quarta-feira, dezembro 17, 2014

O Poder também corrompe



EDIÇÃO 681 DO DIA 17 DE DEZEMBRO DE 2014

Cabo Verde passa da posição 41º para 42º em 174 países no último Índice de Percepção de Corrupção publicado pela Transparência Internacional em Dezembro de 2014. Não é uma má posição, mas para muitos não traduz a realidade da corrupção existente no país. O próprio ministro da Justiça em intervenção recente admitiu que a corrupção pode estar acima do índice referido. O que falta, diz ele, é a coragem para a denunciar.
Referências mais ou menos explícitas a casos de corrupção são normalmente feitas em ambiente de combate político e eleitoral. O mesmo fenómeno nota-se cada vez mais nas disputas internas dos partidos. Recentemente, no âmbito da luta pela liderança no PAICV, houve acusações de utilização de sacos de cimento, bolsas de estudo, centros de emprego e de juventude, cestas básicas em troca de votos. Em eleições anteriores, legislativas, autárquicas e até presidenciais surgiram acusações similares que indiciam o uso de recursos do Estado para aliciar e beneficiar apoiantes. O facto dessas denúncias não se verificarem só na luta interpartidária mas também intrapartidária mostra que o fenómeno de utilização dos recursos públicos para ganhar influência e poder político é mais comum do que se esperava.
Nesta óptica, a corrupção em Cabo Verde não seria tão visível ou palpável porque não é fundamentalmente virada para o enriquecimento de certos indivíduos e respectivas famílias. O desvio dos recursos do Estado teria como objectivo principal a recompensa da lealdade política e a sedução de novos apoiantes. Naturalmente que no processo os “desviantes” ou “teimosos” acabam por sofrer, sendo discriminados no acesso ao emprego, a reparações de habitação, a ofertas de verguinhas de ferro, de sacos de cimento e outras benesses.
Várias razões certamente existirão para explicar por que o silêncio sobre esta corrupção só é realmente quebrado em momentos críticos dos confrontos políticos partidários. Entre elas estarão o receio de antagonizar os poderes estabelecidos, a convicção de que é legítimo favorecer apoiantes com recursos do Estado e a disposição à partida de fazer o mesmo, quando em posição de poder e em controlo dos recursos colectivos. O espectáculo diário na televisão de cerimónias onde doadores ( primeiro-ministro, ministros, presidentes de câmara e outras entidades) contemplam e presenteiam recipientes gratos pelas habitações, pensões,  cestas básicas, kits escolares etc, não deixa de emprestar todo um ar de legitimidade a esta cultura e forma de estar e de fazer política.
Num artigo recente publicado neste jornal, o colunista português Doutor Rui Ramos chama a atenção para um fenómeno que se torna cada vez mais vulgar em países em que o controlo do Estado se apresenta como fonte maior ou quase única de privilégio, de status e de poder político. Nessas circunstâncias, segundo ele, o Estado é usado de forma implacável a favor de um partido ou de uma facção. Assim, o equilíbrio orçamental é muito bonito, mas é preciso não hesitar em multiplicar os contractos, parcerias, subsídios, e empregos que suscitam simpatias, fidelidades e contrapartidas; a transparência é excelente, mas é proibido ter escrúpulos quando se trata de explorar a promiscuidade, as facilidades e as trocas de favores para alargar redes de influência e torná-las mais espessas; a separação de poderes é comovedora, mas é impensável vacilar perante a possibilidade de conjugar ministérios, bancos e tribunais na protecção dos amigos e na perseguição dos inimigos. Acrescenta ainda que, no ambiente criado, o político com mais-valia para o partido ou facção é aquele que demonstrar maior aptidão neste género de exercícios. E é claro que a integridade pessoal não conta muito aí.
Cabo Verde apresenta as marcas de um país com uma economia baseada na reciclagem da ajuda externa. A ajuda não serviu para lançar o país no caminho do desenvolvimento sustentável. O crescimento económico é raso, o desemprego situa-se a um nível demasiado elevado, e o sector privado nacional está de rastos. A exemplo dos sistemas rentistas, o Estado posiciona-se no topo da cadeia alimentar sustentada por fluxos externos em donativos e empréstimos concessionais. A grande tentação é capturá-lo e utilizá-lo para se manter no poder. No processo compromete-se completamente a eficiência da acção governativa, seja ao nível local ou nacional.
A corrupção que resulta do facto de o Estado falhar no cumprimento do dever de servir todo e qualquer cidadão com isenção e imparcialidade sem descriminação ou favoritismo tem um impacto perverso no tecido social. Atomiza a sociedade, alimenta rivalidades e invejas e desincentiva o espírito de cooperação entre pessoas indispensável para a criação de riqueza. À frustração junta-se o conformismo e o sentimento de impotência numa mistura perigosa com implicações sociais graves designadamente nos níveis de crime.
Há pois que resgatar o Estado das mãos de quem o instrumentaliza muitas vezes arrogando-se no direito de decidir por todos qual o melhor caminho a seguir. Estagnação económica tem sido o que historicamente resulta dessas opções. É de não se esquecer que como Kant diz –  o paternalismo é o maior dos despotismos imagináveis.  O poder assim corrompido coloca-se na linha de frente contra o desenvolvimento e a cidadania. 

quarta-feira, dezembro 10, 2014

BCV, Quo Vadis?



Edição 680 de 10 de Dezembro

Na semana passada, dia 6 de Dezembro, saiu finalmente o Relatório de Política Monetária do Banco de Cabo Verde de Novembro de 2014. Normalmente publicado nas primeiras semanas de Novembro, o relatório do BCV tem contribuído ao longo dos anos com os seus dados e as suas análises para o enriquecimento do debate económico e político entre o governo, partidos políticos, parceiros sociais e a sociedade em geral que antecede a discussão do Orçamento do Estado na Assembleia Nacional. Este ano primou pela ausência. Só apareceu depois do debate parlamentar, no mesmo dia em que o governador designado pelo governo era ouvido na A. N.  
2014 tem sido um ano atribulado no banco central. Problemas laborais sérios afligiram a instituição nos meses que antecederam o fim do mandato de Dr. Carlos Burgo. A gestão, pelo governo, da substituição do governador revelou-se calamitosa. Na audição parlamentar, o governador designado confidenciou ao parlamento que a situação financeira do BCV é “algo difícil” e que o “fundo de pensões do banco poderá não ser sustentável”. Não parece alheia aos problemas do BCV a relação tensa com o Governo e particularmente com o ministério das finanças que se desenvolveu nos últimos anos. Tem sido notória a divergência de posições das duas instituições quanto à real situação económica do país e as suas perspectivas. No embate, a Ministra das finanças em 2011, na sequência da publicação de um relatório de política monetária, não se coibiu de dizer publicamente, referindo-se ao governador do BCV, que não iria ensinar missa ao vigário.
Facto é que os dados do crescimento económico do país têm ficado muito aquém das previsões do ministério das Finanças e mais próximas das do BCV. Os alertas do BCV quanto às consequências da política orçamental expansionista confirmaram-se na diminuição das reservas e consequente tomada de medidas restritivas do crédito interno que afectaram as empresas, a procura interna e a economia nacional em 2012 e 2013. E o crédito à economia não voltou a ter a dinâmica anterior mesmo quando na sequência da recuperação das reservas para o nível exigido pelo acordo cambial com o euro o BCV afrouxou nos seus controlos da banca nacional. Os bancos mesmo com liquidez mostram-se avessos à concessão do crédito ao sector privado e justificam-se com o crescimento anémico da economia e a divida pública de mais de 100% do PIB que pode configurar riscos macroeconómicos e financeiros futuros.
O desconforto do governo com as posições do BCV ficaram evidentes no anúncio do ex-ministro Humberto Brito para governador. A ministra das finanças anunciou que Cabo Verde precisava melhorar a articulação política, orçamental e fiscal e que Humberto Brito com um percurso de mergulho na economia real tinha o perfil ideal para ocupar o cargo no banco central. O pouco cuidado do governo em lidar o com banco central ficou evidente quase imediatamente. Considerando as exigências de idoneidade, de independência e de competência técnica que cada vez mais em todo mundo se exige dos “central bankers” é evidente que a proposta do governo caiu muito mal. O governo estava a nomear um político que tinha sido demitido da pasta de Energia em pleno momento de crise de fornecimento de electricidade e água na capital e noutros pontos do território nacional. Avançar essa personalidade poucos dias depois para uma posição central na condução da política monetária e na supervisão do sistema bancário que deve inspirar confiança no sistema económico e financeiro não é muito inteligente. 
A inépcia na gestão desse processo continuou com a indicação de uma nova personalidade, o Dr. João Serra. Primeiro, confessa-se que afinal foi a primeira escolha e depois finge-se esquecer que muito recentemente o indigitado deixara a presidência da Sociedade de Desenvolvimento da Boavista e Maio envolvido numa polémica que opunha membros do conselho da administração e onde não faltavam acusações de má gestão. Segundo, o governo para se justificar perante os críticos da primeira nomeação a governador solicita um parecer ao Procurado Geral da República para se certificar se o BCV rege-se pela lei das autoridades reguladoras ou simplesmente pela sua lei orgânica. O parecer do PGR favorece a posição do governo em como deve aplicar-se a lei orgânica do BCV, mas estranhamente o governo ignora o parecer e aplica a lei de autoridades reguladoras que exige que os administradores nomeados sejam ouvidos em audição pelas comissões parlamentares competentes. O parlamento aceita, apesar de não existir qualquer precedente nesta matéria. Contudo, não é a comissão de finanças que ouve o governador, mas sim a comissão dos assuntos constitucionais.
Nos próximos dias deverá sair a nomeação do governado do BCV, quase quatro meses depois do fim o mandato do último titular. A questão que fica é o quão a instituição banco central ficou beliscada pela gestão esdrúxula de uma substituição que deveria ser melhor preparada e executada para não ferir a imagem de confiança que deve sempre poder projectar. No mundo globalizado de hoje, a solidez institucional de entidades como o banco central e a sua independência face a interesses políticos de curto prazo dos governos é sempre um activo valioso do país que interessa preservar. Pena que o governo na sua ânsia da fazer todos ler pela sua cartilha não pára mesmo perante a possibilidade de comprometer o percurso de autonomia a independência que todos esperam ver percorrido com sucesso no BCV.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Erupção: Ilações a tirar



Edição 679 de 3 de Dezembro de 2014


Nestes dias, que se arrastam desde 23 de Novembro, a erupção do vulcão do Fogo tem sido seguida com atenção por todos os cabo-verdianos, uma atenção não poucas vezes marcada pela ansiedade e mesmo angústia perante a destruição das casas e dos meios de vida de mais um milhar de habitantes na Chã das Caldeiras. Felizmente não houve perdas de vida e uma parte significativa dos bens, pertences e gado da população foi efectivamente resgatada. Para isso contribuiu extraordinariamente o esforço abnegado de militares e polícias aí destacados e de populares que se ofereceram para ajudar. Depois de alguns episódios iniciais de vandalismo e de reacções epidérmicas das autoridades perante a resistência das pessoas em ser evacuadas, o processo de realojamento das pessoas tem prosseguido com o apoio da Cruz Vermelha de Cabo Verde e com gestos de solidariedade que vêm de todas as ilhas e da diáspora.
A situação de catástrofe vivida na ilha do Fogo deve ser motivo de uma reflexão mais profunda sobre os riscos que podem colocar-se a um país arquipélago, montanhoso e vulcânico e sobre a capacidade institucional e operacional de resposta em caso de concretização dos mesmos. Na manhã de domingo do dia 23 de Novembro o governo declarou situação de contingência. Estava-se perante o que na Resolução nº 10/2010 se considerou: “O risco mais perigoso em Cabo Verde é o risco vulcânico/sísmico”. Na sequência devia-se implementar o Plano de Contingência para o Fogo, que a lei prevê existir, sob a coordenação do Serviço Nacional de Protecção Civil. O problema é que de acordo com o diagnóstico feito no Relatório de Segurança Interna publicado no BO de 26 de Agosto de 2014: “o Serviço de Protecção Civil está desadequado para o cumprimento das suas missões, não existem indícios de articulação funcional e operacional com os comandos regionais, com excepção da Boavista, e não foram apresentados planos de emergência e de contingência para as Ilhas”. Talvez por ter-se dado conta dessas falhas que o governo, a toque de caixa, criou o gabinete de crise para “coordenar a acção governativa”. E para dirigir esse gabinete teve que se socorrer do brigadeiro Antero Matos, ex-conselheiro de segurança nacional, que se encontra há alguns meses na reforma. Significativamente o Primeiro-ministro não passou essa responsabilidade constitucional, que lhe cabe nestas circunstâncias, para o ministro que tem a tutela da Protecção Civil como prevê a resolução acima citada. 
Várias fraquezas institucionais e operacionais do país tornaram-se visíveis ao longo desta emergência na ilha do fogo. Através do pedido de ajuda a Portugal procurou-se colmatar algumas delas designadamente no domínio das comunicações com os telefones via satélites, de apoio aéreo de proximidade com helicópteros e mesmo de uma base de apoio naval em caso de evacuação a uma escala maior. A fragata portuguesa foi a resposta portuguesa. Pode-se dizer que dificilmente Cabo Verde poderá ter meios a essa escala para responder a situações de catástrofe futuras. É verdade que sempre deverá contar com a cooperação com outros países. Facto é, porém, que alguns meios próprios terão que existir para dar respostas a situações que não podem esperar pela vinda de fora de um barco, de um helicóptero ou de um telefone via satélite.
Recentemente o país viveu situações de emergência no mar, designadamente o afundamento do navio Mosteru e o encalhe de Pentalina que só não se tornaram catastróficas porque se verificaram junto à costa e na vizinhança de aldeias piscatórias. Os pescadores com os seus botes puderam resgatar as pessoas do mar. Na sequência da erupção do vulcão os primeiros meios de socorro foram levados para o fogo no rebocador Damão, como se esperaria que acontecesse há quarenta ou cinquenta anos atrás. A pergunta que fica é: onde está a Guarda Costeira que devia estar equipada com barcos e helicópteros a altura de fazer busca e salvamento e fornecer a base logística para se socorrer qualquer ilha em situação de emergência? O governo reconhece as insuficiências existentes, faz promessas, mas a capacidade de resposta do país mantem-se basicamente a mesma de décadas passadas. Urge alterar este estado de coisas. Não se deve esperar que aconteça algo terrível para se tomarem as medidas que se impõem. Mesmo o desaparecimento recente do navio Rotterdam com todos os seus tripulantes não conseguiu forçar uma mudança de atitude.
Cabo Verde tem que assegurar uma capacidade mínima mas efectiva de resposta a qualquer situação de crise ou catástrofe. Num país arquipélago devia ser óbvio que, para isso, é fundamental ter uma guarda costeira capaz de fiscalizar o espaço aéreo e marítimo, controlar a exploração económicas dos mares, fazer busca e salvamento e evitar que as ilhas sejam uma base para o tráfico e contrabando. Aparentemente os governantes têm outras prioridades.
De qualquer forma o Estado continua com responsabilidades de garantir, a todo o momento, a segurança das ilhas e mares e de assegurar que os recursos do país e a solidariedade de todos poderá chegar a qualquer ponto do território nacional. E com a gestão da Fir Oceânica e outras responsabilidades internacionais nesta região deverá habilitar-se para o cumprimento pleno das suas obrigações. É fundamental pôr a Protecção Civil e a Guarda Costeira à altura dessas responsabilidades.

quarta-feira, novembro 26, 2014

Encruzilhada



JORNAL 678 DE 26 DE NOVEMBRO DE 2014


A proposta de Orçamento do Estado para 2015, que esteve em debate nos últimos dias no parlamento, apresenta Cabo Verde como “um país que está numa encruzilhada à procura de um novo modelo de financiamento do seu desenvolvimento económico”. A redução de ajuda externa é apontada como causa próxima da mudança de rumo. Uma redução, porém, que não resultou da crise porque já antes anunciada. Em 2008 houve a graduação de Cabo Verde para país de rendimento médio. Sabia-se então que depois de um período de transição de cinco anos o país deixaria de beneficiar de uma parte significativa de donativos e de empréstimos concessionais. Até lá a economia tinha que ser posta em posição de, por um lado, manter o ritmo de crescimento a taxas elevadas e gerar receitas para sustentar a máquina do Estado e, por outro, de fazer-se competitiva com ganhos crescentes de produtividade.
Na sequência da crise financeira de 2008, e da crise soberana que se seguiu em 2010 nos países do euro, a preocupação geral com o défice orçamental e o montante da dívida pública aumentou consideravelmente. O governo argumentou, junto dos parceiros e organizações internacionais, que a dívida externa que iria contrair não seria insustentável mesmo que atingisse níveis bastante elevados porque seriam todos concessionais. Segundo o relatório do OE citado os empréstimos seriam “canalizados para projectos estruturantes e com efeito multiplicador no crescimento económico”. As infra-estruturas criadas iriam gerar externalidades positivas e efeito em cadeia tanto a jusante (backward linkages) como a montante (forward linkages) na economia, promovendo assim o efeito “crowding in” (aumento do investimento privado, melhorias da produtividade, maior retorno e melhoria na
competitividade do país)”. Mais de cinco anos depois, infelizmente, não é isso que aconteceu e o quadro existente está longe do que foi prometido.
A economia depois da recessão em 2009 lá conseguiu atingir uma taxa de crescimento de 4% em 2011. Desde então tem ficado por valores baixos de 1,2% em 2012 e 0,5% em 2013. O FMI, em Outubro passado, reviu em baixa o crescimento para 2014 de 3,1 % para 1% do PIB. Vê-se que o efeito multiplicador na criação de emprego não se concretizou mantendo as taxas de desemprego bastante elevadas, particularmente entre os jovens. O sector privado anda pelas ruas de amargura. Queixa-se do sufoco do fisco e das taxas de juro pesadas dos bancos. Estes referem-se a riscos macroeconómicos e macrofinanceiros ligados à fraca performance da economia e à dívida pública acima do 100% do PIB para facilitação do crédito.
O esperado aumento de investimentos privados na sequência e em consequência dos investimentos  públicos nas infra-estruturas (crowding in) também  não se verificou. Nem tão pouco se notam as backward linkages and forward linkages prometidas que as empresas iriam estabelecer no processo de criação de cadeias de valor, de ganhar escala e de conseguir acesso a mercados cada vez maiores e sofisticados. Chocante é o caso do sector da construção civil. Os termos acordados nas linhas de crédito assinados com Portugal não favoreceram o sector de construção civil nacional apesar dos milhões de contos gastos em obras públicas. Nestas condições exigir do sector privado que substitua o investimento público como impulsionador do crescimento não tem qualquer sentido.
Cinco anos depois e mais centenas de milhões de contos investidos, não se consegue tirar receitas suficientes da economia, nos níveis actuais de imposto, para equilibrar as contas. As iniciativas legislativas de alargamento da base tributária em sede do IRS e IRC apresentadas ao parlamento visam alargar a base tributária para equilibrar as contas. O problema é se mexendo no rendimento disponível das pessoas e das empresas para resolver o problema a curto prazo das contas do estado não se estará a agravar a situação económica com a diminuição do poder de compra das pessoas e do capital que as empresas precisam para ampliarem os seus negócios.
Como sair deste círculo vicioso para um círculo virtuoso onde a economia cresceria e os rendimentos das pessoas e das empresas aumentariam deveria ser o objecto central do debate parlamentar sobre o orçamento do Estado. Infelizmente não foi. É de se perguntar se a resistência em encontrar outros caminhos, em ir além da encruzilhada, não virá de conveniência política em ficar no que já é conhecido.
Governar com base na reciclagem de ajudas tende a reproduzir esquemas de dependência que acabam por abranger toda a sociedade. O Estado em vez de ser o agente regulador e facilitador de iniciativas individuais e de grupos torna-se no agente indutor de dependência. O poder político deixa de derivar da capacidade de mobilizar vontades para passar a basear-se quase que exclusivamente no clientelismo ostensivo e na intimidação mais ou menos velada dos que não se submetem directamente. O grande objectivo já não é mais prosperidade na liberdade mas sim conformismo, passividade e sentido agudo de precariedade. O problema é se, depois de já se ter tudo isso instalado, será possível mover pessoas, sociedade e instituições para o patamar exigido pelo mundo que já nos diz que o tempo da ajuda externa terminou.


quarta-feira, novembro 19, 2014

Surreal



JORNAL 677 DE 19 DE NOVEMBRO DE 2014


Nas últimas semanas sucedem-se por todo o país inaugurações diversas que são cobertas ao pormenor pelos órgãos de comunicação públicos da rádio e televisão. O PM, sempre acompanhado de vários membros do governo e de uma grande entourage, já em várias ilhas inaugurou apartamentos do programa de casa para todos, estradas, barragens. Fez vários lançamentos de primeira pedra, prometeu estudos, entregou habitações. Ministros também apareceram a entregar animais e ração, outros a presentearem pessoas idosas e vulneráveis com cartões de pensão e ainda outros a prometeram crédito ou acesso a crédito. Todas as actividades parecem boas sejam elas conferências, fóruns, workshops, visitas para os membros do governo se mostrarem.
 O PM prometeu, em Santo Antão trabalhar de “sol a sol”. Certamente que as pessoas gostariam de ver resultados mais palpáveis do que as obras, algumas majestosas em dimensão e também em custo, que vêem o governo a inaugurar. A realidade é que a vida das pessoas é cada vez mais precária, a economia arrasta-se num ritmo de crescimento demasiado baixo, a ameaça da deflação paira no ar e do governo só se nota o esforço extraordinário em envolver as pessoas num abraço apertado de dependência. Tudo o que é solidariedade do Estado, ou seja da comunidade nacional, para com os mais vulneráveis é transformado numa relação pessoal quase íntima em que que o cidadão “recipiente” fica em posição de dívida para com o “benfeitor”. Ninguém sabe como depois conciliar esse espírito constantemente alimentado de dependência, conformismo e passividade com o empreendedorismo que se quer promover nas escolas e está a pedir-se a todos para assumir e ser força motriz da economia nacional.
O surreal em muitas destas acções também se viu na estranha escolha de S. Antão como palco para o PM distinguir com medalha de mérito delegados do ministério de agricultura de todos os concelhos rurais do país. De facto, a Ilha não é propriamente um caso de sucesso das políticas agrícolas do governo. O que nela se pode constatar contraria frontalmente a visão apresentada pelo PM de que a agricultura é um “sector atractivo que vem repercutindo fortemente no crescimento do mundo rural”.
Com as parcas chuvas deste ano, a vulnerabilidade extrema de boa parte da população de S. Antão voltou a mostrar-se, como acontecia no passado. Sabe-se que perde população todos os dias, em particular jovens que deixam os campos e rumam em direcção São Vicente, Praia, Sal ou Boavista à procura de algum emprego ou ocupação. O embargo na exportação de produtos agrícolas, há mais de trinta anos, ainda que menos severo por causa do centro de expurgo, continua a ser um grande travão ao desenvolvimento. Uma saída viável para muitos seria a exportação do grogue. Por não ser perecível, não sofrer com o embargo e ter um mercado nacional e estrangeiro potencialmente valioso podia ser o produto derivado da produção agrícola capaz de compensar algum investimento feito na agricultura. Mas, nem isso acontece. A quase total falta de regulação no sector ajuda o “mau” grogue a impor-se em detrimento do “bom” grogue. Ao prejuízo directo que daí resulta ainda se associam outros custos, designadamente sociais, de perda de produtividade, fiscais e de saúde.  
O que se passa em S. Antão não é muito diferente do que acontece nas outras ilhas rurais. As políticas agrícolas deparam-se, na sua execução, com os mesmos os problemas, entre eles os de transporte, de exiguidade do mercado e de falta de regulação na produção e na distribuição. Enormes investimentos são feitos em estradas, barragens, sistemas de rega gota a gota, mas os retornos são diminutos. Quando surge um constrangimento extra, como actualmente a falta de chuvas, sentem-se imediatamente os efeitos que deixam a claro a fragilidade da existência. Por aí vê-se que não devia haver razão para muito regozijo e para actos que mais parecem homenagear quem dá as medalhas do que quem as recebe.
O surreal parece ter substituído o real. Défices e dívidas excessivos nos outros são desvalorizados entre nós. Diz-se com satisfação que o país está a crescer 0,5% do PIB. O risco de deflação é tomado com leveza. Até se diz que o FMI falhou nas previsões porque não viu os números das exportações. A proximidade das eleições poderá dificultar ainda mais o contacto com a realidade. As consequências virão no day after.