sexta-feira, abril 17, 2015

Da rua não se governa

Os últimos dias não foram bons para a democracia cabo-verdiana. Passou-se a ideia de que se pode governar a partir da rua. Uma lei do Parlamento aprovado por unanimidade dos deputados não mereceu do presidente da república nem 24 de horas de avaliação, ponderação e maturação. Na fundamentação do veto político o PR usou argumentos apresentados nas manifestações populares e nas redes sociais e concluiu que era necessária uma reavaliação do diploma pelos deputados. A pronta reacção das forças políticas representadas no Parlamento foi de abandonar o diploma aprovado e de se declararem indisponíveis para o reapreciar.
Em vários sectores da sociedade, muitos se regozijaram com esse inédito capitular dos órgãos representativos da república perante protestos de alguns milhares de pessoas e perante expressões de desacordo no Facebook, em comentários online e em opiniões nos órgãos de comunicação social. Realmente a rapidez e a facilidade com que todos se libertaram do diploma até podia fazer esquecer que para o aprovar foram precisos anos de negociações com participação activa da direcção dos grupos parlamentares e da chefia do governo. O próprio PR, dias antes da discussão e aprovação da lei, aceitou receber os líderes parlamentares para lhe serem apresentados os consensos conseguidos.
A crise que aflige o sistema político aparentemente tem origem na oposição da nova líder do PAICV a algumas normas do estatuto dos titulares de cargos políticos (ETCP). Uma oposição  que estaria a colocá-la em rota de colisão com o grupo parlamentar do seu partido e com o próprio governo de que faz parte. Há, porém, um problema com essa ideia. Se há crise no Paicv não se vêem as consequências onde elas deviam se manifestar. 
 O líder parlamentar, apesar de discordar das orientações da líder do partido em matérias essenciais, não deixa o lugar como é prática generalizada nos regimes parlamentares. Nem a líder que também é ministra não deixa o governo mesmo quando o PM esteve claramente envolvido nas negociações do ETCP que merece publicamente a sua discordância. Durante toda a discussão e aprovação do diploma, o governo manteve-se em silêncio numa atitude de “quem cala, consente” e ela não compareceu aos trabalhos na AN para mostrar o seu desacordo e motivar eventuais apoiantes entre os deputados do Paicv. Apesar das diferenças serem públicas, nem há demissão da ministra nem o PM se disponibiliza a deixar o governo por falta de sintonia com a líder do partido que suporta o governo.
Por outro lado, com a maioria parlamentar e o governo aparentemente inamovíveis perante as demandas da líder do partido, estranha que não ocorra a ninguém ultrapassar o impasse na liderança e na bicefalia no exercício do poder com um congresso extraordinário que fizesse o partido outra vez uno à volta de um líder efectivo. Desconcertante também que ninguém se preocupe com isso mesmo quando forças populistas já se fazem sentir e se mostram passíveis de manipulação. Não são normais conflitos no centro de organizações sem que haja consequências ou um desfecho final. Quando apesar de tudo persistem é porque resultam de encenação ou de actos de ilusionismo com vista a atingir objectivos políticos muito concretos.
Um deles de há muito procurado por certos sectores políticos é o do descrédito do Parlamento e por arrastamento do sistema de partidos e do pluralismo. É relativamente fácil despertar sentimentos anti partidos e anti pluralismo numa sociedade que viveu mais de quarenta anos do Estado Novo de Salazar e depois quinze anos de partido único. Neste momento esse sentimento está ao rubro e certamente que acaba por afectar todas as instituições democráticas, ou pela via de hostilidade directa, ou pela forma como é aproveitado por quem se julga capaz de colher as paixões mobilizadas e torná-las em ganho político permanente.
O presidente da república é um alvo preferido. A natureza suprapartidária do cargo aparentemente fá-lo ideal para ser lançado contra os partidos. Esquece-se que ele não só não pertence aos partidos como também não deve ligar-se a qualquer outra organização. O grupo de cidadãos que o propôs não tem existência para além da eleição. O seu exercício de árbitro e moderador do sistema políticos é um exercício atento mas solitário e não pode dar a ideia de que se submete a pressões exteriores, muito menos a pressões vindas da rua.
Noutras democracias, o governo é o primeiro chamado à liça perante qualquer coisa, seja ela positiva ou negativa. Se em Cabo Verde acontecesse o mesmo, as anomalias no sistema de poder actual, entre o Paicv e as suas e expressões institucionais o governo e a maioria parlamentar seriam facilmente notadas. Mas aqui a tendência geral é não responsabilizar o governo mas sim os “políticos” e canalizar as exigências aos deputados como se tivessem poder executivo. Com tais interlocutores é relativamente fácil protestar mas os problemas do país que em geral dependem de políticas compreensivas do governo correm o risco de ficar por resolver. É a frustração que daí resulta é que depois dá lugar a populismos facilmente aproveitáveis por certos políticos.

 Resistir à onda populista é fundamental. Também é essencial exigir que titulares de órgãos de soberania cumpram a sua função assim como projectado na Constituição e não caiam na tentação de elogiar a “rua” para ter ganhos políticos, sacrificando a função e as instituições existentes.  Afinal, não há democracia fora da Constituição e muito menos contra ela”.

    Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 15 de Abril de 2015

sexta-feira, abril 10, 2015

Tentação populista

Desde as manifestações de 30 de Maio contra o estatuto dos titulares de órgãos de soberania sente-se no ar uma espécie de euforia “revolucionária”. Sobressai em conversas de café, em opiniões e análises políticas e em vários exercícios informais de futurologia política. Em parte é provavelmente produto da novidade. Também virá da satisfação e surpresa de se ouvir protesto nas ruas por algo controverso, quando tanta coisa não anda bem e ninguém questiona ruidosamente.  
Largos anos se tinham passado em Cabo Verde sem que se assistisse a manifestações frontalmente políticas. Problemas persistentes como o desemprego, o baixo crescimento, o aumento de insegurança e a falta de perspectiva para os jovens não conseguiram mobilizar as pessoas contra a governação. A perspectiva de aumento de salários e regalias para os detentores de cargos políticos pelo contrário já pôde. De uma postura aparentemente conformista, num ápice, passou-se para a acção. Para os jovens manifestantes que nunca viram nem participaram em acontecimentos do género terá tido um efeito catártico.
Tudo isso compreende-se. O que parece não se justificar são as esperanças desmedidas que se procura projectar nelas. Há quem veja sinais de uma sociedade civil activa. Outros imaginam um novo partido que à imagem do Podemos espanhol ou do Syriza grego poderia reformar o actual sistema de partidos. E certamente há quem veja motivação político-partidária como parece ser o caso do Primeiro-ministro, a confirmar a presença de “dirigentes e militantes destacados do Paicv na linha de frente das manifestações”.
 Independentemente do que originariamente foi ou pretendeu ser e o que virá a constituir no futuro, o mais certo é que algo mudou no país. Uma nova era de manifestações de agravos públicos poderá ter surgido em que ninguém se vai sentir grandemente inibido com eventuais interpretações ou acusações de conveniência ou de instrumentalização política. Dois factos porém vão contra a ideia de que algo radicalmente novo aconteceu: por um lado, o protesto não é dirigido contra o governo. Foca-se no Parlamento e nos deputados e associa, mas de forma quase difusa, os outros políticos. Por outro lado, não parece ser totalmente espontâneo, enquanto reacção da sociedade civil. Dá sinais de resultar também da luta da nova líder do Paicv para se afirmar no seu partido e apresentar-se, a pensar nas eleições de 2016, como o rosto de renovação na política cabo-verdiana.
De todo o modo, o problema maior a evitar nessas movimentações é cair na tentação populista: as soluções fáceis, as paixões exacerbadas, o discurso anti-político e anti-partido e a minimização das instituições democráticas. Não é algo fácil como já se pode constatar nos ataques violentos dirigidos aos deputados, no tipo e forma de pressão que se coloca ao presidente da república e na apologia da chamada democracia participativa em detrimento da democracia representativa. Outrossim, a busca de soluções para os  desempregados e empregados mal pagos via uma putativa redistribuição de recursos que estariam ilegitimamente apropriados por alguns privilegiados políticos só pode exacerbar o ressentimento social, diminuir a confiança nas instituições e mobilizar pessoas para protestos. Certamente não abre caminho para se encontrar a via ou as vias de prosperidade para todos com mais emprego e mais crescimento económico.

Cabo Verde vive um ano pré-eleitoral. Nenhum observador atento duvida que a campanha eleitoral já está em pleno progresso. A questão que se coloca é quem ganha com os ataques ao Parlamento que também são ataques ao pluralismo. Quem ganha com o apontar de defeitos à democracia representativa que apesar das suas imperfeições é a única forma de democracia que historicamente tem conservado as liberdades e tem garantido a prosperidade geral. Finalmente, quem ganha com a aparente disfunção do PAICV que parece de um lado estar com o “povo” e do outro continua a suportar o eixo governativo do país, o governo e a maioria parlamentar, cuja posição em matéria de estatuto de titular de órgãos de soberania é repudiada em manifestações desse mesmo “povo”.

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 8 de Abril de 2015 

sexta-feira, abril 03, 2015

Crise aberta

O Primeiro-Ministro José Maria Neves em declarações à RCV disse que os consensos obtidos em relação ao estatuto dos titulares dos cargos políticos “estão a ser postos em causa designadamente pelo PAICV cujos dirigentes e militantes destacados estiveram na linha de frente das manifestações”. A nova líder do PAICV, também em entrevista à RCV, confirma que a sua comissão política discorda de várias opções assumidas no diploma aprovado, nomeadamente a actualização salarial que “não teria sido socializada” com esse órgão político. A divergência de posições entre o chefe do governo e a presidente do partido é clara e aberta. O jogo político já ultrapassa as fronteiras do partido e já foi para a rua: uma parte acusa a outra de estar à frente de manifestações e a outra responde que há que ouvir os protestos das pessoas.
Como fica a governação do país se a líder do partido que deve suportar o governo está aparentemente em colisão directa com o governo. Como conciliar a situação do PAICV como partido maioritário se a direcção do partido e a sua bancada parlamentar dão sinais de estar de costas viradas. Uma consequência desta situação pouco usual já é visível. Segundo o PM, no que respeita ao estatuto dos titulares dos cargos políticos, o consenso que já vinha desde 1997 foi agora posto em causa e teremos de repensar tudo isto e eventualmente até determinados aspectos da vida política nacional, ou do sistema político, designadamente o sistema eleitoral, o financiamento dos partidos políticos, o financiamento das campanhas eleitorais, etc.
Uma outra consequência poderá verificar-se no futuro próximo. Se se verificar um veto presidencial ao diploma legislativo, como irá proceder a direcção do PAICV? Irá trabalhar contra a vontade prevalecente na sua bancada parlamentar e no governo para evitar que haja uma maioria que confirme os estatutos aprovados? Por quanto tempo se poderá suportar a fricção aberta entre a liderança do partido e a presença institucional do partido no parlamento e no governo?
Num editorial recente este jornal chamou a atenção para o facto excepcional de o chefe do governo não ser chefe do partido. Argumentava-se que tensões podiam surgir entre membros do governo que foram rivais na luta pela liderança ou entre o novo líder do partido e o antigo líder que ainda se mantém com chefe do governo. Em qualquer das situações haveria uma perda inequívoca da eficácia do governo com o desenvolvimento de lealdades paralelas que inevitavelmente acabariam por surgir. Apontamos então que por uma outra via podia-se repor a estabilidade, previsibilidade e transparência no exercício do poder: ou o primeiro-ministro demitia-se e entrava o novel presidente numa posição cimeira no governo ou então o governo ainda por ele chefiado renovava a sua relação com a maioria parlamentar através de uma moção de confiança. Não tendo ido por uma ou outra via é que se chegou à situação actual de corte caricato entre o partido, detentor da maioria dos votos nas últimas eleições legislativas, e a sua bancada parlamentar. No mesmo sentido se constata a falta de sintonia e de articulação com o governo.
As manifestações populares na capital e em várias outras ilhas, pela juventude dos participantes, exuberância demonstrada e paixão colocada nos protesto têm “efeito de gasolina” neste ambiente político em rubro. O facto de serem raras – a última manifestação com fortes tonalidades políticas provavelmente aconteceu em 2006 contra a Electra então dirigida pela empresa portuguesa EDP – os governantes e em geral os políticos desabituaram-se com o descontentamento visível e ruidoso dos cidadãos. Quando se deparam com protestos mais vigorosos não dão a aparência de serenidade que é fundamental para o funcionamento do sistema político e da sociedade. Na verdade, não se pode deixar de ouvir as pessoas, mas também ninguém governa a partir da rua.

A extrema sensibilidade e mal-estar demonstradas perante o que o PM chamou de actualização já tardia dos salários dos titulares de cargos políticos fixados em 1997 revelam o quanto as pessoas percebem que vivem num ambiente de soma zero. O que é ganho para ti, deve ter sido subtraído de algum outro. Em ambiente de fraco crescimento, desemprego elevado e diminutas oportunidades, a desconfiança mútua aumenta, cresce o desespero e a falta de confiança nas instituições aprofunda-se. Cabe aos governantes e aos representantes legítimos do povo manter a sociedade inclusiva, combater a impunidade e renovar a crença num dia melhor derivado do trabalho e da capacidade de cada um dos seus membros.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 1 de Abril de 2015 

sexta-feira, março 27, 2015

Liderança que faz diferença

Na passada segunda-feira, dia 23, morreu Lee Kuan Yew, o líder da Singapura que em menos de quatro décadas elevou essa ilha da condição de país de terceiro mundo para país de primeiro mundo. Durante esses anos a Singapura cresceu a uma taxa média de 7% e conseguiu aumentar o seu rendimento per capita dos 300 dólares, que à semelhança de vários países africanos tinha no momento de independência, para os      36 000 dólares de hoje. Considerando o ponto de partida, o sucesso foi estrondoso e tem sido inspirador para todos aqueles que acreditam que é possível fazer o desenvolvimento acontecer não importam as dificuldades no arranque e a ausência de riquezas naturais.
O momento primeiro de uma liderança bem-sucedida é o reconhecimento da enorme tarefa a ser desenvolvida e das dificuldades a vencer e os obstáculos a ultrapassar para que os objectivos sejam alcançados. Lee Kuan Yew chorou quando anunciou o fim da federação com a Malásia. Singapura, com aproximadamente a área da nossa ilha de Santo Antão, iria iniciar sozinha a caminhada na senda da independência. Os problemas étnicos, linguísticos e religiosos eram enormes e misturavam-se com a pobreza, a corrupção generalizada e a prostituição num ambiente onde ainda se sentia o peso da ameaça externa protagonizada pelos dois vizinhos gigantes e hostis: a Indonésia e a Malásia. Construir uma nação a partir dessa massa informe muitas vezes no limite do desespero exigiu uma liderança que soube mostrar-se pragmática, que não se deixou enredar nas malhas da vitimização e do nacionalismo exacerbado e que trabalhou com uma perspectiva de longo prazo.
Há quem diga que o sucesso da Singapura não pode ser desligado do regime autoritário que em boa medida perdura até hoje. A verdade, porém, é que muitos países com regimes autoritários, totalitários ou de partido único não tiveram esse tipo de sucesso. Só os que como os chamados Tigres da Ásia optaram pela industrialização virada para a exportação, pelo investimento seguro e forte na educação e formação tecnológicas da sua população e pela aposta consequente no sector privado nacional é que realmente conseguiram vingar. Nesses países emergiu uma forte classe média que não só se notabilizou como forte apoiante de uma processo de democratização política, económica e social com também se tornou posteriormente no seu principal sustentáculo. 
Em África, em muitos casos a vontade de manter o poder a todo custo fez com que a opção fosse centrar na exploração de recursos naturais fáceis de monetizar e de aproveitar a ajuda externa para distribuir favores, criar acessos e construir lealdades. Medidas de curto prazo prevaleceram sobre o que devia ser uma visão de futuro, o espírito assistencialista ganhou força e a atenção geral concentrou-se particularmente na redistribuição dos recursos do Estado e não na produção de riqueza. A meritocracia que em Singapura foi erigida em princípio central da administração, nesse países faz-se de conta que é aplicado. Na realidade reina a partidarização da administração pública, alimenta-se o compadrio e forjam-se clientelas com os olhos postos na manutenção do poder. 
O que parece fazer a diferença num caso e noutro é precisamente a qualidade de liderança. A liderança capaz de ver para além dos ciclos eleitorais e não se deixar enredar nas ilusões que cria para a opinião pública para justificar os resultados muito aquém dos esperados.
O INE publicou dados a dar uma baixa no desemprego de 0,6%. No ano passado teria sido 0,8 % a queda no desemprego. Não podia ser de outra forma considerando as taxas baixíssimas de crescimento económico que se tem verificado nos últimos anos. A situação do emprego no país toma uma outra dimensão se tiver em devida conta que o contingente de desempregados muda quando muitos desistem de procurar trabalho e passam a engrossar a população inactiva. 
Estranha que haja quem queira passar a impressão de que o aumento da população inactiva com pessoas qualificadas tem algo positivo. No mesmo sentido que a variação de 0.6% no desemprego prove que o marasmo económico actual tem origem no exterior. Nessa perspectiva, no país estar-se-ia no fim de 15 anos de transformação que só não estão a resultar em crescimento e mais emprego por causa da crise internacional. Governar significaria fazer um conjunto de obras e esperar que depois tudo funcionasse. Se não acontecer como prometido a culpa seria dos outros: a crise, os privados que não querem investir ou os bancos que resistem em dar crédito.

É evidente que liderar não é isso. Para quem é focado nos resultados como Lee Kuan Yew liderança é convicção, disciplina na realização de um objectivo, capacidade de adaptação a favor do interesse público e visão de futuro: justamente o que Cabo Verde precisa.

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 25 de Março de 2015 

sexta-feira, março 20, 2015

Pela clarificação dos salários dos políticos

A perspectiva de aprovação de um novo estatuto dos titulares dos órgãos de soberania tem sido nas últimas semanas matéria de discussão e controvérsia em artigos de jornal, debates na rádio e televisão e de conversas de café. Discutem-se essencialmente as regalias e a oportunidade da iniciativa legislativa. Nota-se em várias tomadas de posição uma linha de questionamento que parece pôr em causa o sistema político pluralista. Os deputados e o Parlamento são os principais alvos. Curiosamente, os deputados da oposição são os mais visados.
Sente-se em círculos mais mediáticos em Cabo Verde um certo cansaço em relação à democracia, ao modelo de representação política dos cidadãos e ao próprio pluralismo. Ouvem-se queixas de crispação política, de bipartidarismo e da inutilidade do Parlamento. Reclama-se mais consenso, menos exercício do contraditório e menos partido. Aparentemente esses sintomas do que se podia chamar um mal-estar democrático em Cabo Verde são similares aos notados nas democracias avançadas, designadamente as europeias. Na realidade diferem porque as causas, a cultura política subjacente e o contexto são outros.
Na Europa a crise de confiança nos políticos e no sistema político ganhou expressão na gestão da crise que mostrou governos nacionais quase impotentes, primeiro perante os mercados financeiros e depois perante a Troika. Os cidadãos sob o impacto das medidas de austeridade não se sentem devidamente representados nos parlamentos e olham com desconfiança para as elites partidárias do “arco de governação” como cúmplices da banca e dos burocratas da União Europeia em salvar um status quo que favorece os poderosos em detrimento do homem comum. Mas ninguém na Europa põe em causa a necessidade de responsabilizar o governo e de o forçar a prestar contas. O descontentamento é com a falta de uma fiscalização efectiva da governação pelo Parlamento mesmo nas situações que configuram cedência excessiva da soberania nacional para as instituições comunitárias.
Em Cabo Verde é diferente. Muito do desencanto com o Parlamento e das críticas ao sistema político e aos políticos vem da percepção de conflitualidade ou crispação política entre o governo e as forças da oposição. E é interessante notar que esse sentimento tende a favorecer o governo e a ser mais hostil para com a oposição, tomada como conflituosa, não colaborante e ávida do poder. Compreende-se em parte que assim seja se se considerar que a democracia cabo-verdiana é jovem de quase 25 anos e ainda procura libertar-se dos resquícios anti-pluralistas do salazarismo e do regime de partido único.
A proposta de um novo estatuto para os políticos trouxe outra vez à baila esse azedume contra o Parlamento e contra os deputados. Podia-se pensar que a culpa é da conjuntura difícil em que a falta de dinâmica económica, o desemprego e as fracas perspectivas no sector privado focaliza ainda mais a atenção de todos nos recursos, acessos e favores do Estado. Mas não, a reacção foi a mesma em 2006, no tempo das vacas gordas, quando uma proposta do governo de aumento salarial encontrou resistência na sociedade e acabou por ser inviabilizada no Parlamento pelo MpD.
A matéria de ajustamento salarial do presidente da república, primeiro-ministro, ministros, deputados e juízes parece despertar em muita gente o gosto pela demagogia barata. E nem se pode dizer que por detrás disso há uma preocupação legítima quanto aos custos. Devia ser evidente que a perda do poder de rendimento real desde o último ajustamento de 1997 está de algum modo a ser compensada. Só que de uma forma não transparente e eventualmente comprometedora da relação de equilíbrio entre os diferentes órgãos de soberania.
O Governo que tem a responsabilidade directa de gestão dos recursos do Estado sai reforçado nesse tipo de relações. Por exemplo, pelo decreto-lei 8/2008 pôde unilateralmente melhorar de forma significativa as condições de vida dos magistrados, dos membros do governo e de outras entidades militares e policiais. Noutras leis estendeu benefícios na compra de carros a certas categorias profissionais. Mesmo na administração pública que não tem os salários indexados aos dos titulares dos órgãos de soberania e tem beneficiado de ajustamentos periódicos, o governo pode recorrer de contratos de gestão para altos funcionários com valores superiores ao salário do presidente da república. Se considerarmos os salários praticados no Estado em sentido lato, empresas públicas, agências reguladoras e institutos públicos, os valores em causa são ainda muito maiores.

Enfraquecidos neste sistema fica o Parlamento que fiscaliza o governo e o presidente da república que modera todo o sistema político. Para a garantia de um poder judicial independente, um dos pilares fundamentais do Estado de Direito democrático, não convém que a manutenção do nível de rendimento e do bem-estar dos magistrados dependa só da iniciativa do governo. Por tudo isso é fundamental que se restaure a transparência nos salários da classe política por forma a que a actividade política seja suficientemente atractiva para todos os que aspiram a servir na tarefa dura e exigente de desenvolver Cabo Verde.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 18 de Março do 2015 

sexta-feira, março 13, 2015

Gabinete de campanha

No quarto aniversário do seu governo e já em pleno ano pré-eleitoral o Sr. Primeiro-ministro José Maria Neves achou necessário dizer que o seu governo não é gabinete de campanha. Estava a responder a questionamentos dos jornalistas quanto à esperada remodelação governamental na sequência da eleição de um novo líder do PAICV. Afirmou de seguida que o seu governo é o governo da república, o que é verdade, mas optou por omitir que também é o governo do Paicv. O Paicv é quem ganhou as eleições e quem detém a maioria parlamentar suficiente para aprovar o programa do governo e viabilizar a governação.
Os primeiros-ministros não são eleitos. São propostos pelo partido vencedor ao presidente da república para formar governo. No caso pouco usual de mudança de liderança do partido a meio da legislatura naturalmente que coloca problemas ao actual primeiro-ministro. Ou se demite para dar possibilidade de o partido nomear o novo líder para chefiar o governo ou entra num arranjo de poder que pode não primar pela transparência nas relações entre o governo e o partido que o suporta. E isso é importante porque afinal o governo é da república.
As coisas complicam-se mais no caso presente em que o líder é também membro do governo, assim como a candidata rival e alguns dos seus apoiantes próximos. Naturalmente que a nação preocupa-se com a coerência e a eficácia do governo depois desses embates em que vários dos seus membros ficaram em campos opostos ou, pelo menos, diferenciados quanto ao diagnóstico da situação actual, quanto às prioridades no momento e quanto a propostas de futuro. Algo teria que mudar no governo e é isso que a ministra Cristina Fontes Lima mostra compreender com a sua tomada de posição. O primeiro-ministro é que parece não ver o óbvio e deixa a ministra numa espécie de limbo que a arrastar-se acaba por afectar as tomadas de decisões nas áreas sob a sua tutela e toda a governação.
Quando o primeiro-ministro e o líder do partido que suporta o governo é a mesma pessoa, todos sabem quem exerce o poder e a quem pedir contas e exigir responsabilidade. Numa situação em que há uma espécie de bicefalia da liderança política os ministros são naturalmente os primeiros a querer ter certezas. Sabem que foram escolhidos na base da confiança pessoal do primeiro-ministro mas para governar precisam do suporte activo do partido. O imbróglio resolve-se ou com um novo governo chefiado pelo novo líder ou mantendo o actual primeiro-ministro. Neste caso, provavelmente seria necessário um voto de confiança do Parlamento para renovar a sua legitimidade de propósitos e de estratégias. Mais complicado é manter-se a situação actual.
Ninguém sabe se na semana passada quem esteve nas ilhas do Norte foi a ministra da Juventude e Emprego ou se foi a líder do partido. Se a deslocação feita resulta de estratégia do governo ou se é estratégia do partido em período pré-eleitoral. Se não se consegue discernir onde começa uma e termina a outra dificilmente se pode negar que o governo passou a ser um gabinete de campanha.
E em fazer essa distinção os factos falam por si mesmo. Todos os dias assiste-se, em particular na televisão pública, à interacção dos governantes com a população. O primeiro-ministro e os ministros parecem estar permanentemente em visitas. Permanentemente a dar, a prometer e a inaugurar, sempre seguidos pela televisão que transmite a satisfação dos governantes e a gratidão das populações. Programas como “Casa Para Todos” são inaugurados dezenas de vezes. Imagens como as vistas, na última semana, de entrega de botes, arcas frigoríficas, equipamento de rega gota-a-gota, kits escolares, cestas básicas e até cartões de pensionistas são passadas na televisão vezes sem conta ao longo de uma legislatura. Com que propósito?
Os problemas das populações continuam por resolver. A vida não melhora de forma sustentável para além do benefício imediato que podem tirar das dádivas. O futuro torna-se nebuloso e complicado quando não se vislumbra solução para o desemprego e se constata que a insegurança persiste apesar dos esforços feitos e outros sectores como educação e saúde debatem-se com problemas. É o próprio primeiro-ministro que vem dizer no início do seu 15º ano de governação que importa agora focalizar na resolução do desemprego, incentivar o sector empresarial e cuidar da segurança do país em todos os domínios.

A pergunta lógica é o que se esteve a fazer antes. Quando se construíram as infraestruturas, se investiu no capital humano e se disponibilizaram recursos para as instituições públicas não foi para se potencializar a produção da riqueza, melhorar o ambiente de negócios e facilitar o investimento? Porque não está a acontecer depois de todos esses anos e de muitos milhões aplicados? Porque é que em vez de emprego abundante, muito empreendedorismo e muita confiança temos hoje conformismo, espírito assistencialista e maior dependência do Estado? A resposta talvez seja que por demasiado tempo o governo comportou-se como gabinete de campanha em vez de governo da república.

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 11 de Março de 2015 

sexta-feira, março 06, 2015

Serviços de informação sem fiscalização

O Primeiro-ministro José Maria Neves deu posse na passada sexta-feira ao novo director dos Serviços de Informação da República (SIR). Na ocasião, o PM na sua intervenção deixou claro que a actividade do SIR vai entrar numa nova etapa para responder ao que considerou “a maior ameaça ao estado e à nação cabo-verdiana: a criminalidade organizada e transnacional”. Nesse sentido prometeu mais meios e propôs-se a rever o quadro legislativo para que no futuro o SIR se posicione como “o serviço chave da segurança nacional”.
Notório no discurso do PM é a intenção de colocar o SIR no centro da luta contra a criminalidade organizada e contra os vários tráficos. Uma decisão que é tomada não se sabe se por razões de retórica política como outras medidas recentemente proclamadas na resposta à insegurança crescentemente sentida pelas pessoas no seu dia-a-dia. Ou se corresponde a uma vontade política de fazer convergir serviços de recolha e processamento de informação para a salvaguarda da república com a actividade policial de combate ao crime e de investigação criminal. O facto de ter escolhido o ex-director do departamento de investigação criminal da Polícia Judiciária para director do SIR e de ter no seu discurso apontado essa experiência prévia como razão de fundo da nomeação parece confirmar essa segunda possibilidade. Não é esse porém o caminho seguido por países democráticos. Diferenciam claramente serviços de inteligência dos serviços de polícia e na escolha dos chefes recorrem geralmente a profissionais de carreira militar e diplomática mas nunca a profissionais da polícia.
Na luta contra criminalidade o mais lógico seria reforçar a Polícia Judiciária, capacitá-la como polícia científica e de investigação criminal e aprofundar a sua cooperação com as entidades congéneres estrangeiras que estatutariamente com ela devem estabelecer ligação. Tomando os Estados Unidos como exemplo, não parece que no combate aos tráficos ilegais prefiram investir na CIA em detrimento do FBI, do DEA e outras agências policiais. No mesmo sentido também devia-se reorientar a Polícia Nacional para dar uma resposta mais cabal às necessidades de segurança das populações e encontrar um melhor enquadramento para a Guarda Costeira que a tornasse mais efectiva nas suas múltiplas missões de vigilância e fiscalização do espaço aéreo e marítimo. Também ajudaria imensamente disponibilizar mais meios para a instalação do departamento de investigação criminal no Ministério Público e se apressasse a ultrapassar o clima de tensão na Polícia Judiciária de modo a elevar a moral e motivação dos seus agentes.
O trabalho do SIR na recolha, processamento e análise de informações é fundamental para, entre outros objectivos, se identificar ameaças, antecipar acções de indivíduos ou grupos dirigidas contra a integridade do Estado e proteger interesses nacionais. Mas porque os seus métodos e procedimentos não são tão restritivos como os da polícia precisa de ser especialmente controlado e fiscalizado para que os direitos fundamentais dos cidadãos não sejam postos em perigo. O PM na sua intervenção refere-se à necessidade de reforçar o processo de fiscalização pela comissão parlamentar de fiscalização e pela comissão de fiscalização de dados que ele considera indissociável da actividade do SIR. A realidade é que tem-se ficado pelo discurso e pouco ou nenhum controlo e fiscalização têm sido exercido sobre o SIR.
A comissão parlamentar de fiscalização formada com uma maioria de dois deputados do Paicv, o partido do governo, e um deputado do MpD não parece capaz no actual ambiente de alinhamento partidário estrito dos deputados de, de forma credível, controlar o uso que o governo poderá eventualmente dar ao serviço de informação. O facto de a comissão ver o seu orçamento cair para quase metade no ano de 2014 não é um sinal positivo de que estará a fiscalizar efectivamente o SIR. Nem tão pouco é tranquilizador a sua total indisponibilidade em confirmar ou negar se relatórios obrigatórios do SIR foram ou não entregues à Assembleia Nacional.
Da comissão de fiscalização de dados composta por magistrados do ministério público sabe-se por informações dadas a este jornal (ver pág.4) que não exerceu “de forma cabal as suas atribuições devido a obstáculos criados pelo SIR”. Enquanto o SIR se esquivava a ser fiscalizado pela comissão dos magistrados, recolhia e processava informações dos cidadãos. Ninguém pode confirmar se direitos foram ou não violados.

O PM disse na sua intervenção que os serviços de informação estão a fazer um grande trabalho. Acontecimentos recentes no país não parecem corroborar isso nem as mudanças feitas são tranquilizadoras. O facto porém de as duas comissões de fiscalização não funcionarem por resistência dos serviços em prestar contas sob a forma de relatórios trimestrais como diz a lei e em garantir acesso ao Centro de Dados já não é aceitável. Da responsabilidade do SIR em cumprir, o PM não pode eximir-se. Afinal os serviços estão sob a sua dependência directa. A verdade é que a república só será bem servida se o SIR cumprir escrupulosamente com a sua missão no quadro constitucional e legal em que foi criado. E tudo deve fazer-se para que assim seja. 

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Março de 2015 

sexta-feira, fevereiro 27, 2015

Sacudir o status quo

O ano de 2015 arrancou com manifestações de alguma perturbação no sector público em Cabo Verde. Já houve uma greve dos agentes da polícia judiciária. Meses atrás foram os guardas prisionais que partiram para a greve por razões de carreira e salários, e já se fala de alguma agitação pelas mesmas razões nas hostes da Polícia Nacional. Esta semana começou a greve dos professores. Está marcada para Março a greve dos funcionários das Alfândegas. Trabalhadores do ministério do Desenvolvimento Rural ameaçam greve por motivo de demora na implementação do PCCS.
O Estado dá sinais de ter dificuldade em cumprir com promessas feitas ou expectativas criadas em vários sectores da administração pública. Dias atrás a ministra da Educação referiu-se a essas dificuldades como falta de “liquidez financeira”. Certamente algum constrangimento financeiro já poderá estar a manifestar-se. São vários anos de crescimento anémico e é natural que a quebra na procura interna e a diminuição de importações comecem a ter impacto nas receitas do Estado. Se assim for, a procissão poderá estar ainda só no adro e várias outras manifestações de insatisfação poderão vir a verificar-se. Neste ano as pessoas nem poderão contar com os produtos de um bom ano agrícola para amortecer os efeitos da erosão do poder de compra de salários que não são actualizados.
A antecipar o impacto político do descontentamento no sector público neste ano pré-eleitoral, o governo já se apressa em encontrar motivação política nas reivindicações feitas. É uma forma ilegítima de exercer pressão sobre os trabalhadores. Transforma a luta sindical em alguma forma de oposição política e com esse expediente procura, por um lado, dissuadir aqueles que não têm partido ou não se identificam com os partidos de oposição. Por outro lado, procura esvaziar a priori a eventual simpatia que a luta por melhores condições de vida e de trabalho poderia suscitar em outros sectores da sociedade ao confundi-la maliciosamente com os embates do pleito eleitoral que se avizinham.
Aliás, viu-se essa táctica no debate sobre a Segurança do dia 23, segunda-feira, na Assembleia Nacional. A própria oposição foi acusada de eleitoralismo por trazer a debate a segurança do país quando todos se mostram apreensivos com o nível de criminalidade existente e com os ousados atentados contra o Estado que se verificaram nos últimos meses. Em situações recentes, designadamente na resposta do Estado à erupção do vulcão e ao afundamento do navio Vicente com perda de muitas vidas, a tentação é de acusar quem critica de querer tirar dividendos políticos da desgraça alheia. Teme-se que tais métodos passem a ser o expediente do momento para calar qualquer crítica.
Expediente particularmente oportuno num ano em que problemas em vários sectores, até agora encobertos, de repente estão a emergir e a tornar-se visíveis para todos. Aos conhecidos problemas do desemprego, da pobreza e da segurança vem-se juntar problemas em sectores como educação, saúde e transportes marítimos. Neste momento todos olham com atenção e com muita preocupação para a TACV e as suas sérias dificuldades em se manter como empresa viável e em garantir linhas aéreas internas. E a inquietação não fica por aí. Pergunta-se que mais outra empresa ou serviço público não estará a passar por situações que poderão deixar desprotegidos os utentes em momentos preciosos de necessidade e urgência.
Também pode-se perguntar se a pouca eficiência na utilização dos meios e a falta eficácia na acção, visível no desperdício de recursos e nos fracos resultados,  não seria  parte de uma “crónica já anunciada”. De facto, não se pode partidarizar profundamente todo o sector público incluindo a administração central e as empresas públicas e depois ter os melhores resultados de gestão e o melhor serviço prestado aos utentes independentemente da sua cor partidária, suas opiniões e sua proximidade familiar ou clientelar. Também é claro que não se pode manter um sistema semelhante sem que custos enormes de ineficiência, de quebra de produtividade e de perda de oportunidades se acumulem e todo o país sofra por causa disso. O problema é reconhecer o erro e mudar. Mas aprende-se tanto em fingir “em mudar para se poder manter as coisas como estão” que quando a mudança se torna imperativo já não há forças interiores para a concretizar.      
Que sinais se quer passar quando, por exemplo, se deixa uma instituição como o INPS sem uma direcção durante mais de cinco meses porque aparentemente se está à espera que uma contenda partidária termine e prémios sejam oferecidos aos apoiantes do vencedor? Certamente não é com estes métodos de selecção de gestores públicos e altos funcionários que se vai garantir um Estado efectivo isento e facilitador da iniciativa e do empreendedorismo de todos e de cada um dos cidadãos.

É evidente que com os erros e custos acumulados vai-se chegar a um ponto em já não poderá ser possível escondê-los. Quando chegar esse momento não se pode calar as críticas com acusações de eleitoralismo. Na democracia fazem-se eleições precisamente para forçar mudanças particularmente quando quem governa não se mostra capaz de fazer as reformas que se impõem com vista a alcançar resultados que se traduzem em prosperidade para todos. Que os ventos do descontentamento sacudam a inércia e o conformismo e tragam a dinâmica necessária para o país se reformar e mudar e não se deixar prender na estagnação que o ameaça. 

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 25 de Fevereiro de 2015 

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

BCV, cooperação ou submissão?

O Banco de Cabo Verde reuniu-se com os bancos comerciais no dia 6 de Fevereiro e uma semana depois adoptou um conjunto de medidas viradas para o aumento da liquidez do sistema bancário. O objectivo declarado foi de aumentar a capacidade dos bancos em conceder crédito ao sector privado. Supostamente a melhoria da situação líquida dos bancos com a redução das várias taxas, em particular, a taxa de disponibilidades de caixa e a taxa de redesconto irá traduzir-se em mais crédito para o sector privado. A realidade é que actualmente os bancos não têm problema de liquidez e mesmo assim não facilitam o crédito. Justificam com os riscos macrofinanceiros do país a que não está alheio à dívida externa que já ultrapassa os 100 por cento do PIB e a persistência de défices orçamentais numa economia com anos sucessivos de crescimento anémico.
O BCV sabe perfeitamente que anteriores tentativas de transmissão monetária com vista ao aumento de liquidez, designadamente a redução da taxa de concessão de liquidez de Setembro de 2013 não resultaram em mais crédito para a economia. Basicamente o seu único efeito foi baixar a taxa de juros paga nos Bilhetes de Tesouro a 180 dias que o Estado emite para se financiar. O BCV ao repetir a manobra de baixa das taxas, agora alargada às outras taxas directoras, não pode desconhecer que provavelmente as suas acções estão condenadas ao fracasso. Nada mudou significativamente: nem o quadro de referência dos operadores e investidores privados no que respeita nomeadamente ao ambiente de negócios, à competitividade da economia e às relações laborais, nem tão pouco a percepção pelos bancos dos riscos existentes e do crédito malparado que vêm acumulando com as crescentes dificuldades das empresas e das famílias.
É evidente que com as novas medidas do BCV a atenção vai virar-se para os bancos. Todos quererão saber se se verificarão aumentos no crédito à economia e baixas nas taxas de juro. Se mudanças significativas não aconteceram, considerando que não houve alterações significativas no ambiente de negócios, será mais fácil apontar o dedo ao sistema financeiro. Aliás a narrativa oficial já vinha culpando os bancos pelo aperto no crédito aos privados em contraposição com a sua pronta disponibilidade em comprar dívidas do Estado. Com esta iniciativa do BCV não fica margem para dúvidas quem deve ser responsabilizado em caso de falhas em se obter crédito e subsequentemente não haver crescimento e não se criarem mais empregos.  
 Esta parece ser a nova era de cooperação entre o Governo e o BCV em que o Primeiro Ministro e a Ministra das Finanças vêm insistindo nos últimos seis meses. A “novela” do ano passado que foi a nomeação do governador do BCV compreende-se que tinha como objectivo encontrar as pessoas certas e forçar uma convergência. O problema nestes arranjos é quando a realidade provoca perda de sintonias e força cada um a seguir caminho diverso daquele que a sua missão lhe obrigaria. 
 É o que aconteceu em Dezembro de 2011. O BCV aumentou as taxas de referência quando se tornou evidente que o governo iria continuar a sua política orçamental expansionista. Sentia-se na época a tensão entre a ministra das Finanças e o governador do BCV. As medidas do BCV de então tiveram o lado negativo de induzir uma contracção na procura interna com efeito no PIB que em 2012 foi de 1,2 por cento e em 2013 não passou de 0,5 por cento e um lado positivo de ajudar na recuperação das reservas externas. Em 2013 as reservas ultrapassaram os quatro meses de importações. O BCV realizava o que no seu último comunicado de 13 de Fevereiro relembrou a todos: “A manutenção de reservas externas em níveis que permitem sustentar a credibilidade do regime cambial afigura-se como objectivo estratégico da política monetária do Banco de Cabo Verde”.
Hoje o BCV com o nível de reservas externas existentes está na posição de abrir caminho para uma maior facilidade de crédito. A questão que se põe é se vai realmente acontecer, em que condições, e com que impacto nas reservas externas. Se for só crédito para consumo ou para investimento na produção de bens e serviços não transaccionáveis tensões poderão voltar a ser sentidas ao nível das reservas externas, forçando medidas de contenção. O ideal seria a aposta nas exportações de bens e serviços mas aqui a falta de competitividade do país não ajuda. Faltam mercados e é essencial o investimento directo estrangeiro.

Neste último ano dos quinze anos de governação do PAICV paira no ar a sensação de que muita coisa ficou por fazer e parte do que se fez poderá não ter a sustentabilidade esperada. Aos problemas de crescimento económico e de falta de emprego já conhecidos juntam-se de forma cada vez mais aguda os problemas de segurança e de justiça. Outros problemas como por exemplo no sector da educação e na saúde ameaçam a todo momento mostrar a sua real dimensão. Neste ambiente de incertezas é fundamental que instituições como o BCV se mantenham fiéis à sua missão mesmo que isso em certos momentos crie tensões com quem governa. Não dá é para alimentar ilusões ou participar na gestão de imagem de quem, tendo os recursos e o mandato para fazer as reformas que se impõem, desresponsabiliza-se quando o país arrasta-se anos a fio com crescimento raso e com desemprego excessivo.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Fevereiro de 2015 

sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Melhor democracia, menos violência

Steven Pinker no seu livro “Os anjos bons da nossa natureza” demonstra que são nas democracias consolidadas que se verificam os níveis de violência mais baixos do mundo. Assim é, segundo ele, porque a democracia, mesmo imperfeita, ainda é a via que, entre a violência da anarquia e a violência da tirania, com menos violência se consegue governar. De facto, a democracia, os direitos dos indivíduos, o primado da lei e a independência do poder judicial são os ingredientes essenciais para se manter o contracto social que renova a confiança no sistema e dá garantia de se ter paz e justiça, hoje e amanhã.
Há quem não concorde e pelo contrário culpa a democracia e a liberdade pelas quebras na segurança e ordem pública. Nesse apontar de dedo nota-se alguma nostalgia pelos tempos da ditadura. Supostamente teriam sido mais simples e mais seguros. Não se vê é que a falta de transparência própria desses regimes e a inexistência de estatísticas confiáveis dificilmente permitiam conhecer a realidade vivida então. Por outro lado, não se pode duvidar do potencial de violência arbitrária, indiscriminada e sem controlo que o Estado na época era capaz de exercer a qualquer momento e contra qualquer cidadão. Bem podiam não se registar muitos homicídios e agressões, mas ninguém estava livre de ser sujeito à prisão sem culpa formada, a humilhações, a torturas e até à morte violenta.
Tendo essa experiência em devida consideração, tentar empurrar a polícia para posições mais autoritárias, insistir em diminuir os constrangimentos legais de defesa ditados pela Constituição e esforçar-se por deixar a instituição policial sem a supervisão adequada não garante eficácia no combate ao crime e na manutenção da ordem pública mas certamente que abre o caminho para o potencial aumento da arbitrariedade na acção policial. É o que vem acontecendo e há que arrepiar caminho. A via, como bem mostra Steven Pinker, é o da consolidação das instituições democráticas. 
Significa isso que todos os agentes no sistema devem deixar de lutar contra ele e colocar-se à altura das suas normas e procedimentos. Evolui-se institucionalmente absorvendo, nos comportamentos e na acção, os elementos chaves que definem a entidade, que determinam a sua relação com as outras e permitem-na servir a comunidade com isenção, imparcialidade e proporcionalidade. Se eventualmente se mostrar necessário mudar algo, o sistema tem os seus mecanismos próprios. Para isso tem um governo que com a sua maioria absoluta no Parlamento pode alterar o Código do Processo Penal e a moldura penal de certos crimes e disponibilizar recursos via Orçamento do Estado para tornar as forças de segurança mais eficazes. Caricato é tentar fugir da responsabilidade atirando directa ou indirectamente culpa à Constituição ou a leis que este mesmo governo foi autor e apresentou para aprovação.
Insiste-se muitas vezes na falta de meios para justificar falhas. De facto, meios materiais, humanos e tecnológicos são necessários mas não são suficientes. Fundamental é ter a atitude própria de se colocar à altura das exigências da Constituição e das leis e não justificar a falta de efectividade apontando dificuldades ou relutância de alguns em as cumprir. A preocupação com os resultados, com a realização da missão em todos os seus objectivos e metas deve nortear acção das instituições. Ao governo compete assegurar-se de que assim seja e não se deixar apanhar exclusivamente por interesses político-partidários pondo num plano secundário as exigências de uma gestão adequada e criativa de todos os assuntos do país. 
Reconhecer em toda a sua dimensão a complexidade dos problemas com que o país se depara é um passo fundamental para se encontrar soluções. Também é essencial para que a relação entre governantes e governados siga sempre o caminho da verdade e da honestidade. A preocupação excessiva com a imagem, o uso de propaganda para a comunicação e a predilecção por encontrar bodes expiatórios sempre que surgem problemas deixa o país e as suas instituições num estado de permanente vulnerabilidade perante os desafios que diariamente se colocam. Que confiança, por exemplo, terão as pessoas que o problema de insegurança será resolvido quando ouvem deputados do partido no poder a dizer que afinal a sua insegurança é um sentimento ou sensação não corroborada pelas estatísticas da polícia.

A vulnerabilidade do país ficou patente recentemente com a erupção do vulcão do Fogo, o naufrágio do navio Vicente e os atentados recentes. Teme-se porém que a postura costumeira de centrar na gestão da imagem substitua as medidas certas e profundas que se deviam tomar. Não se pode continuar nem a fazer fugas em frente, nem a esconder os problemas debaixo do tapete. A consolidação das instituições não se compadece com isso. Paz e justiça são conseguidas em ambientes de instituições enraizadas, socialmente valorizadas e que favorecem o intercâmbio livre das pessoas no meio da maior diversidade. Para se diminuir a violência, é necessário um esforço para fazer as pessoas acreditar nas instituições, renovar a confiança como suporte de uma cultura cívica sólida e traçar um percurso que leve à prosperidade, mas exaltando sempre a conquista da liberdade.  

 Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 11 de Fevereiro de 2015  

sexta-feira, fevereiro 06, 2015

Evitar deriva securitária e justicialista

Os assaltos e as recentes mortes violentas elevaram a um outro patamar as preocupações dos cabo-verdianos com a sua segurança. Os alvos escolhidos, o modus operandi dos criminosos e o tipo de violência utilizado deixam a forte impressão de que algo está a mudar para pior. Casos graves acontecem por todo o país, mas é na cidade da Praia que se notam os excessos. Os esforços das autoridades em demonstrar que conseguem manter o controlo em todas as situações não se têm revelado suficiente para dissipar o sentimento crescente de falta de segurança da população. E isso apesar das respostas musculadas face a investidas criminosas e a outras perturbações da ordem pública e da colocação de militares a par com a polícia nas ruas.
A ansiedade geral que toda esta insegurança cria, põe muita gente, por um lado, a pensar em outras soluções possíveis e, por outro, a procurar falhas ou culpados para a situação. Declarações pouco claras ou mesmo ambíguas das autoridades quanto ao papel dos tribunais e quanto à relação polícia/tribunal, assim como à natureza das medidas de coacção designadamente o TIR e a prisão preventiva, tendem a alimentar impulsos justicialistas que querem ver presumíveis criminosos punidos imediatamente e sem o “due process”. Sugestões de alteração do Código do Processo Penal e da moldura de penas passam a impressão de que o sistema legal está desadequado, não é suficientemente dissuasor e peca por ser demasiado garantístico. Há quem fale abertamente em aumentar a pena máxima ao mesmo tempo que vozes se fazem ouvir particularmente no circuito dos comentários anónimos e também nas redes sociais a clamar pela prisão perpétua e até pela pena de morte. Um sinal preocupante do que pode estar a verificar-se neste domínio é a reacção de regozijo nesses circuitos perante as mortes recentes em encontros com a polícia no caso da Cidadela e do foragido de São Martinho.
Sente-se a frustração crescente da sociedade perante a incapacidade manifesta das autoridades em restaurar a tranquilidade pública. As respostas robustas e musculadas da polícia a surtos de violência e criminalidade, só por si, não resultam por muito tempo. A exemplo do que já se viu acontecer noutras paragens, a insegurança regressa, a relação da polícia com as comunidades e particularmente com os jovens nas periferias urbanas não melhora e nota-se uma escalada na violência. Questionado, o governo responde proclamando a segurança como uma responsabilidade de todos, mas peca por não vincar suficientemente a centralidade do papel do Estado no processo de a assegurar a todos os cidadãos. É evidente que tal atitude é percebida como desresponsabilização o que não deixa ninguém sentir-se mais seguro e aumenta a ansiedade geral.
Acontecimentos recentes designadamente o assassinato da mãe da inspectora da judiciária e o atentado contra o filho do Primeiro-ministro já provocaram mudanças no sector da segurança com renovação de comandos e preenchimento de cargos deixados demasiado tempo sem titular. Mas provavelmente o que deveria constar da ordem do dia era uma avaliação mais profunda de todo o sector e das opções assumidas em 2005 e 2006 com a junção das várias polícias numa Polícia Nacional, a criação dos Serviços de Informação da República (SIR) e a reorganização das Forças Armadas em Guarda Nacional e Guarda Costeira. Oito anos depois, o Plano de Segurança Interna adoptado pelo governo reconhece o quão incompleto se mantém a junção das polícias fiscal, marítima e de ordem pública com consequências na eficiência e eficácia da polícia nacional. Quanto ao SIR até o último comandante de protecção das entidades públicas na Polícia Nacional, em artigo de jornal, “duvida se ainda está activo”. Nas Forças Armadas, a enfase posta em missões de segurança interna leva a que se faça treinamento sofisticado de conscritos. Corre-se o risco de fuzileiros ou outras tropas especiais, terminado o serviço militar obrigatório e sem emprego, possam ser aliciados a colocar as técnicas aprendidas ao serviço do crime.
Os acontecimentos recentes de desembarque de drogas e de acidentes marítimos mostram a necessidade urgente de se controlar os mares territoriais, as costas e as zonas desertas das nossas ilhas. Actualmente, as funções de autoridade marítima são exercidas por várias entidades no quadro de um modelo institucional que se revelou inefectivo nomeadamente no caso do acidente do navio “Vicente”. Todos perguntavam onde estava a Guarda Costeira, como se deveria ter feito para accionar os barcos de busca e salvamento e quem poderia ter actuado com mais rigor para fazer cumprir regulamentos e normas que garantam maior segurança e profissionalismo na navegação marítima entre as ilhas. 
Um sentimento de insegurança, provavelmente nunca antes experimentado, perpassa todo o país. É essencial que o governo dê uma resposta adequada. Uma resposta que fundamentalmente reafirme o Estado de Direito e adeqúe as forças de segurança para melhor garantir a ordem e a tranquilidade públicas, com estrito respeito pela legalidade democrática e os direitos dos cidadãos. Como já foi dito por várias personalidades o grau de civilização de uma sociedade avalia-se pela forma como trata os piores no seu seio. Não se pode deixar levar pela frustração e começar a pensar que “bandido bom, é bandido morto”. 

Também fundamental para a luta contra o crime é a relação de confiança que a polícia cria com as comunidades. As forças da ordem devem ser incentivadas a seguirem os mais estritos critérios de legalidade na sua actuação e a serem transparentes na sua relação com a sociedade. Só fugindo a lógicas securitárias e justicialistas é que se poderá garantir que a  luta contra o crime terá resultados seguros e duráveis. 

 Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Fevereiro de 2015

sexta-feira, janeiro 30, 2015

Mudança de gerações

Felisberto Vieira em declarações na semana passada falou de mudança de gerações no PAICV na sequência da sua derrota face à Janira Hopffer Almada na corrida para presidente desse partido. O apoio dele vinha de actuais dirigentes, deputados e antigos dirigentes. O grosso do suporte da candidatura vencedora era constituído por quadros que embora jovens já ocupam posições importantes na administração pública e noutras entidades públicas e privadas em que o Estado tem fortes interesses. Gente que não esconde a sua ambição de ir mais longe e depressa.
Talvez em reconhecimento desse facto Felisberto Vieira fez da defesa do que chamou “ideais de Cabral” um dos eixos estratégicos da sua campanha. Em vários encontros repetiu “que comprar militantes em troca de favores” não é seguir “os valores e ensinamentos de Cabral”. Não teve muito sucesso aí e perdeu ficando pelos 40 por cento dos votos, uma percentagem que um mês depois no Congresso do partido cairia para 28,8 por cento confirmando o movimento de realinhamento de muitos com a líder eleita. Pelo desfecho do confronto pode-se provavelmente concluir que o que mais move a nova geração de políticos não são tanto os ideais mas antes a ambição de realização rápida. Uma postura que a realidade do país parece favorecer.
A situação socio-económica de Cabo Verde não é a melhor. Ao crescimento raso dos últimos anos e ao desemprego preocupante particularmente dos jovens vem-se juntar a percepção crescente da fragilidade do país face a qualquer crise. Aos problemas com a insegurança e as dificuldades em ter uma justiça célere somam-se as ansiedades com o sistema de transportes inter-ilhas devido a desastres e quási-desastres recentes, dúvidas quanto ao que realmente as crianças e jovens estão a aprender nas escolas, liceus e universidades e preocupações em conseguir benefícios do sistema de saúde em linha com os investimentos feitos. Vias para a realização pessoal e profissional estreitam-se quando há cada vez menos espaço para o sector privado e a carreira noutros sectores está contaminada pela política que dispensa favores, recompensa lealdades e não reconhece o mérito.
Em tal ambiente de oportunidades minguadas em todos os sectores, a captura do Estado e dos acessos e recursos que pode disponibilizar torna-se no grande prémio a cobiçar e a conquistar. Com a economia privada em franca contracção, o Estado agiganta-se no todo nacional e quem o dirige posiciona-se claramente no ”topo da cadeia alimentar”. Sem possibilidade de actividade autónoma, muitos acabam por estabelecer relações de dependência com os detentores do poder e os provedores de benefícios sociais. Abre-se assim o caminho para várias formas de corrupção, entre as quais, a corrupção eleitoral, bastas vezes denunciada.
O fenómeno não é exclusivo de Cabo Verde. Cedo ou tarde acaba por acontecer nos países em que fluxos externos não derivados do esforço nacional sejam eles ajudas, empréstimos baratos ou fundos estruturais a fundo perdido ganham peso na economia nacional. É o que aconteceu com vários dos países do Sul da Europa. Na Grécia atingiu proporções catastróficas precipitando a crise da dívida soberana que tem hoje a Europa de joelhos. Sempre que não se usa estrategicamente a “ajuda” para, num futuro próximo se libertar dela, surgem distorções graves. Em consequência, mais remota fica a possibilidade de ultrapassar a dependência e colocar o país no caminho do crescimento económico e do desenvolvimento sustentável.     
O Sr. Primeiro-Ministro no encontro da semana passada com empresários, pela enésima vez, reconheceu que a administração pública precisa “promover negócios, promover empregos e promover investimentos”. O problema é que o PM já entrou no seu décimo quinto ano a dirigi-la, mas a sensibilidade da administração em relação à actividade das empresas continua basicamente a mesma apesar das repetidas promessas em fazer as mudanças que se impõem para tornar o país competitivo e melhorar o ambiente de negócios. De facto, não é visível que o Estado esteja a ficar mais competente nem que aumente o seu engajamento em prol da iniciativa privada. A situação das empresas nas ruas da amargura, após muitas centenas de milhões de euros em investimento público, é prova disso. Para isso contribui a excessiva partidarização da administração pública que se tem revelado altamente prejudicial não só em termos de mobilização de competências como também da própria articulação do Estado no seguimento e materialização das decisões dos governantes. Vários empresários e investidores queixam-se de bloqueios, ausência de respostas e entraves diversos.   

A ordem natural das coisas é que haja rejuvenescimento das organizações políticas e mudança de geração na direcção das estruturas partidárias e nos círculos de governação do país. Com essa dinâmica espera-se que globalmente se ganhe em competência e se aprimore o sentido de serviço público e não o contrário e só sobeje ambição pura. Governar Cabo Verde deve ser sempre um acto de coragem e de idealismo. No mundo difícil e complexo de hoje governar requer a maior competência possível e a abnegação necessária a favor das gerações actuais e futuras. As eleições de 2016 não devem constituir uma corrida para assegurar os parcos recursos a favor do poder de uma minoria. Deve ser a via para levar os melhores a trabalhar a fim de garantir que todos consigam realizar-se e prosperar num Cabo Verde a crescer e a desenvolver-se. 

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 28 de Janeiro de 2015

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Quando a culpa morre solteira

É espantoso o zelo que o governo demonstra na procura de culpados e de bodes expiatórios para tudo o que corre mal no país. Dessa forma evita assumir a sua responsabilidade. Exemplo recente viu-se no discurso do Sr. Primeiro-ministro na apresentação de cumprimentos de Ano Novo ao Presidente da República. Considerou 2014 um ano muito difícil e com “constrangimentos restritivos de crescimento”. Logo de seguida pôs culpa na crise internacional, no ébola, na seca e na erupção do vulcão do Fogo, mas há muito que se tornara evidente que 2014 seria mais um ano de crescimento raso. O FMI no início de Outubro, antes de se fazerem sentir os efeitos do ébola, da seca e do vulcão, tinha revisto em baixa, de 3,2% para 1% do PIB, o crescimento da economia de Cabo Verde para 2014. Na época só a ministra das Finanças teimosamente contestou os dados do FMI. 
Ainda no afã de justificar tudo, o PM, sem mencionar o naufrágio do navio Vicente, foi dizendo no seu discurso que “mudanças climáticas têm provocado substanciais alterações nos nossos mares, com os consequentes perigos para a navegação marítima”. A dúvida que fica é se o barco se afundou com passageiros a bordo, porque os mares estão especialmente perigosos devido hipoteticamente a mudanças climáticas ou porque – como se pode tirar das declarações públicas de pessoas envolvidas, de profissionais da área e de entidades do sector – houve falha efectiva da regulação marítima, do controlo portuário e do sistema de busca e salvamento no país. A dúvida introduzida é suficiente, porém, para, logo à partida, se relativizar a culpa das autoridades envolvidas. 
A não assunção plena das responsabilidades por quem de direito cria problemas graves de governação. Assim é porque na democracia dá-se à maioria saída das eleições o poder de governar por um tempo limitado e no quadro de um programa com objectivos e metas claros e espera-se que cumpra o prometido e que assuma eventuais falhas. Por isso, a relação governo/cidadão não pode ser um jogo de atirar culpa para o passado porque quem ganha o direito de governar fá-lo com a promessa de corrigir os erros do passado e de potenciar o legado recebido. Também quem governa não pode desculpar-se com a suposta inércia ou resistência de outros porque ganhou fazendo acreditar que sabia construir vontade política alargada para realizar os objectivos fundamentais de paz, de prosperidade e de qualidade vida para todos. E a relação governo/sociedade não pode ser a de procurar esvaziar críticas com declarações de que não é possível fazer tudo de uma vez. Obviamente que ninguém espera dos governos que resolvam tudo e de uma vez só. Exige-se porém que cumpram o que prometeram e o que programaram realizar.
Quando os sinais de desresponsabilização se mostram presentes em todas as circunstâncias é de se preocupar muito a sério. De facto, o jogo do gato e do rato quanto à assunção das responsabilidades já não se passa só no Parlamento. Nota-se também quanto à insegurança nas ruas, em acidentes graves como o naufrágio do Vicente e emergências naturais como a erupção do Fogo, para só referir casos recentes. Pergunta-se em que outras circunstâncias menos publicitadas fica-se por este jogo de passar a culpa para o outro e se varrem os problemas para debaixo do tapete só para os ver reaparecer quando menos se espera. 
A cultura da fuga às responsabilidades que não deixa identificar devidamente os problemas e que não permite discuti-los até se encontrar forma de os resolver já há muito que vem causando problemas ao país. É só relembrar o que foram os anos dos problemas graves no sector de energia e água. A culpa foi para todos os lados. Quem devia assumi-la nunca o fez. A realidade é que hoje todos pagam em tarifas exorbitantes os anos de desresponsabilização. O mesmo agora se passa com a segurança. Ao longo dos anos permitiu-se que proliferassem armas nas mãos das pessoas, pouco se fez para conter a cultura de violência e optou-se por uma gestão populista do sector da segurança. Em consequência, o país ficou descalço perante as ameaças crescentes que vieram de fora ou emergiram nas cinturas urbanas país.
Em outras vertentes centrais para o futuro como a economia, a educação e a cultura de desresponsabilização gerou o que todos vêm no desemprego aflitivo e na inadequação da educação às necessidades do mercado. Mesmo quando um sector como o turismo se mostra promissor, porque procurado por investidores estrangeiros e alimentado por uma procura externa abastada, não consegue focalizar completamente a atenção do governo. O BCV numa das suas últimas publicações constata que já se verifica uma perda da dinâmica da procura turística em Cabo Verde por duas razões: a primeira porque o Norte de África está se a recuperar e Cabo Verde não soube utilizar a oportunidade para se tornar realmente competitivo; a segunda razão porque o Estado optou por assumir o papel de rentista que ameaça sufocar a galinha dos ovos de ouro.

O relatório do BCV dá conta que a tributação mais pesada com o aumento do IVA para 15 por cento e a criação da taxa turística contribuíram para tornar o destino Cabo Verde menos competitivo. Já se sabia que isso podia acontecer. Mas, como é habitual, não se confrontou este e outros problemas que afectam o turismo porque as críticas devem ser ignoradas. Também se o sector for afectado negativamente e os investimentos não forem realizados, empregos não forem criados e receitas diminuíram ninguém vai querer ser responsabilizado. Em Cabo Verde a culpa morre sempre solteira.  

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de janeiro de 2015 

sexta-feira, janeiro 16, 2015

Viva a Liberdade de expressão

O Mundo assistiu nos últimos dias a extraordinárias manifestações de apoio à Liberdade e à Democracia. O assalto no dia 7 de Janeiro à sede do Charlie Hebdo e o frio assassinato de cartoonistas, jornalistas e polícias, perpetrados por terroristas a reclamar do Islão, provocou uma reacção geral de choque e repúdio. Todos interpretaram essa horrendo como um golpe directo desferido contra a rainha das liberdades: a liberdade de expressão do pensamento e a liberdade de imprensa. A possibilidade de um indivíduo poder se exprimir sem quaisquer peias, sanções ou represálias está no cerne de todo o sistema de valores sobre o qual se assenta o edifício civilizacional moderno que, fora algumas excepções, todos hoje se reclamam de pertencer. O sentimento geral na sequência da tragédia de Paris é apanhado de forma certeira na frase atribuída a Voltaire:  "Eu desaprovo o que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo" 
O direito à liberdade de expressão de pensamento consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1789 proclamada após a Revolução Francesa, foi consagrada duzentos anos atrás na primeira emenda da Constituição americana e desde então encima o catálogo dos direitos fundamentais nas constituições democráticas. Cabo Verde, com a Constituição de 1992, passou a integrar esse comboio civilizacional posto em movimento desde o século XVIII pelo Iluminismo e que hoje, apesar das tentações totalitárias do fascismo e do comunismo e de derivas autoritárias de vária ordem, já tem a bordo uma boa parte da humanidade num número significativo de países em todo o mundo.
 O avanço aparentemente imparável das liberdades não significa porém que desapareceram os seus muitos inimigos. Também não significa que os descontentes acabaram por acomodar-se à nova realidade da democracia e do pluralismo. Os acontecimentos de Paris vêem demonstrar até que ponto alguns estão dispostos a ir para precisamente limitar esse direito. Até procuram justificar-se e atrair simpatia para as suas causas apresentando uma lista de ofensas que supostamente jornalistas e cartoonistas fazem às suas crenças, símbolos e religião. Ainda bem que as manifestações por todo mundo empunharam a bandeira “Je suis Charlie” para dar uma resposta frontal a esse tipo de argumentos. Vieram dizer que mesmo que o conteúdo produzido seja de mau gosto, ou mostre pouco senso e seja eventualmente ofensivo, ninguém tem o direito de impedir a sua expressão, muito menos de violentamente procurar suprimi-la ou de calar os autores. Num famoso acórdão (Falwell v Flynt) do Supremo Tribunal dos Estados Unidos  sobre a liberdade de expressão em que em causa estava curiosamente uma caricatura, a posição unanime dos juízes foi que “o facto da sociedade considerar ofensiva certo tipo de discurso ou de expressão não é razão suficiente para suprimi-la”. Pelo contrário, por que é opinião deve merecer “protecção constitucional”.
As democracias acreditam que o bem comum e o interesse público são atingidos na  livre troca de ideias porque como diz o Juiz Holmes o melhor teste da verdade é o poder de um pensamento de ser aceite em competição com outros no mercado de ideias. É evidente que estas posições já caldeadas nas democracias mais antigas ainda deparam com o cepticismo e mesmo hostilidade de quem considera o unanimismo, a procura permanente de consensos e os apelos patrioteiros como via de “ganhar tempo” e atingir rapidamente os objectivos. A realidade histórica, porém, demonstra que quem realmente consegue atingir os objectivos de paz, justiça e prosperidade são as democracias onde reina a liberdade e o pluralismo.
A experiência cabo-verdiana no pós 13 de Janeiro de 1991 também já deu provas do enorme potencial que pode advir de se ter uma sociedade mais aberta, mais ligada ao mundo e em que todos, esforçando-se por realizar as suas aspiração, contribuem para o progresso do país. O impulso para a modernidade e para o desenvolvimento que se verificou com a liberdade e a democracia não se compara com os tempos de unicidade de pensamento e de acção do regime de partido único. Mesmo assim ainda se ouvem vozes na sociedade a questionar o pluralismo, a deplorar a dinâmica governo/oposição e a favorecer a propaganda estatal em detrimento da livre troca de ideias no espaço público. Pressente-se que não desapareceu completamente o condicionamento do espírito ganho outrora quando vigorou uma linha do Partido –  havia ouvidos atentos onde menos se esperava para garantir o pensamento único e até se chegou a criminalizar o “boato”.
Na comemoração de mais um aniversário do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, é bom relembrar a importância crucial da defesa da liberdade de expressão do pensamento e da liberdade de imprensa para a vitalidade da sociedade no seu todo. Aproveita-se a oportunidade para manifestar solidariedade para com as vítimas dos atentados de Paris. Também é momento para reconhecer que um dos objectivos nos ataques à liberdade de expressão é induzir autocensura na comunicação social. A identificação do problema em Cabo Verde nos relatórios de várias organizações internacionais sugere que persistem constrangimentos ao seu exercício. Os ataques mais ou menos velados ao pluralismo, ao parlamentarismo e ao exercício do contraditório devem cessar. Inibe-se a livre troca de ideias, afirmam-se conveniências com prejuízo para a verdade e o factos e aumenta a intolerância, a crispação política e a polarização social: tudo o que se quer evitar para se ter liberdade, segurança e prosperidade. 


Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 14 de Janeiro de 2015