sexta-feira, dezembro 11, 2015

Dia da Rádio ou dia da supressão da liberdade de expressão

Uma resolução do Governo datada de 4 de Junho de 2015 resolveu fazer do 9 de Dezembro de 1974, o dia da tomada da Rádio Barlavento, o Dia Nacional da Rádio. Considerando que a justificação dada para se criar dias da comunicação social foi a de “destacar o papel dos seus órgãos na promoção do pluralismo, na difusão de informação credível e na acção fiscalizadora no quadro democrático” não deixa de ser muito estranha essa decisão. A tomada da Rádio Barlavento não foi motivada em absoluto para promover o pluralismo, muito menos para difundir informação credível ou para construir alguma crítica, controlo ou fiscalização do poder do Estado. Na prática, visou-se implantar uma voz única no país, inaugurou-se uma nova era em que a propaganda substituiu em boa parte a informação fidedigna e retirou-se qualquer hipótese de visão crítica sobre a governação do país.
A ocupação e a subsequente utilização das instalações da Rádio Barlavento para passar mensagens do PAIGC aconteceu num contexto especial. Não foi um acto isolado. Enquadrava-se entre um dos muitos actos revolucionários que tiveram lugar em Dezembro de 1974 que visavam consolidar o poder do PAIGC com exclusão de todos os seus adversários políticos. Forças políticas como a UDC e a UPICV sofreram ao longo do processo perseguições, prisões e deportação para fora do país. A sociedade civil entrou em processo de colapso quando as suas associações e os meios que utilizava para se afirmar como autónoma e se comunicar com o país foram expropriados e consolidados em órgãos do Estado a falar numa voz única ditada por um centro político-partidário todo-poderoso e sem qualquer memória do que tinha sido no passado.
 Neste sentido, a tomada da Rádio Barlavento significou também o fim da iniciativa e da criatividade individual que desde os anos quarenta vinha-se consolidando nas experiências da Rádio Clube Mindelo, da Rádio Barlavento e da Rádio Clube da Praia. Só muito mais tarde, quinze anos depois, com a liberdade e democracia implantadas nos anos 90 o país voltaria a respirar e novas iniciativas, protagonismos e oportunidades das pessoas se interagirem livremente através da rádio viriam a tornar-se possíveis.
Certamente que o governo não ignora a enorme carga simbólica que a data carrega. Quando insiste nela é porque tem um objectivo concreto a atingir ou, pelo menos, uma provocação a fazer. Na resolução chama a atenção para “o novo percurso de radiodifusão” que se teria iniciado com a tomada da rádio. Esse percurso, como se sabe bem, só pode ter sido o da estatização da rádio, uma via que nos tempos de hoje, sob a égide da constituição democrática e liberal de 1992, dificilmente os governos poderão sustentar e justificar.
 A Constituição em matéria de rádio e televisão requer a existência de um serviço público. Não o exige para a imprensa escrita porque a facilidade de acessos e os investimentos necessários estão ao alcance de indivíduos e grupos. A verificar-se uma queda rápida nos custos de se criar uma rádio e uma televisão, como vem acontecendo pelo mundo fora, é natural que cada vez menos se justifique um serviço público dedicado e que a expressão da diversidade e do pluralismo nas sociedades democráticas seja conseguido simplesmente pelas vias privadas. Em várias democracias consolidadas há um debate forte a esse respeito. No caso de Cabo Verde a dificuldade maior na implantação de órgãos privados capazes de cumprir esse objectivo está na pequenez do mercado publicitário. O facto de o sector público da rádio e da televisão procurar ostensiva e agressivamente melhorar o seu peso e quota neste mercado não é um bom sinal. Pode significar que não se quer realmente que iniciativas privadas na rádio e televisão se ponham de pé e consolidem a sua posição de contribuir para que os cidadãos satisfaçam de forma livre e aberta o seu desejo de informar e de ser informado.

 A liberdade de expressão é a rainha das liberdades. Suprimi-la leva à morte de todas as outras. A tomada da Rádio Barlavento, a 9 de Dezembro de 1974, significou calar vozes críticas e vozes contrárias. Sabemos o que é que aconteceu nos quinze anos que se seguiram: a opressão assentou arraiais no país. Por isso não é uma data que tenha cabimento em democracia. Mal andou o governo em consagrá-la como o Dia Nacional da Rádio em Cabo Verde.  

  Editorial do jornal expresso das Ilhas de 9 de Dezembro de 2015

sexta-feira, dezembro 04, 2015

Enfrentar um mundo mais rigoroso e menos generoso



Michael Spence, prémio Nobel da Economia, num artigo recente publicado no Project-Syndicate chamou atenção pelo facto de que a economia mundial está a acomodar-se num caminho de baixo crescimento conduzida pela incapacidade ou falta de vontade dos políticos de contornar os importantes constrangimentos que se colocam no caminho de uma maior dinâmica económica a nível global. Acrescenta ainda que mesmo o actual crescimento anémico poderá vir a revelar-se insustentável. Outros economistas como Larry Summers, Paul Krugman ou J. Bradford DeLong falam abertamente do que chamam de estagnação secular – uma nova era que estaria já à porta caracterizada por baixo  crescimento num ambiente de baixa inflação ou mesmo deflação e de taxas de juros próximas dos 0%.
Todos estes avisos de eminentes economistas em relação à evolução da economia global nos próximos anos devem constituir um motivo de preocupação para os cabo-verdianos. Fraco desempenho da procura global significa menos estímulo económico, menos crescimento e concomitantemente menos capacidade de diminuir o défice orçamental e a dívida pública que segundo o último relatório do GAO situou-se, em 2014, nos 116% do PIB. Já temos um problema grave de estar a crescer muito abaixo do potencial. Segundo o GAO, o crescimento em 2014 foi de 1,8% quando em 2013 tinha sido de 1%. Os dados do INE do último trimestre (2º) apontam para uma taxa de crescimento de 0,1% do PIB. O 1º trimestre tinha sido de 1% do PIB, o que não augura nada de espectacular para 2015. Se as perspectivas mundiais para os próximos anos não são as melhores, mais razões devemos ter em pensar políticas no curto e médio prazo que, citando o relatório do GAO, ajudem a “recuperar do período de estagnação e a recuperar o diferencial em relação ao potencial” de crescimento económico.
2016, o ano de todas as eleições, está aí à porta. Devia ser o momento certo para se discutir abertamente a situação real do país e o contexto global onde vai labutar para encontrar o seu caminho para um desenvolvimento sustentável e sustentado. Devia ser também o momento para se deixar cair a propaganda e o ilusionismo enquanto instrumentos de governação para se focar na discussão séria do como fazer e que opções tomar para ultrapassar os múltiplos constrangimentos que não deixam o país crescer e mantém a sua população num nível de vulnerabilidade inaceitável.
Aparentemente todos sabem o que fazer. Sabe-se por exemplo que:
  • Devíamos ter uma administração pública isenta, imparcial, profissional, atenta às necessidades da economia e favorável à manutenção de um ambiente de negócios atractivo.
  • Devíamos assumir uma política de atracção de investimento externo suportada em políticas que dão competitividade ao país designadamente nos domínios da segurança, no domínio legal/contractual, fiscal, energético e de transportes e comunicações.
  • Devíamos primar por um ensino de qualidade com ênfase nas ciências e na aquisição de competência linguística a todos os níveis de forma a qualificar a mão-de-obra cabo-verdiana e construir bases sólidas para o empreendedorismo e a inovação.
  • Devíamos quanto ao turismo assegurar uma outra atitude das instituições, mais positiva e criativa e da sociedade um novo engajamento e uma renovada cultura de serviço para se poder conseguir sucesso sustentável neste sector crucial para a dinâmica económica do país. 
  • Devíamos tudo fazer para que o apoio ao sector privado nacional e à iniciativa individual deixe de ser um mero slogan para passar a ser um objectivo essencial para se poder ganhar capacidade endógena de criação de riqueza no país.
  • Devíamos fazer uma aposta séria nas tecnologias de informação e comunicação como actividade que permite ultrapassar os constrangimentos do isolamento e de fragmentação territorial do mercado nacional e ao mesmo tempo servir de veículo para talentos e criatividades individuais com potencial de retorno extraordinários para as pessoas e para o país.
  • Devíamos considerar vital para o futuro reorientar a mentalidade no sentido de produção de bens e serviços transaccionáveis como condição necessária para alargar mercados, obter economias de escala e criar emprego num ritmo que efectivamente diminua as taxas de desemprego no país.

Todos, o governo, a oposição e a sociedade sabem isso. O governo mostra saber isso quando impregna o seu discurso com referências ao empreendedorismo, inovação e desenvolvimento do sector privado. A oposição critica falhas nesses domínios e promete medidas mais eficazes para as superar. A sociedade é bombardeada todos os dias com notícias de fóruns, workshops, feiras e outros eventos em que pelaenésima vez se promete que agora é que se vai fazer o take off, ou tirar as amarras para a largada ou realmente mudar o chip. Na prática o que todos os dias se vê é que a Administração Pública continua partidarizada e pouco sensível ao pulsar da economia, o sector privado anda pelas nas ruas da amargura, a competitividade mantém-se baixíssima, o desemprego fixa-se em taxas elevadíssimas e o crescimento económico permanece anémico.
A questão que se coloca é se a discrepância entre o discurso do governo e os resultados que obtém devem-se à incompetência ou são consequência de uma opção bem clara: por um lado, fazer o discurso politicamente correcto e, por outro, actuar numa perspectiva diametralmente oposta em que a preocupação com o controlo e a manutenção do poder sobrepõe-se a tudo, incluindo ao desenvolvimento. Hoje é evidente para qualquer observador que o discurso que o governo faz, e que é salpicado de referências a políticas e medidas que poderiam agradar a todos, fica pela aparência. Não há acção consequente. Serve fundamentalmente para ofuscar a realidade do controlo que realmente pretende ter sobre o país e a sociedade.
Na prática, procura introduzir no tecido social, económico, cultural e até no seio dos outros partidos redes de influência através das quais as pessoas ficam dependentes do Estado, dos seus caprichos e suas preferências. Com este objectivo central em mente, os resultados só podiam ser os que se vêem actualmente no país. Em vez de gente activa, produtiva, ambiciosa e orientada para o sucesso quer-se pessoas a disputar acessos, benefícios e favores. 
A verdade é que nenhum país consegue desenvolver-se reproduzindo esse tipo de mentalidade na população. Em países com petróleo ou outros recursos que se pode simplesmente extrair da terra e vender, governos similares procuram o apoio do povo distribuindo parte da bonança. Mas mesmo aí não há garantia que a barganha dure para sempre. A coisa complica-se quando o preço internacional desses produtos, caso do petróleo, cai e a bonança fica menor. Ou no caso de Cabo Verde se a ajuda externa diminui. Vai-se então para o endividamento mas até isso tem limite. Neste particular o relatório do GAO chama a atenção mais uma vez quando diz que “a redução do peso da dívida externa é crucial para o país poder ceder a mercados financeiros internacionais, à medida que a ajuda externa tradicional diminui”.
Insistir nesse tipo de governação só pode levar a retornos cada vez mais baixos em relação aos investimentos feitos e a resultados com sustentabilidade cada vez mais precária. A contínua vulnerabilidade da população rural, em particular na ilha de Santiago, mas também em Santo Antão e Fogo apesar dos enormes investimentos feitos, é prova evidente disso. A persistência do desemprego elevado e do crescimento raso também confirmam a inadequação das políticas do governo. Empresas públicas como a TACV e a ELECTRA só conseguem sobreviver imputando custos altíssimos às pessoas, às famílias e à economia do país.
Podia-se  pensar que, particularmente com sombras negras a pairar sobre a economia mundial, o PAICV, o partido no poder, mudasse de políticas. Quinze anos depois todos vêem que elas não funcionam e os resultados que apresentam não têm garantia de sustentabilidade futura. Mas o partido não muda. Em vez disso opta por aumentar até o paroxismo o ritmo da propaganda e os actos de ilusionismo que suportam a ficção que luta a todo o momento para impor ao país. É só ver como o Sr. Primeiro-ministro e os seus ministros têm circulado pelas ilhas e comunidades emigradas neste ano de 2015. Até dá para perguntar se, de facto, andam mesmo a governar.
Em todos os discursos, mesmo quando finge reconhecer insuficiências actuais, a mensagem principal é que tudo vai bem e que as falhas são provavelmente de outros e de causas externas sobre as quais não têm controlo. Põe, por exemplo, a Dra. Leonesa Fortes, o sétimo ministro da Economia dos governos do PAICV, num frenesim por todas as ilhas particularmente as do Norte do arquipélago, prometendo fazer nos últimos meses do mandato o que não se fez nos últimos quinze anos. E sabe-se perfeitamente que ela não tem força política para mudar nada como, aliás, os outros seis ministros que a antecederam não tiveram. Muito menos tê-la-ia num hipotético governo da Dra. Janira Almada. De facto, com todo este lançar de poeira nos olhos das pessoas, o PAICV está a reafirmar que vai continuar igual a si próprio. Faz o discurso do desenvolvimento que se lê nos manuais de economia ou se ouve nos corredores das instituições internacionais, mas depois “pensa com a sua própria cabeça” e põe o controlo e o desejo de poder acima de tudo. Por isso é que os resultados são os que tem.
Cabo Verde paga o preço de ser governado por quem, no fundo, bem no fundo, acredita que o país não é realmente viável. Que o país sempre há-de viver da ajuda externa. Convém-lhe que seja assim porque dessa forma poderá continuar a ter o controlo dos recursos e a manter o poder. Há países autoritários e não democráticos como a China e a Singapura que usam a bandeira do crescimento económico acelerado para legitimarem o seu regime. O PAICV mesmo quando governou como partido único nunca quis promover as exportações como as Maurícias e fomentar o turismo como as Seychelles para atingir taxas elevadas de crescimento e diminuir rapidamente o desemprego. Sempre preferiu o controlo.
Nas eleições que se aproximam, há que dizer um basta a isto. O mundo à nossa volta não espera. Todos os dias está a ficar mais rigoroso nas exigências e menos generoso nos seus gestos de solidariedade. A Espanha vai deixar o GAO porque, segundo o relatório citado, mudou de política de cooperação e vai ter um menor foco na ajuda não reembolsável. Essa é a tendência que os outros, mais cedo ou mais tarde vão seguir. Por isso, um outro rumo tem que ser tomado para que o cabo-verdiano finalmente encontre o caminho para a sua felicidade e prosperidade na Liberdade. Parafraseando o presidente Obama: O nosso momento é agora
*Intervenção na Assembleia Nacional, no dia 24 de Novembro de 2015

Entre o discurso e a prática

O governo fez aprovar na Assembleia Nacional algumas alterações à lei dos benefícios fiscais que tinha entrado em vigor em 2013. A ministra de Finanças justificou a proposta de lei com o argumento, entre outros, que irá beneficiar mais de 80% das pequenas e microempresas. A reacção das câmaras de comércio foi rápida e contundente. A de Sotavento foi categórica em afirmar que “os resultados da aplicação da lei foram nulos”. A de Barlavento assegurou que as alterações agora apresentadas “não estimulam o investimento”. 
A racionalização do sistema de benefícios fiscais serve fundamentalmente dois propósitos: permite, por um lado, que o Estado tenha imediatamente mais receitas com a eliminação dos benefícios fiscais já demostrados desnecessários e também daqueles outros cuja lógica para a sua criação perdeu-se há muito no tempo. Por outro lado, permite criar estímulo a actividades em sectores chaves da economia na perspectiva de atrair investimento externo, ganhar mercados, conseguir economia de escala e abrir-se para a inovação de produtos e processos. A ideia é o Estado perder inicialmente em receitas com os benefícios que estender à actividade económica e ganhar a prazo com mais vencimentos a serem tributados, mais lucros das empresas a serem declarados e mais IVA recebidos das múltiplas transacções em ambiente de crescimento acelerado e de baixo desemprego.
Naturalmente que para se obter melhor efeito dos benefícios fiscais a proposta de lei devia dirigir-se aos sectores com maior potencial de crescimento e de empregabilidade. Exportações e turismo saltam logo à vista. A realidade porém é muito diferente. Nota-se por exemplo que, quando instada a exemplificar aplicações da lei, a ministra das Finanças escolhe o caso da senhora do Paul que queria adquirir um fogão e um frigorífico para as suas produções caseiras de doces, frutas cristalizadas e licores. Ora, não é concentrando os benefícios fiscais nos sectores não transaccionáveis que se vai conseguir que os seus efeitos multiplicadores tenham o maior impacto na economia nacional.
Aliás, uma das supostas vantagens que a nova lei tem em relação às leis anteriores é de não distinguir entre investidor nacional e investidor estrangeiro. Mas é um falso problema até porque o quadro das leis de investimento criado nos anos noventa da estruturação da economia do mercado serviu bem até ser substituído pela actual lei de 2013. Grandes investimentos na indústria e no turismo foram feitos nesse quadro. A questão central é se o governo deve de forma privilegiada incentivar o sector de bens e serviços transaccionável ou não. Sabe-se das experiências de outros países que é dinamizando esse sector que o país tem possibilidade de crescer rápido e criar um número de postos de trabalho que efectivamente baixe o desemprego para níveis aceitáveis. Portanto, é uma questão de opção política do governo determinar qual dos sectores quer efectivamente incentivar: o transaccionável ou não transaccionável. De onde vem o capital, se do nacional ou do estrangeiro não interessa realmente.
Um outro factor que contribuiu também para a falta de resultados é a alta rotatividade dos ministros da Economia – sete ministros numa década e meia, nos governos do PAICV. Dificilmente se conseguiu a articulação necessária com outras medidas de política para ter resultados palpáveis. Os sucessivos ministros não eram pesos pesados da política no seio do governo e face à rigidez das posições vindas da ministra das Finanças dificilmente podiam fazer prevalecer as suas posições. A postura considerada pouco dialogante da ministra das Finanças por diversos representantes do sector privado certamente que não ajudou.
Porém, a maior dificuldade poderá ser de natureza ideológica. Para os grandes investimentos em geral de capital estrangeiro foram criadas “barreiras” que inicialmente eram de 20 milhões de contos e sucessivamente passaram a 10 milhões e agora a 5 milhões de contos para ter acesso a benefícios fiscais. Para as pequenas e microempresas não há preocupação real em saber de onde vem o investimento e disponibilizam-se benefícios fiscais sem verificar a dimensão dos eventuais ganhos na economia nacional. A preocupação com o crescimento rápido da economia não parece ser real. Até agora as autoridades têm-se mostrado confortáveis com o crescimento anémico que desde 2011 o país tem registado. Quando confrontados com a quase estagnação, culpam a crise mas mantêm o mesmo rumo que até agora lhes permitiu tirar dividendos eleitorais.
   Editorial do jornal Expresso das Ilhas do dia 2 de Dezembro de 2015

sexta-feira, novembro 27, 2015

A demissão

A ministra Sara Lopes demitiu-se. O Primeiro-ministro alegou questões pessoais, mas o mais provável é que questões políticas sérias estejam por detrás dessa decisão. Vêm logo à mente a crise por que passa a TACV ou a tragédia que foi a morte dos 15 passageiros e tripu­lantes do navio Vicente.
Na véspera, dia 23 de Novembro, discutiu-se na Assembleia Na­cional o relatório da Comissão de Inquérito sobre o desaparecimento do navio Rotterdam e o afundamento do navio Vicente. Os partidos da oposição nas suas intervenções desfilaram uma sucessão de erros ou falhas cometidas por várias instituições do Estado que deviam cui­dar da regulação e da segurança marítima e exigiram que o governo e particularmente a titular da pasta assumisse a responsabilidade pelo acontecido. O governo apoiado pela sua maioria insistiu no erro hu­mano como se a constatação de falha humana em alguma manobra específica ilibasse as autoridades do facto de não terem sido atentas e rigorosas em momentos anteriores. No dia seguinte houve aparente­mente um volte face. O PM comunicou a demissão da ministra. Sabia como esse facto seria interpretado politicamente. As explicações pos­teriores de que as razões foram pessoais não colhem.
Pode-se é pensar que os motivos por trás da resignação da minis­tra não ficam por aí. Ocorre imediatamente o que se passa na TACV. Sara Lopes tinha sob a sua tutela sectores importantes como as infra­-estruturas, a economia do mar e os transportes aéreos assim como os chamados cluster do mar e de aeronogócios e a TACV. Todos sectores sensíveis e susceptíveis de neles se desenvolverem situações politica­mente complicadas considerando o impacto que têm na vida das pes­soas e na economia nacional e o facto de terem na sua direcção pessoas politicamente bem posicionadas. O caso da TACV é paradigmático. O facto de nos últimos tempos de muito escrutínio público e crítica à TACV a ministra da tutela ter-se primado pela ausência foi sintomáti­co. Algum braço de ferro estaria a acontecer em que parece ter saído vencida a ministra.
A disputa pela liderança no PAICV deixou sequelas no governo. Di­ficilmente poderia ter sido diferente. Eram candidatas duas ministras. Cristina Fontes Lima tinha o apoio da maioria dos membros do go­verno, mas quem ganhou foi a ministra Janira Hopffer Almada. Na sequência da eleição, José Maria Neves deixou de ser líder do partido, mas continuou Primeiro-ministro e manteve os ministros nas mesmas pastas entre as quais a nova líder do partido. Todos pretenderam que nada tinha acontecido, mas, na realidade, algo mudou radicalmente. O PM deixou de ser quem legitimamente dá direcção política ao partido que suporta o governo. E essa separação do PM e do líder do parti­do não podia deixar de causar tensões no governo com consequências para a sua coesão e eficácia.
Uma moção de confiança poderia ter sido uma via para se contornar a insólita situação de substituir o líder do partido a mais de um ano do fim da legislatura. Segundo os especialistas, uma moção de con­fiança “é um instrumento de reforço político da posição do governo e da coesão e solidariedade da maioria parlamentar-governamental”. Optou-se porém por deixar a mesma equipa mas já sem a solidarie­dade de outrora e sem os instrumentos de coesão. Naturalmente que nessas circunstâncias as tensões tendem a aumentar, a eficácia gover­nativa diminui consideravelmente e mais cedo ou mais tarde alguns ficam pelo caminho. Os ministros têm provavelmente evitado esse des­fecho pelo menos até agora com espírito de militância e engajando-se a maioria num frenesim de viagens pelas ilhas e aparições na comuni­cação social que mais parece configurar uma campanha eleitoral an­tes de tempo. Entretanto, os problemas vão-se acumulando e tensões internas acabam por vir à superfície. Talvez terá sido o que se passou com Sara Lopes.
Com a saída de Sara Lopes, o PM assumiu a pasta e chamou Maria de Jesus Mascarenhas para o coadjuvar. Não nomeou um outro mi­nistro como seria de esperar, tratando-se de sectores tão importantes para o país. Com isso mostra que realmente todo o governo já está em modo de gestão. E não deve ser de hoje. De facto, sem uma direcção política focalizada no PM pode-se gerir, mas não se pode realmente go­vernar de forma plena. Ou seja, provavelmente esteve-se todo este ano de 2015 com o governo a meio gás. Não é aceitável que um país com os problemas tem se veja com um governo com problemas de coesão interna, com solidariedades divididas, com eficácia reduzida e com a direcção política algures entre o primeiro-ministro e a líder do partido.

Editorial do jornal expresso das Ilhas de 24 de Novembro de 2015

sexta-feira, novembro 20, 2015

Liberté, Egalité, Fraternité

O horror da noite de 13 de Novembro em Paris veio mais uma vez relembrar o poder crescente de indivíduos, agindo ou não em grupos, de semear destruição e de provocar perda de vidas inocentes nas sociedades de hoje cada vez mais urbanizadas. Protagonistas nos actos de terrorismo são em geral jovens perturbados ou alienados que, por razões várias, se deixam levar por uma ideologia de morte que deles pode fazer, a qualquer momento, um bombista suicida ou um assassino sem piedade. Confrontadas com uma violência inaudita, as sociedades com uma tradição liberal e democrática sentem-se pressionadas para encontrar o equilíbrio certo entre o exercício da liberdade e a necessidade de segurança.
O de terrorismo procura, pela força do medo que inspira, demostrar que afinal a civilização e o apego aos valores da liberdade não passam de um verniz ténue. Pode-se fazê-lo estalar a qualquer momento, revelando a barbárie igual para todos. Neste braço de ferro, justifica-se que por todo o mundo vozes se façam ouvir em uníssono e mãos se interliguem numa cadeia universal proclamando solidariedade com os que sofrem e reafirmando que nenhum acto de terrorismo será capaz de deitar abaixo os ganhos civilizacionais da liberdade, dos direitos humanos e da democracia.
O acelerado passo da globalização nas últimas décadas tem transformado a vida de muitos milhões de pessoas em todo o planeta. Tensões diversas têm surgido em consequência das mudanças na sociedade, designadamente em matéria de género, advento da modernidade e das migrações que põem povos, culturas e religiões em contacto próximo. Situações de guerra, pobreza, desigualdade social e discriminação tendem a exacerbar essas tensões, abrindo caminho para reacções de natureza violenta que encontra justificativos em interpretações fundamentalistas das religiões.
Cada vez mais se constata que uma espécie de fundamentalismo islâmico manifestando no jihadismo tem tomado o papel do inimigo principal dos valores liberais defendidos nas democracias modernas. Assume o papel que outrora ideologias da extrema-esquerda levaram ao terrorismo na Europa e na primeira metade do século conduziram ao fascismo, ao nazismo e ao comunismo no seu ódio à liberdade e à democracia. Também como elas no passado, o fundamentalismo islâmico constitui um atractivo grande para jovens desesperançados deixados de lado, seja nas políticas de assimilação cultural adoptadas pela França ou na aposta feita pelo Reino Unido no multiculturalismo. São esses e outros de outros países com problemas similares que andam a engrossar as fileiras do chamado Estado Islâmico e que já se provou participam em actos horrendos de terrorismo nos seus países de origem ou de acolhimento como aconteceu na sexta-feira, 13 de Novembro, em Paris.
Procurando explicações para o falhanço, em maior ou menor grau das políticas de integração social de comunidades diferentes em termos étnico- políticos praticadas na Europa e noutros países, consta-se que muitas geram nos jovens uma atitude que tende a extrapolar exigências e reivindicações em detrimento de responsabilidade. Políticas de assistencialismo e outras que favorecem a dependência quando associadas a acções ideológicas intoxicantes que se concentram em temas de humilhação histórica, escravatura e opressão colonial, racial, religiosa ou civilizacional favorecem o desenvolvimento de um forte sentimento de vitimização. O caminho da vitimização acaba, a prazo, por levar ao desespero, à perda da auto-estima e ao desenvolvimento de um sentimento de impotência e tem um potencial enorme de se transformar no viveiro perfeito para o surgimento de esse tipo de guerreiro frio e sem piedade.
Porque as condições são reproduzíveis em todo o mundo, nenhum país está imune, e a possibilidade de surgimento de potenciais jihadistas no seu seio é algo sempre a dar a devida consideração. Em Cabo Verde grassa uma cultura em certos círculos que extrapola temas de vitimização. Também mesmo na comunidade islâmica há quem ache complicado que alguns jovens cabo-verdianos convertidos ao islamismo se mostrem atraídos pelas versões mais radicais do Islão. A via para sair da situação deve ser uma de inclusão efectiva e de fazer as pessoas sentirem-se responsáveis pelas suas vidas e não enredá-las em sistemas de dependência que hoje as faz grata e amanhã as deixa no desespero.  
Neste momento de solidariedade para com as vítimas do massacre de Paris é de maior importância não ceder à tentação de sacrificar a liberdade em nome da segurança. Com uma deriva securitária ganhariam todos os inimigos da liberdade, mas nem a própria segurança ficaria beneficiada.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 17 de Novembro de 2015

terça-feira, novembro 17, 2015

Renovação e listas de deputados

Ulisses Correia e Silva em declarações ao jornal asemana diz que tem mandato para renovar as listas dos deputados e que está determinado e firme a fazê-lo. Muito bem. Não explica quais os objectivos dessa renovação para além de preenchimento de quotas de mulheres e jovens e de se ver livre de “veiguistas” que causam quezílias internas. Diz-se ainda que a renovação vai trazer uma nova estirpe de deputados chamados de tecno–políticos. Com essa inovação esdrúxula vê-se logo que os restantes deputados, os não tecnos, vão ter de fazer um esforço maior para não cair nos estereótipos maledicentes de deputados que só levantam o braço ou bebem água engarrafada. Também com tecno-políticos na bancada provavelmente poder-se-à dispensar com o quadro de conselheiros e assessores que a Assembleia Nacional põe à disposição dos grupos parlamentares para fornecer aconselhamento e suporte técnico-político aos deputados.

Mas navegar em clichés complicados que alimentam uma cultura anti-parlamentar é o resultado da absorção de partes da narrativa do PAICV pelo MpD . O PAICV sempre teve problemas com a democracia representativa e não perde oportunidade para descredibilizar o seu centro vital que é o parlamento. Faz isso provocando crispação política, exacerbando a polarização partidária e pondo em questão o modelo de representação. O MpD engoliu o isco e pôs-se a questionar o modelo de representação existente e os seus próprios deputados. Curioso que a vontade de renovar não chegou ao líder parlamentar Fernando Elísio que deve ser o único líder parlamentar no mundo a trabalhar com  três lideranças diferentes do partido (Jorge Santos, Carlos Veiga e Ulisses Correia e Silva). Por aí pode-se ver que a deriva contra os actuais deputados não é tão inocente. E que a contestação do actual grupo parlamentar, um dos centros fundamentais da integridade do legado do partido e da sua defesa, serve alguma dinâmica faccionista. Só assim é que se justifica que o processo político de substituição dos actuais deputados fosse aberto há pelo menos dois atrás, com efeitos devastadores na coesão e eficácia do grupo parlamentar.

Inicialmente, para o processo de renovação falou-se de eleições primárias mas acabou-se por ficar com as sondagens para escolha de deputados. Primárias implicariam debate e concorrência aberta dentro partido e isso claramente não interessa. De qual maneira, a opção pelas sondagens faz do MpD o único partido que recorre a elas para preencher lugares de deputados em listas plurinominais.

Sondagens que, por um lado, não são úteis nem são sérias. Não são úteis porque além de custosas não se aplicam a cabeças de lista onde talvez alguma notoriedade e empatia do candidato poderiam trazer benefícios eleitorais. Não são sérias porque sabe-se à partida que para o eleitor num sistema eleitoral de listas fechadas e de disciplina partidária o que conta é o partido e o candidato a primeiro-ministro.

Por outro lado as sondagens propostas constituem uma farsa e escondem um cambalacho. É uma farsa como forma de selecção de deputados quando logo a partida a escolha directa do presidente recai sobre 40 candidatos a deputado (10 cabeças de lista nos círculos nacionais,  6 nos círculos da emigração,  15 candidatos com competências tecno-políticas, 6 nas listas de Santiago Norte e 3 nas listas do Fogo), muitos deles presumivelmente em posições legíveis. Se acrescentarmos ainda os dirigentes que também por escolha da direcção não devem ser sondados, constata-se que, de facto, só uma minoria dos deputados eleitos resultará das sondagens. É um cambalacho porque é evidente que por detrás da suposta escolha pessoal directa do presidente irão estar todos os interesses obscuros que vem deixando o MpD no desnorte e ineficaz na luta contra a hegemonia do PAICV.

Conclusão, a renovação que se está a fazer é um embuste. A renovação que o partido precisa para que continue capaz de servir o país em todas conjunturas só podia ser feita num quadro de respeito pela diversidade e o pluralismo nas estruturas partidárias. 

segunda-feira, novembro 16, 2015

Viagens oficiais ou políticas?

Neste 2015 a anteceder o ano de todas as eleições – legislativas, autárquicas e presidenciais – as viagens dos políticos cabo-verdianos pelas ilhas e pelas comunidades emigradas ganhou um ritmo vertiginoso e com isso chamou a atenção para um fenómeno curioso e perturbador. Visitas sucedem-se sob os mais diversos pretextos. Ou há uma obra a inaugurar, uma outra que se está a lançar a primeira pedra ou ainda outra que se foi lá ver o andamento dos trabalhos. Servem também para o efeito fóruns, conferências e seminários nos quais é considerado imprescindível a presença de uma alta entidade da república para abrir ou fechar os trabalhos. Outras vezes são os municípios a contribuir para a movimentação dos governantes requerendo a sua presença nos festivais, festas de santos padroeiros, dia de município, etc. Aparentemente para se dignificar qualquer evento, mesmo aqueles já muito repetidos e rotineiros, é fundamental contar com a presença de uma grande figura nacional.
Imagine-se o custo extraordinário dessas viagens não apenas em termos de passagens, mas do tempo gasto nas deslocações e das horas de trabalho perdidas pelos funcionários disponibilizados para receber e acompanhar o governante. E como na generalidade dos casos a acção oficial do político há uma outra suplementar de natureza político-partidária ou eleitoralista fica uma dúvida: qual é que deu origem à outra? Se foi a acção oficial é que proporcionou a acção partidária publicitada ou se foi o contrário? Em qualquer dos casos, deverá o Estado comportar com a totalidade da factura?
A última visita do Primeiro-ministro José Maria Neves a Angola tem um quê de insólito. Segundo o PM, ele foi a Angola despedir-se das comunidades emigradas. Aproveita para fazer o lançamento do seu livro. Na mente das pessoas fica naturalmente a dúvida qual foi de facto o interesse do Estado que o levou lá. Parece mais uma viagem privada. A situação fica menos  clara quando decide adiar o regresso marcado para o dia 8 de Novembro porque estando lá recebe convite oficial para participar nas comemorações de 40º aniversário da independência de Angola e aceita. Tal decisão, envolvendo autoridades estrangeiras a dirigir convites em cima da hora deixa no ar a ideia de que não houve uma ponderação adequada na organização da visita. E se isso não acontece é legítimo questionar se são justificados os custos da viagem e de estadia assumidos pelo Estado.
Em todas as democracias põe-se o problema de distinguir entre o que nas deslocações e visitas dos políticos é matéria oficial e o que é matéria partidária. Em tempo da campanha eleitoral ou de pré-campanha é pior. Ser capaz de fazer essa distinção nessas circunstâncias ganha uma especial importância. Desde logo porque quem está no poder e tem acesso a recursos do Estado pode ganhar vantagem considerável articulando imaginativamente a sua agenda governamental com a agenda partidária enquanto os partidos na oposição ficam limitados na sua acção pelos seus parcos recursos. Neste caso, porém, a própria eficácia da governação é prejudicada na medida em que fica fortemente subordinada à agenda eleitoral do partido no governo. Para imprimir algum controlo no processo há países que definem os custos das deslocações para melhor os imputar directamente no partido no governo quando em tempo de campanha. O caso dos EUA é paradigmático a esse respeito. As deslocações do presidente em missões de natureza político-partidária e eleitoral são parcialmente pagos pelo partido.
O caso complica-se quando a confusão de agendas não se limita ao período eleitoral ou pré-eleitoral. Aplica-se a toda a extensão da legislatura porque cada vez mais está-se a tornar hábito fazer campanha a todo o tempo. Antes dizia-se que nas câmaras municipais nunca se deixava de fazer campanha ao longo de todo o mandato. Agora o fenómeno aplica-se a todos os outros titulares de órgãos de poder político. Naturalmente que a democracia sofre com isso. Há muita ineficiência e muito desperdício na utilização dos meios do Estado. Estar em campanha permanente partidariza excessivamente a acção do Estado, cria desigualdades em termos de protagonismo das forças políticas, mina a vontade colectiva de fazer as transformações que se impõem e de encontrar soluções consensuais para os problemas do país.
Desde 2014 que Cabo Verde está em ambiente de campanha. Primeiro foi a disputa para o cargo de presidente do PAICV em que se confrontaram dois membros do governo e o líder parlamentar. Na época souberam articular as suas agendas oficiais com as agendas políticas. Naturalmente com custos para todos. Neste ano de 2015 quando o país atravessa uma situação difícil a nível de crescimento económico e de emprego ao mesmo tempo que a dívida púbica sobe para níveis quase estratosféricos não há resposta sistemáticas do governo. Todos os governantes parecem estar focados na conquista de mais um mandato de cinco anos sem muita preocupação nem com hoje nem com o amanhã. A situação do país e a as exigências do mundo cada vez mais complexo e menos generoso impõem que a atitude seja diferente.
 Editorial jornal Expresso das Ilhas 11 de Novembro de 2015 

Carta ao Presidente do MpD

Respondendo a várias solicitações e na sequência da publicação de extractos da carta dirigida ao presidente do MpD no jornal asemana -  uma fuga de informação que só pode ter vindo de algum deputado ou dirigente do MpD, os únicos a quem foi dado conhecimento do documento  - disponibilizo aqui a carta enviada a 17 de Outubro. Quero acrescentar que nada do que foi ali exposto é desconhecido do presidente e dos outros órgãos do partido. Ao longo dos anos tenho em todas as ocasiões que se propiciaram, designadamente de reuniões do grupo parlamentar e encontros conjuntos do grupo parlamentar do MpD e do presidente ou da comissão política do partido fiz questão de levantar as questões aí trazidas.

A Carta,

Exmo. Sr. Presidente do MpD
                                                                       Praia, 15 de Outubro de 2015

Esta Carta é para manifestar ao Sr. Presidente do MpD a minha estranheza perante o facto objectivo de até agora não considerar necessário qualquer diálogo com o Deputado nacional pelo círculo de S. Vicente, Humberto Cardoso, quando as eleições se aproximam, estratégias políticas são debatidas e consultas abrangentes incluindo dirigentes, militantes e simpatizantes se fazem com vista a definição de planos de acção. A gota de água foi a visita do presidente do MpD a S. Vicente, em conjunto com o grupo parlamentar do MPD.

Repetiu-se o padrão de ignorar os deputados, em particular os eleitos pelo círculo, na feitura do programa que, aliás em vários aspectos, só contribui para alimentar os piores estereótipos contra os deputados. Inexplicável, porém, foi a atitude do presidente do MpD que também não sentiu qualquer necessidade de conversar sobre a situação actual de S. Vicente e como poderá ou deverá a ilha posicionar-se nos próximos embates eleitorais, em grupo ou individualmente. Pelo menos isso não aconteceu com o deputado Humberto Cardoso . Talvez convenientemente se esteja a dar crédito à crença saloia de que quem vive num local é que sabe e compreende o que aí se passa, como se fosse possível captar a complexidade da realidade pela simples observação do óbvio.

O inexplicável talvez se torne inteligível se tivermos em consideração que há muito se notam sinais inequívocos de uma estratégia para marginalizar certas personalidades dentro do MpD. Os sinais, nos últimos anos, de alguma tensão no seio do MpD, que aparecem na imprensa escrita e online, têm invariavelmente tomado a forma de ataques desferidos contra os chamados “veiguistas” ou contra o próprio Carlos Veiga. Ilustrativo disso foi a manchete do jornal anação de 17 de Setembro em que fontes da comissão política, no dizer do próprio jornal, deixam saber quem são os cabeças de lista escolhidos e, ao mesmo tempo, passam a informação que Carlos Veiga e José Luís Livramento estão a disputar o cargo de presidente da assembleia nacional. Anteriormente, Veiga tinha aparecido em supostas disputas com o Hélio Sanches nas listas de Santa Catarina e posteriormente nas listas de deputados por S. Vicente. O objectivo claro é de diminuir a imagem pública de quem é o líder histórico do MpD, envolvendo-o em lutas intermináveis por lugares “menores” quando se sabe que ele foi Primeiro-Ministro e foi candidato a Presidente da República. 

Não são novidade para si, Sr. Presidente, essas tácticas vindas de certos sectores dentro do MpD. É só lembrar o que aconteceu consigo em 2004 em que deliberadamente o partido foi descarrilado e na sequência perdeu duas eleições legislativas. Volvidos dez anos a solução que o partido encontrou para a liderança foi aquela que já tinha sido identificada em 2004. É de perguntar se alguém se responsabiliza pelo desnorte desses anos de “travessia do deserto”.  Muitos dos então protagonistas tinham sido os mesmos que ajudaram a descarrilar o país em 2001 nas legislativas e nas presidenciais, colocando-o numa trajectória directa para situação actual de estagnação económica, desemprego, pobreza, desigualdade social e endividamento extremo.

Já nas portas de um novo ciclo eleitoral a estratégia de marginalização não pára. Pelo contrário, visiona dar o seu golpe final no que claramente é uma política de revanche, que procura eliminar a diversidade e pluralidade dentro do partido e roubá-lo do dinamismo interno que, em ultima instância, é fundamental para a manutenção hoje e amanhã do seu papel no sistema político cabo-verdiano, seja no governo, seja na oposição. As tácticas como bem conhece o Sr. Presidente passam por lançar estruturas e militantes contra deputados. E isso é feito com base em desinformação, intrigas e alimentação da ignorância quanto à natureza do nosso sistema eleitoral e do funcionamento do grupo parlamentar. E aqui é evidente que a liderança tem falhado.

Os militantes têm o direito de conhecer os seus dirigentes e o papel que desempenham na máquina que se quer funcionalmente diferenciada e competente para poder estar a altura de responder à realidade complexa e sempre em transformação que é a vida política do país. A liderança do partido não pode por omissão em momentos crucias de esclarecimento dos militantes induzi-los a avaliar a contribuição de deputados e dirigentes por critérios de celebridade e notoriedade que só podem exclusivos para avaliação de candidatos em concursos de “miss” e afins. A responsabilidade da liderança é maior nas nossas condições específicas de Cabo Verde em que a Constituição e o sistema eleitoral exigem que deputados sejam eleitos em listas plurinominais de iniciativa exclusiva dos partidos políticos.

Não havendo esclarecimentos reina a intriga, a mentira e os golpes baixos com consequências que não se deixam de manifestar na eficiência e eficácia da acção partidária e na imagem do partido que é projectada para fora. A sociedade não deixa de notar a ascensão e o protagonismo de notórios intriguistas e de jogadores vindos de todos os tabuleiros. O efeito no partido é duplo: no eleitorado, fragiliza a confiança das pessoas no partido quando vêm a ascensão de pessoas dúbias; no interior estimula militantes que têm ambições legítimas de maior protagonismo a juntarem-se ao jogo das intrigas e dos tráficos de influência, afectando negativamente o contributo honesto e criativo que podiam eventualmente dar à organização.

 Outra táctica utilizada é o cultivo do paroquialismo. Alimenta-se a hostilidade de dirigentes locais contra dirigentes nacionais residentes na Praia. Com isso mina-se a base política dos mesmos, põe-se em causa a diversidade de origem e de vivências nos órgãos partidários e empobrece-se o partido num país arquipélago, quando se sabe que o MpD sempre defendeu que as ilhas são iguais e devem estar devidamente representadas nos órgãos nacionais. Curioso é como se conjuga com a norma estatutária que estabelece que os membros da comissão política devem residir na capital. Esta táctica dá corpo a uma aliança aparentemente estranha de “centralistas” e “localistas” que ao posicionarem-se preferencialmente contra os originários das ilhas capazes de influenciar no centro do poder na capital matam vários coelhos de uma cajadada.

Para os centralistas a contenção na concorrência de ideias, a eliminação de competidores e a possibilidade de passagem de agendas escondidas interessa mais do que manter a diversidade e a dinâmica de pensamento do partido. Para os localistas a fragilização das personalidades nacionais oriundas da sua ilha reafirma-os como actuais e futuros caciques locais. O cómico é que todos se apresentam como regionalistas quando na realidade o substrato base das políticas anunciadas é redistributiva, e nisso não se diferenciam muito das políticas do PAICV, e o que realmente se procura excitar e tirar proveito político é o ressentimento de uns contra outros. O absorver generalizado do discurso do Onésimo Silveira por muitos e recentemente absorvido por certos sectores do MpD é paradigmático a esse respeito. E é claro que não deixa de afectar a credibilidade da imagem do MpD como partido da autonomia local, da descentralização democrática e da aposta no desenvolvimento a partir de uma bem sucedida inserção dinâmica na economia mundial.    

Por tudo isso, Sr. Presidente do MpD não posso deixar de tomar a sua falta de disponibilidade como uma tomada de posição política. Tomada de posição essa que não faz muito sentido enquanto presidente do MpD que tem a responsabilidade de mobilizar as energias do partido para ganhar as eleições que se avizinham ao mesmo tempo que assegura que o partido conserve a sua diversidade, dinâmica intelectual e pujança política em qualquer cenário no futuro, seja no governo ou na oposição. Procurando ser objectivo e sem falsa modéstia, é evidente para qualquer observador da vida política caboverdiana o papel que tenho ininterruptamente desempenhado nestes 25 anos de construção de democracia. A não pertença aos órgãos dirigentes não tem sido um óbice para uma intervenção política permanente como, conselheiro de primeiro ministro, parlamentar, colunista de vários jornais, bloguista e nos últimos 5 anos como orientador e editorialista de um semanário que tem como referência os mesmos valores liberais defendidos pelo MpD.  Essa é a parte pública da intervenção. O presidente do partido tem a obrigação de conhecer a parte que se verifica dentro de casa em matéria de análise política, estratégia e de produção de meios de combate político. Uma das responsabilidades de quem dirige uma organização é de conhecer a contribuição dos seus militantes e dirigentes estando ou não presente nas reuniões. Nada portanto pode justificar que se tente colocar-me ao lado do processo político.

Existindo uma estratégia que vem de longe de afastar certas personalidades do partido e de dar satisfação aos recentemente regressados com uma história de adversários vingativos do partido, é óbvio que não posso tomar qualquer tentativa de diminuir o meu papel no partido como algo inócuo ou resultado de dinâmicas chamadas de renovação. É de facto uma acção política de hostilidade que obviamente conduz a uma reacção, também política, enérgica só limitada pelo meu desejo de manter a integridade política que sempre norteou os meus passos desde sempre no MpD, defendendo o seus princípios, o seu legado e a democracia e, em caso algum, aliando a inimigos do sistema democrático .

Escrevo estas linhas, Sr. Presidente para relembrar que mesmo na política há certas linhas que não podem ser ultrapassadas. Como dirigentes do MpD, hoje e no passado, nós todos temos a responsabilidade de assegurar que na democracia caboverdiana haverá sempre uma possibilidade de alternância. Que teremos sempre presente, operacional e credível um partido alternativo capaz de responder ao chamamento do povo cabo-verdiano. É na defesa da capacidade do partido em manter a sua diversidade, pluralidade e dinâmica interna que me alevanto contra o que configura uma estratégia que não serve o partido, não serve o país e que, mesmo não querendo, conflui para a realizar o sonho Hegemónico do Paicv que ele partilha com os seus irmãos, ex-partidos únicos, mascarados de libertadores da pátria, que pontificam em Luanda, Bissau e Maputo.

O MpD não foi criado para ser apresentado por nenhum partido hegemónico como objecto/ prova da existência da democracia cabo-verdiana. Construímos a democracia, o Estado de Direito e trouxemos o país de volta à civilização que se revê no respeito pela dignidade humana, garante os direitos fundamentais e dá ao Estado o papel de criar as condições para que cada um procure a sua felicidade e traga prosperidade para si e a sua família. Temos um papel fundamental a manter no sistema político cabo-verdiano como governo e como oposição. Não podemos permitir que lutas internas diminuam ou eliminam a diversidade de percursos e a pluralidade de pensamentos que existiu desde dos primórdios. Do presidente do MpD em cada momento do seu percurso espera-se que garanta que não será assim hoje, nem amanhã.

Espero do Sr. Presidente um posicionamento e uma resposta. Estamos na política e nela devemos continuar em quaisquer circunstâncias mas sempre fiéis aos princípios e valores que escolhemos defender na nossa vida e que coincidentemente, e não é por acaso, são os que historicamente definem o MpD, e devem por ele ser defendidos.

Cumprimentos.

Humberto Cardoso

  

sexta-feira, novembro 06, 2015

Democracia Autoritária



Vinte e seis anos após a queda do Muro de Berlim (9 de Novembro de 1989) assiste-se à emergência do que alguns já chamam de democracias autoritárias. A Terceira Vaga da Democracia que, a seguir a queda do Muro e do império soviético tinha feito desaparecer regimes totalitários e autoritários em todos os continentes num processo tão rápido e tão fatal que já foi chamado de “extinção leninista”, parece ter perdido o ímpeto. Putin na Rússia e Erdogan na Turquia são dois exemplos notórios de como a experimentação democrática iniciada nos anos noventa tem sofrido nos últimos anos uma deriva autoritária. O mesmo já está a acontecer na Hungria e poderá vir a verificar-se na Polónia na sequência das eleições da semana passada. Constatam-se nessas sociedades um domínio dos mídias por um partido, normalmente pela via da autocensura, uma disponibilidade do poder em manipular a seu favor situações de conflito, o exacerbar do nacionalismo e de questões identitárias e uma disposição das autoridades em pôr em causa o primado da lei. A democracia nessas condições não passa de uma mera fachada. 
Vários factores podem estar na origem dessas derivas. Desde logo, a fragilidade das instituições democráticas que para se consolidarem têm uma luta tremenda a travar contra a cultura política iliberal herdada dos regimes anteriores. Também o facto de a sociedade civil que na maior parte das vezes é incipiente ter dificuldades em se afirmar, enfrentando em muitos casos um Estado ainda cioso do seu domínio sobre a vida económica, social e cultural do país. A coroar todos esses constrangimentos convive-se mal com a ideia da igualdade de todos perante a lei e com a exigência de que o Estado deve subordinar-se às leis e prestar contas. Se não houver uma evolução positiva da sociedade e da economia que contrarie a acção desses factores, tarde ou cedo haverá uma inflexão no processo de consolidação democrática e as portas ficarão abertas para cenários mais ou menos autoritários e de partidos hegemónicos. Já está a acontecer em vários países e nenhuma democracia, em particular as mais recentes, está livre de uma involução similar.
Cabo Verde já vai com 15 anos de governo de um mesmo partido. Em si mesmo não é um mal, até porque não há nenhum impedimento constitucional, mas sabe-se que mesmo em países com forte tradição democrática a falta de alternância política aumenta o risco das instituições serem afectadas negativamente. Prejudicadas são, de imediato, a isenção e a imparcialidade exigidas à função pública. Segue-se a partidarização da administração pública. Se havia dúvidas disso as questões à volta do Fundo do Ambiente são elucidativas.
A longa estadia no governo enfraquece os mecanismos de responsabilização. Assiste-se permanentemente a uma espécie de batalha campal entre forças da oposição e vozes da sociedade, por um lado, e o governo, pelo outro, para apurar responsabilidades em qualquer matéria. Perante algo que corra mal seja um naufrágio, relocalização de pessoas no Fogo, morte de gado, alocação de fundos autónomos ou problemas na TACV ninguém quer assumir responsabilidade. O governo tem uma particular forma de resposta sempre que confrontado. Segue uma espécie de rotina: começa por declarar que a responsabilidade é de todos para logo acrescentar que o governo já fez a sua parte e que toda ela está bem feita. Não explica porquê há maus resultados, mas sente-se o aumento da crispação política à volta da questão. Invariavelmente o governo que saiu há quinze anos atrás é trazido à baila e acaba por ser culpabilizado pelos problemas de hoje. O efeito é duplo sobre a sociedade. As pessoas aprendem a calar-se para não serem identificadas com a oposição. Por outro lado, constatam que, para quem tem Poder, a lei e as regras estabelecidas não têm que ser cumpridas. Os ganhos para a paz e justiça que o Estado de Direito democrático promete esfumam-se por ai. Inevitáveis são os estragos no tecido social e na confiança entre as pessoas.
Há quem argumente que uma democracia mais autoritária na linha de Singapura ou do Ruanda pode acelerar o desenvolvimento. O problema é que para cada caso do tipo Ruanda há múltiplos casos do tipo Zimbabwe em que o desenvolvimento continua uma miragem. No caso de Cabo Verde em que a preocupação central do governo é com o controlo e a manutenção do poder, dificilmente qualquer deriva autoritária podia compensar ou legitimar-se em ganhos de crescimento, bem-estar e desenvolvimento para todos. Não se iria fazer a aposta nos ingredientes necessários para isso: a autonomia das pessoas, a iniciativa individual e o respeito escrupuloso pela lei.
 Preocupante é notar o uso de outros ingredientes designadamente os nacionalistas e identitários para ganhos políticos. O Estado até parece que já adoptou uma ideologia oficial pela frequência com que Amílcar Cabral é referenciado nas intervenções do primeiro-ministro e de outras entidades oficiais. A insistência na ideologia de libertação e a secundarização da liberdade e da democracia na hierarquia de valores não deixa de criar uma tensão permanente com a Constituição cujos princípios, baseados na defesa da dignidade humana, são frontalmente opostos. Tais desenvolvimentos não constituem um bom augúrio para o futuro da democracia principalmente se um quarto mandato consecutivo vier a precipitar um quadro hegemónico de poder.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 4 de Novembro de 2015 

sexta-feira, outubro 30, 2015

Objecto ou sujeito?



Já há muito que se tornou evidente que crispação política, excessiva polarização partidária e pressão política directa sobre indivíduos e grupos sociais são os maiores constrangimentos à participação cidadã em Cabo Verde. O ambiente de crispação inibe intervenções de qualquer natureza na esfera pública, designadamente as cívicas e académicas. A polarização partidária exacerbada pela actuação de um Estado e de uma administração pública por todos reconhecida como partidarizada não deixa muito espaço para a sociedade civil respirar. A pressão política no dia-a-dia convida ao conformismo, ao desenvolvimento do clubismo político e à contenção na expressão de opiniões.
Todos esses factores convergem para dissuadir as pessoas de exercerem a sua cidadania de forma livre e plena. Afectadas são também os “media” cuja missão é informar e provocar intercâmbio de ideias na sociedade. O impacto é ainda sentido por exemplo nas organizações associativas que procuram criar para si espaços próprios e autónomos de convivência, de participação cívica e de solidariedade e vêem-se sujeitas a pressões de várias espécies. A questão que se coloca é se a situação actual corresponde a alguma etapa no processo evolutivo da democracia cabo-verdiana ou se é algo que é deliberadamente reproduzido para potenciar ganhos políticos.
Se se assume que é uma etapa, alguma vontade poderá ser criada para a ultrapassar. Mas se, como é o caso, há satisfação oficial das autoridades com a realidade do momento, o mais provável é que se queira mantê-la e reproduzi-la ao longo do tempo. De facto, nota-se que muito da acção política é dirigida para manter a crispação. Todos os dias descobrem-se novos pontos de fractura que permitem identificar quem é “nós” e quem são “eles”. Tudo parece servir para isso, Amilcar Cabral, barragens, Chã das Caldeiras e até a própria chuva. No mesmo sentido vai o esforço de rotulagem política. Ao tentar abarcar todos, inibe muitos particularmente os interventivos. Passa a ser uma arma e uma forma de calar os críticos.
Na corrida para o desenvolvimento, há uma opção fundamental que países e governos devem fazer. Se fazem dos seus cidadãos objectos passivos das políticas e acções estatais ou se os colocam em posição de sujeitos do seu próprios desenvolvimento, armados da sua criatividade, energia e vontade de prosperar. No primeiro caso, o Estado gere grande parte da economia nacional incluindo a ajuda externa e empréstimos para garantir algum rendimento e levar benefícios diversos às populações mas os resultados são típicos de países que vivem de rendas, ou seja, crescimento baixo, desemprego e futuro precário. Um custo associado é o autoritarismo crescente do Estado, as limitações no exercício da cidadania e o lastro que se acumula enquanto o assistencialismo e outras formas de dependências efectivamente corroem a vontade e a energia da nação.
No segundo caso que é dos países que conseguiram realizar um desenvolvimento sustentado é mais do que claro a importância da liberdade, do exercício de uma cidadania plena e das condições institucionais para que cada indivíduo esteja em posição de dar o maior de si próprio para a sua prosperidade e a da sua família e contribuir para a riqueza nacional. Os governos nesses casos são avaliados pelo que podem disponibilizar às pessoas para que elas próprias possam produzir, criar e realizar. O processo político aí tem um papel muito claro: perante uma realidade sempre em transformação deve poder encontrar soluções novas e inovadoras, corrigir erros, e assumir e exigir responsabilidades. Evita-se por isso a crispação política, a excessiva polarização partidária e o intervencionismo estatal que só dificulta e aumenta custos e coarcta a iniciativa das pessoas.
Os acontecimentos da semana passada vêm lembrar como ainda em Cabo Verde está-se longe do modelo e da atitude que noutras paragens provaram que podem levar ao desenvolvimento. Continuam as cerimónias oficiais de entrega de casas, no quadro do programa “Casa Para Todos”, com rendas resolúveis a partir de 750 escudos por 25 anos para apartamentos que custaram mais de 2 mil contos. O debate sobre a situação da justiça e a interpelação sobre o fundo do ambiente evidenciaram mais uma vez a inquietante tendência do governo em não responsabilizar-se por nada, em não reconhecer quaisquer falhas e em não proceder de forma a corrigir eventuais erros. A campanha movida nas redes sociais por destacados activistas do PAICV contra a comentarista da TCV e colunista do Expresso das Ilhas, Rosário da Luz, mais uma vez mostrou as marcas de quem não quer cidadãos interventivos e críticos na esfera pública. A decisão da TCV em dispensá-la na sequência dessa campanha deixa a impressão forte e inquietante de que tais acções são efectivas.
Já devia ser evidente que é um erro grave e insustentável manter os cidadãos como simples objecto das políticas do Estado. Acaba-se sempre por ferir a liberdade e a democracia e o país não prospera como devia. Só quem se rege pelo desejo absoluto do poder é que insiste nesse caminho. Legitimidade e vitória nas urnas devem ser ganhas não pela via restritiva do condicionamento da vontade política mas sim pela capacidade de produção de soluções inovadoras em ambiente de competição livre de ideias e projectos de futuro e em que restrições à cidadania plena não existam.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 28 de Outubro de 2015

sexta-feira, outubro 23, 2015

Governar com boa-fé



Faz impressão observar semana após semana a movimentação pelas ilhas do primeiro-ministro José Maria Neves, acompanhado de dois, três ou mais ministros a mostrar obras, a inaugurar obras e a prometer obras. Santo Antão foi a escolhida na semana passada. Coincidência conveniente, a ilha foi também palco de uma sessão da abertura do novo ano político do partido no governo. Considerando a intensidade dos eventos programados, imagine-se os gastos em tempo, meios e recursos do Estado para criar o ambiente de euforia e de festa. Pena que depois dessas passagens fulgurantes ficam as simples constatações dos agricultores quando lamentam:“Com toda a água que está a ser mobilizada em Santo Antão, com toda esta produção agrícola, o que é que vamos fazer com os produtos, se não temos mercado”. É que a ilha, depois de milhões de contos gastos, continua a perder população, a aumentar os níveis de pobreza e a ser incapaz de criar uma base sólida de crescimento.  
Governos enamoram-se das obras mesmo quando não dão os resultados pretendidos ou não produzem o prometido efeito de arrastamento na economia. É difícil resistir aos seus encantos. A obra parece sonho realizado, é sólida e não poucas vezes grandiosa. Só que  frequentemente fica aquém do que com entusiamo se disse do seu potencial no dia da inauguração. Despois de seiscentos milhões de contos de investimento em obras e infraestruturas nos últimos quinze anos, Cabo Verde não tem muito a mostrar quanto ao crescimento económico, diversificação da economia e criação de emprego. Nos últimos anos a economia nacional tem ficado por níveis de crescimento médios abaixo dos 2 % e não há muitas razões para acreditar que será muito melhor no futuro, tendo em conta o seu nível de endividamento público e a falta de competitividade externa da sua economia. Para conter o défice orçamental e travar o crescimento da dívida pública vem-se reduzindo drasticamente os investimentos públicos.
Com o investimento público a cair e o investimento privado inibido, entre outras razões, pela percepção de riscos macrofinanceiros, dificilmente a economia poderá trilhar o caminho rumo à prosperidade que o PM insiste em prometer para 2030. O problema é que, mesmo com os resultados tão longe das expectativas criadas, o discurso político não muda, a actuação do governo continua a seguir o seu caminho imperturbável e as promessas para o futuro assemelham-se demasiado com as que já tinham sido feitas no passado. É como se ninguém tivesse aprendido nada com as experiências anteriores ou retirado qualquer ilação da metodologia seguida em fazer as opções, na definição de prioridades e no encadeamento de medidas e políticas que aumentariam a probabilidade de sucesso e de satisfação das expectativas criadas.
A história comparada de várias economias mostra que não há uma fórmula certa e única para se criar a riqueza das nações. De entre os vários factores que concorrem para o sucesso na consecução desse objectivo destacam-se a qualidade das instituições e das infraestruturas. Mas enquanto governar para criar o ambiente institucional adequado não é tarefa muito glamorosa e está sempre sujeita à resistência de interesses escondidos, já governar com olhos postos em obras  pode constituir uma tentação fatal. A diferença de percursos, por exemplo, de Portugal e Irlanda antes e depois da crise é revelador das consequências da governação num e noutro sentido. Menos dotada de infraestruturas mas com instituições de maior nível, a Irlanda soube crescer depressa antes da crise e rapidamente reiniciou a retoma depois dela. Portugal com infraestruturas de última geração não viveu a dinâmica que se aproximasse da do Tigre Celta mesmo no tempo das vacas gordas e ainda está por recuperar da crise. Em Cabo Verde a aposta no betão, além de não ter produzido um efeito de arrastamento na economia que se traduzisse em crescimento económico, deixou de rastos o sector privado nacional, em particular o sector da construção civil. A atenção nas obras não deixou que se tomassem as medidas certas e tempestivas para melhorar o ambiente de negócios e a competitividade de Cabo Verde.
Continuar a prometer obras e infraestruturas da mesma forma como se fez no passado recente tem agora um problema adicional. Cabo Verde provavelmente já ultrapassou o limite da dívida e não pode endividar-se mais. As promessas de mais obras dispendiosas nestas condições não são totalmente honestas. Insistir nessa forma de fazer política além de criar mais frustração leva as pessoas a se conformarem com o que tomam como declínio inevitável da sua cidade ou da sua ilha. Já se sente isto em vários pontos do país. É uma realidade que gera muito ressentimento, abre caminho para políticas de vitimização e não deixa que as pessoas vejam a causa real dos seus problemas e se prontifiquem para agir em consequência. 
A próxima campanha eleitoral que vai ter como pano de fundo um contexto nacional e internacional difícil devia ser aproveitada para se resgatar a prática da governação honesta. Propaganda e actos de ilusionismo não devem ser a principal interface da relação dos governantes com os cidadãos e com a sociedade em geral.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 21 de Outubro de 2015