sexta-feira, maio 05, 2017

Consensos necessários

Na corrida para as eleições legislativas de 2016 todas as forças políticas pareciam convergir na necessidade de reforma na Administração Pública (AP). Uma reforma que teria pelo menos duas vertentes: despartidarização e mudança de atitude para com a economia, o mundo empresarial e os utentes dos serviços do Estado. Discursos e intervenções nos meses que antecederam o embate eleitoral reconheciam na postura da AP o efeito travão sobre a iniciativa individual e empresarial, o impacto negativo da partidarização sobre o ambiente de negócios e o não contributo para a competitividade do país. Tudo levaria a crer que independentemente de quem fosse o vencedor nas eleições as necessárias reformas iriam ter lugar. Quem governasse poderia eventualmente chegar a acordos com os outros partidos e mobilizar apoio transversal na sociedade no que toca às medidas de política, ao “timing” para as implementar e na definição das prioridades. 
Infelizmente não foi assim. Na semana passada duas iniciativas, uma do MpD, proposta de lei das incompatibilidades na AP, e outra do PAICV, projecto de lei do uso do concurso para ingresso na Administração Pública, não foram aprovadas no Parlamento. Com o recuo, adiou-se a possibilidade de ter uma AP facilitadora do crescimento e sensível à urgência na criação rápida de empregos. E manteve-se a AP centralizadora, absorvida nos seus procedimentos e métodos e com a postura perante os utentes de quem faz favores em vez de prestar serviço. A mesma estrutura do Estado que o modelo de reciclagem da ajuda externa tinha criado e que claramente não se adequa ao novo estádio em que o desenvolvimento deve ser sustentável e dinamizado pelo sector privado. Sem as reformas, a AP em vez de ser instrumental no processo de facilitação e regulação do crescimento e do desenvolvimento, incorre no risco de se manter o foco de querelas e de jogos de interesses com vista ao controlo do poder e a possibilidade de distribuição de benesses.
O recuo na reforma da Administração Pública acontece quando já se somam sinais de possível agitação sindical no futuro próximo. E facto é que sem reforma da AP e sem paz social dificilmente o país conseguirá dinamizar a economia de forma a dar a satisfação desejada na criação de empregos e no aumento dos rendimentos das pessoas. Um Pacto para o Crescimento e Emprego entre o Estado, os sindicatos e o patronato devia ter sido um dos objectivos estratégicos do governo a atingir logo nos primeiros meses quando, saído vitorioso do ciclo das três eleições, detinha considerável peso político. É de não esquecer que os 15 anos anteriores da governação foram no domínio sindical de uma tranquilidade surpreendente, sem agitação significativa e muito menos greves paralisantes. O mesmo poderá não acontecer nos próximos tempos, particularmente quando se sabe que os anos de contenção reivindicativa não se justificaram em aumento de rendimento dos trabalhadores e do número de pessoas empregadas.
De facto, os últimos cinco anos foram de estagnação económica, alguns de crescimento negativo do rendimento per capita (2013, 2014), e com taxas de desemprego elevadas, associadas a muito subemprego e a aumento significativo da população inactiva. Até por causa disso, hoje as expectativas são altas e mais excitadas ficaram com as promessas eleitorais de criação de emprego, 45 mil pelo MpD e 15 a 25 mil por ano pelo PAICV. Mas se não se ultrapassar os constrangimentos por detrás do crescimento anémico da economia dificilmente vão-se concretizar. Por isso é que seria importante ter um pacto tripartido - Estado, sindicatos e patronato - para dar tempo e abrir caminho a melhorias significativas na competitividade e no ambiente de negócios com baixas nos custos de factores, de transportes e de contexto e com alterações nas relações laborais e ainda permitisse trabalhar consensos em matéria de atracção de investimentos, da produção para exportação e de desenvolvimento do turismo. Pena que não se viu a necessidade de garantir a paz social nos próximos anos como um dos objectivos prioritários a atingir. Mas talvez haja tempo para se chegar a um acordo que permita que se faça dos próximos anos o quinquénio do grande impulso no crescimento e no emprego em Cabo Verde.
Ultrapassar a “armadilha” dos países de rendimento médio, traduzida na quase impossibilidade de sair da estagnação económica depois de anos seguidos de crescimento, não é tarefa fácil. Exige, em geral, concentração de esforços, capacidade de sacrifício para fazer as reformas necessárias e ganhar eficiência e também clarividência de liderança e pro-actividade na formulação e implementação de estratégias que articulem a economia nacional com cadeias de valor viradas para mercados em expansão na economia mundial. Com o país nos limites do endividamento público, mostra-se fundamental que o Estado seja bastante parcimonioso nos projectos que autoriza. Nesse sentido deve ser proactivo em aliciar investimentos prioritariamente para onde no país, por um lado, seja menos custoso mover gente, facultar energia e água, resolver problemas de saneamento e escoar produtos e, por outro, exista a expectativa de  maior efeito no arrastamento da economia nacional.
Não será tarefa fácil construir consensos quanto à necessidade de priorizar ilhas, regiões ou sectores da economia que a curto prazo possam se constituir em motores de crescimento assim como não tem sido fácil em relação à reforma da Administração Pública e à necessidade da paz social para se atingir os níveis de crescimento e de emprego desejados. Mas são os consensos indispensáveis para o país deixar a encruzilhada em que se encontra e trilhar o caminho da prosperidade. Compreende-se que para responder a anos de estagnação e retrocesso se queira impor uma lógica redistributiva. Não deve ser, porém, à custa da lógica produtiva que visa criar riqueza no país. E quando vier a prosperidade há que assegurar que beneficiará a todos. 
         Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 3 de Maio de 2016

sexta-feira, abril 28, 2017

Opções e compatibilidades

A intenção expressa do Governo de isentar de vistos a cidadãos de países da União Europeia e do Reino Unido provocou um vendaval de protestos em alguns sectores de opinião. O governo justifica a decisão com o crescimento dos fluxos turísticos que irá provocar. Argumentos contrários variam nos detalhes, mas em geral denotam hostilidade a uma isenção de vistos a cidadãos europeus. O facto de esses mesmos fluxos turísticos contribuírem crescentemente para a economia do país, para a criação de emprego e para aumento do rendimento é aparentemente atribuído menor importância quando comparado com o facto de os cabo-verdianos não terem isenção de vistos para estadias curtas no espaço Schengen.
Independentemente de se saber se a medida de isenção de vistos é, em termos de custo/benefício para o país e de satisfação dos turistas, a melhor via para facilitar a vinda de turistas para as ilhas, não deixa de ser revelador a forma como se faz a sua contestação. É apresentada em roupagens “identitárias”, defendendo a “dignidade do povo” e reclamando “reciprocidade de vantagens”. E enquanto os argumentos são esgrimidos não se vislumbra qualquer preocupação em como se poderá estar a pôr em causa as relações complexas com o espaço europeu que é aquele com quem são mais profundos e abrangentes os laços comerciais e de onde vêm o grosso das remessa dos emigrantes, da ajuda externa, do investimento directo estrangeiro e dos turistas. Uma atitude que contrasta fortemente com a complacência com que se encara a relação com a região ocidental africana (CEDEAO). Não obstante, os acordos existentes e de décadas de supostos esforços de integração, o comércio regional não descola, mas a livre circulação de pessoas, na prática e em números significativos, só acontece do continente para as ilhas, com aumento contínuo da população oriunda dos países da CEDEAO.
Aí não se vê o princípio de reciprocidade com vantagens que constitucionalmente as relações internacionais do país, incluindo o acordo de livre circulação na CEDEAO, deviam ter em devida conta. Aparentemente, neste caso, os sentimentos sobrepõem-se aos interesses do país enquanto, no caso da isenção de vistos para cidadãos europeus, há quem esteja disposta a sacrificar os interesses directos e imediatos dos cabo-verdianos na luta pelo desenvolvimento no altar de pretensos sentimentos forjados e formatados por uma ideologia pan-africanista já completamente datada. A pergunta que legitimamente todos os cabo-verdianos deviam colocar é por que razão o país até hoje não conseguiu isenção de vistos em estadias até 90 dias no espaço Schengen. Países recentes como Timor-Leste e ilhas e arquipélagos na Ásia, nas Caraíbas e na África (Maurícias e Seicheles) conseguiram-na. A resposta talvez seja o facto de Cabo Verde ter uma fronteira permeável com países africanos que por razões múltiplas não gozam dessa mesma isenção de vistos. Se assim for, torna-se evidente que o maior obstáculo em se conseguir circular na Europa com maior facilidade é precisamente o acordo de livre circulação na CEDEAO. E enquanto o acordo existir e/ou se manter o estado actual das coisas em que não se dá garantia de ter fronteiras seguras seria de bom-tom, em termos de honestidade e seriedade, que os governantes e outras forças políticas deixassem de alimentar ilusões de livre circulação para breve na Europa. Todas as opções têm custos e benefícios. A diferença é que em certos casos como é o do acordo de livre circulação na CEDEAO, os custos são completamente desproporcionais em relação aos eventuais benefícios.
Num mundo de clivagens raciais, étnico-linguísticas e religiosas, as características culturais e humanas de Cabo Verde podem constituir uma significativa vantagem competitiva. Para além do clima aprazível e das ofertas de sol e mar, o país está em condições de propiciar aos turistas um ambiente sem tensões raciais e sem choques culturais. Para muitos turistas do Norte da Europa, da Alemanha e do Reino Unido alguns dos destinos tradicionais na bacia do Mediterrâneo já não parecem tão interessantes devidos aos riscos crescentes do terrorismo e hostilidade das populações. Pode ser a oportunidade para Cabo Verde com as suas características únicas oferecer-se não só como destino turístico alternativo, mas particularmente para acomodar os muitos pensionistas que a cada ano que passa procuram viver os seus tempos de reforma num ambiente tranquilo e seguro. Pressupõe, porém, que haja compreensão da importância em se dinamizar o turismo e a imobiliária residencial especialmente se estiver associada à prestação de cuidados de saúde dirigidos à terceira idade, e um comprometimento colectivo nesse sentido.
 Para isso Cabo Verde não pode continuar a passar a imagem de um país dividido, inseguro da sua própria identidade e com mágoas em relação a outros povos que vem sendo projectada, desde o anúncio da decisão do governo em isentar de visto turistas europeus, às vezes de forma aberta, outras vezes do forma velada, em debates calorosos no parlamento, na comunicação social e nas redes sociais. Infelizmente, não é a primeira vez que isso acontece. Viu-se algo similar quando foi do anúncio do acordo cambial em 1998 que estabelecia a ligação do escudo cabo-verdiano ao escudo português e posteriormente ao euro. Não era de repetir, mas parece que ainda há forças na sociedade cabo-verdiana que vêm nas medidas de aproximação à Europa oportunidade para fazer política na base de divisão.
A simples troca de ideias quanto à melhor abordagem para potenciar ainda mais o fluxo de turistas rapidamente baixa o nível, muda o tom do debate e faz lembrar as lutas antigas em que os autoproclamados defensores da africanidade se mostravam demasiado prontos em acusar os outros de assimilados ou de terem sido comprados por interesses estrangeiros. Na actual encruzilhada em que país procura o melhor caminho para crescer, criar emprego e propiciar mais rendimentos às pessoas, não é da perniciosa divisão entre “nós” e os “outros” que o país necessita. Precisa, sim, é de um esforço conjunto de todos para fazer valer as vantagens únicas que o país detém e com a sua utilização inteligente encontrar os caminhos para a prosperidade e o desenvolvimento sustentável. 
           Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 26 de Abril de 2016

sexta-feira, abril 21, 2017

Interesses e não sentimentos

A relação entre Cabo Verde e Europa veio mais uma vez à baila em pronunciamentos de entidades nacionais e estrangeiras. O primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva numa reunião na ilha de Malta disse meio a brincar que a entrada de Cabo Verde para União Europeia podia compensar a saída do Reino Unido. Reacções múltiplas surgiram de vários quadrantes com destaque para o artigo do deputado europeu Ribeiro e Castro e pelas declarações do ministro português dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva, todos de apoio ao aprofundamento da parceria de Cabo Verde com a União Europeia (UE). Nas redes sociais e nos comentários dos jornais online mais uma vez saíram à frente os “africanistas” contra o que consideram tentativas recorrentes de certos sectores e de alguns intelectuais de se aproximar da Europa em detrimento da África. O ex-presidente da república Pedro Pires a partir de Marrocos numa conferência organizada pela Mo Ibrahim aconselhou que com a UE Cabo Verde procurasse ter boas relações e com a África pusesse como objectivo a integração económica.
 Um indicador importante de como e com quem Cabo Verde se situa e se relaciona no mundo pode ser encontrado nos dados do comércio externo. O INE na sua última publicação aponta que no ano 2016 o país importou 79% das mercadorias da Europa enquanto da África só se chegou a 3,2%. Quanto às exportações, 97,4% dirigem-se para Europa e 0,6% tem como destino países africanos. Se acrescentarmos a esses dados o facto de que grande parte das remessas de emigrantes, da ajuda ao desenvolvimento, do investimento directo estrangeiro e das centenas de milhares de turistas têm origem na Europa fica evidente qual é a profundidade e abrangência dos laços que ligam Cabo Verde a esse continente. Com outros países certamente que existem relações económicas e outras que importa sempre aprofundar no interesse da nação cabo-verdiana. Não é razoável que se queira focalizar atenção, energia e recursos numa integração com uma região que mesmo após 40 anos de independência ainda não se conseguiu ir além de algumas centenas de milhares de contos em trocas comerciais com possível prejuízo de uma exploração mais exaustiva de relação multifacetada com a Europa cujo potencial de crescimento se revela cada dia maior.
Por razões ligadas a conjunturas históricas específicas, o Cabo Verde independente afirmou-se como país africano e procurou activamente integrar-se na África via um projecto de unidade com a Guiné-Bissau que não se concretizou e foi dado como morto ao fim de cinco anos. Depois desse falhanço não se conhece iniciativa nos dez anos do então governo que resultasse em passos concretos no sentido de integração para além da retórica político-ideológica de caracter pan-africanista que foi introduzida depois da independência nacional. Nas décadas seguintes também não se adiantou muito apesar das tentativas de estabelecimento de ligações marítimas e de algumas iniciativas sem sucesso de privados na internacionalização das suas empresas para os países mais próximos e na criação de circuitos de exportações para produtos nacionais. Ou porque realisticamente não era possível, ou por não houve medidas de política consentâneas com a retórica político-ideológica, o facto é que as trocas comerciais não passaram do nível quase residual que têm hoje e os cabo-verdianos, não obstante a aproximação, não passaram a conhecer melhor a sociedade, os negócios e a cultura dos países e povos vizinhos.
Dizia Lord Palmerston, um primeiro-ministro inglês do século XIX, que “as nações não têm amigos ou aliados permanentes, só têm interesses permanentes”. Cabo Verde não deve permitir que questões identitárias, ideologicamente criadas, se coloquem no caminho da realização dos seus interesses. É evidente o potencial de crescimento económico que existe no aprofundamento de uma relação estratégica com a Europa. Uma relação aliás que nem deve ser vista logo à partida na perspectiva de mobilidade, ou seja, de facilitação da emigração de cabo-verdianos. A exemplo do que se conhece da construção da União Europeia, convém que a livre circulação venha depois dos vários países já terem ganho maior crescimento e mais emprego com o aprofundamento de integração das respectivas economias. Evitam-se assim desconfianças, mal-estar e ressentimentos. O foco deve estar na identificação de interesses que conjuntamente podem ser realizados juntos com vantagens para todos.
A procura em crescendo de Cabo Verde pelos europeus para gozar uns dias de sol e praia e também para conhecer outras atracções que as ilhas oferecem não deve ficar simplesmente entregue à sua dinâmica própria e aos interesses dos actuais operadores. Deve ser potenciada no sentido da criação de estadias mais prolongadas e com maior impacto na economia nacional. Uma possível via para isso seria procurar estender a Cabo Verde o conhecido fenómeno da fixação de pensionistas britânicos e de outros países do Norte da Europa no Algarve, no Sul da  Espanha, da França e da Itália e também na ilha do Chipre. As incertezas criadas pelo Brexit podiam ser uma oportunidade para se explorar a possibilidade de criar um fluxo em direcção a Cabo Verde. São evidentes os ganhos que viriam de uma população disposta a estadias prolongadas, dotada de poder de compra e a necessitar de acompanhamento local em termos de cuidados de saúde.
A Europa lida com o problema inescapável de envelhecimento da sua população e dos custos associados que com o aumento da esperança de vida ficam mais pesados. Oferecer-se para ajudar a minorar os custos e proporcionar uma melhor qualidade às pessoas pode ser das tais parcerias que poderia pôr Cabo Verde num caminho sólido de desenvolvimento. Daria sentido a uma estratégia de atracção de investimento externo em direcção a investidores institucionais, orientaria a formação profissional para ocupações com futuro e com investimento estratégico na saúde disponibilizaria cuidados que só com os recursos actuais dificilmente se poderá fornecer aos cidadãos. O país ficaria em melhor posição de diversificar a sua economia e diminuiria a sua dependência do turismo nos moldes actuais e dos seus operadores.
Cabo Verde oferece várias vantagens designadamente a sua posição nos trópicos, o tempo de viagem aérea sem “jet lag” e também o facto de a proximidade cultural e religiosa limitar choques culturais. Garantida a segurança das pessoas, o país poderia colocar-se na posição de desenvolver, com ganhos para todos, um nicho de mercado com futuro. Para isso porém teria que mudar a atitude para criar uma cultura de serviço e não se deixar ficar pela retórica político- ideológica que tem-lhe impedido de seguir os seus reais interesses iludido por elementos pseudo identitários. 
       Editorial do jornal Expresso das Ilhas 19 de Abril de 2016

sexta-feira, abril 07, 2017

Inactivos relutantes

A divulgação pelo Instituto Nacional de Estatística dos dados do emprego em Cabo Verde é sempre momento de controvérsia. A impressão que se fica é que tendem a confundir mais do que a esclarecer. O método utilizado na recolha de informação e algumas incongruências nos dados apresentados também não ajudam. Um exemplo é tomar como empregado alguém que só trabalhou uma hora na semana de referência e que continuou a procurar trabalho nas quatro semanas seguintes.Não parece razoável nem muito útil para se ter uma ideia real da situação laboral no país. Também é de alguma forma contraintuitivo ter estatísticas a apontar para uma taxa de crescimento económico do país (3,9%) em 2016, mais do triplo do que foi o crescimento em 2015 (1,1%), e em simultâneo anunciar o desemprego a aumentar em 2,6% em relação a esse mesmo ano. 
Nos dados de desemprego de 2015 apresentados pelo INE, em Maio de 2016, tinha sido o contrário. A queda da taxa de desemprego de 15,8% para 12,4% foi anunciada quando menos se esperava. O PIB nesse ano crescera a 1,1%. A causa desta aparente falta de correspondência entre crescimento do PIB e a taxa de desemprego teria sido o aumento brusco dos inactivos em 2015. Outra vez, mas agora em sentido inverso, nota-se a variação na taxa de desemprego com a baixa do número de inactivos e consequente aumento substancial da população activa. Interessante notar um fenómeno análogo no número de trabalhadores inscritos no INPS. Em 2015, com menos desemprego, tinha passado de 41% para 35,9% e agora no ano de 2016 aumenta de 35,9% para 37,3% quando se anuncia mais desemprego. É evidente que com estes desencontros de números o panorama real do país em matéria de emprego não fica claro. E os ruídos político-partidários com as interpretações de conveniência ainda pioram o quadro, porque desviam do essencial: pôr o país a crescer e a criar emprego com qualidade e sustentabilidade.  
Uma questão de grande importância trazida pelos dados do INE é do aumento progressivo da taxa de desemprego à medida que se eleva o nível de instrução. É maior entre os licenciados do que entre os trabalhadores com instrução básica. A falta de adequação entre o sistema de ensino e as necessidades da economia foi aí comprovada. Não espanta que um significativo número de pessoas classificadas, 36,3% do total, diz que não procura trabalho porque não há emprego adequado. Imagine-se os enormes investimentos do Estado e das famílias na formação das crianças e jovens feitos durante anos que ficam sem retorno e as expectativas de realização pessoal e profissional que ficam goradas. Tudo porque não se conseguiu pôr em prática políticas públicas em domínios chaves de desenvolvimento de forma coerente, articulada e com propósitos bem definidos. São custos que vêem somar aos que paulatinamente se revelam com o esvanecer dos efeitos do ilusionismo que dominou o país por demasiado tempo. 
Num país com as condições de Cabo Verde, sem recursos naturais e como diminuta população, o mais lógico seria que se fizesse um investimento compreensivo e estratégico nos recursos humanos. Foi o que fizeram os grandes casos de sucesso designadamente Singapura, Maurícias, Finlândia, Irlanda e recentemente a Estónia. Tornaram a formação num elemento fundamental de competitividade dos seus países numa perspectiva de integração dos respectivos países em cadeias de valor com abrangência mundial. Não se deixaram cair na armadilha de querer desenvolver-se com reciclagem da ajuda externa e políticas autárcicas e de hostilidade ao investimento estrangeiro e ao turismo.  
Também diferentemente de Cabo Verde, sempre puseram o desenvolvimento do sector privado nacional no centro das suas políticas. Não se deu educação e formação a crianças a jovens mantendo bem presente a ideia que trabalho seguro e desejável é o trabalho do Estado. Excederem-se em promover a necessidade de excelência em tudo e particularmente nos estudos. Não aconteceu como em Cabo Verde que, à procura de excelência, quando repetida nos discursos como um fim a atingir, entrava em contradição com as práticas vigentes de contratação e promoção que demasiadas vezes fugiam a critérios de mérito para serem produto de favoritismo, militância político-partidária e jogo de interesses. 
Hoje, quando muitos lamentam a qualidade do ensino superior e o seu desajuste com as necessidades de mercado, esquece-se o orgulho que as autoridades há poucos anos mostravam com as dez universidades criados em menos de uma década. Deleitavam-se a antever as oportunidades que segundo eles iriam ser criadas. Importava na época era ter os jovens saídos dos vários liceus, e que não viam qualquer sinal na economia que estavam adequados para o mercado de trabalho, a prosseguir os estudos, não interessava quais. Com o diploma de licenciatura teriam trabalho. O resultado é o que se vê. 
Na encruzilhada em que se encontra o país, as perspectivas não são as melhores. Os jovens não têm as melhores competências linguísticas nem a português para não falar na competência a matemática e nas ciências que podiam torná-los atractivos numa série de indústrias e serviços com futuro garantido. O Estado, com os constrangimentos da dívida pública e outros, vai absorver cada vez menos mão-de-obra. Os investimentos no turismo e em certa indústria não exigem, em regra, muita qualificação dos trabalhadores. Os apelos dos governantes para as pessoas se auto-empregarem e serem empreendedores tem efeitos limitados. A serem ouvidos,  na maior parte dos casos só poderão resultar em empreendedorismo de necessidade porque  empreendedorismo de oportunidade exige outras condições e outro ambiente de negócios que o país ainda não tem. 
Facto é que com a mudança de governo muitos que estavam inactivos regressaram à população activa mesmo que como desempregados. Aí há alguma esperança que as coisas podem mudar. O governo deve estar ciente disso e agir para manter vivas as expectativas das pessoas e pensar estrategicamente como deve posicionar o país e adequar os seus recursos humanos para melhor integrar-se em cadeias de valor global, seja em serviços, seja em produção de bens. Para que os que agora voltaram, não caíam outra vez na desesperança dos anos atrás.  
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 5 de Abril de 2016

sexta-feira, março 31, 2017

Sair do círculo vicioso

Na semana passada o primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva anunciou alguns instrumentos de financiamento de start ups e projectos de Pequenas e Médias Empresas (PME). Falou na criação para breve de um fundo de capital de risco e do fundo de garantia soberana. Numa intervenção na Assembleia Nacional no dia 28 de Março, o ministro das Finanças acrescentou a recapitalização do Cabo Verde Garante como mais um desses instrumentos que o governo pretende disponibilizar para assegurar a partilha de riscos entre o empresário, a banca e o Estado. A promessa implícita nestes anúncios é que, resolvido o problema do capital para as empresas, a economia do país ganhará outra dinâmica. 
A questão do financiamento das empresas sejam elas micro, pequenas ou médias é tida como um dos constrangimentos de maior peso que deverão ser ultrapassados para que haja mais crescimento e mais emprego. Tanto nos governos anteriores como no novo governo constituiu uma preocupação central e uma promessa. O facto porém é que até agora não se conseguiu sucesso significativo e sustentável com os vários instrumentos criados, designadamente os fundos de pesca, crédito agrícola, microfinanças e tragicamente o Novo Banco. Raros são os casos em que não se passa do empreendedorismo de sobrevivência e da actividade informal que não obstante os benefícios pontuais que propiciam aos operadores individualmente muito pouco contribuem para resolver o problema geral do emprego, da produtividade e da competitividade do país. O caso do Novo Banco e os avultados prejuízos na ordem de um milhão e oitocentos mil contos que vai legar para o Tesouro e para os contribuintes do INPS devia ser motivo para alguma pausa antes de se avançar com mais um esquema de financiar as pequenas empresas nacionais.
O aparente paradoxo de se ter dinheiro ou liquidez nos bancos nacionais enquanto a economia está carente de financiamento fez o governo anterior aprimorar-se nas suas artes de ilusionismo para justificar por que o financiamento não chegava às empresas. Tinha prometido que as infraestruturas em construção por todo o país iriam abrir caminho para o investimento privado, mas isso não aconteceu. Pelo contrário, com as dificuldades crescentes das empresas, com os riscos macroeconómicos a aumentar à medida que a dívida pública ultrapassava os 100% do PIB até chegar aos 124% e com a economia a crescer anemicamente à volta de 1,2% do PIB os bancos mostravam-se relutantes em autorizar créditos. O governo optou então por ofuscar a realidade com iniciativas vindas do Banco Central de facilitação de liquidez que, como se veio a verificar, não resultaram porque os bancos tinham os cofres cheios. Falhada a transmissão monetária, a situação para os privados no que respeita ao acesso ao crédito ficou praticamente na mesma. A reacção política foi de justificar o fracasso com suposta má vontade dos bancos e com outras iniciativas agora na prestação de garantias que acabaram mal como se pode constatar de certos créditos duvidosos do Novo Banco que vieram a público. 
Nas discussões sobre o ambiente de negócios em Cabo Verde tende-se a realçar constrangimentos ao nível fiscal e de acesso ao crédito a exemplo aliás do que se passa nos países avançados. Mas, se nestes os efeitos das medidas políticas têm eficácia directa, aqui em Cabo Verde diluem-se no meio de outros factores que dificultam a actividade empresarial e inibem a iniciativa individual a começar pelo mercado que não só é exíguo como é fragmentado e carece muitas vezes de regulação adequada. O resultado é que a concorrência não é justa, a informalidade reina e os custos de factores, de transporte e de contexto contribuem extraordinariamente para inibir qualquer actividade ou iniciativa. Centrar na resolução do problema do financiamento ou do acesso ao crédito sem uma acção estratégica para contornar ou eliminar os muitos outros constrangimentos que se colocam no caminho dos operadores económicos poderá significar simplesmente mais um regresso a um caminho já trilhado de fundos e financiamentos que poucos resultados tiveram e muitas dívidas deixaram para depois serem assumidas por todos os contribuintes. 
A verdade é que o país precisa crescer a taxas elevadas e baixar dramaticamente o desemprego e a experiência das últimas décadas demonstra que crescimento rápido e grande número de postos de trabalho só se consegue com investimento externo e exportações. As fábricas do Lazareto em S.Vicente, a Frescomar e os resorts e hotéis da Ilha do Sal e da Boa Vista são prova disso. Criaram rapidamente milhares de postos de trabalho directos e indirectos e introduziram uma outra dinâmica económica porque investimento externo não é só capital, é também tecnologia, know-how e mercados. E sem mercados e sem competitividade não serve de muito facilitar acesso a financiamento de empresas. 
A nossa experiência recente, mesmo limitada, e a experiência de outros países demonstram sem equívocos que conseguem-se melhores resultados na política de desenvolvimento quando se articula a política de atracção de investimentos externos como uma estratégia compreensiva de dinamização do empresariado nacional. De outro modo, com desencontros de políticas e acções desarticuladas só se chega ao estado que o país se encontra hoje: a crescer muito pouco com uma dívida pesada, uma economia pouco diversificada e demasiado dependente de uns poucos operadores externos. 
                Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 29 de Março de 2017 

sexta-feira, março 24, 2017

Blame game, ou o jogo da culpa

O Novo Banco tem sido nas últimas duas semanas o foco da atenção geral do país. A resolução do Banco a sancionar a transferência dos activos para a Caixa Económica e a liquidação da parte restante, na perspectiva de ainda arranjar recursos que permitam indemnizar os trabalhadores e de minimizar perdas, desencadeou um debate público intenso na comunicação social e nas redes sociais. Muito da troca cruzada de palavras na esfera pública tem-se centrado na procura de culpados. Menos do que se deveria esperar, visa elucidar os termos em que se verificou o descalabro com vista a se evitar repeti-los no futuro. A participação de políticos no debate tende a derivar para mero  arremesso de acusações mútuas, não assumindo ninguém a responsabilidade pelo trajecto de mais de cinco anos do Novo Banco. Entretanto, aumenta-se o stock de cinismo nacional quanto à política, reforçando a ideia de que “todos têm natureza idêntica e agem da mesma forma”. 
Interessante que o jogo da culpa inicia com a afirmação imediata de uma realidade alternativa em que as razões para a criação do Novo Banco existiam em 2010 e mantêm-se até hoje. O ex-primeiro-ministro num post do Facebook veio reiterar que tomaria a mesma decisão de sete anos atrás de criar o Novo Banco. Insiste que há razões para a existência do banco, mesmo perante a realidade do falhanço da instituição ser conhecida desde o início da actividade e confirmada ao longo dos anos em episódios de perda de rácio de solvabilidade e de recapitalizações sucessivas. Na prática quer-se iludir o problema original da falta de fundamentos sólidos para a sua criação, algo sinalizado por consultores e outros intervenientes no processo, ressaltando a suposta bondade dos propósitos: financiar micro e pequenas empresas. 
Vê-se o sucesso na construção dessa realidade alternativa quando se consegue que o foco da atenção do público se mova para outros actores que supostamente teriam desviado do plano original do banco e arruinado o projecto, entre eles os gestores, os accionistas e entidades de supervisão. Com alguma imaginação pode-se incluir os clientes incumpridores e um novo governo que herdou o pré-anunciado desastre. A partir daí é fácil entrar num jogo em que cada um atira culpa do insucesso do banco ao outro enquanto os principais responsáveis passam ao largo. 
Neste quadro vem à tona problemas  não anteriormente visíveis ou se identificados quem devia agir tinha os passos tolhidos. Fala-se agora da estrutura exagerada de custos no Novo Banco, dos créditos concedidos a entidades com exposição noutros bancos, e de falta de planos de reestruturação do banco mesmo quando falhava nos testes de stress e era obrigado à recapitalização para repor rácios de solvabilidade. Ninguém com responsabilidade parecia agir decisivamente para ultrapassar definitivamente o problema mas agora culpam-se uns aos outros. Faz-se por esquecer que só  intervenção do governo anterior a vários níveis com instruções directas nuns casos, com influenciação indirecta noutros casos e ainda como força dissuasora em relação a eventuais intervenções de reposição de certos equilíbrios permitiu que uma situação como a do Novo Banco pudesse persistir durante todos estes anos. Concomitantemente quer-se ignorar a evidência que a criação do banco desde o princípio seguiu propósitos políticos eleitoralistas e que a sua manutenção serviu interesses políticos. 
Perante o desfecho inevitável do Novo Banco a partir do momento em que iniciou um novo governo aparecem agora dúvidas se se devia ter sido salvo. Compreende-se que os trabalhadores despedidos, sentindo-se prejudicados, procurem ser recebidos pelo presidente da república, pelo presidente da assembleia nacional e pela presidente do partido de oposição. Já não é tão claro que tipo de intervenção esperariam dessas entidades perante o que é decisão de uma autoridade de supervisão independente, o BCV, e a opção do novo governo em não perseguir os objectivos políticos que o outro governo tinha com o Novo Banco. O problema para todos, para a paz social e para o funcionamento normal das instituições é se a moda pega e se as audiências do género são garantidas não só aos trabalhadores de “colarinho branco” mas a todos os outros que numa circunstância ou outra se vejam em situação de desemprego ou de simples confronto laboral. 
Devia ser evidente que o país está numa encruzilhada e que terá que mover-se decisivamente para além de certas práticas e de certa atitude que dificilmente continuarão a ter respaldo nestes tempos de mudanças inesperadas e imprevisíveis na forma como se organiza a economia mundial e as relações entre as nações. O caso do Novo Banco devia ser um dos muitos alertas para a urgência das mudanças a serem realizadas. Não devia ser mais um pretexto para mais um jogo da culpa que acaba por deixar todos exaustos, mais pobres e menos conhecedores dos problemas do país e dos caminhos a serem percorridos para os ultrapassar. Há que não se deixar apanhar por práticas que alimentam uma cultura de cinismo em relação à política e aos políticos. Como se vê noutras paragens, é por aí que se promove a ascensão de líderes populistas que no processo de implantação da sua autoridade sacrificam não poucas vezes a liberdade e a prosperidade do seu povo. 
               Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 22 de Março de 2017

sexta-feira, março 17, 2017

Castelos no ar

Governar servindo-se do ilusionismo para gerir expectativas, mobilizar apoio político e conter adversários acaba sempre por terminar mal. Quando a realidade vem bater à porta são finalmente conhecidas as facturas por pagar acumuladas nos anos de construção de castelos no ar. Também fica-se a saber que o futuro poderá não ser o imaginado. O fim da ilusão não acontece porém sem que na sua esteira surjam sinais inequívocos de pobreza, desorientamento e frustração dos que foram apanhados pelo seu fulgor enquanto os promotores prosseguem a sua vida envoltos numa espécie de véu de intocabilidade. A sociedade, por sua vez, ressente-se da aparente impunidade do processo e nota-se a insatisfação nas quebras nos níveis de confiança, nas perdas em civismo e no descrédito das instituições. Após um exercício do ilusionismo como método de governação o saldo é francamente negativo para todos.
 O fim do Novo Banco é o mais recente exemplo do desmoronar de um dos vários castelos no ar que o governo anterior se entreteve a construir no âmbito da sua Agenda de Transformação. Não há muito tempo o país já tinha assistido em choque ao arresto do avião da TACV na Holanda e com particular intranquilidade às dificuldades do Programa Casa para Todos que não proporcionou todas as casas prometidas e deixou uma dívida pesada. Os problemas, porém, não ficaram por aí. Enquanto estes castelos no ar caiam com fragor outros tantos como os diferentes clusters supostamente criados para impulsionar o crescimento desapareciam sem um pio audível deixando para trás uma economia estagnada. Também o sonho das barragens mobilizadoras da água indispensável para o agronegócio que ia salvar as zonas rurais acabou por ficar encalhado em múltiplos problemas de construção, de falta de políticas para o sector agrícola e pecuário, de organização e regulação do mercado e de acesso aos mercados turísticos. Todos estes casos demonstram que deixar-se levar pelo ilusionismo, em detrimento de abordagens realistas e pragmáticas, não é o caminho que deve ser seguido. A curto prazo pode até trazer benefícios políticos mas, a médio e longo prazo, os custos serão enormes.
O processo da criação do Novo Banco é paradigmático quanto ao que acontece na construção desses castelos no ar resultantes do ilusionismo na governação. O aparecimento do Novo Banco coincide com o do lançar do Programa Casa para Todos, no ano de 2010, o ano em que o partido no governo preparava-se para disputar um terceiro mandato. A evidente conveniência política conjugou-se com a aparente necessidade de, por um lado, responder aos problemas de financiamento encontrados pelas micro e pequenas empresas e, por outro, facilitar crédito para habitação social que resultaria da concretização do Programa Casa para Todos. No parecer do BCV, citado por este jornal, as razões para a criação do Novo Banco careciam de base sólida. Não se demonstrava com estudos que certos segmentos não bancarizados da população tinham necessidade de uma instituição como o NB. Não se fundamentava que o problema estava do lado da oferta. E não se provava que os problemas de financiamento só podiam ser resolvidos por um banco, mesmo de cariz social.
Apesar de todas essas ressalvas que também foram colocadas por outras entidades o governo avançou com a criação do Novo Banco. Foi uma decisão política clara e como outras do género desde do início acumulam custos sem que se vislumbrem benefícios significativos. Interessante como nesses casos o que é definido como objectivo maior ou benefício a ser conseguido é o que menos lucra com todo o esquema montado. No caso do Novo Banco o crédito para o sector alvo das pequenas e médias empresas não chega a 5%. Não há demonstração mais clara do fracasso de todo o projecto. Também os problemas com a venda de apartamentos B e C do Programa de Casa para Todos que depois se veio a verificar  acabou por revelar que até nesse objectivo de apoiar a habitação social não esteve à altura.
Se os benefícios foram mínimos, os custos não pararam de crescer. Aos custos exagerados da estrutura empresarial juntou-se o custo resultante da pressão do Estado, por um lado, a pressionar empresas públicas em dificuldades financeiras a serem accionistas e, por outro, a forçar o INPS a avançar com capital inicial e reforços do capital sempre que os rácios de solvabilidade se mostravam abaixo dos exigidos pelo BCV. As perdas de cerca de 900 milhões de contos suportados pelo INPS na relação com o INPS não se justificam à luz dos critérios de investimento que uma entidade como o INPS deve seguir estritamente. Outras perdas institucionais designadamente de entidades públicas que para apoiar, aconselhar e supervisionar na implementação de certas políticas devem ser independentes, são muitas vezes enormes. Ficam diminuídas na sua estatura público-institucional ao se sujeitarem ou se calarem publicamente perante a evidência de que são manifestações de interesses de natureza política partidária que estão por detrás da posição do governo e não o interesse público.
A manifesta vontade de vários protagonistas em ganhar logo à cabeça com iniciativas públicas sem consideração com eventuais benéficos práticos, mas sempre muitos atentos aos ganhos políticos, tem sido o suporte para a construção do ilusionismo de castelos no ar. Mas com a dívida pública a 128,5 % do PIB e o país só a crescer a 3,6%, como na terça-feira estimou o Ministro de Finanças, depois de mais de cinco anos com uma média de crescimento de 1,2% do PIB, não há absolutamente nenhuma margem para insistir em projectos ilusórios. Num pequeno país arquipélago como Cabo Verde, realismo, flexibilidade e pragmatismo deviam guiar a acção estratégia do governo. Só com uma abordagem despida de ilusões se pode avançar, de facto, na identificação dos potenciais motores de crescimento, no desenvolvimento e melhor alocação do capital humano, na atracção do investimento privado nacional e estrangeiro, no acesso aos mercados e na melhoria da competitividade externa do país, imprescindíveis para criar emprego, produzir riqueza e prosperar. 
                           Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Março de 2017  

sexta-feira, março 10, 2017

Combater a violência policial

Onde há exercício de poder, há possibilidade de abuso. Combatem-se os abusos e limitam-se as impunidades com salvaguardas legais e institucionais que funcionam como contrapesos ao poder e também com uma consciência cívica apurada, suportada por uma imprensa livre. A democracia é o melhor dos sistemas políticos não porque as suas regras não são susceptíveis de abuso mas por que nela o Poder é de facto vários poderes que se equilibram em tensão permanente. O ambiente que daí resulta é o em que a igualdade dos indivíduos perante a lei e a defesa da dignidade humana e da liberdade estão devidamente asseguradas. Para que assim seja é fundamental que as forças de repressão na democracia que detêm o monopólio da violência sejam clara e eficazmente controladas. E em caso de abuso os efeitos devem ser identificados e reparados, os agentes responsabilizados e a força policial corrigida nos seus procedimentos e filosofia de actuação. 
Violência policial em Cabo Verde é uma realidade que não escapa a ninguém. Relatos que aparecem na comunicação social em particular na televisão são demasiado frequentes para não deixar indiferente qualquer cidadão. As justificações das autoridades em resposta às denúncias são em geral de uma fragilidade confrangedora especialmente quando procuram pôr a polícia em posição de vítima. São tomadas muitas vezes com cepticismo considerando a desproporção de força a favor da polícia e a dúvida popular tende a subsistir quanto ao que realmente se passou porque, em geral, fica-se por saber se foram cumpridas as promessas de esclarecimento cabal do assunto. Os resultados dos inquéritos quase nunca chegam a público. Não estranha pois que a percepção geral é que há violência policial nas esquadras e que suspeitas de mortes por causa dessa violência têm algum fundamento. 
Reforçam ainda mais essa percepção  casos como o de Pensamento da semana passada em que um infractor depois de alegadamente espancado por um policial e deixado ficar numa esquadra durantes mais de 12 horas morre, como consta na certidão de óbito, de “choque hipoglicémico e de politraumatismos”. A polícia, em conferência de imprensa, com imprecisões e contradições passou a imagem de estar a fugir à assunção plena das suas responsabilidades. E obviamente que repetir mais uma vez que iria instaurar inquérito interno para apurar  responsabilidades dificilmente poderia trazer algum conforto aos familiares e aos cidadãos que estivessem a seguir o caso. Um facto novo porém foram as declarações do Ministro de Administração Interna a garantir sindicâncias externas à actuação da polícia e a pedir a intervenção do Ministério Público para dirigir investigações ao caso. 
O relatório do Departamento de Estado americano sobre os direitos humanos do dia 3 de Março comunga da mesma percepção que parece existir entre o público a propósito de certas actuações da polícia. Há referências a brutalidade policial para com detidos, fala-se de casos em que não são responsabilizados os agentes e recordam-se situações em que o governo parece não ter mãos sobre as forças de segurança. O facto de ao longo dos anos esses relatórios terem repetido as mesmas preocupações deixa entender que não se está a fazer o suficiente para pôr cobro a uma prática que, sabe-se de outras experiências de abuso de poder, não encontra cura por si própria e só tende a agravar-se. A descrença na justiça que é gerada apenas retroalimenta a desconfiança entre a população e as forças policiais o que torna mais difícil o combate contra a criminalidade, põe em perigo os agentes da ordem pública e deixa indefesos os cidadãos apanhados no fogo cruzado entre polícias e bandidos. 
O aumento significativo da eficácia de todo o sistema de justiça é fundamental para recuperar a confiança na sociedade cabo-verdiana e os níveis de civilidade essenciais para uma baixa permanente do nível da criminalidade no país. Polícias, procuradores, juízes, directores de cadeia e agentes de reinserção social devem perceber que só se terá justiça efectiva com demostrações de brio e profissionalismo por parte de todos os elementos do sistema e com viva consciência de todos da importância do respeito escrupuloso pela lei e pelo processo devido (due process) em todas as situações. Corre-se em sentido contrário quando em vez de se verem como partes de um sistema, derivam para posturas de culpar uns e outros desarticulando-se e desresponsabilizando-se no processo. Pior ainda, é quando se cai na tentação de fazer justiça por conta própria porque se tem a percepção de que parte do sistema não está a fazer o seu papel e presumíveis criminosos são soltos e ficam incólumes. 
Impõe-se mudar este estado das coisas. Reequilíbrios têm que ser impostos e os órgãos de fiscalização interna e externa devem funcionar seja nas polícias, seja nas magistraturas de forma a ultrapassar a cultura corporativista que tende sempre a instalar-se e fazer valer-se para cima do interesse público nos corpos profissionais. Do Ministério Público em particular, que, como diz o Presidente da República, no discurso de tomada de posse do actual PGR, “está colocado no vértice da pirâmide de fiscalização da legalidade”,espera-se “coragem de poder desagradar e causar incómodos, (…) mesmo em relação àqueles que pensam estar acima dela, julgando que as suas acções não estão submetidas à sindicância”.  
O comunicado do Ministério Público sobre a “Morte de indivíduo detido na esquadra policial” e a conferência de imprensa do Ministro de Administração Interna sobre a mesma matéria de ontem, dia 7 de Março, marcam uma mudança de atitude no sentido que o PR apontou e que todos os cidadãos esperam. É fundamental que se avance para coarctar quaisquer tipos de abusos de poder, complacência com certas práticas e espírito corporativista para que todo o sistema judicial se ponha à altura de eficazmente e em tempo útil proteger os direitos de todos e satisfazer o desejo colectivo de justiça essencial para uma convivência na paz e na liberdade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 797 de 08 de Março de 2017.

sexta-feira, março 03, 2017

Imprensa em crise

Nas últimas semanas a problemática da crise na comunicação social reapareceu de repente na consciência das pessoas, da sociedade e do próprio Estado. Perante casos notáveis de desaparecimento de órgãos de imprensa, surgiram vozes de vários sectores de opinião a expressar preocupação com a sustentabilidade dos jornais privados e das rádios comerciais. Face ao problema, a sugestão da parte do governo de um eventual posicionamento no sentido de reforço dos órgãos públicos de comunicação social não se mostrou encorajador. Provavelmente só iria diminuir mais a base de sustentação da imprensa privada. E a verdade é que a crise na comunicação social privada não é ultrapassável com maior protagonismo do sector público. Também sabe-se que a democracia fica necessariamente diminuída e em situação de risco num ambiente em que jornais, rádios e televisões privadas não encontram autonomamente meios suficientes para se viabilizarem.
O problema de fundo com os jornais privados começa com o mercado publicitário. Depois de anos de estagnação da economia esse mercado continua exíguo e sente-se cada vez mais o peso da concorrência da rádio e televisão públicas. Os jornais aqui em Cabo Verde assim em como em toda a parte do mundo ressentiram-se bastante da quase omnipresença da televisão 24 horas/sete dias na transmissão de notícias. A isso veio juntar-se em tempos mais recentes a tendência das pessoas em se servirem de informações disponibilizadas gratuitamente na internet para se manterem a par dos acontecimentos no país e no estrangeiro. Ultimamente com a expansão rápida das redes sociais mudaram-se completamente as regras do jogo. Foi criada a possibilidade dos utilizadores de reagiram directamente e de forma imediata a acontecimentos e posicionamentos de outras pessoas sem necessidade de intermediação.
Esvaziada em boa medida da sua capacidade de mediação, a comunicação social tradicional viu-se limitada e preterida no papel de facultar aos cidadãos os meios para exercerem o seu direito de se informar, de informar e de acesso às fontes de informação. Não espanta que a crise actual seja profunda e abrangente. Encontrar soluções para a ultrapassar é de importância crucial para as democracias. A urgência nesta matéria é tanto mais quando crescentemente se perfilam no mundo forças políticas e outras que apostam na descredibilização da imprensa tradicional.
Paradigmático neste aspecto foi a acusação de “inimigo do povo” feita pelo presidente Donald Trump aos media americanos. Para mostrar que não é uma acusação para esquecer ou ser tomada como algo sem consequência é que nos dias de hoje o Washington Post mantem no cimo da primeira página a expressão Democracy Dies in Darkness, a democracia morre na escuridão. Com essa inscrição quer alertar para os perigos da ofensiva violenta que está a se verificar sob várias formas contra factos, contra a verdade e contra o pluralismo. A História mostra que tiranias de toda espécie começam por apagar a luz que a imprensa livre e plural tende a projectar sobre os actos de poder.
Com diferentes variantes e intensidade o fenómeno está a passar-se em várias democracias espalhadas pelo mundo. À medida que muitos vão ficando dependentes das redes sociais para se informarem e se posicionarem, mais vulneráveis se mostram as manipulações demagógicas, teorias de conspiração e a notícias falsas. É evidente hoje que todas as derivas populistas apontam invariavelmente o alvo para as instituições fundamentais do pluralismo: o parlamento e a imprensa privada de referência. Neste sentido, lutar contra tentações populistas também significa apoiar a imprensa privada, resistir a tentativas de governamentalização da comunicação social e tudo fazer para manter uma sociedade livre e plural onde ninguém tenha a presunção de ser detentor da verdade, possuir em exclusivo as soluções possíveis e falar pela Nação como se ela tivesse uma única voz.
 Na condição actual de Cabo Verde não é fácil manter uma imprensa livre e plural em particular na imprensa escrita. Mas sendo essencial para o funcionamento do sistema democrático é da maior importância que se encontre o devido equilíbrio entre o sector público e o sector privado da comunicação social. A Constituição da República (CR) é clara por um lado a declarar livre a criação de jornais e por outro a estabelecer um serviço público da rádio e televisão. Rádio e televisão privadas podem conseguir licenças de emissão depois de se submeterem a concursos públicos. Reconhecendo o carácter excepcional do serviço público da rádio e televisão, a própria CR impõe um pluralismo interno no funcionamento dos órgãos públicos e submete-os a um escrutínio externo estrito de uma entidade reguladora com competência para emitir perecer vinculativo no processo de nomeação dos respectivos directores.
Para se garantir porém o pluralismo externo dos vários órgãos privados há que assegurar a sustentabilidade autónoma para os mesmos sem dispensar eventuais incentivos do Estado. Devia ser evidente que nestas circunstâncias o Estado procurasse evitar que os órgãos públicos que já recebem taxas e transferências públicas também beneficiassem do mercado publicitário que todos reconhecem ser diminuto. Muito menos que acções de verdadeiro dumping se verificasse na corrida pelos escassos recursos da publicidade quando se sabe que quem está a ser subsidiado por fundos públicos melhor preço poderá fazer para aumentar quota de mercado e até eliminar o concorrente. Já o Estado ajudaria e muito com o investimento numa agência noticiosa que fornecesse a partir de todas as ilhas despachos nos diferentes formatos para uso de todos os órgãos. Fica a sugestão. Há que ultrapassar a crise de sustentabilidade da imprensa em Cabo Verde para  se evitar uma crise ainda maior no regime democrático.  
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 796 de 28 de Fevereiro de 2017.