sexta-feira, julho 17, 2015

A História não valida injustiças



Recentemente no elogio fúnebre das várias vítimas de crimes raciais no Estados Unidos o presidente Obama foi peremptório ao afirmar: a história não pode ser uma espada para validar injustiças ou um escudo contra o progresso. Deve ser sim um manual para se saber como evitar repetir os erros do passado e como quebrar o ciclo. O aviso de Obama devia servir bem para temperar o fervor com que o Estado cabo-verdiano parece estar a abraçar a História contada pelos construtores do regime do partido único. Uma história feita à medida de alguns interessados em projectar uma imagem quase messiânica que os põe acima de quaisquer criticismos, presentes ou futuros. Paradoxalmente, o Estado que aceita isso é o mesmo que todos os anos pelo 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, serve-se de todos os subterfúgios para não celebrar com a solenidade exigida esses dois princípios e valores consagrados na Constituição da República. 
 O espírito prevalecente hoje em Cabo Verde é de respeito pelo pluralismo, de defesa pacífica de todas as ideias e de reconhecimento da igualdade de todos os cidadãos. Ninguém considera legítimo a utilização da violência para impor convicções políticas e estabelecer regimes contrários à liberdade e à dignidade das pessoas. Os símbolos nacionais, os monumentos e quaisquer outros objectos comemorativos devem ser tomados como pontos de encontro da comunidade nacional e venerados por tal. Não podem ser pontos de confronto, de ofensa e agravo. A memória democrática de como se chegou à liberdade deve ser preservada. Assim como devem ser reconhecidas as vítimas do regime repressivo que teve os seus pontos altos nas prisões de Maio/Junho de 1977 e de Agosto de 1981 em S. Vicente e S. Antão e noutras ilhas. Também não se pode esconder quem eram os principais responsáveis pela direcção do Estado. 
A generalidade dos países que deixaram a ditadura para trás procuram dar provas do renovado gosto pela liberdade. Um dos gestos simbólicos de maior importância são as condecorações feitas pelo presidente da república. A coerência dos actos de reconhecimento da nação pela luta pela liberdade e consolidação das instituições democráticas normalmente requer que se criem novas medalhas e novas ordens honoríficas. Em Portugal, com a III República, deixou-se a Ordem do Império, e criou-se a Ordem da Liberdade para homenagear quem se notabiliza na luta pela democracia e pela sua consolidação. Na Espanha democrática criou-se a Ordem de Mérito da Constituição e medalhas da liberdade encontram-se por todos os países democráticos tanto os novos como a Estónia como os antigos a exemplo dos Estados Unidos e da França. A própria Rússia deixou para trás a Ordem de Lenine que vinha da antiga União Soviética.
A opção até agora feita em Cabo Verde de não criar outras ordens honoríficas faz com que o país fique só com as ordens criadas durante o regime de partido único. As emendas feitas em 1996 às leis de 1985 e 1987 que criaram as actuais ordens procuraram dar um escopo maior ao processo de escolha de possíveis condecorados. Não deixa porém de fazer falta uma ordem da liberdade e da democracia mais consonante com os princípios e valores da Constituição. Sem falar no embaraço de se ter com a Guiné-Bissau a ordem de Amílcar Cabral como a máxima condecoração do Estado de Cabo Verde. Por outro lado, tanto para quem condecora como para quem é condecorado uma medalha da liberdade sem quaisquer outras conotações partidárias e ideológicas seria mais fácil de dar e de receber.
As condecorações são distinções feitas em nome da Nação. Naturalmente que se espera que não sejam nem banalizadas, nem instrumentalizadas. Contribui para uma impressão negativa o número aparentemente excessivo de pessoas distinguidas quando a expectativa geral é que a distinção deve ser rara e selectiva. Também não ajuda quando já não é só o Presidente da República mas também o Primeiro Ministro que aparece a colocar medalhas, num caso a dezenas de personalidades (jornalistas) e noutro caso a centenas de pessoas (combatentes). 
 A febre de homenagens atinge o rubro de cinco anos nas comemorações da independência nacional que até agora têm coincidido com os anos pré-eleitoriais. Este facto não ajuda em nada a dissipar a impressão de alguma instrumentalização eleitoral desses actos, o que, a confirmar-se, não bonifica ninguém. A extensão por largos meses das comemorações exacerba a situação e valida a percepção de eleitoralismo. No ambiente de contínua interpretação histórica em que se enfatiza o momento da independência ficam esquecidos os que depois sofreram com o regime pós- independência. A injustiça de ontem continua a repetir-se. Não seria assim se a independência fosse vista como indissoluvelmente ligada à liberdade, à democracia e ao Estado de Direito.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 15 de Julho de 2015

sexta-feira, julho 10, 2015

5 de Julho continua partidarizado



Comemorou-se no fim-de-semana passado os 40 anos de independência. Comemorações mais exuberantes do que em outros anos porque se trata de um número redondo (40) mas nem por isso menos partidarizada. Pelo contrário, 2015 é um ano pré-eleitoral e tudo o que pode ser transformado em espectáculo político sujeita-se a ser capturado por agendas partidárias. O arrastar das comemorações por vários meses tende a agravar o fenómeno. É grande a tentação de dar protagonismo central nos actos a sujeitos políticos como o primeiro-ministro, ministros e presidentes de câmara, todos eles altamente motivados em potenciar no máximo as suas aparições. A polarização que daí resulta acaba por prejudicar o espírito de comunhão e de união do povo cabo-verdiano que se pretende recriar e renovar em todos os festejos do 5 de Julho.
 A tendência crescente de, no Dia da Independência, focar os holofotes nos dirigentes do PAIGC, que a 5 de Julho de 1975 se apresentaram como libertadores e no momento seguinte pontificaram como construtores do regime ditatorial que iria vigorar por mais quinze anos, cria uma tensão a vários títulos insanável. A realidade é que a democracia é incompatível com exercícios de exaltação de figuras históricas que incorporaram um regime nos antípodas dos seus valores e princípios de liberdade, de pluralismo, do primado da lei e da legitimação popular do Poder. Quando apesar disso se insiste em ir por esse caminho forjam-se compromissos que fragilizam as referências do regime democrático e afectam o jogo democrático, a possibilidade de alternância política e a capacidade de debater o futuro. Perde-se muita energia na procura de conciliação com o passado irreconciliável.
Mesmo quando se pensa que se conseguiu alguma “paz com a História”, logo aparece um protagonista político a reclamar para si todo “o legado da luta libertação nacional, os valores de Cabral e a construção do Estado” como fez a presidente do PAICV num encontro de militantes no dia 2 de Julho. Com o quê é que ficam os excluídos desse legado? Toda a gente percebe que essa reafirmação faz parte de um jogo político no presente que como qualquer manobra política quer agigantar um partido em relação aos outros. Como deverão os outros reagir? A paz com a História esboroa no momento seguinte porque se percebe que afinal certas interpretações favorecem só a alguns e eles não se coíbem de usar a vantagem para fazer política. Em vez de se renovar a união no 5 Julho aprofunda-se o fosso e a paz com a Históriarevela-se inteiramente ilusória.
Sinal claro dessa tensão até agora inultrapassável é a relação com a Bandeira Nacional. Pelo que se vê em todas as festividades do 5 Julho há muita ambiguidade quanto à bandeira nacional. Normalmente não é tão evidente mas no dia da independência revela-se claramente. A bandeira antiga que era essencialmente a bandeira do PAIGC com pequenos ajustes, como, aliás, era a da Guiné-Bissau, é brandida em círculos como a autêntica numa atitude que configura ultraje para com a bandeira nacional consagrada na Constituição da República. Neste 5 Julho o conflito à volta do memorial do Amilcar Cabral serviu de trampolim para em vários círculos e mesmo na Assembleia Nacional surgisse quem, neste caso um deputado do PAICV, pusesse em causa os símbolos nacionais, o hino e bandeira. Preferiria talvez que que se mantivesse a bandeira do PAIGC e o hino da Guiné-Bissau. Ficou claro que para essas pessoas é a sua história que conta. Os outros que persigam a paz ilusória que lhes é oferecida no momento.
No 5 de Julho, os discursos oficiais, à parte raras notas de dissonância, exaltam normalmente os libertadores e a história que protagonizam, louvam a nação e enaltecem o seu caracter. Quando apontam-se falhas tudo é relativizado em relação ao considerado os grandes ganhos conseguidos.  Repetem o mote de todos os anos: valeu a pena a independência. Não há uma preocupação de calibrar na avaliação do país. Não se compara com outras experiências insulares similares com praticamente o mesmo tempo como país independente, as Maurícias (47 anos) e as Seychelles (39 anos), mas com rendimento per capita três e quatro vezes superior a Cabo Verde. Nem se assume que se passou 15 anos perdidos em filosofias económicas que favoreciam a substituição de importações, hostilizavam o turismo e não se sentiam inclinados a construir uma base de exportações de bens e serviços. O país ficou relativamente para trás e ainda parece estar num colete-de-forças que não o deixa crescer, não aumenta o emprego e arrisca a cortar-lhe respiração com o peso da dívida.
Neste fim-de-semana todos os olhares estiveram fixos na crise grega. Neste mundo de hoje de globalização ninguém pode pretender que fica imune, ou pode blindar-se contra esses problemas. É fundamental que em Cabo Verde a atitude geral mude e a relação com a economia global que pode potenciar  o crescimento económico e aumentar rapidamente os empregos seja aprofundada.  A chaga do assistencialismo e da dependência do Estado deve ser combatida e ao mesmo que renovada a consciência e a participação cívica de todos. A história não é coutada dos políticos e deve ser deixada aos historiadores e outros académicos para a investigar e a contextualizar. Lembrar sempre que Marx já dizia quando a história se repete fá-lo na forma de farsa.
Editorial do jornal Expressso das Ilhas de 8 de Julho de 2015

sexta-feira, julho 03, 2015

Custos da política de avestruz



Depois de muita pressão do público na comunicação social, das intervenções de deputados pela emigração de todos os partidos políticos e de uma viva discussão na Assembleia Nacional, finalmente o governo resolveu reagir à problemática criada pela decisão da TACV em impor as novas e caras tarifas inter-ilhas e nas rotas para o exterior. Vários dias de protesto do público, de sinais claros do braço de ferro entre a TACV e autoridade reguladora, a AAC, e da realidade de imposição das novas tarifas não tinham conseguido tirar o governo da sua inércia. Ninguém conseguia que se movesse e se colocasse claramente a favor da legalidade na relação entre a entidade reguladora e a empresa regulada e se mostrasse disponível, e pronto, para dar orientação estratégica para uma empresa pública, a única que existe no sector dos transportes aéreos e por conseguinte o principal instrumento das políticas do governo nesse sector chave da economia nacional. Pelo contrário assistia-se a um espectáculo em que às vezes o governo parecia querer desviar as culpas para os outros, outras vezes mostrava-se renitente ou impotente para intervir na empresa tutelada e ainda em certos momentos até fingia que tudo isso não lhe dizia directamente respeito e que o eventual conflito entre as partes deveria ser dirimido nos tribunais.
Infelizmente o que aconteceu na semana passada no sector dos transportes aéreos não é um caso raro. Situações similares vêm acontecendo com preocupante frequência em vários outros sectores da vida nacional. Recentemente o naufrágio do navio Vicente pôs a nu o descomando que afligia o sector marítimo. Durante anos era evidente que o sistema existente de ligação marítima entre as ilhas padecia de vários males. Sem regulação adequada os operadores sentiam-se livres para escolherem as suas rotas, para determinarem a frequência das viagens e cobrar preços exorbitantes na movimentação de cargas entre as ilhas. Com a preocupação de poupar tendiam a comprar barcos velhos, alguns não se mostravam muito rigorosos na manutenção e até havia quem, na procura de lucro fácil, forçasse a tripulação a fechar os olhos a exigências de segurança. Naufrágios consecutivos de navios como Mosteru, Barlavento, Pentalina e Roterdão deviam ter constituído um alerta para as autoridades. O mesmo alerta deveria ter sido o estado em que se encontravam navios como o Praia D’Aguada e o 13 de Janeiro quando deram entrada na CABNAVE para reparações.
Só nos últimos meses é que se nota a azáfama do governo em adoptar estratégias para os transportes marítimos com a definição de rotas e aventando a possibilidade de concessões e subsídios para os transportes marítimos. Mesmo a capacidade em busca e salvamento só agora começou a merecer o devido tratamento. Foi preciso que acontecesse o acidente com o navio Vicente, com perdas de vida, para que o governo saltasse para a acção. Naufrágios anteriores não tiveram esse mesmo efeito catalisador. Mesmo assim, como aliás todo o país pôde presenciar, não há uma clara e imediata responsibilização pelo desastre e pelas perdas de vida. Pelo contrário, procuram-se bodes expiatórios e vai-se ao ponto de acusar governos de décadas passadas pelo acontecido. 
Porque não se assumem frontalmente os problemas, e no tempo certo, as soluções encontradas para os problemas pecam muitas vezes por serem desadequadas, mais caras e de sustentabilidade duvidosa. Nesse sentido é paradigmática a solução encontrada nos catamarans da Cabo Verde Fast Ferry para o transporte marítimo como se viu na análise da empresa feita neste jornal no seu número de 17 de Junho 2014. Na energia, o calvário percorrido com a Electra ao longo de vários anos só ganhou algum alívio à custa das tarifas de electricidade e água das mais caras do mundo. Nos transportes aéreos, a gestão desastrosa dos TACV ao longo de anos obriga a que se pratiquem tarifas excessivamente elevadas. A empresa até pode aliviar o seu sufoco financeiro mas a que custos: a circulação entre as ilhas diminui com grande impacto na economia e o turismo interno que podia beneficiar várias ilhas e diversificar o pacote turístico do país torna-se extremamente difícil. As pesadas tarifas nas rotas étnicas para as nossas comunidades emigradas deixam transparecer uma miopia impressionante. O emigrante, com toda a sua relação afectiva com familiares e amigos, é potencialmente um visitante ou turista dos mais valiosos e com maior impacto na economia local. São Vicente, em vários períodos do ano, é prova eloquente desse facto. Restringir o fluxo potencial de emigrantes com tarifas aéreas excessivas não pode ser boa política.
Em outros sectores como Segurança, Saúde e Educação ou em programas como o denominado “Casa para Todos” notam-se as ineficiências, o desperdício de recursos e a ineficácia. A atitude prevalecente de passar a culpa para outro, ou de negar a existência do problema ou minimiza-lo considerando-o má-fé dos outros não dá bons resultados. Pode conduzir a tragédias, como se viu, ou então paga-se em custos mais elevados, oportunidades perdidas e sonhos frustrados. Enterrar a cabeça na areia como avestruz não é sinal de liderança. Assim como não é liderança responsável proclamar que se está blindado contra a crise, fingir que se pode ficar incólume perante dívida pública muito acima dos 100% do PIB ou não se preparar para os desafios que os tráficos globais ilegais colocam ao país. Para o bem do país é preciso outra atitude tanto na cidadania como na governação.
 Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 1 de Julho de 2015

sexta-feira, junho 26, 2015

A administração pública que merecemos



Nas últimas semanas sucederam-se vários actos de celebração daquilo que o governo convencionou chamar de 40 anos da Administração Pública cabo-verdiana. Às conferências, cerimónias de imposição de medalhas certamente vão seguir outras homenagens dirigidas aos funcionários públicos dos diferentes sectores do Estado com direito a publicação no B.O. Na actual atmosfera pré-eleitoral é de se legitimamente perguntar se se trata realmente do reconhecimento do “alto nível” de serviço público prestado pelo conjunto da administração pública ou se trata de acções de sedução dos funcionários tendo em conta o considerável peso eleitoral que presumivelmente tem num país em que o Estado é quase tudo.
Reconhecimento inequívoco não parece ser. O Primeiro-ministro em várias intervenções vem insistindo na “necessidade de se combater o “partidarismo” e as desigualdades de tratamento nos serviços e repartições” e de se ter uma administração mais amiga das empresas, maisamiga dos cidadãos e mais amiga do desenvolvimento. Tais palavras proferidas por quem não está de fora e pelo contrário preside o governo que dirige a administração pública directa, superintende os institutos públicos e exerce tutela sobre as entidades administrativas autónomas, incluindo os municípios, não deixam margens para dúvida. De facto, dificilmente se compreende que o governo ainda esteja a apelar à despartidarização, àimpessoalização e à uma atitude mais virada para a produtividade e para o bem comum. A Constituição de 1992 obriga  os servidores públicos a agir com especial respeito pelos princípios da justiça, da isenção, da imparcialidade e da igualdade de tratamento e da luta pelo interesse comum. Mais de vinte anos depois é de se perguntar o que andaram a fazer os sucessivos governos.
Desconcertante, por outro lado, é o PM que mesmo perante este quadro insiste em enaltecer os ganhos e a evolução positiva da administração pública nos últimos anos. O que se pode concluir é que não estaria a avaliar pelos critérios dos chamados 4E, eficiência, eficácia, equidade e efectividade. Das suas palavras anteriormente citadas pode-se depreender que a administração pública não está à altura desejada nem quanto aos princípios e valores, nem quanto à contribuição para o desenvolvimento considerando que é um dos factores para o mau ambiente de negócios em Cabo Verde. Mas se apesar disso consegue fazer avaliação positiva é porque outros critérios e valores estão a sobrepor-se: a partidarização estará a beneficiar alguém; a discriminação é instrumento de uns poucos e o bloqueio dos negócios deve interessar quem não se sente muito confortável com a existência de um sector privado forte e uma sociedade civil autónoma.
A verdade é que não é por falta de reparos, denúncias e críticas ao estado da administração pública que as coisas continuam na mesma, ano após ano. Os efeitos maléficos da partidarização, por exemplo, foram notados em 1988 num artigo de jornal escrito por Renato Cardoso, então Secretário de Estado da Administração Pública. Para ele era claro que a relação Partido/Estado estabelecida no pós-independência tinha transformada  a administração pública no instrumento amorfo das suas orientações comconsequências desastrosas na sua eficácia. Hoje continua-se a falar em despartidarizar mas a partidarização dos cargos persiste apesar dos seus efeitos negativos serem sentidos diariamente. Para muitos observadores, o caso recente do braço de ferro que a TACV mantém com a agência reguladora quanto às tarifas aéreas enquanto o governo fica inactivo só é possível porque o PCA dessa empresa tem o peso político de quem pertence à nova comissão política do partido no governo. Casos do género cujos impasses não são ultrapassáveis por processos conhecidos e transparentes retiram autoridade ao Estado, fazem perder oportunidades ao país e diminuem a confiança de investidores e outros operadores económicos.
A história económica recente dá pistas quanto ao tipo de administração pública que os países escolhem ter. Se são como Singapura, Maurícias ou a actual Ruanda há uma preocupação em ter uma administração pública altamente competente, meritocrática e com uma cultura de serviço que a torna a grande facilitadora da actividade privada não só na atracção de capital externo como também no desenvolvimento de processos de produção voltadas para exportação. Se, pelo contrário, o país cai na tentação de fazer da captação da ajuda externa e da sua disponibilização no país o seu objectivo maior, os resultados são inversos. O Estado já não é mais facilitador, mas coloca-se no topo da cadeia de distribuição, cioso do seu poder, do seu status e a da sua influência. Não abdica facilmente do seu papel de captar fluxos externos diversos e de discricionariamente distribuir recursos, propiciar acessos e influenciar resultados no país.
Fazer ou não as reformas do Estado não é tanto uma questão de vontade, mas sim de opção. O que existe hoje em Cabo Verde resulta de um governo que, por exemplo, sempre tratou o programa de ajudas do MCA com entusiamo enquanto que com o programa AGOA que implica atrair capitais estrangeiros, produzir e exportar para mercados preferenciais nunca mereceu muita atenção dos governantes. É evidente que por mais discursos, proclamações ou promessas de mudar e passar a ser uma administração mais “amiga de negócios” isso não vai acontecer  como até agora não aconteceu. Reformas só poderão ser feitas quando efectivamente o país adoptar uma outra postura quanto ao seu desenvolvimento. E mesmo assim não será fácil.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 2015

sexta-feira, junho 19, 2015

Nada é o que parece ser



Nestes meses pré-eleitorais Cabo Verde vive tempos peculiares. O Primeiro-ministro às vezes apresenta-se como o líder da sua agenda de transformação e esforça-se por mostrar os “ganhos” de quinze anos de governação. Quase em simultâneo põe-se na posição de crítico e fustiga, por exemplo, a administração pública, que ele próprio dirigiu durante os últimos quinze anos, como factor de atraso na criação de um bom ambiente de negócios. Ou apela ao sector privado para substituir o Estado nos investimentos para fazer crescer a economia oblívio da situação actual de enorme dificuldade na generalidade das empresas. Ou ainda queixa-se do elevado desemprego no país convidando a todos a encontrar solução para esse mal que assola o país. Na inauguração da nova linha da Frescomar, na segunda-feira, dia 15, ouviu-se mais uma reedição deste discurso de “Now you see me, now you don´t”. A discutir a partidarização da administração pública no Instituto da Ciências Jurídicas e a falar da regionalização no Paul, foi a mesma coisa. 
Nas democracias a questão da responsabilidade partidária é crucial para a legitimação do poder, para o exercício consciente do direito do voto e também para garantir a possibilidade de alternância. A todo o momento tem que se saber quem é governo, ou seja, quem ganhou pela sua visão e programa de futuro, quem tem um mandato pré-estabelecido para a pôr em prática e quem tem todos os recursos do Estado para a implementar. Do governo espera-se liderança designadamente na criação de condições para que todos tenham a possibilidade de realizar-se como cidadãos plenos e prosperar a nível pessoal, familiar e das colectividades que criam ou a que pertençam. Não se espera que simplesmente faça a “sua parte”, geometricamente varável segundo as suas conveniências, e se ponha em bico dos pés a acusar outros como o sector privado, as câmaras municipais, as famílias e os próprios jovens desempregados por não estarem a cumprir o seu. 
Ao longo do mandato e particularmente no fim do mandato as pessoas querem estar na posição de poder cobrar ou premiar conforme as espectativas criadas foram ou não atingidas. Certamente que não querem ser desviadas por actos de ilusionismo que não deixam ver o que realmente se conseguiu, quem foi o responsável e que saídas existem para os problemas do momento. O facto actual do Primeiro-Ministro não ser o líder do partido que suporta o governa abriu caminho para maiores ambiguidades em matéria de responsabilização política. Viu-se isso perfeitamente na questão do estatuto dos titulares de cargos políticos.
Para o cidadão eleitor, que assiste ao frenesim pré-eleitoral  que passa pela comunicação social particularmente na radio e na televisão em que é protagonista principal o PM  nas suas movimentações incessantes pelas ilhas em lançamentos de primeiras pedras, inaugurações, visitas, aberturas de fóruns  e sessões de auscultação, a situação é mais confusa. Fica-se por saber: está ou não em campanha. É ou não candidato e em que condição. É responsável ou é crítico das políticas dos últimos quinze anos. É pela continuidade das políticas ou é pela renovação como quer se apresentar a nova presidente do seu partido. 
Momentos eleitorais devem ser de clareza de posições. Os cidadãos são chamados para decidir qual a orientação a imprimir nos 5 anos seguintes. Precisam saber qual é a real situação do país, como poderá evoluir na actual conjuntura mundial, e que opções oferecem os agentes políticos para melhor confrontar os desafios do presente e do futuro próximo. Esta exigência da democracia é ainda maior quando o futuro está cheio de incertezas e as fragilidades do país são visíveis no crescimento raso, no elevado desemprego e na cada vez mais pesada dívida pública. O cenário de aprofundamento da crise na União Europeia, o principal parceiro económico de Cabo Verde, devido à possível saída da Grécia, e talvez não só, da zona euro ainda poderá tornar as coisas pior.
Momentos eleitorais são também de responsabilização. O foco da atenção deve estar nos partidos, nas soluções alternativas e nas propostas de governação que apresentam e não fixar-se no jogo de ambições pessoais que muitas vezes estão por trás das listas de deputados. Como bem disse o constitucionalista português Vital Moreira a propósito de de  candidaturas de cidadãos às legislativas: “Não faz sentido permitir a eleição individual de deputados que nas eleições seguintes já podem não ser candidatos e a quem ninguém pode exigir responsabilidades. Uma democracia parlamentar é uma democracia de responsabilidade partidária”. De facto, só aos partidos é que se pode posteriormente punir ou recompensar pelos actos da governação e pelas promessas cumpridas e não cumpridas. Para isso porém é de não admitir que façam da política a arte do ilusionismo e o terreno propício para exercício do cinismo e da hipocrisia. 
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Junho de 2015

sexta-feira, junho 12, 2015

Alertas do BCV

No relatório da Política Monetária referente a Maio de 2015, publicado pelo Banco de Cabo Verde na passada semana, são evidentes as fragilidades da economia nacional. A dívida pública continua a aumentar e já está a 114% do PIB. O défice orçamental mesmo caindo para 7.3 % do PIB continua excessivo e pelas previsões do BCV o crescimento económico poderá situar-se em 2015 entre 2,5 e 3,5 % na melhor das hipóteses. Com tais indicadores dificilmente se consegue vislumbrar quando será o regresso aos parâmetros considerados fundamentais para a sustentabilidade do acordo cambial que impunha o limite de 3% ao défice orçamental e de 60% à dívida pública. Não estranha que os índices de confiança apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) continuam a deteriorar-se meses e anos a fio situando os últimos dados no pior nível desde de 2009.
Pelo relatório, confirma-se que as medidas do BCV de facilitação do crédito não tiveram o efeito desejado de melhorar o financiamento bancário do sector privado. As incertezas na evolução da economia são muitas. Afectam os bancos que se tornam mais exigentes em dar seguimento a pedidos de crédito. Desincentivam eventuais potenciais investidores que não vêem um potencial de crescimento nos mercados interno ou externo para os seus bens e serviços. Desencorajam os consumidores que adiam o consumo afectando ainda mais a já fraca procura interna. Sintomático dessa poupança precaucional, como bem nota o BCV, é a tendência de aumento dos depósitos bancários sejam os à ordem sejam os a prazo. Segundo o Banco Centralas elevadas incertezas quanto às perspectivas económicas e financeiras do país terão continuado a influenciar o comportamento das famílias, que pouparam 13,6 por cento do seu rendimento disponível real em 2014.

Um dado preocupante avançado pelo BCV é de que “pela primeira vez desde 2009 as receitas brutas do turismo registaram um decréscimo”. Terão contribuído para isso a redução do número de turistas e a redução de preços para responder à concorrência de outros destinos particularmente de países do Norte de África que procuram recuperar-se das perdas resultantes da instabilidade provocada pela Primavera Árabe. A confirmar-se a tendência, vem dar razão a todos aqueles, empresários, sociedade civil e forças políticas de oposição, que têm clamado ao longo dos anos para que a atitude do governo fosse outra em relação ao turismo. Uma atitude mais proactiva, mais consequente e com maior sentido de urgência na resolução dos problemas. 
Infelizmente é a postura rentista que prevalece. Ao longo da história tem sido essa a postura adoptada pelas autoridades. Razão porque alguns classificam Cabo Verde como a terra das oportunidades perdidas. Sempre que surge uma oportunidade assume-se  logo que é para durar e a tentação é sugar o máximo em termos de receitas para o Estado sem se preocupar em saber como e porquê surgiu e por quanto tempo poderá manter-se. Muito menos dá-se ao trabalho de emprestar à procura externa daí emergente outras valências que a podem aumentar, diversificar e qualificar. Não estranha que com o tempo desapareçam as condições atractivas iniciais e o negócio simplesmente se esvazie e depois procure relocalizar-se em paragens mais convidativas. 
O que muito separa Cabo Verde das Ilhas Canárias, como nota a reportagem das páginas 8 e 9,  é atitude diferente num caso e noutro das autoridades em relação ao turismo, ao desenvolvimento do sector privado e à necessidade de mobilizar uma procura externa diversificada para os seus bens e serviços. Por isso as Canárias já vão a 13 milhões de turistas, os seus empresários e empresas procuram agressivamente internacionalizar-se e a sua oferta de bens e produtos é diversificado e em processo de contínua sofisticação. Pelo contrário, em Cabo Verde os turistas não chegam a um milhão e o tecido empresarial é formado essencialmente, segundo o BCV e citando o recenseamento de 2012, por micro e pequenas empresas sem contabilidade organizada e com capacidade organizativa e de negócios limitada. As exportações de bens são em boa parte de pescado e dependem de uma única empresa e de um mercado externo específico.

O que se vê em Cabo Verde são fragilidades induzidas e reproduzidas porque não há visão, ninguém segue estratégias e planos de acção previamente definidos e falta sentido do timingcerto para agir. Não estranha pois que o relatório do BCV caracterize a conjuntura actual como sendo “de crescimento económico comedido que persiste desde 2011, de contínua deterioração do balanço das empresas e famílias bastantes endividadas, de incessante aumento do crédito malparado e de agravamento da percepção dos riscos de investimento no país”.
  
        Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 10 de Junho de 2015

sexta-feira, junho 05, 2015

Populismo punitivo

A pena máxima em Cabo Verde vai aumentar de 25 para 30 anos de prisão. O governo já tem a autorização da Assembleia Nacional para fazer a revisão do Código Penal. A proposta de autorização legislativa foi aprovada pela unanimidade dos deputados presentes na sequência de uma discussão a que foi alocado um tempo que não ultrapassou as 2 horas. A principal alteração feita ao pedido de autorização legislativa foi baixar a pena máxima proposta de 35 para 30 anos.
Com essa decisão Cabo Verde rompeu com uma tradição quanto ao regime de penas que vem do século XIX e do tempo colonial. Em 1884, Portugal foi o primeiro país do mundo a acabar com a prisão perpétua e a adoptar a pena máxima de 25 anos. A Constituição de 1992 consagrou esse ganho civilizacional e proibiu explicitamente a prisão perpétua (artigo 33º). O Código Penal aprovado em 2003 confirmou a pena máxima em 25 anos de prisão. Uma alteração desse regime 12 anos depois deveria merecer justificação fundamentada e discussão aprofundada. Parece que não se conseguiu fazer nem uma, nem outra.
Apesar de na nota justificativa que acompanhou a proposta se reconhecer que “não é a severidade das penas que afasta as pessoas dos ínvios caminhos da criminalidade mas sim a certeza da condenação” aumenta-se, mesmo assim, a pena mais 10 anos.  Pergunta-se porquê? A resposta na nota referida é que “isso vai ao encontro das preocupações das pessoas”. Ou seja, em vez de focalizar os esforços em investigar e conseguir a condenação dos criminosos, fica-se pelo mais fácil mas menos eficaz e também custoso expediente de aumentar a pena. Posto de outra forma: muda-se um regime de penas centenário simplesmente por razões de política que alguns classificariam de populismo punitivo?
Há algum tempo que se vinha discutindo uma revisão do Código Penal mas ninguém pensava em mexer na pena máxima. O assunto só veio à tona em Janeiro deste ano, na sequência do atentado ao filho do Primeiro-ministro e meses após a tentativa de assassinato da mãe de uma inspectora da PJ. Foi a resposta mediática encontrada para o sentimento generalizado de insegurança da população. Todos desataram a discutir a questão e provavelmente outras discussões mais pertinentes para a prevenção e combate à criminalidade e às incivilidades múltiplas no país ficaram secundarizadas no processo.
Nos meses que se seguiram, a proposta de aumento da pena máxima não conseguiu muitos apoiantes fora do círculo governamental. O Presidente da República pronunciou-se contra em várias ocasiões. Numa das suas intervenções disse que «Os estudos indicam que não é com base na severidade das penas que se resolve o problema, mas sim com a criação da capacidade de investigação para descobrir os suspeitos, julgá-los em tempo adequado e aplicar uma pena justa. É assim que a sociedade funciona com tranquilidade».
Recentemente, em sede da Comissão Especializada dos Assuntos Jurídicos e Constitucionais, foram ouvidas várias entidades ligadas à Justiça sobre a matéria. O Provedor da Justiça e a Bastonária da Ordem dos Advogados declaram-se contra a proposta de revisão da pena máxima. O próprio Procurador-Geral da República a quem cabe dirigir a execução da política criminal diz que só aumentar a pena não chega e que a resposta à “percepção de que as pessoas saem demasiado depressa das prisões” poderá passar pelo cumprimento efectivo das penas.
É tentador aumentar penas para passar uma mensagem de combate firme contra a criminalidade. Na realidade não passa de um efeito mediático dirigido para aumentar a sensação de segurança dos cidadãos. Para muitos especialistas do Direito Penal o aumento não tem nenhuma eficácia nem nenhuma utilidade porque não servirá para reduzir o número de delitos. Países como os Estados Unidos foram por essa via punitiva: não conseguiram diminuir o crime mas criaram um problema terrível com o aumento da população prisional e da violência nas prisões. Estudos recentes citados neste jornal (nº 710) mostram que depois de uma certa idade a capacidade de violência diminui consideravelmente. Manter as pessoas presas por mais de vinte ou vinte e cinco anos anos não traz qualquer ganho para a pessoa, para o sistema prisional ou para a sociedade. A eficácia do sistema de justiça fica diminuído porque só consegue punir mas não proporciona a reeducação nem incarna a possibilidade de reinserção social.

É evidente que as duas horas no Parlamento foram insuficientes para se debater adequadamente a revisão do Código Penal tendo em conta as suas implicações e a necessidade que todos vêem em se ter leis funcionais que resolvam os problemas com que a sociedade se depara. Aprovar nessas condições é quase como passar um cheque em branco ao governo. Considerando as reservas manifestadas por várias entidades da área da justiça e alguma preocupação vinda da sociedade civil seria provavelmente proveitoso que o Parlamento chamasse a si a ratificação do decreto legislativo que o governo vai aprovar ao abrigo do artigo 183 da Constituição. Uma oportunidade para se aplicar um dos poderes do Parlamento na fiscalização do governo adquiridos na última revisão constitucional de 2010. A revisão do Código Penal pela sua importância devia voltar outra vez ao Parlamento. Fundamental manter o elevado nível grau de consenso na sua alteração de que beneficiou o primeiro Código Penal.

 Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 3 de Janeiro de 2015 

sexta-feira, maio 29, 2015

O passado não deve reger o presente nem bloquear o futuro

Em mais um Dia da África, o 25 de Maio, o foco da atenção do mundo recai sobre o futuro do continente. As tragédias dos naufrágios no Mar Mediterrâneo com perdas de milhares de vidas vieram lembrar os problemas terríveis com que se debatem as populações. É facto que em várias regiões do continente, a falta de autoridade do estado, junta-se aos extremismos religiosos, à violência étnica e a desastres naturais para empurrar milhares para migração clandestina para Europa. Mas, apesar da crise humanitária que se seguiu, não se nota o regresso ao afro-pessimismo dos anos passados. A África é hoje visto como um continente do futuro. A prestigiada revista britânica Economist já não se refere à África como o continente sem esperança (hopeless) mas sim como o continente promissor (hopeful).
Declarado em vários círculos do capital internacional como “a última fronteira”, a África tem merecido recentemente de países como a China, Índia e o Japão um interesse redobrado. Interesse que não fica pela exploração dos minérios e do petróleo, mas vai mais além para outros sectores da manufactura, energia e serviços diversos em particular nas áreas de informação e comunicação. Os potenciais parceiros económicos já não são somente as antigas potências coloniais e a América. Em tempos de globalização, a possibilidade de desenvolver múltiplas e complexas ligações económicas com todos os outros continentes são muito maiores e as potencialidades são imensas. O crescimento em média de 5 % nos últimos anos deve-se à maior capacidade de atracção do investimento directo estrangeiro e ao aumento das exportações para o qual tem contribuído grandemente a dinâmica das economias dos países emergentes, os BRICS. 
Várias razões concorrem para justificar porque os países africanos ficaram atrás quando comparados com os países asiáticos. Nos princípios da década de sessenta não havia muita diferença entre o rendimento per capita da Coreia do Sul, da Singapura e de Taiwan e o do Gana, Nigéria ou Costa do Marfim. Girava tudo à volta dos 200, 300 dólares anuais. Porquê, então, hoje só se pode falar de tigres asiáticos e não de leões africanos. Um factor de peso que contribuiu para que o resultado fosse diferente num caso e noutro foi certamente a natureza e qualidade da liderança.
As opções de política económica no caso de vários países asiáticos permitiram-lhes criar uma capacidade endógena de criação de riqueza. Na África, pelo contrário,  houve países que se contentaram em viver dos recursos naturais como minérios e petróleo. Outros que não tinham tais recursos desenvolveram a capacidade de explorar o filão da ajuda internacional. Também na Ásia apostaram no sector privado e nas exportações e as consequências viram-se: ganharam em competitividade, aumentaram a produtividade, criaram uma classe média alargada e retiraram milhões de pessoas da pobreza. Enquanto isso, na África faziam-se experiências do socialismo africano, enveredava-se pelo caminho da crescente estatização da economia, não se promovia o sector privado nacional e incentiva-se a economia informal. É evidente que daí só podia vir pobreza das populações e crescente vulnerabilidade do país em relação aos choques naturais ou de outra natureza. Interessante notar que mesmo quando, num caso e noutro, africano ou asiático, os regimes não eram democráticos mas sim autoritários as lideranças primaram por fazer opções abismalmente diferentes.
Os “libertadores” em vários países africanos sempre quiseram perpetuar o poder que receberam no momento da independência. Para renovar a legitimidade histórica tiveram que, por um lado, alimentar o sentimento de vítima do colonialismo e a memória dos seus horrores como a escravatura e, por outro, impedir efectivamente que as pessoas e a sociedade ganhassem autonomia a ponto de exigir responsabilidade à governação do país e renovação dos governantes via métodos eleitorais democráticos. Em nome do Poder sem controlo sacrificaram os seus países com a perda de múltiplas oportunidades de se industrializarem, deixaram milhões na miséria e promoveram uma postura de assistencialismo e dependência que a prazo se tornou num dos maiores obstáculos ao desenvolvimento. Na Asia foi diferente. Os governos mesmo autoritários de Coreia do Sul, de Singapura ou mesmo da China procuraram relegitimar-se fazendo os seus países crescer a taxas elevadíssimas durante décadas seguidas.

Felizmente que nesta segunda década do século 20 há fortes sinais que em muitos países africanos se quer ultrapassar os constrangimentos do passado e a partir daí construir um futuro integrado no mundo numa perspectiva em que o que realmente conta são os factores de competitividade, produtividade e inovação. O volume crescente de investimento directo estrangeiro em direcção à África é um sinal forte de que se está no bom caminho. Mas como disse Mo Ibrahim numa entrevista à revista Foreign Affairs o fundamental para o futuro da África é o Estado de direito democrático e a afirmação do primado da lei. A actividade privada e o empreendedorismo dependem disso. E o futuro também. 

 Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 27 de Maio de 2015 

sexta-feira, maio 22, 2015

O rei vai nu

Tem sido notícia em vários órgãos de comunicação social o boicote do governo à recepção organizada pela delegação da União Europeia para marcar a Semana da Parceria Cabo Verde/UE. Parece que a razão para isso foi a entrevista dada a este jornal pelo embaixador da UE José Manuel Pinto Teixeira em que chamava a atenção pelo mau ambiente de negócios em Cabo Verde. O governo não gostou da revelação e, como o rei na fábula, assustou-se perante a possibilidade de ver desfeita toda a ilusão à volta das “suas ricas e maravilhosas vestimentas”.
Partiu para a retaliação que provavelmente não ficará só pela não comparência na recepção, mas ao comportar-se assim deixou entrever ainda mais do que o estado do ambiente de negócios do país. Ficou claro que tem uma preocupação permanente em dominar a sociedade cabo-verdiana com um discurso que nem perante a realidade dos factos se desmorona facilmente. Também não deixa dúvida que tudo faz ou fará para que não apareça qualquer voz “inocente” que ameace desconstruir tudo. Se reage assim com a UE, imagine-se o leque de instrumentos entre o pau e a cenoura que usa diariamente para manter todos sintonizados com a sua Agenda de Transformação quando a realidade é a do crescimento raso, da falta de emprego e da dívida pública que já vai muito acima dos 100 por cento.
Há quase vinte e cinco anos que Cabo Verde é uma democracia. Tal facto coloca o país ainda numa fase de consolidação das suas instituições democráticas, a dar os primeiros passos na autonomização da sociedade civil e nos primórdios de uma imprensa independente e plural. Ter um governo como este que se revelou neste incidente excessivamente preocupado em manter o país numa linha de pensamento pontuada por fugas à realidade pode constituir um perigo real para o aprofundamento da democracia e do pluralismo.
Imagine-se o esforço diário que se tem que fazer para garantir essa linha, essa roupagem repleta de maravilhas, dádivas e esperanças. Um misto de acção e atitude que se nota, por um lado, na  propaganda  permanente, na interpretação enviesada dos factos e na desresponsabilização pela falta de resultados positivos e promessas não cumpridas  e, por outro lado, na desvalorização da  crítica, na relutância em submeter-se ao exercício do contraditório e na fuga à prestação de contas. Inevitavelmente afectada em todo este processo é a própria governação que ao concentrar-se na necessidade de tudo controlar, fixa-se demasiado no curto prazo e orienta-se exclusivamente para interesses eleitoralistas. Também sacrificado é o Parlamento, a sede do contraditório e o agente político e plural de fiscalização da acção do governo. E se o controlo das situações e da mensagem está no centro das preocupações, dificilmente se pode evitar que se sacrifique o desenvolvimento, o crescimento económico e o emprego para assegurar a continuidade no poder.
Quebra esta harmonia delicada todo aquele que procura dar uma outra justificação para os factos que teimosamente insistem em fugir do quadro oficial permitido. São chamados profetas da desgraça, portadores de más novas e adeptos do “quanto pior, melhor”. Para os constranger são-lhes exigidos que reconheçam as coisas boas antes de terem o direito a criticar. Para obscurecer a realidade e dificultar o debate público atira-se para a discussão desculpas que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Em simultâneo não se inibe de condicionar todos que fazem opinião, elevando a autocensura a um nível que mesmo que apareça quem grite que o rei vai nu, a sua voz e a sua denúncia esbatem-se e diluem-se na cacofonia deliberadamente criada para que uma única música subsista e se imponha.
 Cabo Verde está num ponto crítico da sua existência. Deixou de poder contar com donativos e empréstimos concessionais por muito mais tempo. O investimento que precisa para se desenvolver tem que vir do capital estrangeiro, do produto da venda de bens e serviços e da capacidade nacional de produzir riqueza e de fazer poupanças. O alerta do embaixador da UE é que ainda não se logrou criar o ambiente necessário para isso. A reacção hostil do governo confirma que não está interessado em mudar as suas políticas e a sua atitude básica. Só quer manter a fachada.

Já em período pré-eleitoral é evidente que o horizonte temporal que interessa é o do primeiro trimestre de 2016 para se decidir as eleições e os cinco anos de poder. É como quem diz: depois se verá. Compreende-se o desorientamento e a hostilidade quando aparece alguém de peso e com cabeça fora da névoa propagandística doméstica a clamar para todos ouvirem: o rei vai nu!

     Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 20 de Maio de 2015

sexta-feira, maio 15, 2015

Mudar a sério

As dificuldades com o ambiente de negócios em Cabo Verde ficaram patentes nos encontros com empresários estrangeiros realizados no quadro da semana da Parceria de Cabo Verde com a União Europeia. O relato “do saltitar de departamento em departamento”, da “burocracia que afasta investidores”, dos “anos e das oportunidades perdidas” e da “mentalidade das instituições em obstaculizar em vez de facilitar” marcou muitas das intervenções dos presentes. Ao levantar essas questões estavam a juntar a sua voz à dos empresários nacionais que há anos vêm-se queixando em vão do ambiente hostil existente, não obstante as reiteradas promessas do governo de mudar a atitude da administração pública em relação à actividade privada. 
O próprio embaixador da União Europeia nos seus encontros com a comunicação social sentiu necessidade de transmitir para o país essas preocupações dos empresários e investidores. Segundo ele, a ajuda da União Europeia nesta fase visa em grande medida apoiar Cabo Verde na atracção do investimento e em melhorar o ambiente para a actividade empresarial. O mínimo que naturalmente quer ver é um esforço nacional da parte cabo-verdiana em reduzir a burocracia, em melhorar a coordenação dos processos de decisão e em agilizar as decisões. O pior que pode acontecer depois de um esforço em atrair investidores é constatar a sua desilusão com aquilo que se encontra.
Paul Krugman num recente artigo no New York Times escreveu que estamos a viver uma era em que ninguém assume que errou. Como não se assume, também não se faz um esforço efectivo para alterar a situação. Ainda hoje, no décimo quinto ano do seu mandato, ouve-se o Primeiro-ministro dizer que a administração pública precisa adequar-se para melhor servir o ambiente de negócios do país. Num balanço recente das cem medidas “urgentes” anunciadas em Novembro de 2011, o PM confirmou que só cinco (5%) foram executadas, estando umas iniciadas (9), outras em desenvolvimento (24) e em franco desenvolvimento (56) e ainda outras que simplesmente não foram aplicadas (6).  A inércia parece ser difícil de vencer. 
Em S.Vicente, no “Meeting Point” da semana passada ostensivamente voltado para atrair investidores e seduzir operadores económicos, falou-se outra vez num ponto de viragem. Mas a um ano das eleições legislativas é legítimo perguntar se com esse discurso está-se a anunciar uma inflexão na postura das instituições ou nas políticas seguidas até agora ou se se trata realmente de mais um artifício para ganhar tempo e gerir expectativas. Facto é que periodicamente S. Vicente têm sido palco de exercícios similares, designadamente de Conselhos de Ministros especializados, lançamentos de clusters e promessas de infra-estruturas “criadoras” de oportunidades. Depois nada de significativo acontece: o desemprego continua excessivo e os sinais de estagnação económica teimam em manter-se. Não se assume que provavelmente a falha maior está na orientação política da economia nacional.
O alerta vigoroso de investidores e empresários oriundos de países da União Europeia deve ser tomado com a devida seriedade. Como disse o embaixador da União Europeia na entrevista a este jornal aeconomia é o sector empresarial, não é o Estado e a mentalidade de arranjar um emprego no Estado e ficar lá o resto da vida está a acabar pelo mundo. Vindo de quem mais ajuda, de quem mais investe, de quem mais envia turistas, e de quem é o principal parceiro comercial, é conselho para se ter em devida conta.

Há que tirar ilações certas do espectáculo a que assistimos todos os dias em vários países europeus. Vêem-se os enormes sacrifícios para se adaptarem às novas exigências do mundo pós crise e o esforço despendido para viverem dos seus próprios meios depois de anos de bonança de fundos europeus a custo perdido e juros baixos nos empréstimos. Enfrentar os desafios de hoje não se compadece com postura que procura em décadas passadas e governos anteriores os culpados para os problemas de hoje. Pelo contrário, para que a adaptação ao mundo de hoje seja proveitosa, deve-se primar por uma liderança efectiva que, como também diz o economista Paul Krugman na sua coluna do New York Times, se distingue pela integridade intelectual: a vontade de enfrentar os factos mesmo se estão em desacordo com o que sempre se tomou como certo e a vontade de admitir o erro e de mudar de rumo.

  Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 13 de Maio de 2015

sexta-feira, maio 08, 2015

Onde estão os "indignados"?

No dia Primeiro de Maio, as manifestações contra o desemprego, a injustiça e a insegurança ficaram muito aquém do esperado. O Primeiro-Ministro, citando analistas, diz que foi um fiasco. De facto, a iniciativa das duas centrais sindicais, CCSL e UNTCS, em convocar os trabalhadores para uma marcha de protesto só convenceu poucas centenas de pessoas na Praia e algumas dezenas em S. Vicente. Aqueles que com o convite dirigido ao Mac #114 para se associar à movimentação pensaram repetir as manifestações de 30 de Março ficaram defraudos. A perplexidade de muitos perante o fracasso ficou bem expresso nas palavras de um participante que na televisão pública perguntava: Onde está a juventude que mais sofre com o desemprego? Onde estão os estudantes universitários?
Há quem pense que em Cabo Verde ainda não se verificam manifestações frontalmente contra as políticas do governo. O que se passou no dia 1 de Maio parece confirmar isso. Quando há protestos públicos são normalmente de natureza sindical e limitados no seu escopo. A manifestação de 30 de Março, que tinha tonalidades políticas claras, foi essencialmente dirigida contra o parlamento e os deputados. Aliás, depois da entrevista do PM à rádio nacional no dia 31 de Março a confirmar a sua participação no processo negocial da actualização dos salários dos titulares de cargos políticos não mais houve outra manifestação apesar de uma ou duas estarem previstas. Coincidências.
As últimas sondagens do Afrobarómetro apontam para uma quebra na credibilidade das instituições do país em particular das instituições políticas. Quem mais sofre é o parlamento. Outrossim, o dado que mais chama a atenção é o nível de aceitabilidade do governo mesmo no seu décimo quinto ano de mandato, quando o país se debate com desemprego elevadíssimo, crescimento baixo, dívida publica acima dos 110% e défices orçamentais excessivos. As pessoas, aparentemente, não responsabilizam directamente o governo pelas dificuldades existentes, pela falta de perspectiva futura e pela incapacidade de acção efectiva para colocar o país num rumo diferente. Matérias como desemprego, insegurança, impostos pesados, não devolução do IUR e custos excessivos de energia e água não causam indignação a ponto de precipitar as pessoas para rua.
O conformismo e a resignação prevalecente que inibe a indignação têm um outro lado potencialmente corrosivo da democracia. Além de levar à descrença gradual nas instituições torna as pessoas sensíveis a demagogia e a populismos de toda a espécie. Estes, encontrando campo para se exprimirem, enfraquecem ainda mais as instituições e tendem a alimentar derivas autoritárias de governação, em particular as disfarçadas de paternalismo. Nos dois últimos acontecimentos, de 30 de Março e de 1 de Maio, nota-se a reacção dispare da sociedade e das pessoas. Em Março a reacção é explosiva perante matérias vincadamente populistas. No Dia dos Trabalhadores as pessoas primam pela ausência no protesto contra matérias que as sondagens dão como sendo as principais preocupações dos cabo-verdianos.
Quando se ouve a Ministra das Finanças a passar aos gestores do IFH a culpa pelos males actuais do Programa “Casa para todos” vê-se qual é a forma de proceder deste governo e o que poderá estar na origem desta dualidade de reacção. Quando as coisas estão bem auto-congratula-se e quando algo corre mal faz por não se responsabilizar. No programa “Casa para Todos” negociou tudo e vendeu apartamentos através de rendas resolúveis sem grande preocupação com a viabilidade financeira de todo o empreendimento. Depois passou tudo ao IFH. Nos entrementes fartou-se de inaugurar e entregar casas em espectáculos televisivos especialmente montados para o efeito. Agora surgem problemas e a ministra acha que o Tesouro não tem nada a ver com isso. A blindagem do Tesouro Nacional em relação aos problemas financeiros que as empresas públicas como o IFH, os TACV, a ELECTRA e a ENAPOR têm é mais outra blindagem que só pode existir na imaginação da ministra. Quando a factura chegar será para todos.
 Uma das características fundamentais da democracia é a possibilidade de os cidadãos responsabilizarem os governos pelos seus actos, pelas promessas feitas e pelos resultados obtidos. A relação com o governo não pode ser um “jogo do gato e do rato” para se evitar uma verdadeira prestação de contas e completa “accountability”. Já se viu como esse exercício contribui para a descredibilização do parlamento com as manobras que aí são feitas para se fugir ao contraditório e à fiscalização efectiva da governação.

Para a sociedade, gabinetes de imagem e de propaganda subordinados ao governo fazem uso de recursos públicos substanciais para mostrar o governo e os governantes na melhor luz. O choque da imagem projectada com a realidade diária das dificuldades vividas tende a alienar as pessoas, a induzir passividade e descrença e até a intimidar. Não estranha pois que protestos dirigidos contra o governo sejam tão raros. Curiosamente a susceptibilidade a paixões populistas tende a aumentar. Quem ganha com este estado de coisas?

   Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 6 de Maio de 2015 

sexta-feira, abril 24, 2015

Regionalização adiada sine die

A cimeira da regionalização prevista para Dezembro do ano passado mas só realizada na semana passada, nos dias 14 e 15 de Abril, foi para muitos observadores mais um exemplo da proverbial montanha que pariu um rato. A Declaração da Praia proferida no término dos trabalhos não definiu compromissos para além de um plano estratégico para integrar as temáticas debatidas na cimeira. O Primeiro-ministro fez questão de sublinhar que o “mais importante é pensar na descentralização e que qualquer tipo de regionalização será a prazo”. Sondagens do Afrobarómetro vindas ao público arrefeceram mais os ânimos a favor da regionalização com a informação de que ela não consta da lista das dez principais preocupações dos cabo-verdianos.
A questão da regionalização do país tem-se revelado nos últimos anos matéria política quente. Falar da regionalização ajuda a mobilizar vontades e paixões políticas. Críticas podem ser dirigidas contra o governo agitando a bandeira do combate ao centralismo e a macrocefalia da Capital. Políticos locais podem cavalgar no descontentamento popular alimentado pelo sentimento de abandono para mais facilmente se fazerem eleger e se consolidarem no poder. A reivindicação da autonomia pode ser erigida em arma de arremesso para forçar a mão de quem tem o grosso dos recursos do Estado.
A quebra nos últimos anos do crescimento económico nacional e o aumento do desemprego põem as pessoas inquietas e receosas em relação ao futuro. Ficam mais sujeitas ao tipo de discurso com traços demagógico e populista que tende a pôr uns contra os outros. A regionalização pode ser um desses discursos. O facto de, apesar disso, o “balão” ter sido em boa parte esvaziado na sequência desta cimeira de regionalização, poderá significar que o governo conseguiu ver a ameaça e soube contorná-la. Em vez de se prestar a alvo de críticas, ressentimentos e frustrações nas ilhas devidos ao excessivo centralismo, o governo manobrou inteligentemente para não ser visto como o problema, mas como parte da solução. Apresentou-se como líder na procura do melhor modelo e caminho para a regionalização. Entretanto as tendências já constatadas na relação com o poder local e com as ilhas continuavam na mesma: o centralismo é cada vez maior, a autonomia dos municípios sofre erosão diária e a capacidade das ilhas, em manterem a massa crítica populacional necessária para garantir dinâmica económica e cultural, tende a diminuir. 
O problema com a regionalização é que por demasiadas vezes o que está subjacente ao seu debate é uma lógica redistributiva. Muitos apoiantes querem simplesmente que recursos disponibilizados ao país sejam melhor distribuídos pelas ilhas. Não querem perceber que dirigir uma economia que privilegia a reciclagem da ajuda externa gera inevitavelmente centralização. A necessidade de comando e controlo obriga que tudo se concentre essencialmente na cidade capital e que os procedimentos sejam centralizados.

As ilhas precisam de uma dinâmica económica que as faça mais ricas, mais autónomas e mais capazes de conservarem a sua população e os seus jovens promissores que decidiram ficar na ilha. Consegue-se, rompendo com o modelo económico prevalecente nos últimos anos e que tem colocado Cabo Verde a crescer a taxas baixíssimas do PIB. Mas, como se viu nas manifestações e comentários a propósito das alterações ao estatuto dos titulares dos cargos políticos, não é fácil tirar as pessoas de um modelo económico como o de reciclagem de ajudas que cria uma mentalidade de “soma nula”: se estás a ganhar, estou a perder. Para esse tipo de raciocínio não há situações win-win em que todos podem ganhar.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 22 de Abril de 2015

sexta-feira, abril 17, 2015

Da rua não se governa

Os últimos dias não foram bons para a democracia cabo-verdiana. Passou-se a ideia de que se pode governar a partir da rua. Uma lei do Parlamento aprovado por unanimidade dos deputados não mereceu do presidente da república nem 24 de horas de avaliação, ponderação e maturação. Na fundamentação do veto político o PR usou argumentos apresentados nas manifestações populares e nas redes sociais e concluiu que era necessária uma reavaliação do diploma pelos deputados. A pronta reacção das forças políticas representadas no Parlamento foi de abandonar o diploma aprovado e de se declararem indisponíveis para o reapreciar.
Em vários sectores da sociedade, muitos se regozijaram com esse inédito capitular dos órgãos representativos da república perante protestos de alguns milhares de pessoas e perante expressões de desacordo no Facebook, em comentários online e em opiniões nos órgãos de comunicação social. Realmente a rapidez e a facilidade com que todos se libertaram do diploma até podia fazer esquecer que para o aprovar foram precisos anos de negociações com participação activa da direcção dos grupos parlamentares e da chefia do governo. O próprio PR, dias antes da discussão e aprovação da lei, aceitou receber os líderes parlamentares para lhe serem apresentados os consensos conseguidos.
A crise que aflige o sistema político aparentemente tem origem na oposição da nova líder do PAICV a algumas normas do estatuto dos titulares de cargos políticos (ETCP). Uma oposição  que estaria a colocá-la em rota de colisão com o grupo parlamentar do seu partido e com o próprio governo de que faz parte. Há, porém, um problema com essa ideia. Se há crise no Paicv não se vêem as consequências onde elas deviam se manifestar. 
 O líder parlamentar, apesar de discordar das orientações da líder do partido em matérias essenciais, não deixa o lugar como é prática generalizada nos regimes parlamentares. Nem a líder que também é ministra não deixa o governo mesmo quando o PM esteve claramente envolvido nas negociações do ETCP que merece publicamente a sua discordância. Durante toda a discussão e aprovação do diploma, o governo manteve-se em silêncio numa atitude de “quem cala, consente” e ela não compareceu aos trabalhos na AN para mostrar o seu desacordo e motivar eventuais apoiantes entre os deputados do Paicv. Apesar das diferenças serem públicas, nem há demissão da ministra nem o PM se disponibiliza a deixar o governo por falta de sintonia com a líder do partido que suporta o governo.
Por outro lado, com a maioria parlamentar e o governo aparentemente inamovíveis perante as demandas da líder do partido, estranha que não ocorra a ninguém ultrapassar o impasse na liderança e na bicefalia no exercício do poder com um congresso extraordinário que fizesse o partido outra vez uno à volta de um líder efectivo. Desconcertante também que ninguém se preocupe com isso mesmo quando forças populistas já se fazem sentir e se mostram passíveis de manipulação. Não são normais conflitos no centro de organizações sem que haja consequências ou um desfecho final. Quando apesar de tudo persistem é porque resultam de encenação ou de actos de ilusionismo com vista a atingir objectivos políticos muito concretos.
Um deles de há muito procurado por certos sectores políticos é o do descrédito do Parlamento e por arrastamento do sistema de partidos e do pluralismo. É relativamente fácil despertar sentimentos anti partidos e anti pluralismo numa sociedade que viveu mais de quarenta anos do Estado Novo de Salazar e depois quinze anos de partido único. Neste momento esse sentimento está ao rubro e certamente que acaba por afectar todas as instituições democráticas, ou pela via de hostilidade directa, ou pela forma como é aproveitado por quem se julga capaz de colher as paixões mobilizadas e torná-las em ganho político permanente.
O presidente da república é um alvo preferido. A natureza suprapartidária do cargo aparentemente fá-lo ideal para ser lançado contra os partidos. Esquece-se que ele não só não pertence aos partidos como também não deve ligar-se a qualquer outra organização. O grupo de cidadãos que o propôs não tem existência para além da eleição. O seu exercício de árbitro e moderador do sistema políticos é um exercício atento mas solitário e não pode dar a ideia de que se submete a pressões exteriores, muito menos a pressões vindas da rua.
Noutras democracias, o governo é o primeiro chamado à liça perante qualquer coisa, seja ela positiva ou negativa. Se em Cabo Verde acontecesse o mesmo, as anomalias no sistema de poder actual, entre o Paicv e as suas e expressões institucionais o governo e a maioria parlamentar seriam facilmente notadas. Mas aqui a tendência geral é não responsabilizar o governo mas sim os “políticos” e canalizar as exigências aos deputados como se tivessem poder executivo. Com tais interlocutores é relativamente fácil protestar mas os problemas do país que em geral dependem de políticas compreensivas do governo correm o risco de ficar por resolver. É a frustração que daí resulta é que depois dá lugar a populismos facilmente aproveitáveis por certos políticos.

 Resistir à onda populista é fundamental. Também é essencial exigir que titulares de órgãos de soberania cumpram a sua função assim como projectado na Constituição e não caiam na tentação de elogiar a “rua” para ter ganhos políticos, sacrificando a função e as instituições existentes.  Afinal, não há democracia fora da Constituição e muito menos contra ela”.

    Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 15 de Abril de 2015