segunda-feira, setembro 18, 2017

A ficar para trás

A decisão da semana passada da Autoridade Reguladora para as Comunicações (ANAC) em suspender o produto “D´Kel Bom” da CVMóvel suscitou reacções negativas a começar pela própria operadora de telecomunicações que estranhou em comunicado as acusações que estaria a praticar preços abaixo do preço mínimo. Da generalidade dos clientes que já se viam com um pacote apetecível incluindo voz e dados na internet, a reacção veio com particular azedume quando se viram impedidos de aceder ao novo serviço. A ANAC justificou-se realçando o seu papel na defesa do princípio da concorrência e nesse quadro com a preocupação em proteger o equilíbrio económico-financeiro dos prestadores de serviços regulados. Ao que os outros contrapõem onde é que ficam salvaguardados o direito dos consumidores a terem produtos com melhor preço e qualidade e a motivação para a inovação, factor essencial para se continuar a manter uma economia dinâmica, moderna e produtiva. 
Interrogações sobre o papel das reguladoras normalmente surgem sempre que os consumidores parecem ficar a perder e um ou mais operadores aparentam ficar em vantagem. O argumento de que se está a proteger o ambiente de concorrência não colhe completamente quando paira a dúvida se, com a medida específica tomada, não se está a prejudicar os consumidores e a pôr em causa a inovação. Garantir a concorrência justifica-se enquanto mecanismo essencial para se ter produtos conseguidos de forma eficiente, para dinamizar a economia e para propiciar ao consumidor o direito de escolha. Não é um fim em si mesmo. É mais um instrumento do progresso e de dinâmica dos mercados assim como analogamente a selecção natural é o mecanismo que possibilita a sobrevivência e a evolução da espécie. E é vendo pelos resultados que se pode avaliar se está ou não a resultar. 
É verdade que num mercado com as características de Cabo Verde foi um grande feito ter conseguido romper com o monopólio anterior da CVTelecom e abrir o espaço para a concorrência entre pelo menos dois grande operadores a Unitel T+ e a CVMóvel.  Os consumidores, a economia e o país globalmente ganharam com isso. A acção da agência reguladora ANAC foi fulcral no processo. Hoje, como bem reconhece a CVMóvel no seu comunicado, há equilíbrio de mercado com a CVMóvel detendo uma quota à volta dos 56% e a Unitel T+ à volta dos 43. Para chegar a esse ponto houve a preocupação em manter a todo o momento o equilíbrio económico- financeiro das empresas. O estabelecimento de preços mínimos serviu para isso. Com a concorrência assegurada, o problema que se coloca actualmente é como manter o sector das telecomunicações vitalizado e a contribuir para mais crescimento e maior produtividade e competitividade da economia nacional. 
Os dados do INE dos últimos dois anos têm mostrado uma queda tendencial na contribuição das telecomunicações na formação do PIB nacional. Os resultados anuais das duas operadoras têm revelado quebras significativas. Tudo aponta que as perdas no volume de negócios deriva de, entre outros factores, do facto de o negócio da voz ter diminuído consideravelmente à medida que as pessoas usam os serviços over the top (OTT) como Viber, Messenger e Whatsapp para chamadas e envio de mensagens. Nos dados estatísticos da ANAC vê-se claramente essa tendência na diminuição do serviço de voz e não se nota que tenha sido compensada com outros negócios designadamente de televisão por assinatura ou de disponibilização de conteúdos via streaming. Pelo contrário, constata-se a quase estagnação de um negócio que noutras paragens tem ganho um dinamismo extraordinário propiciando às telecoms uma outra via para rentabilizar os investimentos indispensáveis para estarem à altura de satisfazer os desejos cada vez mais exigentes e mais sofisticados dos seus clientes. Com a falta de regulação e a insensibilidade das autoridades, a pirataria digital, as transmissões ilegais e outros negócios ilícitos têm impedido que serviços legítimos de fornecimento de conteúdo consigam singrar. Todos perdem como isso, a começar pelos consumidores que ficam limitados por serviços medíocres e sem garantia, mas também empresas do sector que nunca conseguem angariar procura suficiente e o país que fica para atrás, porque sem possibilidade de retorno não há investimentos para continuar a modernizar-se. 
Há mais de uma década que se fala de economia digital, das tecnologias de informação e comunicação (TIC) e de fazer de Cabo Verde uma Cyber Island como as Maurícias. Como muitas   promessas de clusters, hubs, praças financeiras e centros de transbordo, tudo ficou no mundo da fantasia dos governantes. O sector das telecomunicações em declínio é um sinal forte de como mais uma vez uma oportunidade - a possibilidade de desenvolver uma economia digital capaz de exportar serviços através designadamente de call centers e outros BPOs, business processing operations - foi desperdiçada. E aconteceu porque ou se ficou pelos discursos, ou se definiu mal as prioridades ou não se investiu estrategicamente para educar as novas gerações e criar o ambiente necessário para desenvolver o tipo de economia que se tem revelado mais promissor em fornecer empregos de qualidade. 
Sem uma economia vibrante a fazer uso das estruturas das telecomunicações não é de estranhar as dificuldades já visíveis nas empresas do sector. E certamente que não será a agência reguladora que as vai proteger disso em nome da concorrência mas com prejuízo para os consumidores e para as inovações necessárias à modernização do país. Nas deliberações regulatórias há que haver uma ponderação adequada dos vários factores em jogo para que todos saiam a ganhar. Também impõe-se uma política mais clarividente das autoridades para que Cabo Verde não fique pelas ofertas da ZAP enquanto o mundo é conquistado pelo modelo de negócios da Netflix ou que se continue com o 3G enquanto ou outros preparam-se para o 5G em 2020 e que por causa de obstáculos diversos só recentemente se enveredou por fazer chegar a internet de grande velocidade às casas via fibra óptica.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 824 de 13 de Setembro de 2017.

segunda-feira, setembro 11, 2017

Orçamento das “soluções”

O Orçamento do Estado para o ano 2018 há mais de dois meses que é matéria de notícia nos órgãos de comunicação social e nas redes sociais. O Ministério das Finanças (MF) arrancou com uma iniciativa inédita de pedir a entidades variadas designadamente associações empresariais, partidos políticos, sindicatos e organizações da sociedade civil, contribuições para a elaboração do orçamento. Não ficando por aí, o Ministro das Finanças a partir da primeira semana de Julho e até há poucos dias passou a receber pessoalmente contributos de personalidades diversas incluindo representantes de organizações internacionais, gestores de organizações financeiras, dirigentes comunitários e agentes culturais. Ultimamente o foco mediático sobre o processo de elaboração do OE virou-se para a chamada arbitragem política onde se reúnem o ministro das Finanças e o ministro de cada pasta acompanhados dos respectivos staffs. O objectivo das audições, segundo fontes do MF, é ter um orçamento inclusivo, realista de forma a englobar as sensibilidades e necessidades do país.
O problema com este exercício que parece configurar o que se faz no quadro dos orçamentos participativos é que não está previsto na lei de enquadramento orçamental. A Constituição é clara em matéria de elaboração do Orçamento do Estado. A iniciativa é da competência exclusiva do Governo que é quem tem todos os dados sobre as receitas e as despesas obrigatórias, define políticas de consolidação orçamental, de contenção do défice e de diminuição da dívida pública, estabelece as prioridades de investimento de acordo com o seu programa e os objectivos que prometeu realizar. A Assembleia Nacional através de uma lei de enquadramento orçamental votada por dois terços dos deputados define prazos, procedimentos e competências no processo da elaboração e aprovação do OE. A importância do orçamento como instrumento central da acção governativa e da sua coerência programática é realçada pela exigência de disciplina partidária no processo de votação que o partido que suporta o governo impõe aos seus deputados. E há razão para isso: a não aprovação do OE pode levar à queda do governo e a novas eleições. 
Considerando as limitações impostas pela Constituição e pela lei, abrir o orçamento para a participação alargada de entidades e personalidades públicas e privadas não vai mudar significativamente a sua orientação, as suas prioridades e os seus objectivos. Mesmo que essa fosse a intenção do governo, as receitas limitadas e a rigidez de grande parte das despesas não deixam muito espaço orçamental para acomodar a generalidade das sugestões e contributos a ponto de todos se reverem no orçamento aprovado. Há aqui um risco político a vários títulos que o governo pode estar a incorrer com o levantar de expectativas de instituições, de operadores económicos e de vários sectores da sociedade. Se forem defraudadas particularmente num orçamento que é oficialmente apresentado como o de “soluções definitivas” para vários problemas, as consequências podem ser gravosas, eventualmente afectando a confiança, a disponibilidade em apoiar reformas e mesmo a vontade em identificar e aproveitar novas oportunidades. Aliás, já antecipando o que pode vir a acontecer, já vieram alguns avisos de representares das câmaras de comércio.  
Os múltiplos e complexos constrangimentos do país à partida não aconselham que seja no processo de elaboração do orçamento que se deva procurar a melhor via para reunir consensos, criar vontades e mobilizar a sociedade para consecução de objectivos. No texto inicial da Constituição de 1992 e mesmo após a revisão de 1999 previa-se a possibilidade de a Assembleia Nacional aprovar as Grandes Opções do Plano a partir de proposta do governo. A antecipar o debate parlamentar, além do parecer obrigatório de órgãos como o Conselho para Assuntos Regionais, actualmente incorporado no conselho económico-social, havia espaço para discussões múltiplas com vários sectores da sociedade e audições públicas organizadas tanto pelo governo como pelo parlamento. Foi o que aconteceu com as Grandes Opções do Plano de 1997-2000 e posteriormente em 2002-05. Faz todo o sentido que os consensos e as vontades sejam criados num processo envolvendo o parlamento onde as opções de desenvolvimento são debatidas e aprovadas e depois encontram expressão financeira em orçamentos anuais ou plurianuais porque aí estão legitimamente representados todos os cidadãos no seu pluralismo e na diversidade dos seus interesses.
Procurar inovar em matéria de elaboração do Orçamento sem pelo menos alterar a lei de enquadramento orçamental não é certamente a melhor via para o chamado “orçamento inclusivo”. Além de se correr o risco de defraudar expectativas que naturalmente surgem no contacto directo com o titular das finanças pode-se estar a contribuir para alimentar o modelo do Estado distribuidor de recursos, em detrimento do Estado promotor do ambiente propício à criação de riqueza. Também seria de esperar que as arbitragens políticas fossem feitas no âmbito do conselho de ministros e presididas pelo primeiro-ministro. O orçamento é do governo. Fazer diferente leva a interpretações complicadas como a feita na página de Facebook do ministério das infra-estruturas em que num post se diz que o “Ministério das Finanças tem sido um parceiro estratégico do Ministério das Infraestruturas, Ordenamento do Território e Habitação garantindo o financiamento através do Orçamento de Estado para os projectos e programas de todos os sectores deste ministério”.
Nunca é demais relembrar que a democracia é procedimental e que o seu funcionamento equilibrado depende de todos os seus órgãos e instituições a funcionarem no quadro das suas competências próprias. Fazer política é fundamental para se realizar os objectivos da colectividade, motivar as pessoas e criar as condições para a prosperidade de todos mas deve ser feita estritamente no quadro constitucional e legal existente. Inovações que ultrapassam esse quadro só trazem problemas, sem nada resolver.   

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 823 de 06 de Setembro de 2017.

sexta-feira, setembro 01, 2017

“Direitos humanos não vão de férias”



Neste mês de Agosto, o grupo Jovens pela Paz lan­çou uma iniciativa de pro­moção dos direitos humanos sob a bandeira “Direitos humanos não vão de férias”seguindo o slogan das Nações Unidas em 2016 “os valores humanos estão debaixo de ataque” e “devemos defender a nossa humanidade comum”. Com a leitura e distribuição da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) juntos dos jovens nas zonas balneares, no Sucupira e nou­tros sítios onde com mais fre­quência se encontram, o gru­po pretende contribuir para “uma cultura de paz e sã con­vivência entre as pessoas”. O que o grupo visa com essa acção cívica de grande alcan­ce está em plena concordância com a Constituição da Repú­blica que logo no n.1 do artigo 1º “reconhece a inviolabilida­de e a inalienabilidade dos di­reitos humanos como funda­mento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”. Pena que ainda subsista no país posicionamentos públi­cos que – por não assumirem que o Estado em Cabo Verde nem sempre respeitou os di­reitos humanos e que isso teve consequências trágicas para muita gente – não favorecem o florescimento de uma cultu­ra de defesa intransigente dos direitos fundamentais junto das instituições e da própria sociedade.
A constituição cabo-ver­diana em vigor desde 25 de Setembro de 1992 tem um ca­tálogo de direitos, liberdades e garantias que directamente se inspiraram na declaração universal dos direitos huma­nos produzida na sequência da Revolução Francesa de 1789 e também do Bill of Ri­ghts de 1791 que com o texto da declaração da independên­cia completam a constituição americana de 1787. O mesmo acontece com a generalidade das constituições liberais e de­mocráticas que depois da se­gunda guerra mundial e na se­quência da chamada terceira vaga de democracia que cul­minou com a queda do Muro de Berlim foram adoptadas por países que deixaram para trás os anos de má memória de regimes autoritários e tota­litários. A universalidade des­ses direitos e a atracção uni­versal que tendem a exercer sobre todos os oprimidos, os privados de liberdade e as ví­timas da injustiça fazem com que tenham muitos inimigos.
Hoje é uma realidade ines­capável que os direitos huma­nos estão sob ataque, e não só nos países tradicionalmente autoritários, mas também nas velhas e novas democracias. Há quem como Viktor Orban, da Hungria, que assume fron­talmente que quer construir uma democracia iliberal, ou Erdogan, na Turquia, que faz a democracia recuar dé­cadas com as suas reformas supressoras do pluralismo, da liberdade de imprensa e da independência dos tribu­nais. Há quem também usa a ameaça terrorista e a presen­ça de imigrantes e refugiados para criar legislação e instituir procedimentos de polícia que na prática atentam contra os direitos humanos. O perdão do crime de desrespeito pelo tribunais dado por Trump ao xerife do Arizona Joe Arpaio é um exemplo de como medi­das de minimização do poder judicial e legislação restritiva de direitos em nome da segu­rança podem conjugar-se para fazer da democracia o que ela não deve ser: o reino da dis­cricionariedade e da arbitra­riedade, onde nem todos são iguais perante a lei e o acesso à justiça é condicionado.
Resistir a essa ofensiva contra os direitos humanos deve ser a tarefa de todos. A iniciativa do grupo Jovens para a Paz e outras acções si­milares de sensibilização de jovens e da sociedade devem ser apoiadas. Não deve haver recuo em relação aos ganhos civilizacionais conseguidos com a instituição do Estado de Direito Democrático e com a consagração dos direitos fundamentais que nem po­dem ser matéria de revisão constitucional. Nesta luta, a preservação da memória do que aconteceu com as pes­soas, com a sociedade e com o país quando os direitos huma­nos não eram respeitados em Cabo Verde devia ser funda­mental. Mas não é.
Estranhamente, o Estado e todos os órgãos de soberania omitem-se e fazem por esque­cer que, por exemplo, em Ju­nho deste ano completaram­-se 40 anos do assalto violento das autoridades do regime de partido único em S.Vicente a dezenas de pessoas simples e pacíficas que não cometeram qualquer crime. Também não dão sinal que a um dia de mais um aniversário vão recordar com o devido destaque os acontecimento de 31 de Agos­to de 1981. Muito menos ain­da - depois de mais 26 anos de regime democrático - há qual­quer tipo de reconhecimento, de indemnização ou de sim­ples pedido de desculpa dirigi­do aos que foram directa e vio­lentamente vítimas do Estado e dos seus agentes durante os quinze anos de partido único. O contraste com o tratamento dado aos oficialmente consi­derados combatentes deixa qualquer pessoa perplexa. No BO de 11 de Julho de 2017 fo­ram “reconhecidos” mais 74 combatentes que terão direito a privilégios múltiplos entre os quais a possibilidade de uma pensão mensal do Estado até 75 mil escudos.
De facto, os direitos huma­nos “não devem ir de férias nem tão pouco perder a me­mória” do mundo e das cir­cunstâncias que antes os ne­garam. Haverá sempre pres­são para os restringir, para os secundarizar ou considerá-los empecilhos na prossecução de um suposto bem maior. A memória, a história e a cons­ciência da centralidade da dig­nidade humana devem consti­tuir um escudo impenetrável a qualquer ataque contra os direitos fundamentais e um travão efectivo a tentativas in­sidiosas de os limitar, sob que pretexto for.

         Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Agosto de 2017

segunda-feira, agosto 28, 2017

Segurança, fundamental para o Turismo

O atropelamento de turistas na pedonal das Ramblas, em Barcelona, sexta-feira passada, dá continuidade a uma série de ataques brutais na Europa mas também em África em que o alvo são os turistas. Seja em Paris, Manchester, Londres, Berlim, Nice ou Bruxelas, Egipto, Costa do Marfim ou Mali o objectivo dos terroristas é matar o máximo número de pessoas, de preferência nacionais de vários países. No caso de Barcelona, as vítimas, entre mortos e feridos, eram de 34 países. Tais tácticas, para além dos terríveis custos humanos que provocam, do medo que instilam e da falta confiança entre as pessoas que geram, tendem a afectar severamente a actividade turística que, cada vez mais em vários países, vem-se afirmando como um dos principais motores do crescimento económico e de criação de emprego.
O Conselho Internacional do Turismo (ITB) no seu último relatório sobre as tendências de viagens, citado pelo jornal Financial Times, diz que a segurança tornou-se o principal critério na escolha dos locais de férias: quase metade dos turistas têm sérias preocupações com a segurança e que dois terços dizem que só viajam para destinos internacionais que consideram seguros, sem registo de conflitos ou instabilidade. Segundo o mesmo jornal, só a cidade de Paris perdeu mais 1,5 milhões de turistas na sequência dos vários ataques terroristas. Antes, destinos como a Tunísia, o Egipto e a Turquia tinham pelas mesmas razões perdido turistas a favor de destinos como Espanha, Canárias e Cabo Verde. Não espanta pois que o ataque em Barcelona tenha deixado apreensivo operadores como a TUI e a Thomas Cook com a possibilidade de perdas no fluxo turístico para vários pontos de Espanha e das Canárias. Mesmo nos destinos que ainda não foram afectados aumenta a preocupação que, com os terroristas a tomarem qualquer concentração de turistas como alvo, sejam também vítimas de um ataque. Uma situação que a se verificar teria um efeito demolidor em países como Cabo Verde em que é visível a preponderância crescente do sector do turismo sobre a economia nacional.
A segurança é vital para o presente e futuro do Turismo em Cabo Verde. Era de esperar uma maior atenção do Estado em matéria de segurança nas ilhas do Sal e da Boa Vista, as ilhas mais viradas para o Turismo e com maior concentração de turistas europeus. Os dados da criminalidade nas duas ilhas tanto em termos de ocorrências como de complexidade dos crimes cometidos apontam que a acção do Estado não está a ter a eficácia desejada. É claro  que injecções de meios materiais e humanos não estão a dar os resultados pretendidos, como, aliás, não deram frutos em momentos anteriores com o anterior governo.
As duas ilhas, em particular a Boa Vista, que à partida tinham poucos milhares de habitantes, viram a sua população triplicar e quintuplicar com migrantes nacionais vindos das outras ilhas e estrangeiros maioritariamente vindos de países africanos atraídos pela dinâmica rápida do turismo financiado pelo investimento directo estrangeiro. À complexidade humana, económico-social e cultural com seus reflexos na natureza e níveis da criminalidade e impacto na ordem e tranquilidade, contrapôs-se uma abordagem policial que não se diferencia grandemente do que se fazia noutros pontos do território nacional. Ficou-se pelo mesmo sistema de forças, a mesma cultura organizacional e os mesmos métodos de actuação. É evidente que não podia funcionar e não funcionou em particular nas ilhas que mais mudaram sob o impulso do exterior e que continuaram a ver largas extensões do seu território sem controlo efectivo das autoridades. Nem tão pouco podia funcionar nas ilhas em que, assim como o crescimento do turismo não foi acompanhado de avanços correspondentes nos domínios designadamente da habitação, saneamento básico, saúde, energia e água, também no campo policial ficou-se aquém do exigível pela complexidade das situações enfrentadas no dia-a-dia.
No Boletim Oficial de ontem, 23 de Agosto, vem publicado que a verba de 219 mil contos do Fundo de Sustentabilidade Social para Turismo financiada pela taxa turística vai para equipar a polícia nacional com veículos, comunicações e outras aquisições. Para a polícia judiciária foi alocado o valor de 27 mil e 500 contos basicamente para os mesmos efeitos. É evidente que com a criminalidade que tende a crescer na ilha do Sal e na Boa Vista essas forças são insuficientes particularmente quando se tem presente as ameaças que pairam sobre o turismo e os turistas e ainda a realidade da grande extensão territorial, povoamento escasso e exposição das ilhas a desembarques e outras operações sem autorização. Urge de facto, a exemplo do que outros países com situações similares fizeram, criar uma outra força de segurança incluindo a guarda costeira e os fuzileiros navais que imponha a autoridade do Estado nos mares, nas costas e nas extensas zonas do país de parca população e tenha capacidade militar para responder a situações de terrorismo ou de crime organizado.
O Turismo é ao mesmo tempo frágil e crucial para dinâmica do país nos próximos tempos. E sabe-se que o factor segurança é o que fundamentalmente está a contar na escolha do destino pelo turista. Há que ser criativo, seguro e eficaz para evitar que Cabo Verde perca mais esta oportunidade. Importa, de facto, continuar a fazer convergir sobre si uma procura externa valiosa, absolutamente necessária para dinamizar a sua economia e colocá-lo na via do desenvolvimento.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 821 de 23 de Agosto de 2016. 

sexta-feira, agosto 18, 2017

Clarificar a política de habitação

A problemática da habitação voltou ao centro das atenções do Governo. No debate sobre o estado da Nação o Primeiro Ministro na sua intervenção inicial comprometeu-se com o valor de 945 mil contos para eliminar as barracas de do bairro da Boa Esperança na Boa Vista e com 2 milhões de contos para acabar com as barracas de Alto S. João, Alto de Santa Cruz e Terra Boa na ilha do Sal. Ainda na mesma intervenção o PM voltou a referir-se a 14 milhões de dólares conseguidos da China e que seriam dedicados à habitação social. Na semana passada, o ministro das Finanças e o PCA do BCA assinaram um acordo em que o Estado assumia pagamentos devidos ao BCA e o banco disponibilizava uma linha de crédito no valor de 15 milhões de contos, uma parte para financiar a habitação e outra para apoiar empresas em particular as start-ups. Tudo indica que o governo resolveu enfrentar um problema dos mais graves que aflige o país e cujo impacto socioeconómico já não se pode ignorar. A questão que se coloca agora é saber qual a melhor visão e estratégia para evitar os erros do passado e ao mesmo tempo lançar as bases seguras para resolução possível do problema da habitação.
Num passado recente pretendeu-se que a solução podia ser encontrada no programa Casa para Todos que com uma linha de crédito de 200 milhões de euros disponibilizada por bancos comerciais com aval do Estado português iria construir 8 mil casas e a partir da venda das mesmas prosseguir a construção de mais fogos. O Novo Banco criado na mesma ocasião teria um papel central no suporte financeiro para a compra das casas. Sabe-se o que realmente passou. Construíram-se realmente cerca de 3 mil casas, foram vendidas muito poucas e a grande maioria das actualmente ocupadas estão em situação de renda resolúvel e de caracter social. O Novo Banco praticamente faliu e foi fechado por resolução do Banco Central. Também contrariamente ao que acontece na generalidade dos casos em que há obras com investimento público de grande envergadura não se verificou o arrastamento da economia nacional – a economia nesses anos praticamente estagnou – nem foi beneficiado o sector privado nacional da construção civil. Isso porque, apesar do surto de construção que se verificou com a utilização da linha de crédito, na forma como foi negociada as sociedades empreiteiras tinham que ser maioritariamente portuguesas e uma percentagem elevadas dos materiais deveria ser comprada em Portugal. Uma solução que não cometa os mesmos erros terá que ir por outras vias.
A oferta habitacional em Cabo Verde para ser adequada deve poder responder não só ao crescimento da população como também às necessidades de mobilidade de mão-de-obra do campo para cidade e de uma ilha para outra. Nos últimos tempos o fluxo migratório interno tem-se dirigido particularmente para a ilha do Sal e da Boa Vista. Décadas atrás, S. Vicente era o destino de muitos que procuravam nos serviços e na indústria os meios para o seu sustento. Praia, a capital do país, com o crescimento da máquina do Estado e actividades dela dependente cresceu extraordinariamente ao longo dos 42 anos de independência, atraindo população do interior de Santiago e das outras ilhas. O resultado desses fluxos migratórios não planeados vê-se na expansão caótica da Praia, nos bairros precários de S.Vicente e nas barracas da Ilha do Sal e da Boa Vista. Claramente que as autoridades não anteciparam o fluxo migratório e muito menos se prepararam adequadamente para lhe dar resposta em termos de ordenamento urbano, saneamento básico, segurança, comunicações, energia e água.
Para piorar as coisas, de forma generalizada alimentou-se o sonho da casa própria quando era evidente, que para o país realizar melhor o seu potencial de crescimento, as pessoas teriam que poder mover-se para onde surgissem oportunidades de trabalho e sinais de uma maior dinâmica económica. E não deveriam ficar presas onde não havia uma perspectiva de trabalho gratificante só porque havia uma mensalidade a pagar ao banco pela casa que até foram incentivadas a construir no quadro de uma política de apoio à habitação própria. De facto, não parece que alguma vez houve uma discussão sistemática sobre o que mais convinha a Cabo Verde: habitação própria ou arrendamento. Num país que ainda está por identificar os seus principais motores de crescimento económico e de criação sustentada de emprego, optar por promover habitação própria em detrimento de arrendamento só podia levar ao fenómeno terrível das barracas e ao caos urbano nas principais cidades. Entretanto, com as opções feitas e na falta de políticas claras, não se tem um vibrante sector privado a construir, nem há um mercado de arrendamento e muitas pessoas deixam a casa para irem residir noutra ilha ou numa cidade porque no seu lugar de origem não há economia que as suporte. O dilema de manter a casa e ao mesmo tempo viver precariamente junto do local de trabalho não é resolvido, entre outras razões, porque se vê que políticas públicas de desencravamento, de ligação energia, água e comunicação valorizam a casa, mas não criam as condições económicas que fariam o dono regressar. Tem casa própria, mas vive mal noutra ilha por razões de incoerência nas políticas públicas.
Em Portugal dias atrás voltaram a criar uma secretaria de Estado da Habitação. A dinâmica económica exige políticas que vão ao encontro das necessidades de mobilidade de mão-de-obra no sentido de maior eficiência e também de criação de ambientes propícios à inovação. Uma política de promoção do arrendamento com as três vertentes de facilidade de financiamento, enquadramento fiscal e seguro das rendas vai ser posta em movimento pelo governo português. A par disso pretende-se uma intervenção pública na oferta da habitação que se aproxime dos níveis europeus de cerca de 12% e que em países como a França vai aos 15% e na Holanda atinge os 31% da oferta habitacional do país.
Quando se equaciona outra vez o problema da habitação em Cabo Verde, deve-se ter em devida conta, por um lado, o facto evidente dos fluxos migratórios no país e, por outro, as “chagas sociais” criadas nos centros urbanos das várias ilhas por décadas de políticas inadequadas no sector. Soluções devem ser encontradas que permitam às pessoas ter habitação condigna sem rendas pesadas, que promovam investimento privado na habitação para arrendamento, que desenvolvam o sector da construção civil e mantenham as actividades económicas locais competitivas e sustentáveis a prazo. A via a seguir é a de optimizar e tornar mais abrangentes os ganhos e não a de deixar o país com um peso ainda maior da dívida pública e sem solução à vista.   

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 820 de 16 de Agosto de 2016. 

sexta-feira, agosto 11, 2017

Privatizações na ordem do dia

O Governo, de repente, resolveu pôr as privatizações na ordem do dia. Aprovou uma resolução que estabelece que 23 empresas públicas ou participadas pelo Estado serão privatizadas ou cedidas em forma de concessão. Os objectivos, segundo a resolução, são o “empoderamento do sector privado nacional e estrangeiro”, a consolidação da economia e a criação de oportunidades em sectores-chave da economia. Estima-se na resolução que o possível encaixe das operações de venda seja de 10 milhões de contos apesar de, como diz o ministro das Finanças, o governo não estar à procura de receitas extraordinárias para confrontar o duplo problema do défice orçamental e da dívida pública. Como era previsível, as reacções das forças políticas e da sociedade não tardaram a aparecer ao que imediatamente se caracterizou como o segundo surto de privatizações depois do primeiro, que o MpD tinha protagonizado, na década de noventa.
Infelizmente, muitos processos em Cabo Verde, como o da privatização de empresas públicas nos anos 90, nunca são fechados nem beneficiam do olhar em retrospectiva que poderia justificá-los ou no mínimo contextualizá-los para melhor os compreender e retirar lições com vista à acção futura. Ficam cativos de narrativas que depois vão alimentar o arsenal dos partidos políticos nos seus confrontos e evitam que se avance na compreensão dos problemas do país e na construção da vontade colectiva para vencer os extraordinários desafios que se colocam. As privatizações nos anos noventa aconteceram em simultâneo com processos similares em vários outros países. Foi o momento histórico do abandono da economia estatizada para economia de mercado e por uma razão simples: além de serem apanágio de regimes autoritários e totalitários há muito que tinham levado à estagnação económica contrastando com a dinâmica das economias de mercado nos países livres e democráticos. Em Cabo Verde há quem fique colado a slogans de campanha do tipo “venda da terra” e perde de vista como, com a restruturação da economia nos anos 90, se elevou o potencial económico e o país cresceu a ponto de hoje o rendimento per capita se situar em 3000 dólares enquanto em 1990 não passava dos 898 dólares. 
Como em vários outros países que fizeram a transição para a economia de mercado, as privatizações inicialmente foram fundamentais para se desenvolver o sistema financeiro, para modernizar sectores-chave como telecomunicações, energia e água, transportes marítimos e aéreos e criar condições para a emergência de uma classe empresarial nacional capaz de se engrenar em cadeias de valor suportadas pelo investimento directo estrangeiro e voltadas para a satisfação da procura externa de bens e serviços. Depois dessa primeira fase estruturante, privatizações em geral acontecem para diminuir riscos fiscais de empresas públicas deficitárias, conseguir receitas extraordinárias quando em processo de consolidação orçamental ou para estrategicamente se conseguir ganhos de eficiência que beneficiem o conjunto da economia nacional. Em todos os casos é evidente que há resistências e as opções do governo podem não reunir consenso geral. A verdade é que particularmente para casos como o nosso de desemprego estrutural e de dinâmica económica muito aquém do necessário para o país prosperar há que tudo fazer para que a economia seja mais eficiente, mais produtiva e mais competitiva.
A questão do papel do Estado na economia nacional deve porém ser discutida com a devida profundidade. Nem o sector privado pode substituir o Estado em todas as situações nem os mecanismos do mercado conseguem resolver todos os problemas a contente dos consumidores, utentes e clientes no que respeita a preços e qualidade. De facto, há situações de mercado imperfeito e/ou de falha de mercado que exigem intervenção do Estado para suprir deficiências ou preencher eventuais vazios. A posição nestas matérias não deve ser ideológica, mas sim realista e pragmática. Aliás, realismo e pragmatismo e um elevado senso de oportunidade e timing devem presidir a actuação do Estado num país como Cabo Verde de diminuta população, mercado fragmentado, deficiência de transportes e relativamente remoto em relação aos grandes mercados globais. Agindo de outra forma, continua-se simplesmente a acumular perdas nos muitos take offs, novas largadas e novos paradigmas que os sucessivos governos insistem em proclamar, mas que acabam por revelar-se mais como ilusionismo do que algo concreto e sustentável.
A partir daí não tarda muito que a factura acabe por mostrar-se numa dívida pública pesada, de  difícil sustentabilidade e que deixa o país sujeito aos rigores de eventuais ajustamentos estruturais. Na última reunião do GAO os parceiros vieram lembrar que a dependência da ajuda externa tem custos. Os parceiros com o Banco Mundial à frente declararam que não avançam com ajuda orçamental enquanto a situação da TACV não fosse completamente resolvida. Não consideraram suficiente a resolução com a entrega à Binter do serviço doméstico da TACV e querem também que se privatize a TACV internacional para depois decidir a retoma da ajuda orçamental. Na semana passada, em sede de comissão de inquérito parlamentar ficaram explícitos os custos da iniciativa que, em 2010, juntou o programa Casa para Todos ao projecto do Novo Banco nas vésperas das legislativas. Provavelmente terá trazido vantagens eleitorais ao então governo mas são os outros que inevitavelmente vão ter que pagar, de uma maneira ou outra as consequências de iniciativa.
Liberalização económica, privatizações e facilidades de crédito são muitas vezes utilizadas para se soltar energias, ambições e vontade de sucesso no sentido de se construir no país uma máquina poderosa de criação de riqueza a médio e longo prazo. Na consecução desses objectivos, esses instrumentos não são porém suficientes. Várias acções, designadamente de acesso aos mercados, de política virada para a exportação, de melhoria dos sinais de contexto e de criação de competências académicas na população juvenil têm de ser tomadas para se ter sucesso. A grande tarefa é aperceber-se que não têm todos o mesmo impacto e o potencial efeito de cada um só se revela no momento certo quando devidamente encadeado e maximizado.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do EXPRESSO DAS ILHAS nº 819 de 9 de Agosto de 2016. 

segunda-feira, agosto 07, 2017

Perigos da pessoalização da política

No fim do ano parlamentar vê-se que divergem as opiniões sobre o estado da Nação mas em relação ao estado do Parlamento a posição é quase unânime que não está bem. Os trabalhos na plenária parecem desenvolver-se num registo quase caótico com múltiplas intervenções de deputados em todas as matérias e interrupções sucessivas com interpelações à mesa e defesas de honra. Demasiadas vezes funciona-se como se não houvesse uma estratégia de grupo parlamentar para, de forma mais eficaz e com economia de tempo, debater as questões. Passou a ser costume os sujeitos parlamentares dirigirem-se directamente aos que escutam na rádio ou assistem pela televisão num esforço de se apresentarem como representantes de interesses que supostamente estariam a ser postos em causa pelos argumentos dos colegas de outras bancadas ou como porta-vozes de recados enviados pelo eleitorado. Nestas circunstâncias é difícil para a Mesa da Assembleia Nacional mostrar que está efectivamente em controlo dos trabalhos. Não estranha que tenham acontecido ao longo deste ano parlamentar situações prejudiciais para a imagem do Parlamento e para a legalidade dos seus actos como as de dar como aprovadas matérias sem a maioria regimental exigida ou sem os votos de todos os deputados presentes na sala de sessões no momento de votação.
As reacções à esta percepção geral de fragilidade do Parlamento nesta legislatura têm levado vários observadores a propor alterações no sistema eleitoral e o fim do monopólio dos partidos na apresentação de candidatos a deputados. Outros vão mais longe e, além de pedirem a adopção do sistema uninominal em substituição do proporcional actualmente existente, querem acabar com a disciplina partidária que para eles tem impedido que os deputados sejam realmente representantes do povo. Para outros observadores, o problema estaria com os partidos políticos que monopolizam a vida política, alimentam a crispação e estando no governo vêem o adversário como quem não tem em conta os interesses do país e funciona numa lógica de “quanto pior, melhor”. Curiosamente, quem faz essas propostas não tem a preocupação de trazer à discussão os exemplos actuais e muitos outros do passado onde essas soluções foram adoptadas e as consequências em termos de configuração do quadro partidário e de estabilidade governativa, que se seguiram à sua implementação, foram desastrosas. Pode-se criticar muitos aspectos da chamada democracia de partidos, mas a história das democracias depois da segunda guerra mundial mostra como ela foi crucial para a estabilidade nas décadas de prosperidade quase ininterrupta e sem precedentes que se seguiram.
Percebe-se facilmente que parte desta reacção deriva da chamada crise de representação que aflige hoje muitas democracias avançadas na Europa em que as pessoas vêm como os seus governos são ultrapassados por forças exteriores de natureza económica criadas pela globalização e também por outras de natureza política no quadro da União Europeia. Outra parte dessa atitude porém tem uma base na realidade nacional e provém da reacção às décadas de regime autoritário no país que deixaram uma desconfiança profunda em relação à democracia representativa e justificam a postura ainda nostálgica de “democracias revolucionárias” que encontra alguma satisfação em privilegiar formas de democracia participativa sobre a representativa. Tendo isso como pano de fundo e no actual ambiente dominado pelo médias e com a internet e acesso às redes sociais a todo o tempo tudo parece convergir para que se caia na chamada pessoalização da política em que a acção política em vez de levar ao debate de temas e ideias focaliza-se no ataque pessoal. De facto, fica mais fácil e mais imediato mobilizar sentimentos e despertar emoções e paixões do que engajar-se na discussão de opções políticas num quadro do pluralismo em que se assume que todos procuram o melhor para o país.
A focalização nos políticos e em particular na sua imagem e notoriedade vem-se verificando progressivamente de algum tempo para cá na política cabo-verdiana. Em certos aspectos não é muito diferente do que se passa noutros países a braços com crises diversas incluindo a de representação, não identificação com as elites e protagonismo individual mais acentuado nas redes sociais. É um fenómeno que vem acompanhando o recrudescer do populismo nas democracias ocidentais com as consequências mais conhecidas do Brexit, da eleição de Donald Trump, reconfiguração dos partidos em Espanha com o Podemos e Ciudadanos e o colapso dos partidos franceses nas últimas eleições. Se nesses países de democracia consolidada tem-se contado com a resiliência das instituições e a influência dos órgãos de comunicação social e a presença de uma sociedade civil autónoma para conter os efeitos mais nefastos do fenómeno, não se pode dizer o mesmo nas novas democracias onde todos esses ingredientes essenciais ainda estão em estado embrionário. Em Cabo Verde foram também sentidos os ventos fortes do populismo no período pré-eleitoral tanto em movimentos da sociedade civil (MAC #114) como na dinâmica dos grandes partidos. Acabou por afectar profundamente a escolha de candidatos a deputados com as consequências já conhecidas para além de condicionar a relação que no pós-eleições viriam estabelecer entre os órgãos de soberania todos eles centrados nas pessoas.
Se não for devidamente contida, a pessoalização da política tem os efeitos que se conhecem, por exemplo, em fragilizar as instituições, esvaziar o debate público e promover candidatos a autocratas. A luta contra os efeitos nefastos da partidarização da política não deve conduzir à pessoalização da política que se nutre do populismo para manter a imagem e garantir níveis elevados de notoriedade. Cabo Verde é uma democracia ainda por consolidar e neste ano do vigésimo quinto aniversário da Constituição 1992 deve estar alerta para todos os perigos que podem ameaçar a democracia representativa, a única que historicamente garantiu a liberdade e abriu caminho à prosperidade. Os inimigos são muitos e, neste momento, no mundo inteiro, o populismo, em suas várias formas, é o pior de todos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 818 de 02 de Agosto de 2017

sexta-feira, julho 28, 2017

Estado da Nação: Impaciência


A poucos dias do debate parlamentar sobre o Estado da nação é visível a impaciência das pessoas. Querem ver sinais claros de que os problemas candentes do país para os quais houve promessas eleitorais de resolução estão efectivamente a ser confrontados e ultrapassados. A manifestação de S. Vicente foi a forma mais expressiva dessa impaciência mas outras existem que se deixam revelar designadamente nas múltiplas sugestões de greves tanto no sector público como no privado, nas preocupações com a insegurança e na frustração dos agricultores que não conseguem fazer chegar os seus produtos aos mercados. A mesma inquietação, em grande medida passada nas redes sociais, sente-se nos milhares de jovens escolarizados, licenciados e profissionalmente preparados que anseiam por um emprego numa economia que ainda não cresce o suficiente e não apresenta a oferta diversificada capaz de atrair os mais diferentes talentos e competências. 
A impaciência tem razão de ser: vem da percepção profunda que o país não tem muito mais tempo a perder. Depois dos anos do ilusionismo, alimentado nos últimos tempos pelas benesses finais da ajuda externa no quadro de transição para país de desenvolvimento médio, o encontro com a realidade não tem sido fácil. Em 2016, os resultados das eleições legislativas e autárquicas mostrarem a urgência e a determinação da generalidade do eleitorado em mudar o rumo no país. Se houvesse alguma dúvida quanto ao estado em que se encontravam as instituições ela foi dissipada por uma sucessão de acontecimentos entre os quais o massacre de Monte Tchota, a situação de falência da TACV, a gestão incompetente da situação dos deslocados de Chã das Caldeiras e as falhas em cadeia das autoridades que levaram ao naufrágio do navio Vicente. Para a generalidade das pessoas tinha ficado claro que o modelo de desenvolvimento, uma forma de governar e um modo de estar na vida e no mundo até aí vigentes no país tinham-se esgotado completamente. Não espanta que agora as pessoas queiram resultados rápidos e talvez mais importante que aspirem a ser parte activa no desenvolvimento e que reclamem e se queixem se a letargia se mantém.
A verdade é que as coisas não mudaram no ritmo que seria de esperar considerando as expectativas existentes e o ponto de partida caracterizado pelo esgotamento dos modelos e de estratégias anteriores. De facto, diferentemente do que poderiam sugerir as intensas lutas partidárias em que, de um lado, se pressiona para ocupar lugares e, de outro, se resiste para manter lugares-chave no aparelho do Estado, as mudanças na sequências das eleições legislativas com impacto no ambiente de negócios e na relação com os utentes não têm sido extraordinárias. Podia-se argumentar que o governo está nos primeiros 15 meses de um mandato de cinco anos e há tempo para mudanças, mas este não é um mandato que se poderia chamar de normal. Segue a um período de estagnação económica e de colapso de visões de hubs, clusters, praças financeiras, e por isso mesmo espera-se mais, muito mais em termos de novas políticas, de novas estratégias e de resultados. O governo para ter sucesso deve reconhecer essa pressão e agir em consequência tendo sempre em perspectiva o muito que se vai exigir da sua prestação para estar à altura das expectativas. Evita-se a postura expectante das pessoas, oscilando entre conformismo e impaciência, com o envolvimento numa narrativa do país em que o ponto de partida e as dificuldades de percurso são conhecidas, os objectivos são traçados e espaço existe para a participação e afirmação de todos. 
A abordagem dos problemas do país seguida até agora não se tem revelado a mais adequada para diminuir a impaciência e manter as pessoas focadas no que as poderá levar além da propaganda e do ilusionismo que muito caracterizou a governação anterior. Pelo contrário, em certos sectores da governação do país, a tendência é manter como estava o essencial do que existia e esperar que os resultados sejam diferentes. No domínio da segurança pública esta opção é por demais evidente e o resultado vê-se na persistência do sentimento de insegurança que deixa toda a gente intranquila em relação ao futuro e em particular quanto ao impacto que algum incidente pode causar nas ilhas turísticas afectando toda a economia nacional. Em outros domínios, designadamente no que respeita ao ambiente de negócios, a enfâse é posta como antes no financiamento que, embora importante, não resolve o problema das empresas se não há mercado e se a administração pública e tributária continua a pesar mais como constrangimento – 41% vs. 22%, segundo os dados do BCV. No mesmo sentido de facilitação de financiamento, repetem-se as mexidas nas taxas directoras do Banco Central e os operadores constatam, como da outra vez, que não há grandes alterações porque o país vive uma situação de excesso de liquidez estrutural. Também não se compreendem as expectativas postas em discursos oficiais em relação ao comércio com a CEDEAO quando, como revela o relatório anual do BCV (2016), “a actual estrutura de exportação de Cabo Verde é incompatível com a estrutura de importação da região”.
Nas eleições de 2016 as pessoas deixaram bem claro que sabiam que o país estava numa encruzilhada e que não podia continuar no mesmo caminho. Todos os partidos políticos, mesmo o que suportava o governo, mostraram-se críticos em relação aos resultados da governação de então. Há que aproveitar o momento e engajar as pessoas e a sociedade para que o país consiga trilhar outros caminhos e não fique pelas fórmulas do passado que, já se sabe, não funcionam. Não se pode deixar que a impaciência se degenere em frustração que destrói confiança e solidariedade. Mais do que nunca o país precisa de liderança com qualidade e deve poder obtê-la do governo que escolheu para dar um outro impulso ao seu processo de desenvolvimento.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 818 de 02 de Outubro de 2017

sexta-feira, julho 21, 2017

Justiça responsável


Ontem tomou posse o novo presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial, Dr. Bernardino Delgado. É o segundo presidente do CSMJ conselho nomeado pelo presidente da república com base no novo quadro institucional criado pela revisão da Constituição de 2010. O reforço da legitimação democrática desse órgão de gestão e disciplina dos juízes que resultou desse acto de empossamento deve ser acompanhado também de um reforço de responsabilização como bem referiu o Presidente da República no seu discurso. Todos os integrantes do sistema judicial, magistrados, advogados e oficiais de justiça devem estar bem cientes disso e do papel que deles se espera para garantir o funcionamento normal da justiça.
A importância numa democracia de uma justiça independente, eficaz e feita em tempo útil é por demais evidente. A confiança que cada indivíduo deposita na justiça é o cimento essencial para uma comunidade se manter livre e solidária e conseguir prosperar. Se houvesse alguma dúvida a esse respeito os exemplos recentes de derivas iliberais ou de corrupção em certas democracias como nos Estados Unidos e no Brasil que só encontram travão efectivo no posicionamento firme do sistema judicial na defesa do primado da lei são elucidativos a esse respeito. Garantir que o sistema judicial se mantenha firme na defesa da legalidade é dever de todo o cidadão que quer ver os seus direitos fundamentais respeitados e o poder do Estado limitado pela exigência de cumprimento estrito da lei.
A confiança no sistema depende muito da percepção que se tiver da competência com que os juízes exercem o seu papel e da eficácia conseguida na realização da justiça. Um instrumento fundamental para se assegurar que critérios meritocráticos presidam todo o processo de classificação e promoção dos juízes é a Inspecção Judicial. As insuficiências notadas pelo PR na sua intervenção em relação à Inspecção Judicial devem ser sanadas sob pena de eternamente se continuar a despejar meios sobre o sistema judicial sem obter o retorno desejado em termos de justiça competente e eficaz. De facto, não se vê como o CSMJ pôde funcionar todos estes anos sem uma inspecção dotada de recursos humanos e materiais para efectivamente avaliar os juízes e funcionários judiciais de modo a ter os elementos necessários para fazer a gestão dos mesmos e exercer disciplina sobre eventuais prevaricadores.
Há quem atribua as dificuldades em conseguir uma inspecção judicial útil e efectiva à proximidade pessoal, familiar ou corporativa inibidora de uma avaliação objectiva. É um facto que Cabo Verde é um pequeno país com uma população também diminuta. Nada se pode fazer para contornar isso, mas também é facto que se tem de encontrar uma solução como, por exemplo, de contractar assessoria no exterior como fazem países pequenos como Timor-Leste e São Tomé e Príncipe. Aliás, magistrados cabo-verdianos durante vários anos prestaram-se a oferecer assessoria jurídica em Timor. Não deveria haver muito problema em procurar apoio externo em algo que provadamente se sabe que até agora após 26 anos de democracia não se conseguiu pôr de pé: uma inspecção judicial capacitada para induzir melhoria significativa na prestação dos magistrados e de todo o sistema judicial. Afinal, até o poderoso e orgulhoso Reino Unido recorreu a um economista canadiano para preencher o cargo de governador do seu banco central.
A defesa do sistema judicial como garante do respeito dos direitos individuais e da legalidade por todos e particularmente pelas instituições do Estado passa também por dissuadir ataques dirigidos aos tribunais com acusações que favorecem a impunidade e são pouco severos nas penas dadas aos criminosos. Tensões entre partes de um sistema induzidas pelo esforço de cada uma delas em exercer o seu papel seguindo as regras e mantendo em perspectiva a finalidade do sistema são em geral positivas e aumentam a eficácia global do sistema. Se pelo contrário se entra pelo jogo de culpar o outro e encontrar bodes expiatórios é  todo o sistema que sofre. A prestação de todas as partes tende a cair, ficando desprotegido e sem serviço quem do sistema mais precisa. O discurso que se ouve, vindo de sectores da polícia e às vezes com eco de autoridades políticas, é que os tribunais soltam criminosos e dão sentenças leves para os condenados e que isso seria um factor de desmoralização da polícia,. 
É um discurso não traz vantagens para ninguém porque põe pressão sobre os tribunais e mina  a sua independência. Cria desconfiança nos cidadãos em relação aos tribunais, quando se sabe que a independência dos tribunais, é a última linha de defesa dos cidadãos contra abusos, particularmente dos abusos da polícia. Afecta a própria polícia, porque encontrando nos tribunais um bode expiatório para as suas falhas em conseguir condenação dos que acredita serem criminosos, não melhora os seus métodos de acção e de investigação pondo com isso em causa a eficácia de todo o sistema de justiça. Depois, é própria polícia – como força de intervenção primeira por razões de distúrbios ou crime – que sofre com a impunidade assim criada ou com criminosos tornados mais perigosos com estadias prolongadas nas escolas do crime das prisões superlotadas devido a penas excessivas. 
Um novo presidente do Conselho Superior de Magistratura Judicial inicia as suas funções. Espera-se que saiba motivar todo o sistema no sentido de maior eficácia e com vista à renovação da confiança dos cidadãos na justiça. Ninguém hoje duvida que a independência dos tribunais é fundamental para a preservação da democracia e do Estado de direito e que uma justiça competente e em tempo útil é essencial para se construir o desenvolvimento que todos almejam.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 816 de 19 de Julho de 2017

sexta-feira, julho 14, 2017

Contra o centralismo

Milhares de pessoas saíram às ruas em S. Vicente no dia 5 de Julho para se manifestarem contra a centralização. A concentração excessiva na capital do poder de decisão sobre matéria de desenvolvimento é considerada por muitos como a principal razão do declínio económico da ilha e de outros pontos do território nacional. Para um crescente número de pessoas é urgente alterar o processo de tomada de decisões para se poder aproveitar melhor as oportunidades. Também é preciso evitar burocracias excessivas para se deixar florir iniciativas individuais e empresariais e há que saber priorizar investimentos no quadro de uma visão estratégica de forma a trazer maiores e melhores ganhos para o conjunto nacional.
A ansiedade quanto ao futuro depois de anos de estagnação económica já em 2016 se tinha traduzido no redireccionamento massivo do voto popular num governo novo e com forte agenda de regionalização. Quinze meses depois manifesta-se na impaciência face às promessas adiadas da regionalização e as acções governamentais que tardam em causar efeitos significativos no plano individual em termos de emprego e de dinâmicas das empresas. Sair à rua surgiu como a opção lógica para ventilar frustrações, clamar mais rapidez nas reformas e lembrar aos governantes as suas promessas. Uma outra coisa bem diferente será mudar a cultura centralista nas instituições e nas pessoas, cortar a ligação umbilical entre a forma de exercício do poder e o centralismo e substituir uma economia de reciclagem de ajuda externa que reforça a centralização por uma outra muito diferente suportada pela livre iniciativa e pela autonomia das decisões económicas.
Centralizar decisões, recursos e serviços sempre foi entendida como forma de exercício do poder em Cabo Verde. Viu-se reforçada nos quarenta e oito anos do regime de Salazar/Caetano e atingiu o seu auge no regime de partido único em que se procurou fazer com que mesmo as decisões de natureza pessoal, familiar e de grupos tanto sociais, económicas ou culturais fossem assumidas exclusivamente pelo partido e pelas suas organizações de massa. A lógica é simples: quem manda, quer ser quem faculta os recursos, permite os acessos e escolhe os beneficiários. Nada pode acontecer sem o seu consentimento e à sua volta devem gravitar clientelas e gente grata a quem depois, no momento certo, poderá exigir lealdade traduzida muitas vezes em votos.   
É evidente que tal centralismo não existe só a nível central do Estado ou manifesta-se somente nas relações entre a Capital e as Ilhas. Tende a reproduzir-se, de facto, em todos as instâncias de poder. Neste aspecto vai a contracorrente com a Constituição de 1992 que consagrou a autonomia das pessoas e das comunidades com interesses específicos, que impôs aos órgãos de soberania o princípio da separação e interdependência dos poderes e obrigou o Estado a organizar-se, seguindo o princípio da descentralização para além de garantir o direito de propriedade e liberdade de actividade económica. O problema é que passadas décadas com a economia de base em ajuda externa dificilmente as pessoas ou empresas ganham autonomia em relação ao Estado. Pelo contrário, tendem a aumentar a dependência e, num processo de reforço mútuo, o poder é cada vez mais exercido na perspectiva de manter as pessoas e empresas dependentes e sem possibilidade de se escapulirem.
Neste aspecto, é paradigmático o que se passa nos municípios. A figura central do presidente da câmara é visível em todos os actos do município quase fazendo esquecer que tanto a câmara como a assembleia municipal são órgãos colegiais e pluripartidários. Em vez de facilitador ou promotor de actividade dos munícipes, a tendência é o presidente se apresentar como o grande protagonista dos eventos criados. Em matéria de receitas próprias, enquanto se reclama mais e mais recursos do Estado para serem administrados directamente pelas câmaras, relativamente pouca atenção é dada à colecta de receitas de base local que deveriam justificar o princípio de no taxation without representation. Foge-se à responsabilidade perante os munícipes não os onerando com impostos, mas faz-se todo o possível e o impossível para passar a imagem de quem vai lá fora ou junto ao governo conseguir recursos para o município. No jogo político que se abre, criam-se espaços para tudo, a começar por discursos de vitimização que culpam os outros pelos males ou insuficiências encontradas. Na sequência eleições sucessivas são ganhas, mas, como o exemplo de S.Vicente mostra, a tendência é o aumento das frustrações e da ansiedade em relação ao futuro,
Cultura de centralismo tem os efeitos nefastos que se conhecem. Combatê-la devia constituir um desígnio nacional. Tem custos enormes porque retira eficiência e eficácia às instituições, impede que haja flexibilidade na abordagem dos problemas, dificulta que se dê continuidade a trabalhos e iniciativas anteriores no afã de tudo fazer de novo e não poucas vezes facilita a irresponsabilização de quem dirige. Há que estar ciente de que a criação de riqueza essencial para o país prosperar não se compadece com restrições à liberdade económica, com o exercício de poder que procura tornar cidadãos mais dependentes e com a gestão do estado que cria clientelas de qualquer espécie, seja ela partidária, familiar ou de base territorial. O grito contra o centralismo vindo de S.Vicente deve ser ouvido com atenção porque também é um apelo à liberdade, à justiça e à solidariedade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 815 de 12 de Julho de 2017

sexta-feira, julho 07, 2017

Disputa de recursos não é a única via

Nas vésperas do 42º aniversário da independência nacional sente-se pela primeira vez que as pessoas em todos os recantos do país se mostram mais dispostas em exteriorizar inquietação relativamente ao que se passa à sua volta e alguma intranquilidade quanto ao futuro. Percebe-se o fenómeno no dia-a-dia e em particular nas redes sociais, como manifestações de frustração, ressentimento e fúria muitas vezes dirigidas contra governantes e contra os partidos. Também sinal disso é o entusiasmo com que recentemente foi abraçada a luta contra os estatutos dos titulares de órgãos de soberania ou com que presentemente se discute a regionalização como se fosse o paliativo para todos os males do país. Outrossim, a derrota pesada do partido no governo desde 2001 poderá ter sido outro sinal forte da urgência em mudar o rumo do país que avança mais lento que o desejado e ainda, para mais, a diferentes velocidades. E mesmo com a mudança na governação parece que paciência não é muita como mostra a mobilização para a manifestação prevista para o 5 de Julho em S.Vicente contra o centralismo e as suas consequências para o resto do país. 
Para toda esta insatisfação devem estar a contribuir os sucessivos anos a partir de 2009 em que o crescimento da economia ficou por valores baixíssimos, em média 1,2 % ao ano, apesar dos grandes investimentos públicos que prometiam resultado diferente. Também tem sido desanimador o persistente desemprego e o novo fenómeno de milhares de jovens com licenciatura mas desempregados devido à inadequação da sua formação às necessidades do mercado e à incapacidade em pôr de pé os famosos clusters que iriam dinamizar sectores da indústria dos transportes, telecomunicações e dos serviços. Em acréscimo, a visível degradação do ambiente social com o aumento das incivilidades e da criminalidade tem sido um outro factor que não tem ajudado a manter a confiança numa melhoria a curto prazo. Parece que a “gota de água” que fez transbordar o copo foi a percepção cada vez mais acentuada do aumento das desigualdades sociais e das desigualdades entre as ilhas, com concentração das oportunidades na Capital. 
O que está a passar em Cabo Verde não é muito diferente do que acontece por este mundo fora. Nestes últimos anos tem-se assistido em várias democracias a manifestações diversas que têm demonstrado o profundo descontentamento das populações com a estagnação do rendimento acompanhado do aumento da desigualdade e da insegurança em relação ao futuro. O Brexit e a eleição de Donald Trump são as consequências mais visíveis da reacção de sectores da população a isso. Em vários outros países, o ressentimento e a frustração das pessoas têm levado ao colapso de partidos tradicionais, a reacções anti-elites, à exaltação do nacionalismo anti-globalização e ao recrudescer da xenofobia. Em Cabo Verde também já se fazem sentir nas instituições, nos partidos e na atitude dos líderes os efeitos do populismo que bebe do ressentimento, da frustração e da vitimização. E assim como noutras democracias esses fenómenos não trazem nada de valor e não têm nada de positivo mas, como podem mobilizar paixões poderosíssimas, quem as provoca com mestria tem fortes probabilidades de chegar ao poder e de o conservar. 
É um facto que 42 anos após a independência a vulnerabilidade do país é ainda por demais evidente. Apesar disso, todos os anos por altura do 5 de Julho ouve-se o estafado discurso que relembra o quanto estavam errados todos aqueles que pensaram que Cabo Verde não era viável. Retórica dos políticos à parte, não é com a certeza da viabilidade do país que se fica depois de ler o último comunicado do GAO, um texto mais musculado do que 0 habitual, que subordina a ajuda orçamental à reestruturação da TACV e à apresentação de um plano de redução da dívida pública. A realidade das ilhas e arquipélagos é que, devido à sua pequenez, fragmentação e distância de mercado, são de difícil viabilidade se separados de grandes espaços económicos. A maioria faz como a Ilha da Madeira, os Açores, as Canárias e várias outras ilhas e arquipélagos das Caraíbas: prefere a autonomia mas mantendo a ligação económica e política que garante acesso aos mercados, livre circulação e benefícios de fundos estruturais. As excepções com sucesso, como Singapura e as Maurícias, distinguiram-se desde cedo com lideranças que optaram logo à partida por vencer as fragilidades com a criação de riqueza e por não cair na tentação de explorar a precariedade da vida das populações para se manterem no poder. 
Lee Kuan Yew famosamente chorou quando Singapura foi forçada a se tornar independente com a sua expulsão da Federação da Malásia. As Maurícias não vacilaram com a sua independência apesar do diagnóstico de James Meade, prémio Nobel da Economia, segundo o qual o país não seria viável. Mas nenhum deles fechou o país ao investimento externo e optou pela reciclagem da ajuda externa como forma de ter a população controlada. Pelo contrário, crescimento rápido, mais emprego e sucesso na criação de riqueza passaram a ser as bases para a legitimação do poder. Infelizmente, ainda em Cabo Verde o poder não é visto como forma de optimizar a máquina do Estado para melhor servir a população e as empresas que vão produzir riqueza. O poder faz-se sentir na redistribuição de recursos e é essa lógica de disputa por parcos recursos que predispõe todos a não cooperarem entre si e a usar todas as artimanhas, entre as quais, a arma da vitimização, para aumentar o rendimento pessoal.
Na actual encruzilhada importa agir decisivamente para evitar os erros anteriores. Há que compreender, por exemplo, que a dinâmica do centralismo em Cabo Verde resulta de entre outros factores do modelo de reciclagem das ajudas. Também que a marginalização de S.Vicente tem muito a ver com opções de política que fecharam o país e não privilegiaram a ligação à economia mundial com atração de investimento externo e foco na exportação de bens e serviços. Assim como S.Vicente no passado, Sal e Boa Vista hoje estão a provar aos olhos de todos que é com capacidade de resposta à procura externa que se constroem as bases da autonomia dos indivíduos, das empresas e da própria ilha. Não é a pela disputa de recursos do Estado. A energia de todos deve ser dirigida no sentido de fazer com que todas as ilhas beneficiem directamente de uma ligação com a economia mundial. Esse é o objectivo actual do governo arquipélago vizinho das Canárias. Também devia ser o nosso.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 814 de 4 de Julho de 2017