sexta-feira, dezembro 26, 2008

Líderes precisam-se

Os resultados das eleições autárquicas de Maio de 2008 induziram alterações marcantes na actuação política do MpD e do PAICV. As expectativas dos partidos e o comportamento dos seus dirigentes mudaram. Euforia da vitória e sentimento de derrota fizeram-se sentir, com todas as consequências no interior dos partidos e na esfera política.  

Foram eleições a meio da legislatura. Para o PAICV as autárquicas deviam demonstrar a correcção da sua agenda de transformação e o seu nível de impacto nas populações. A vitória nessas eleições confirmaria a persistência da onda de vitória de 2006 e a possibilidade de conquista de um terceiro mandato. Para o MpD tratava-se de reafirmar a sua condição de grande partido autárquico e de partido alternativo no sistema político. E também de dar forte impulso no processo de se credibilizar para as legislativas de 2011.

Eleições autárquicas são eleições essencialmente locais. Podem e são, em várias circunstâncias, afectadas por eleições nacionais ou conjunturas políticas nacionais. Se se realizam pouco antes ou pouco depois das legislativas, tendem a antecipar ou a espelhar mudanças na configuração das forças políticas nacionais. Se se verificam a meio da legislatura podem actuar como um barómetro, revelando a persistência do ímpeto ganhador do partido no governo, ou deixando transparecer o nível do desencanto. Isso, porém, não é linear.

O pior que se pode fazer é extrapolar os resultados das eleições autárquicas directamente para as legislativas. Particularmente quando não acontecem a meio de situações políticas arrebatadoras da atenção nacional e quando um longo período de tempo as separa. Nesses casos, o aspecto local prevalece. Tudo leva a crer que foi o que aconteceu em Maio.

O MpD veio das autárquicas de 2004 com 11 câmaras municipais, se se incluir a Câmara do Sal. O normal é que mantivesse as câmaras. O que aconteceu em mais de 80%. Geralmente o risco de perder é maior quando os actuais presidentes não se recandidatam. Perdeu no Paul onde tal se verificava. Perdeu também na Ribeira Brava, S. Nicolau, mas aí, factores outros, designadamente a proximidade da acção da Comissão Instaladora no município vizinho e a hostilidade do Estado tiveram o seu papel. Em contrapartida, ganhou em Santa Catarina contra um novo candidato do PAICV e realizou o feito de conquistar Ribeira Grande de Santiago, um dos novos municípios.

O PAICV, à partida, tinha a possibilidade de acrescentar às cinco câmaras os cinco novos municípios. O Governo, há mais de três anos, tinha instalado os candidatos do PAICV como presidentes das comissões instaladoras. Resultado: Capturou 4 das cinco novas câmaras. Mas perdeu a Praia. No balanço total, somando a câmara do Paul e subtraindo a de Santa Catarina, ficou com o controlo de nove municípios.   

A mudança de liderança na Praia foi a grande novidade nas autárquicas. Parece que também aí prevaleceram razões locais. A incompetência na gestão da cidade alienou mesmo apoiantes do Paicv, que ou se abstiveram na votação ou, marginalmente, apoiaram uma renovação da equipa camarária. Não é crível que o PAICV tenha perdido a maioria dos eleitores na Praia.

A desorientação e mesmo derrotismo subsequentes nas fileiras do PAICV denotam a surpresa e a frustração com que militantes e dirigentes encararam os resultados eleitorais. Pensaram que obras, acções sociais e permanente propaganda do Governo seriam suficientes para contornar os pressupostos locais das eleições e desalojar presidentes de câmaras. As expectativas de vitória eram grandes, particularmente nas câmaras em que interesses à volta de terrenos têm alimentado um braço de ferro entre o Estado e os Municípios. Compreende-se, assim, que o golpe tenha sido ainda maior na Praia, onde os vultuosos investimentos, realizados pelo Estado, não conseguiram apagar as marcas da falta de competência e da falta de transparência.     

Na procura de razões para a derrota fracturas internas manifestaram-se. A entrevista do deputado e ex-ministro, Júlio Correia, é elucidativo a esse respeito. Identifica a gestão dos TACV com um dos pontos de desgaste do governo e ataca o Governo na pessoa do Ministro das Infraestruturas. A tensão interna que se seguiu serviu para relembrar ao Primeiro-Ministro e presidente do partido o desconforto que a sua alegada arrogância provoca em certos sectores. O sinal foi dado que só o aturam enquanto for portador de vitórias.

Não estranha, pois, que José Maria Neves tenha já firmado o compromisso com o partido de concorrer para um terceiro mandato. O súbito reaparecimento de pretensões presidenciais de outras personalidades confirma o pacto. A moção de confiança, por outro lado, culmina um processo, longo de meses, de consolidação da unidade interna à volta do líder. Mudanças na direcção dos TACV, saídas de membros de Governo e o discurso político mais contundente em relação à oposição situam-se no quadro do esforço para superar as diferenças, sanar as fracturas internas e cerrar fileiras. E não há melhor forma de fazer isso do que mobilizar todos contra um “inimigo” externo.

O facto do Presidente do MpD ter assumido a vitória do seu partido nas autárquicas como vitória pessoal, não obstante o carácter marcadamente local dos resultados eleitorais, serviu para dar face, voz e estilo à “ameaça externa”. E nisso, grande ajuda é prestada por sectores de opinião no MpD que acreditam ter visto nas eleições autárquicas a confirmação de uma forma de fazer política, baseada em denúncias permanentes, acusações de corrupção e discursos populistas.

O problema é que o MpD não pode ver-se, nem deve ser visto, como um partido de contra poder ou de protesto. É um partido da área de governação e como tal o seu caminho só pode ser o de se credibilizar como alternativa de Poder no País. A actuação do seu Grupo Parlamentar é central nesse processo. A fiscalização sistemática do Governo e das suas políticas é uma das suas funções principais. Assim como é a apresentação de propostas alternativas de governação em projectos de lei, em debates com o Governo e em outras formas do exercício do contraditório.

A existência de centros activos de poder ou de interesses, que não só não têm expressão no grupo parlamentar mas alimentam hostilidade difusa contra deputados, do tipo base vs. elite, não ajudam a focalizar a actuação do MpD no plano nacional. Por outro lado, a acção do partido nas câmaras ganhas é insuficiente para projectar uma imagem de alternativa de governação. Particularmente, com o Governo sistematicamente usando o Estado e organizações de todo o tipo para cercear a actuação dos órgãos municipais.

No vazio e descontrolo, que tal situação cria, mais atenção e importância é atribuída ao presidente do partido. O problema é que a imagem que vem projectando de quem não ouve, não aprende, improvisa e curto circuita os órgãos do partido no processo de decisão não ajuda. Ajusta-se mais a imagem de “inimigo” que o PAICV cultiva para as suas necessidades de forjar unidade interna e de se mobilizar para as eleições seguintes.

A remodelação ministerial a seguir às eleições de Maio revelou o nível de esgotamento do Governo. Entrou em campo a quinta equipa de governantes na área económica, quando já a crise económica se anunciava e quando ficava claro, para todos, que janelas de oportunidade, abertas a partir de 2005, fechavam-se. Hoje, sabe-se que no turismo e no sector imobiliário nada será como antes. Assim como é cada vez mais evidente que a agenda de transformação do Governo falhou. Não fez crescer a País à taxa proposta de dois dígitos, não reduziu o desemprego e não soube diversificar a economia, nem alargar a base de exportações.  

 Na encruzilhada em que o Cabo Verde se depara, sentindo os efeitos da ressaca de oportunidades perdidas e encarando uma crise mundial que ninguém sabe a profundidade, escopo e duração, é de se exigir mais da sua classe política. O PAICV ainda tem mais dois anos para governar. Não deve calar as vozes internas e submeter tudo ao objectivo de ganhar eleições, sem consideração pela necessidade urgente de encontrar formas criativas e inovadoras para enfrentar os problemas do país e os desafios extraordinários da conjuntura actual.

O MpD depois de ver reconfirmado a sua condição de grande partido nacional e de partido de alternância tem ainda a possibilidade de, na Convenção do próximo ano,   escolher um líder. Seleccionar um candidato a primeiro-ministro, capaz de enfrentar o  Cabo Verde, saído do que, já se pode considerar, uma década perdida. Perdida em oportunidades desperdiçadas a meio de conflitos de terreno, tensões institucionais e insegurança. Perdida na energia e água em lutas nacionalistas, desfasadas no tempo e no espaço. Perdida na Educação, não obstante as escolas e liceus construídos. Perdida na Formação Profissional apesar dos investimentos feitos. Perdida no desenvolvimento das potencialidades das tecnologias de informação e comunicação. Perdida na expansão do sector privado e da estrutura produtiva e exportadora do País.

Viveu-se simplesmente a ilusão do desenvolvimento.

Que 2009, com os seus difíceis e imprevisíveis desafios, traga a mensagem que já não é possível mais do mesmo. Que não vale mais “diabolizar” o outro para calar vozes internas e dissuadir a emergência do novo. Que política não é sinónimo de estar à procura permanente da bala mágica que irá derrubar o opositor.

Cabo Verde precisa de uma nova liderança. Uma liderança que insista em servir. Servir a liberdade, o interesse público, o desenvolvimento. Uma liderança que insista na constitucionalidade, legalidade e ética dos meios utilizados e rejeite o princípio de que os fins justificam os meios. Uma liderança moderna, com visão do futuro e capaz de fazer uma aposta, firme e determinada, no Conhecimento e na capacidade de prestar serviços, progressivamente mais sofisticados e de maior valor acrescentado. 

    Publicado pelo Jornal Asemana de 26 de Dezembro de 2008

quarta-feira, dezembro 10, 2008

Transformação por Fazer

O orçamento do Estado é, nas palavras do Sr. Primeiro-Ministro, um orçamento num contexto de crise internacional. Uma crise que, segundo o Governo, o País está preparado para enfrentar, porque soube criar espaço fiscal, aumentar as reservas externas e controlar a inflação. E, extraordinariamente, pôde fazer isso com o País a crescer abaixo do seu potencial e a aumentar, consideravelmente, as despesas do Estado. Com o País a manter a sua vulnerabilidade, face a fluxos externos (remessas dos emigrantes, empréstimos, ajuda orçamental, investimento directo estrangeiro), e, ao mesmo tempo,  incapaz de alargar significativamente as exportações e de diminuir o desemprego. È obra!

A realidade é que nem a fotografia macroeconómica, ostentada com orgulho pelo governo, é actual. Mudaram os pressupostos. Definitivamente não é veículo para o País ver o seu futuro próximo.

Os efeitos da quebra na dinâmica económica global já se fazem sentir.

O petróleo custa menos cem dólares do que seis meses atrás. Os preços dos cereais e de matérias-primas, até há pouco imparáveis na sua subida, caíram. A ameaça actual é, cada vez mais, a possibilidade de deflação, ou seja, da queda de preços paralisante da economia, quando recentemente a preocupação geral centrava-se na inflação, embebida na alta geral dos custos de energia, dos transportes e da alimentação. A Europa, a América e o Japão estão, hoje, em recessão. Projecta-se o crescimento da China para os níveis mais baixos de há algumas décadas. Mesmo países com reservas externas significativas vêem-se aflitos com a inevitável quebra da procura para as suas exportações e receiam êxodos de capital, derivados da baixa de expectativas na performance das economias emergentes.  

Só o Governo de Cabo Verde parece apanhado por um optimismo quase eufórico. Boa governação,nas palavras do Primeiro-Ministro, é petróleo e é capital estratégico. Credibilidade externa, é um diamante a ser polido e a se extrair riquezas. O PM acredita que há condições para virar a crise a favor de Cabo Verde.

Deve-se ter mente, porém, que a crise actual marca o fim de um período de exuberância financeira, de crédito fácil e de enormes fluxos de capitais cruzando o globo à procura de retornos fáceis, rápidos e lucrativos. E também de oportunidades que não se repetem. O Governador do Banco de Cabo Verde, em entrevista recente, foi claro a esse respeito: após a crise nada será como antes no sector do Turismo.

Crises são pontos de viragem e como tal propiciam momentos preciosos e únicos para o ajuizar da caminhada feita. Várias oportunidades, designadamente nos sectores do turismo e da imobiliária turística e residencial, abriram-se para Cabo Verde durante os anos de expansão financeira.

Será que as aproveitou como devia? Será que soube imprimir um sentido de urgência à exploração plena das oportunidades oferecidas e mobilizar a energia e vontade nacional, necessárias para pôr o País a crescer no nível certo e baixar, a sério, o desemprego? Ou, mais uma vez, alimentou a fantasia de se tratarem de oportunidades perenes, porque resultam das qualidades especiais do País e dos caboverdianos? E que a postura certa deve ser a de parasitar, de extrair rendas, sem preocupação se a oportunidade definha, morre ou desaparece?  

Só esta última atitude de rentista sem imaginação pode justificar que se fique tranquilo enquanto são visíveis e notórios os projectos parados em várias ilhas, durante anos, a meio de confrontos entre o Estado e as Câmaras Municipais; os conflitos de terrenos entre particulares, Estado e Câmaras a dificultarem o registo de propriedade e a criarem um ambiente de insegurança jurídica; a incapacidade do Estado em assegurar níveis de ordem e tranquilidade pública, particularmente nas ilhas de vocação turística; o descontrolo na gestão da imigração clandestina; a incerteza criada no sector de energia e água por falta de capacidade de investimento; a ausência de planeamento urbano e de saneamento básico nas ilhas turísticas; a não implementação de uma política de habitação de suporte às migrações internas; o descurar do transporte marítimo e a falta de estratégia na unificação do mercado interno.

Tudo isso, e mais, são exemplos de políticas e de medidas de políticas que não foram tomadas com o sentido de urgência e a determinação certa por quem sabe, ou devia saber, que janelas de oportunidades só se abrem por tempo limitado. Janelas que não se mantêm abertas à conveniência de quem pôde vir a aproveitá-las.

A imagem do surfista é o que, talvez, melhor adequasse ao caboverdiano. O surfista sabe que ele nunca cria ondas, que elas não são eternas e que todas vão morrer à praia. Também sabe que a sua única chance é identificar as ondas o mais cedo possível e cavalgá-las no máximo de habilidade para poder ir mais longe. Sabe, ainda, que, ao longo da jornada, deve poder passar de uma onda para outra para se manter sempre em movimento.

Mas, aparentemente, o caboverdiano não quer ser surfista. Prefere alimentar a fantasia de que pode criar ondas. E que elas são eternas. Por isso diz que Cabo Verde está na moda, quando, a meio do boom imobiliário, Cabo Verde, a par com as Maurícias, as Seychelles, e muitas outras ilhas nas Caraíbas, também recebe atenção de capitais a procura de aplicação. Espalha pelos cantos que é o melhor governo de Africa, confundindo deliberadamente governo com governance, ou governabilidade, para se beneficiar da notoriedade do tema, logo que foi adoptado pelo Banco Mundial, FMI e outras instituições multilaterais para suprir o reducionismo das estratégias de desenvolvimento, no chamado consenso de Washington. Proclama que goza de credibilidadeinsuperável juntos de parceiros internacionais, porque a União Europeia, procurando conter fluxos migratórios a partir da Africa e com preocupações de segurança na sequência dos atentados terroristas em Madrid e Londres, desenvolve cooperação estreita para proteger o seu flanco sul.

O problema não é aproveitar, ou não, mudanças de conjuntura, modismos nas instituições internacionais, muitas vezes de natureza ideológica, ou interesses renovados de outros países. O problema é se, com isso, o País deixa de ter a sua própria agenda, de definir o seu próprio timing e de manter o olho na bola, como se diz na gíria futebolística. De estar focalizado nos objectivos e metas a atingir.  

E a grande realidade é que Cabo Verde falhou. Falhou o crescimento a dois dígitos e falhou em fazer cair o desemprego para menos de 10%. Os objectivos estabelecidos pelo Governo do PAICV ficaram longe de serem realizados. O crescimento mantém-se a 6% e o desemprego a mais de 20%.

A celebrada agenda de transformação do Governo falhou. Não deu os frutos pretendidos. 

Em relação à reforma do Estado é o próprio Chefe do Governo que vê na “postura da Administração Pública, face à economia e ao sector privado, muitos obstáculos, muitas barreiras e a persistência de uma atitude negativa em relação às empresas privadas e à capacidade de geração de riquezas”. 

Em sectores económicos estratégicos como os de energia e de transporte aéreo, o PM apelida de cancros as empresas públicas chaves desses sectores, depois de terem estado oito anos sob a direcção do seu governo.

O mercado de trabalho não foi estruturado nem qualificado. Segundo o Governador do BCV, em entrevista ao “Expresso das Ilhas”, para se atingir o objectivo de crescimento e emprego preconizados pelo Governo ter-se-ia de “passar por reformas e pela modernização da nossa economia e do nosso mercado de trabalho, conferindo-a maior flexibilidade. Ter-se-ia de promover em larga escala a formação profissional, porque, já hoje, a economia procura mão-de-obra que não encontra, porque os recursos humanos não têm a formação profissional necessária”.
  
O impacto do investimento público nas infraestruturas na economia é limitado a vários níveis. Não diminui significativamente o desemprego, não ajuda a afirmação e consolidação das empresas nacionais de construção civil e pouco arrasta a economia local. Também as opções e prioridades dependem menos de uma visão estratégica de desenvolvimento do país e mais de interesses de natureza política partidária do Governo e de conveniências privadas das empresas nas parcerias. 

Em relação ao turismo, o sector que podia trazer alguma dinâmica à economia caboverdiana é o próprio Governador do BCV a reconhecer as deficiências: a falta de formação profissional, serviço de transportes deficitários, baixa qualidade dos serviços de alojamento, de hotelaria e de restauração. E acrescenta: “A própria atitude dos caboverdianos em relação ao turista deve mudar”.  

A transformação de Cabo Verde ficou por fazer. E de todas as transformações possíveis a principal é a da atitude do caboverdiano. Da forma como se identifica, como relaciona com o Estado, como se vê no esforço nacional para o desenvolvimento, como encara o ensino e o conhecimento e como lida com as oportunidades. Também, do que espera da sua direcção política: Se são prendas e favores ou se é trabalho e condições no País para prosperar, de forma sustentada e  na Liberdade.

        Publicado no Jornal ASemana de 12 de Dezembro de 2008

sexta-feira, novembro 28, 2008

Ganhadores?! A dedo

A odisseia do Governo pelo sector de energia e água teve um novo desenvolvimento com a publicação do decreto lei n. 36/2008 de 10 de Novembro. A partir de agora o Governo pode adjudicar a concessão de produção de água e energia por ajuste directo a entidades privadas, no quadro de parcerias público-privadas.

No preâmbulo do decreto-lei referido, o Governo justifica essa decisão: a urgência em abastecer as populações com água e energia não se compadece com a realização de concurso público para a escolha de parceiro estratégico. E, por ser urgente, a escolha é a a dedo, a ser feita pelo ministro de economia (artigo 3º nº 3). E para tornar a parceria apetecível, garante-se 30 anos de exclusividade (artigo 10º nº 4).

É este o desfecho encontrado para a saga da Electra: A constituição de monopólios privados na produção de água e energia sem qualquer responsabilidade no transporte e  distribuição às populações. Um desfecho previsível, quando durante quase cinco anos se faz uma gestão desastrosa da relação com um parceiro estratégico de envergadura mundial como a EDP. Também previsível quando, ao convidar o parceiro a sair, ele fica liberto da promessa de conseguir financiamento no valor de 250 milhões de dólares para, em quinze anos, investir em energia e água. Ainda previsível quando se deixa a Electra atolada em dívida, porque fica sozinha com a dívida dos 70 milhões de dólares dos investimentos iniciais nos geradores e dessalinizadores da Praia, S.Vicente e Sal,  e as tarifas são geridas politicamente, absorvendo a empresa o diferencial entre os seus custos e o preço de venda ao público.

O conflito ideológico que rodeou as privatizações em Cabo Verde sempre obscureceu as razões de fundo porque se devia abrir vastos sectores da economia à iniciativa e gestão privadas. Privatiza-se, para se libertar o Estado da necessidade, via orçamento, de cobrir as ineficiências e os custos excessivos das empresas públicas. Ao fazer isso controla-se o défice, melhora-se a qualidade das despesas e contem-se a inflação. Privatiza-se, para ganhar, em sectores chaves da economia, uma outra capacidade de financiamento quanto ao volume de capitais a mobilizar quanto á definição do timing, do momento certo de investimento. Privatiza-se, ainda, para que haja dinâmica e inovação na gestão e para uma menor submissão das decisões económicas a constrangimentos políticos partidários do Estado.

São todas essas razões que foram atiradas ao ar quando o Governo deixou argumentos de campanha eleitoral persistir no seu discurso e permear as suas decisões. O que o Sr. Primeiro-Ministro há dias chamou de cancros, a Electra e a TACV, são exemplos paradigmáticos do que foi permitido acontecer. A Electra foi o palco da luta pelo resgate da terra supostamente vendida. A TACV sofreu com incursões de gestão que procuraram provar que privatizar era desnecessário. O Estado tem pago em milhões de contos os resultados dessas folias. Os indivíduos e a sociedade perderam em confiança, oportunidades e qualidade de vida.   

Privatizações implicam o reforço do papel regulador e fiscalizador do Estado. E o  reforço da função central do Estado na defesa do interesse público, em termos, designadamente, de previsibilidade, qualidade e preço de produtos. Garantir um ambiente de concorrência é, portanto, fundamental. E tal ambiente cria-se com a regulação e a fiscalização necessárias ao desenvolvimento de mercados, à inovação de processos e produtos, à melhoria da qualidade e à prática de preços justos. A existência de monopólios públicos ou, pior ainda, de monopólios privados é o que se deve evitar.

Monopólios naturais existem, a rede eléctrica é um deles, e recaem normalmente sobre bens de domínio público. São normalmente objectos ou de gestão directa do Estado ou de concessão. No caso de concessão, é por tempo limitado e envolvem investimentos programados, condições de prestação de serviço público estabelecidas, tarifas determinadas em concertação com autoridades reguladoras e devolução dos bens ao Estado no fim da concessão.

Na privatização da Electra foi liberalizada a produção de energia e água e foi assinado, em 2002, um contrato de concessão da rede pública. Com a perda do parceiro estratégico e a, de facto, nacionalização da empresa, o Governo rapidamente mostrou-se incapaz de equacionar e resolver os problemas de energia. Nos discursos e entrevistas de membros do Governo sobre o sector era evidente o desnorte. Todos os dias surgiam novas soluções: produtores independentes, incineradora da Praia a produzir energia, energias renováveis, aproveitamento de gradiente térmico oceânico, energia das ondas do mar. Chegou-se mesmo a falar na energia nuclear.

A realidade é o que já se sabia à partida. Dificilmente o Estado consegue financiamentos vultuosos, e no tempo certo, para fazer os investimentos estratégicos que se impõem. Na falta de capacidade de investimento e pressionado por razões políticas, o Governo opta por entregar ilhas ou municípios inteiros a privados. Como parece acontecer com a Boavista.  E, segundo o referido decreto-lei, como já está decidido para os municípios de Santa Catarina, São Lourenço dos Órgãos, São Miguel e São Salvador do Mundo.

Pergunta-se, quais são os ganhos para o País, para os consumidores, e para os operadores e investidores. No contexto de baixa de expectativas ou mesmo de resignação que vinha se verificando com a progressiva implosão da Electra qualquer coisa parece ser um ganho. A realidade é, porém, muito diferente. E os custos serão enormes, para todos.    

Á vista desarmada pode-se notar que, primeiro, ao entregar mercados potencialmente ricos e em expansão como o da Boavista e do Sal a produtores privados e deixar a Electra a operar nas outras ilhas só se precipita ainda mais o seu colapso. O bife de lombo é entregue a um enquanto outros ficam com o osso para roer. Segundo, com os produtores privados não se vê qualquer alteração vantajosa no preço da água e energia. Cobram os preços da Electra. Preços que já incluem as ineficiências e a estrutura pesada de uma empresa que tem presença em todas as ilhas e em quase todos os pontos do território nacional. Ou seja, os consumidores nas ilhas não ganham directamente com tarifas mais baixas, nem se melhora, com menores custos de factores como energia e água, a competividade da ilha, na atracção de investidores. Mas os lucros dos produtores, esses, devem ser fabulosos. Não têm os custos da Electra.

Por último, ao decidir pela concessão da produção com exclusividade de 30 anos, segundo o decreto-lei 36/2008, o Governo deixou para o Estado e para os municípios a responsabilidade de construção, manutenção e expansão das redes públicas. Ficou com a parte mais custosa. Normalmente garante-se, por algum tempo, exclusivo de fornecimento ou especial facilidade de acesso em troca de gestão e desenvolvimento de um bem de domínio público. Dar exclusividade nestas circunstâncias, sem correspondente responsabilidade em assegurar todos os meios de prestação do serviço público, configura o estabelecimento do pior dos monopólios privados. Monopólios que, como todos os outros, vão estar em posição de extrair rendas, com prejuízos para os consumidores e para economia em geral.

O Governo parece estar a engajar-se num processo de “pick the winners” de “escolha dos ganhadores” que noutras paragens conduziram ao nepotismo, ao clientelismo e à corrupção. Foi descuidado com a gestão dos terrenos e, outra vez, para obter ganhos políticos instantâneos e contornar erros graves de governação, trilha caminhos duvidosos. Até se envereda por oferecer subsídios, sem concurso público, a empresas de transporte marítimo que só prevêem operar em Janeiro de 2010 (Resolução nº38/2008 de 17 de Novembro).

A  percepção da fragilidade da estrutura produtiva e da dependência excessiva de fluxos exteriores, mais evidentes hoje no contexto de crise generalizada, devia tornar o Governo e outros sujeitos políticos menos ideológicos e mais pragmáticos. Devia constituir um lembrete permanente aos governantes, mas também á toda a classe política, que não se pode dirigir o País com preocupações eleitorais permanentes. E devia afastar qualquer tentação de, à partida e sem transparência, escolher ganhadores no processo de crescimento da economia nacional. 

      Publicado no jornal ASemana de 28 de Novembro de 2008

segunda-feira, novembro 17, 2008

Nós e a Crise

Na sexta feira passada o Banco Central de Cabo Verde actuou face à crise que avassala o mundo. Alterou em 50 pontos a taxa directora lançando a taxa de redesconto para 7.5% e a taxa de facilidade de cedência para 8.25%. O objectivo é controlar os fluxos da balança de pagamentos e a inflação. Os aumentos das taxas praticadas pelo BCV têm o condão de, pela via do encarecimento do crédito, travar o consumo e, por aí, conter importações dissipadoras das reservas externas. Também no sentido inverso, taxas mais favoráveis incentivam emigrantes a fazer depósitos em Cabo Verde. Com isso pretende-se conservar algum conforto ao nível de reservas e garantir estabilidade do peg da moeda caboverdiana ao euro.  

A actuação do BCV verifica-se num momento em que bancos centrais em todos os continentes movem-se para assegurar liquidez ao sistema financeiro internacional e restaurar confiança entre os seus operadores. Procura-se evitar que o aperto ao crédito lance a economia real na maior das crises desde da Grande Depressão de 1929. Até agora tem sido bastante limitado o sucesso conseguido pela operação conjunta de bancos centrais e governos. Medidas como seguro dos depósitos, injecção directa de capitais via compra de acções nos grandes bancos e garantia do Estado a novos empréstimos não conseguiram evitar que o espectro de recessão económica paire e já assombre o mundo inteiro.

Países que dias, semanas atrás achavam-se a salvo da crise por não se terem envolvidos com os chamados produtos financeiros tóxicos, subprime e outros derivativos, vêem-se agora no olho do furacão. De facto já não é só a Islândia, mas também outros países como a Ukrânia e a Hungria, a  solicitar pacotes salvadores do FMI. Amanhã poderá ser a Rússia, a Africa do Sul ou o Brasil, países que pensaram estar protegidos atrás das enormes reservas externas acumuladas na base de vendas em alta de matérias-primas, produtos agro-pecuários, petróleo e metais preciosos.

Ninguém consegue prever a dimensão da recessão global que se aproxima. Nem como afectará a economia de países e regiões. Tudo leva a crer, porém, que o mundo saído da crise não será o mesmo. O que permitiu o crescimento de um sector financeiro de bancos de investimento, fundos de risco (hedge funds), e fundos privados de investimento (private equity), armado de produtos, cada um mais esotérico do que o outro, paralelo ao sector bancário e com um mínimo de regulação. 

Poderá vir a ser um mundo em que a actual distribuição do poder económico terá representação adequada nos centros de decisões das organizações internacionais de supervisão da economia mundial. Particularmente as de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, criados em 1946, que ainda espelham a relação de forças saída da II Guerra Mundial.

Países como a China, o Brasil e a India não podem ficar de fora. Devem assumir responsabilidade comensurada com o seu peso nos fluxos globais. De facto, na origem dos problemas financeiros de hoje também se encontra o ambiente de crédito barato nos países desenvolvidos. Países com largas reservas externas como a China, para evitar a valorização da sua moeda, reinvestiram muito das suas reservas na América, fazendo baixar as taxas de juro e contribuindo para o endividamento das famílias. No processo geravam forte procura para os seus produtos e garantiam crescimento das exportações, o sector motor da economia.

A crise veio, porém, demonstrar que não é possível manter por muito tempo o mundo dividido em países com grandes excedentes e países com enormes défices na balança comercial, sem que algo acabe por ceder. A extrema interligação de todas as economias na fase actual da globalização não permite que ninguém fique incólume quando isso acontece. É o que se vê hoje.   

Economias pequenas como a caboverdiana são as mais vulneráveis. Não têm dimensão para condicionar em favor próprio as relações económicas internacionais. O mercado interno é exíguo e não pode compensar, em tempos de recessão global, pela queda na procura de bens e serviços nos mercados externos. Em existindo recursos naturais, a recessão também faz cair os preços das matérias-primas, contribuindo para perda de receitas externas.

No caso concreto de Cabo Verde, a situação é ainda mais grave. Não tem recursos naturais e tem uma base exportadora exígua que, segundo o relatório de Julho do FMI,  restringe-se cada vez mais ao turismo. Quer dizer que a sua sustentabilidade económica e financeira actual depende dos fluxos financeiros que poderá mobilizar. No ambiente de crise essa dependência excessiva do exterior e de factores que não tem controle directo, pode tornar-se crítica.

Porque as remessas de emigrantes são afectadas pelo nível de emprego e pelas expectativas de crescimento nos países de acolhimento. A diminuição do investimento directo estrangeiro, em consequência de fortes constrangimentos ao crédito ao nível internacional, já é sentida na quase paralisia do sector imobiliário e turístico, em várias ilhas. A ajuda externa não deixará de se ressentir, no futuro próximo, com as dificuldades orçamentais dos países doadores, derivadas das acções de restauro de confiança no sistema financeiro. E a capacidade do Estado em contrair empréstimos para investir em infraestruturas e no sector energético sofrerá certamente com o encarecimento inevitável do crédito nos mercados de capitais.

No mundo inteiro todos estão a preparar-se para maus momentos a curto e a médio prazo. A preocupação em muitas paragens é de aproveitar a crise para um renovado olhar sobre o país, a sua sociedade e a sua economia. Procura-se vislumbrar o que de essencial se precisa fazer para elevar a produtividade nacional, tornar as empresas nacionais competitivas e o país atractivo para capitais estrangeiros, visitantes e turistas.

Cabo Verde não é excepção. Não pode ver-se como imune ao que se passa lá fora. A fotografia macroeconómica actual até pode mostrar-se tranquilizadora para alguns. Mas, em ambiente de crise, fragilidades não aparentes podem emergir e mudar tudo. É o que aconteceu na Islândia e noutros países. Na Hungria, no  Brazil e na  Austrália, por exemplo, empréstimos individuais e empresariais, feitos em moeda estrangeira e a taxas mais baixas do que as praticadas ao nível nacional, que até recentemente sustentaram investimentos diversos e expansões rápidas na imobiliária, agora, com a valorização do dólar e do yen japonês, contribuem para a queda do valor das moedas desses países e a fuga de capitais.

Recentemente, de diferentes quadrantes políticos, institucionais e empresariais vieram sugestões no sentido de total liberalização de capitais em Cabo Verde. Isso não obstante a experiência negativa da crise financeira de 1997 que da Tailândia, Indonésia e Coreia do Sul passou para o  Brazil, a Rússia e a Argentina. Esses países, muitos deles com peg fixo no dólar, sofreram os efeitos do chamado hot money, os capitais de curto prazo que podem entrar e sair rapidamente e que, em certas circunstâncias, podem ser altamente destabilizadores, mesmo quando, aparentemente o quadro macroeconómico não prenuncie problema nos os fundamentals da economia. Espera-se que a falada facilitação de acesso a crédito exterior directamente por privados nacionais à cata de taxas de juro mais baixas, a ter-se concretizada, não se revele, hoje, como mais um ingrediente na fragilização da balança de pagamentos do País.

A pequenez da economia nacional e a fraca densidade empresarial limitam, por outro lado, os instrumentos que o Estado poderá socorrer-se para estimular a economia e fazer face à crise. Isso porque qualquer aumento da procura tem efeito directo nas importações, com as consequentes tensões nas reservas externas. Diferentemente do que se passa noutros países, onde estímulos fiscais têm o efeito de arrastamento na economia nacional porque uma parte considerável de bens e serviços são produzidos localmente. Isso não significa naturalmente que o Estado não deva procurar responder às dificuldades das populações, particularmente das mais vulneráveis e que mais sofrem com os efeitos da crise, designadamente com os efeitos de diminuição de remessas de familiares e da alta de preços devido à  inflação.

Todos os países procuram responder à crise reajustando as prioridades nacionais e mobilizando a vontade nacional. Baixa-se mesmo a tensão política. Dada a especial vulnerabilidade de Cabo Verde esse exercício é urgente.

 À partida, porém, parece evidente que o Estado deverá orientar-se resolutamente para estimular actividades económicas em áreas de serviços particularmente de exportação que criam emprego e potenciam o fluxo turístico para Cabo Verde. No sector da educação a atenção nacional deverá focalizar-se intensamente na qualidade. A estruturação do mercado de trabalho poderá potenciar o esforço nacional na formação profissional, na criação do emprego e no aumento da produtividade. A eliminação dos múltiplos entraves à unificação do mercado nacional certamente introduziria uma nova dinâmica na economia nacional. A organização de uma oferta de serviços com base na cultura caboverdiana claramente é uma opção a fazer.

Tempo de crise. Oportunidade para deixar para trás ilusões de dependência e fazer o que dignifica os indivíduos e engrandece a Nação.  

         Publicado no Jornal ASemana de   Novembro de 2008