 às leis de 1985 e 1987 que criaram as actuais ordens procuraram dar um escopo maior ao processo de escolha de possíveis condecorados. Não deixa porém de fazer falta uma ordem da liberdade e da democracia mais consonante com os princípios e valores da Constituição. Sem falar no embaraço de se ter com a Guiné-Bissau a ordem de Amílcar Cabral como a máxima condecoração do Estado de Cabo Verde. Por outro lado, tanto para quem condecora como para quem é condecorado uma medalha da liberdade sem quaisquer outras conotações partidárias e ideológicas seria mais fácil de dar e de receber.
As condecorações são distinções feitas em nome da Nação. Naturalmente que se espera que não sejam nem banalizadas, nem instrumentalizadas. Contribui para uma impressão negativa o número aparentemente excessivo de pessoas distinguidas quando a expectativa geral é que a distinção deve ser rara e selectiva. Também não ajuda quando já não é só o Presidente da República mas também o Primeiro Ministro que aparece a colocar medalhas, num caso a dezenas de personalidades (jornalistas) e noutro caso a centenas de pessoas (combatentes). 
 A febre de homenagens atinge o rubro de cinco anos nas comemorações da independência nacional que até agora têm coincidido com os anos pré-eleitoriais. Este facto não ajuda em nada a dissipar a impressão de alguma instrumentalização eleitoral desses actos, o que, a confirmar-se, não bonifica ninguém. A extensão por largos meses das comemorações exacerba a situação e valida a percepção de eleitoralismo. No ambiente de contínua interpretação histórica em que se enfatiza o momento da independência ficam esquecidos os que depois sofreram com o regime pós- independência. A injustiça de ontem continua a repetir-se. Não seria assim se a independência fosse vista como indissoluvelmente ligada à liberdade, à democracia e ao Estado de Direito.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 15 de Julho de 2015