sexta-feira, janeiro 09, 2015

Segurança, o bem essencial

Na passagem do ano 2014 para 2015 a segurança moveu-se firmemente para o topo das prioridades do país. O atentado contra o filho do Primeiro Ministro veio confirmar um padrão de confronto com o Estado que já se tinha manifestado antes em ameaças e mesmo violência contra magistrados e recentemente culminou com o assassinato da mãe de uma inspectora da polícia judicial. Para o Governo, em comunicado emitido no início da semana, não há dúvidas de que tais acções têm origem na criminalidade organizada e com conexões transfronteiriças e que configuram ataques às instituições do Estado de Direito e à Segurança Nacional.
Há muito que os cidadãos e várias forças da sociedade vinham pressionando as autoridades para que a segurança, a ordem e a tranquilidade pública fossem assumidas plenamente por quem tem a responsabilidade primeira de as garantir a todos: o Estado. A ansiedade pública face à criminalidade respondia-se muitas vezes com estatísticas que pretendiam provar que os níveis de criminalidade estavam a baixar. Outras vezes dizia-se que era uma questão de percepção sem real tradução na realidade da vida social. Recentemente pôs-se enfase na responsabilidade pessoal de “não circular por certos sítios e sozinhos”  e na responsabilidade familiar em não produzir ambiente propiciador do surgimento de thugs e gangs.
No entretanto, o país vinha assistindo à escalada de violência com o proliferar de homicídios em aparentes “ajustes de contas” entre gangs e narcotraficantes e com a utilização de armas de fogo nos assaltos chamados de caçubodi. Nota-se que que cada vez mais a violência não se limita a ameaçar com arma de fogo. Já se vai mais longe e aponta-se à cabeça aumentando extraordinariamente o perigo de um pequeno assalto se transformar numa tragédia como aconteceu recentemente em Pensamento. Por outro lado, a opção simplesmente por uma resposta “musculada” da polícia e pela intervenção do exército, a exemplo do que se constatou noutras paragens, poderá não ter sido a melhor para conter o crescendo de violência. Não foi capaz de pôr cobro à insegurança reinante e transmitir confiança às pessoas e às comunidades. Os delinquentes continuam armados não obstante as operações de “parar e revistar” feitos a milhares de pessoas. E o “stop and frisk”, embora não se traduza em número significativo de armas apreendidas, deixam no seu rasto ressentimento e hostilidade das comunidades, aprofundando a desconfiança mútua e diminuindo o grau de colaboração essencial ao trabalho da polícia.
É evidente que a violência interna é, em parte, alimentada e potenciada por factores externos. A inclusão de Cabo Verde nas rotas do narcotráfico em direcção ao mercado europeu não podia deixar de afectar o país e a sociedade. Surgiram intermediários e facilitadores de toda espécie, muito capital foi lavado e inevitavelmente desenvolveu-se um mercado interno mesmo que de pequena dimensão. O crime grande e pequeno instalou-se e a estrutura da segurança existente, apesar de absorver cada vez mais recursos públicos, tem-se mostrado incapaz de o conter.
A cooperação internacional com as autoridades europeias e americanas tem sido muito útil no combate aos crimes do tráfico e de lavagem de capitais. No âmbito da operação Lancha Voadora, em 2010, foram apreendidas 1,5 toneladas de cocaína no valor calculado de mais 100 milhões de dólares. Recentemente foram apanhados 500 quilos provavelmente com o valor de várias dezenas de milhões de dólares. Pelos valores envolvidos, é evidente que há um elemento de risco para o país, tanto em termos de eventual retaliação do crime organizado como também no julgar e manter em prisão os acusados e os culpados do crime de tráfico de drogas e de lavagem de capitais. O governo deve assegurar-se de que esse risco é devidamente avaliado e que a cooperação com os outros países na luta contra a droga também inclua a capacitação efectiva para se defender de eventuais retaliações vindas de interior ou do exterior.

O desafio ao Estado e às suas instituições lançado pelo mundo do crime tem que ser confrontado com firmeza e com uma liderança esclarecida. Não deve ficar qualquer dúvida sobre quem deve garantir a segurança e a ordem e a tranquilidade pública. É fundamental abandonar o hábito de varrer os problemas para debaixo do tapete e fingir que não existem, ou são invenção dos outros ou resultam de percepções deslocadas da realidade. No Plano Estratégico de Segurança Interna publicado em Agosto último vêem-se as falhas graves na coordenação das forças e entidades que fazem a estrutura de segurança do país. Urge ultrapassar tudo isso e produzir resultados. Que 2015 traga um Cabo Verde mais seguro, na liberdade e na democracia. 

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 7 de Janeiro de 2015

quarta-feira, dezembro 17, 2014

O Poder também corrompe



EDIÇÃO 681 DO DIA 17 DE DEZEMBRO DE 2014

Cabo Verde passa da posição 41º para 42º em 174 países no último Índice de Percepção de Corrupção publicado pela Transparência Internacional em Dezembro de 2014. Não é uma má posição, mas para muitos não traduz a realidade da corrupção existente no país. O próprio ministro da Justiça em intervenção recente admitiu que a corrupção pode estar acima do índice referido. O que falta, diz ele, é a coragem para a denunciar.
Referências mais ou menos explícitas a casos de corrupção são normalmente feitas em ambiente de combate político e eleitoral. O mesmo fenómeno nota-se cada vez mais nas disputas internas dos partidos. Recentemente, no âmbito da luta pela liderança no PAICV, houve acusações de utilização de sacos de cimento, bolsas de estudo, centros de emprego e de juventude, cestas básicas em troca de votos. Em eleições anteriores, legislativas, autárquicas e até presidenciais surgiram acusações similares que indiciam o uso de recursos do Estado para aliciar e beneficiar apoiantes. O facto dessas denúncias não se verificarem só na luta interpartidária mas também intrapartidária mostra que o fenómeno de utilização dos recursos públicos para ganhar influência e poder político é mais comum do que se esperava.
Nesta óptica, a corrupção em Cabo Verde não seria tão visível ou palpável porque não é fundamentalmente virada para o enriquecimento de certos indivíduos e respectivas famílias. O desvio dos recursos do Estado teria como objectivo principal a recompensa da lealdade política e a sedução de novos apoiantes. Naturalmente que no processo os “desviantes” ou “teimosos” acabam por sofrer, sendo discriminados no acesso ao emprego, a reparações de habitação, a ofertas de verguinhas de ferro, de sacos de cimento e outras benesses.
Várias razões certamente existirão para explicar por que o silêncio sobre esta corrupção só é realmente quebrado em momentos críticos dos confrontos políticos partidários. Entre elas estarão o receio de antagonizar os poderes estabelecidos, a convicção de que é legítimo favorecer apoiantes com recursos do Estado e a disposição à partida de fazer o mesmo, quando em posição de poder e em controlo dos recursos colectivos. O espectáculo diário na televisão de cerimónias onde doadores ( primeiro-ministro, ministros, presidentes de câmara e outras entidades) contemplam e presenteiam recipientes gratos pelas habitações, pensões,  cestas básicas, kits escolares etc, não deixa de emprestar todo um ar de legitimidade a esta cultura e forma de estar e de fazer política.
Num artigo recente publicado neste jornal, o colunista português Doutor Rui Ramos chama a atenção para um fenómeno que se torna cada vez mais vulgar em países em que o controlo do Estado se apresenta como fonte maior ou quase única de privilégio, de status e de poder político. Nessas circunstâncias, segundo ele, o Estado é usado de forma implacável a favor de um partido ou de uma facção. Assim, o equilíbrio orçamental é muito bonito, mas é preciso não hesitar em multiplicar os contractos, parcerias, subsídios, e empregos que suscitam simpatias, fidelidades e contrapartidas; a transparência é excelente, mas é proibido ter escrúpulos quando se trata de explorar a promiscuidade, as facilidades e as trocas de favores para alargar redes de influência e torná-las mais espessas; a separação de poderes é comovedora, mas é impensável vacilar perante a possibilidade de conjugar ministérios, bancos e tribunais na protecção dos amigos e na perseguição dos inimigos. Acrescenta ainda que, no ambiente criado, o político com mais-valia para o partido ou facção é aquele que demonstrar maior aptidão neste género de exercícios. E é claro que a integridade pessoal não conta muito aí.
Cabo Verde apresenta as marcas de um país com uma economia baseada na reciclagem da ajuda externa. A ajuda não serviu para lançar o país no caminho do desenvolvimento sustentável. O crescimento económico é raso, o desemprego situa-se a um nível demasiado elevado, e o sector privado nacional está de rastos. A exemplo dos sistemas rentistas, o Estado posiciona-se no topo da cadeia alimentar sustentada por fluxos externos em donativos e empréstimos concessionais. A grande tentação é capturá-lo e utilizá-lo para se manter no poder. No processo compromete-se completamente a eficiência da acção governativa, seja ao nível local ou nacional.
A corrupção que resulta do facto de o Estado falhar no cumprimento do dever de servir todo e qualquer cidadão com isenção e imparcialidade sem descriminação ou favoritismo tem um impacto perverso no tecido social. Atomiza a sociedade, alimenta rivalidades e invejas e desincentiva o espírito de cooperação entre pessoas indispensável para a criação de riqueza. À frustração junta-se o conformismo e o sentimento de impotência numa mistura perigosa com implicações sociais graves designadamente nos níveis de crime.
Há pois que resgatar o Estado das mãos de quem o instrumentaliza muitas vezes arrogando-se no direito de decidir por todos qual o melhor caminho a seguir. Estagnação económica tem sido o que historicamente resulta dessas opções. É de não se esquecer que como Kant diz –  o paternalismo é o maior dos despotismos imagináveis.  O poder assim corrompido coloca-se na linha de frente contra o desenvolvimento e a cidadania. 

quarta-feira, dezembro 10, 2014

BCV, Quo Vadis?



Edição 680 de 10 de Dezembro

Na semana passada, dia 6 de Dezembro, saiu finalmente o Relatório de Política Monetária do Banco de Cabo Verde de Novembro de 2014. Normalmente publicado nas primeiras semanas de Novembro, o relatório do BCV tem contribuído ao longo dos anos com os seus dados e as suas análises para o enriquecimento do debate económico e político entre o governo, partidos políticos, parceiros sociais e a sociedade em geral que antecede a discussão do Orçamento do Estado na Assembleia Nacional. Este ano primou pela ausência. Só apareceu depois do debate parlamentar, no mesmo dia em que o governador designado pelo governo era ouvido na A. N.  
2014 tem sido um ano atribulado no banco central. Problemas laborais sérios afligiram a instituição nos meses que antecederam o fim do mandato de Dr. Carlos Burgo. A gestão, pelo governo, da substituição do governador revelou-se calamitosa. Na audição parlamentar, o governador designado confidenciou ao parlamento que a situação financeira do BCV é “algo difícil” e que o “fundo de pensões do banco poderá não ser sustentável”. Não parece alheia aos problemas do BCV a relação tensa com o Governo e particularmente com o ministério das finanças que se desenvolveu nos últimos anos. Tem sido notória a divergência de posições das duas instituições quanto à real situação económica do país e as suas perspectivas. No embate, a Ministra das finanças em 2011, na sequência da publicação de um relatório de política monetária, não se coibiu de dizer publicamente, referindo-se ao governador do BCV, que não iria ensinar missa ao vigário.
Facto é que os dados do crescimento económico do país têm ficado muito aquém das previsões do ministério das Finanças e mais próximas das do BCV. Os alertas do BCV quanto às consequências da política orçamental expansionista confirmaram-se na diminuição das reservas e consequente tomada de medidas restritivas do crédito interno que afectaram as empresas, a procura interna e a economia nacional em 2012 e 2013. E o crédito à economia não voltou a ter a dinâmica anterior mesmo quando na sequência da recuperação das reservas para o nível exigido pelo acordo cambial com o euro o BCV afrouxou nos seus controlos da banca nacional. Os bancos mesmo com liquidez mostram-se avessos à concessão do crédito ao sector privado e justificam-se com o crescimento anémico da economia e a divida pública de mais de 100% do PIB que pode configurar riscos macroeconómicos e financeiros futuros.
O desconforto do governo com as posições do BCV ficaram evidentes no anúncio do ex-ministro Humberto Brito para governador. A ministra das finanças anunciou que Cabo Verde precisava melhorar a articulação política, orçamental e fiscal e que Humberto Brito com um percurso de mergulho na economia real tinha o perfil ideal para ocupar o cargo no banco central. O pouco cuidado do governo em lidar o com banco central ficou evidente quase imediatamente. Considerando as exigências de idoneidade, de independência e de competência técnica que cada vez mais em todo mundo se exige dos “central bankers” é evidente que a proposta do governo caiu muito mal. O governo estava a nomear um político que tinha sido demitido da pasta de Energia em pleno momento de crise de fornecimento de electricidade e água na capital e noutros pontos do território nacional. Avançar essa personalidade poucos dias depois para uma posição central na condução da política monetária e na supervisão do sistema bancário que deve inspirar confiança no sistema económico e financeiro não é muito inteligente. 
A inépcia na gestão desse processo continuou com a indicação de uma nova personalidade, o Dr. João Serra. Primeiro, confessa-se que afinal foi a primeira escolha e depois finge-se esquecer que muito recentemente o indigitado deixara a presidência da Sociedade de Desenvolvimento da Boavista e Maio envolvido numa polémica que opunha membros do conselho da administração e onde não faltavam acusações de má gestão. Segundo, o governo para se justificar perante os críticos da primeira nomeação a governador solicita um parecer ao Procurado Geral da República para se certificar se o BCV rege-se pela lei das autoridades reguladoras ou simplesmente pela sua lei orgânica. O parecer do PGR favorece a posição do governo em como deve aplicar-se a lei orgânica do BCV, mas estranhamente o governo ignora o parecer e aplica a lei de autoridades reguladoras que exige que os administradores nomeados sejam ouvidos em audição pelas comissões parlamentares competentes. O parlamento aceita, apesar de não existir qualquer precedente nesta matéria. Contudo, não é a comissão de finanças que ouve o governador, mas sim a comissão dos assuntos constitucionais.
Nos próximos dias deverá sair a nomeação do governado do BCV, quase quatro meses depois do fim o mandato do último titular. A questão que fica é o quão a instituição banco central ficou beliscada pela gestão esdrúxula de uma substituição que deveria ser melhor preparada e executada para não ferir a imagem de confiança que deve sempre poder projectar. No mundo globalizado de hoje, a solidez institucional de entidades como o banco central e a sua independência face a interesses políticos de curto prazo dos governos é sempre um activo valioso do país que interessa preservar. Pena que o governo na sua ânsia da fazer todos ler pela sua cartilha não pára mesmo perante a possibilidade de comprometer o percurso de autonomia a independência que todos esperam ver percorrido com sucesso no BCV.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Erupção: Ilações a tirar



Edição 679 de 3 de Dezembro de 2014


Nestes dias, que se arrastam desde 23 de Novembro, a erupção do vulcão do Fogo tem sido seguida com atenção por todos os cabo-verdianos, uma atenção não poucas vezes marcada pela ansiedade e mesmo angústia perante a destruição das casas e dos meios de vida de mais um milhar de habitantes na Chã das Caldeiras. Felizmente não houve perdas de vida e uma parte significativa dos bens, pertences e gado da população foi efectivamente resgatada. Para isso contribuiu extraordinariamente o esforço abnegado de militares e polícias aí destacados e de populares que se ofereceram para ajudar. Depois de alguns episódios iniciais de vandalismo e de reacções epidérmicas das autoridades perante a resistência das pessoas em ser evacuadas, o processo de realojamento das pessoas tem prosseguido com o apoio da Cruz Vermelha de Cabo Verde e com gestos de solidariedade que vêm de todas as ilhas e da diáspora.
A situação de catástrofe vivida na ilha do Fogo deve ser motivo de uma reflexão mais profunda sobre os riscos que podem colocar-se a um país arquipélago, montanhoso e vulcânico e sobre a capacidade institucional e operacional de resposta em caso de concretização dos mesmos. Na manhã de domingo do dia 23 de Novembro o governo declarou situação de contingência. Estava-se perante o que na Resolução nº 10/2010 se considerou: “O risco mais perigoso em Cabo Verde é o risco vulcânico/sísmico”. Na sequência devia-se implementar o Plano de Contingência para o Fogo, que a lei prevê existir, sob a coordenação do Serviço Nacional de Protecção Civil. O problema é que de acordo com o diagnóstico feito no Relatório de Segurança Interna publicado no BO de 26 de Agosto de 2014: “o Serviço de Protecção Civil está desadequado para o cumprimento das suas missões, não existem indícios de articulação funcional e operacional com os comandos regionais, com excepção da Boavista, e não foram apresentados planos de emergência e de contingência para as Ilhas”. Talvez por ter-se dado conta dessas falhas que o governo, a toque de caixa, criou o gabinete de crise para “coordenar a acção governativa”. E para dirigir esse gabinete teve que se socorrer do brigadeiro Antero Matos, ex-conselheiro de segurança nacional, que se encontra há alguns meses na reforma. Significativamente o Primeiro-ministro não passou essa responsabilidade constitucional, que lhe cabe nestas circunstâncias, para o ministro que tem a tutela da Protecção Civil como prevê a resolução acima citada. 
Várias fraquezas institucionais e operacionais do país tornaram-se visíveis ao longo desta emergência na ilha do fogo. Através do pedido de ajuda a Portugal procurou-se colmatar algumas delas designadamente no domínio das comunicações com os telefones via satélites, de apoio aéreo de proximidade com helicópteros e mesmo de uma base de apoio naval em caso de evacuação a uma escala maior. A fragata portuguesa foi a resposta portuguesa. Pode-se dizer que dificilmente Cabo Verde poderá ter meios a essa escala para responder a situações de catástrofe futuras. É verdade que sempre deverá contar com a cooperação com outros países. Facto é, porém, que alguns meios próprios terão que existir para dar respostas a situações que não podem esperar pela vinda de fora de um barco, de um helicóptero ou de um telefone via satélite.
Recentemente o país viveu situações de emergência no mar, designadamente o afundamento do navio Mosteru e o encalhe de Pentalina que só não se tornaram catastróficas porque se verificaram junto à costa e na vizinhança de aldeias piscatórias. Os pescadores com os seus botes puderam resgatar as pessoas do mar. Na sequência da erupção do vulcão os primeiros meios de socorro foram levados para o fogo no rebocador Damão, como se esperaria que acontecesse há quarenta ou cinquenta anos atrás. A pergunta que fica é: onde está a Guarda Costeira que devia estar equipada com barcos e helicópteros a altura de fazer busca e salvamento e fornecer a base logística para se socorrer qualquer ilha em situação de emergência? O governo reconhece as insuficiências existentes, faz promessas, mas a capacidade de resposta do país mantem-se basicamente a mesma de décadas passadas. Urge alterar este estado de coisas. Não se deve esperar que aconteça algo terrível para se tomarem as medidas que se impõem. Mesmo o desaparecimento recente do navio Rotterdam com todos os seus tripulantes não conseguiu forçar uma mudança de atitude.
Cabo Verde tem que assegurar uma capacidade mínima mas efectiva de resposta a qualquer situação de crise ou catástrofe. Num país arquipélago devia ser óbvio que, para isso, é fundamental ter uma guarda costeira capaz de fiscalizar o espaço aéreo e marítimo, controlar a exploração económicas dos mares, fazer busca e salvamento e evitar que as ilhas sejam uma base para o tráfico e contrabando. Aparentemente os governantes têm outras prioridades.
De qualquer forma o Estado continua com responsabilidades de garantir, a todo o momento, a segurança das ilhas e mares e de assegurar que os recursos do país e a solidariedade de todos poderá chegar a qualquer ponto do território nacional. E com a gestão da Fir Oceânica e outras responsabilidades internacionais nesta região deverá habilitar-se para o cumprimento pleno das suas obrigações. É fundamental pôr a Protecção Civil e a Guarda Costeira à altura dessas responsabilidades.

quarta-feira, novembro 26, 2014

Encruzilhada



JORNAL 678 DE 26 DE NOVEMBRO DE 2014


A proposta de Orçamento do Estado para 2015, que esteve em debate nos últimos dias no parlamento, apresenta Cabo Verde como “um país que está numa encruzilhada à procura de um novo modelo de financiamento do seu desenvolvimento económico”. A redução de ajuda externa é apontada como causa próxima da mudança de rumo. Uma redução, porém, que não resultou da crise porque já antes anunciada. Em 2008 houve a graduação de Cabo Verde para país de rendimento médio. Sabia-se então que depois de um período de transição de cinco anos o país deixaria de beneficiar de uma parte significativa de donativos e de empréstimos concessionais. Até lá a economia tinha que ser posta em posição de, por um lado, manter o ritmo de crescimento a taxas elevadas e gerar receitas para sustentar a máquina do Estado e, por outro, de fazer-se competitiva com ganhos crescentes de produtividade.
Na sequência da crise financeira de 2008, e da crise soberana que se seguiu em 2010 nos países do euro, a preocupação geral com o défice orçamental e o montante da dívida pública aumentou consideravelmente. O governo argumentou, junto dos parceiros e organizações internacionais, que a dívida externa que iria contrair não seria insustentável mesmo que atingisse níveis bastante elevados porque seriam todos concessionais. Segundo o relatório do OE citado os empréstimos seriam “canalizados para projectos estruturantes e com efeito multiplicador no crescimento económico”. As infra-estruturas criadas iriam gerar externalidades positivas e efeito em cadeia tanto a jusante (backward linkages) como a montante (forward linkages) na economia, promovendo assim o efeito “crowding in” (aumento do investimento privado, melhorias da produtividade, maior retorno e melhoria na
competitividade do país)”. Mais de cinco anos depois, infelizmente, não é isso que aconteceu e o quadro existente está longe do que foi prometido.
A economia depois da recessão em 2009 lá conseguiu atingir uma taxa de crescimento de 4% em 2011. Desde então tem ficado por valores baixos de 1,2% em 2012 e 0,5% em 2013. O FMI, em Outubro passado, reviu em baixa o crescimento para 2014 de 3,1 % para 1% do PIB. Vê-se que o efeito multiplicador na criação de emprego não se concretizou mantendo as taxas de desemprego bastante elevadas, particularmente entre os jovens. O sector privado anda pelas ruas de amargura. Queixa-se do sufoco do fisco e das taxas de juro pesadas dos bancos. Estes referem-se a riscos macroeconómicos e macrofinanceiros ligados à fraca performance da economia e à dívida pública acima do 100% do PIB para facilitação do crédito.
O esperado aumento de investimentos privados na sequência e em consequência dos investimentos  públicos nas infra-estruturas (crowding in) também  não se verificou. Nem tão pouco se notam as backward linkages and forward linkages prometidas que as empresas iriam estabelecer no processo de criação de cadeias de valor, de ganhar escala e de conseguir acesso a mercados cada vez maiores e sofisticados. Chocante é o caso do sector da construção civil. Os termos acordados nas linhas de crédito assinados com Portugal não favoreceram o sector de construção civil nacional apesar dos milhões de contos gastos em obras públicas. Nestas condições exigir do sector privado que substitua o investimento público como impulsionador do crescimento não tem qualquer sentido.
Cinco anos depois e mais centenas de milhões de contos investidos, não se consegue tirar receitas suficientes da economia, nos níveis actuais de imposto, para equilibrar as contas. As iniciativas legislativas de alargamento da base tributária em sede do IRS e IRC apresentadas ao parlamento visam alargar a base tributária para equilibrar as contas. O problema é se mexendo no rendimento disponível das pessoas e das empresas para resolver o problema a curto prazo das contas do estado não se estará a agravar a situação económica com a diminuição do poder de compra das pessoas e do capital que as empresas precisam para ampliarem os seus negócios.
Como sair deste círculo vicioso para um círculo virtuoso onde a economia cresceria e os rendimentos das pessoas e das empresas aumentariam deveria ser o objecto central do debate parlamentar sobre o orçamento do Estado. Infelizmente não foi. É de se perguntar se a resistência em encontrar outros caminhos, em ir além da encruzilhada, não virá de conveniência política em ficar no que já é conhecido.
Governar com base na reciclagem de ajudas tende a reproduzir esquemas de dependência que acabam por abranger toda a sociedade. O Estado em vez de ser o agente regulador e facilitador de iniciativas individuais e de grupos torna-se no agente indutor de dependência. O poder político deixa de derivar da capacidade de mobilizar vontades para passar a basear-se quase que exclusivamente no clientelismo ostensivo e na intimidação mais ou menos velada dos que não se submetem directamente. O grande objectivo já não é mais prosperidade na liberdade mas sim conformismo, passividade e sentido agudo de precariedade. O problema é se, depois de já se ter tudo isso instalado, será possível mover pessoas, sociedade e instituições para o patamar exigido pelo mundo que já nos diz que o tempo da ajuda externa terminou.