sexta-feira, abril 28, 2017

Opções e compatibilidades

A intenção expressa do Governo de isentar de vistos a cidadãos de países da União Europeia e do Reino Unido provocou um vendaval de protestos em alguns sectores de opinião. O governo justifica a decisão com o crescimento dos fluxos turísticos que irá provocar. Argumentos contrários variam nos detalhes, mas em geral denotam hostilidade a uma isenção de vistos a cidadãos europeus. O facto de esses mesmos fluxos turísticos contribuírem crescentemente para a economia do país, para a criação de emprego e para aumento do rendimento é aparentemente atribuído menor importância quando comparado com o facto de os cabo-verdianos não terem isenção de vistos para estadias curtas no espaço Schengen.
Independentemente de se saber se a medida de isenção de vistos é, em termos de custo/benefício para o país e de satisfação dos turistas, a melhor via para facilitar a vinda de turistas para as ilhas, não deixa de ser revelador a forma como se faz a sua contestação. É apresentada em roupagens “identitárias”, defendendo a “dignidade do povo” e reclamando “reciprocidade de vantagens”. E enquanto os argumentos são esgrimidos não se vislumbra qualquer preocupação em como se poderá estar a pôr em causa as relações complexas com o espaço europeu que é aquele com quem são mais profundos e abrangentes os laços comerciais e de onde vêm o grosso das remessa dos emigrantes, da ajuda externa, do investimento directo estrangeiro e dos turistas. Uma atitude que contrasta fortemente com a complacência com que se encara a relação com a região ocidental africana (CEDEAO). Não obstante, os acordos existentes e de décadas de supostos esforços de integração, o comércio regional não descola, mas a livre circulação de pessoas, na prática e em números significativos, só acontece do continente para as ilhas, com aumento contínuo da população oriunda dos países da CEDEAO.
Aí não se vê o princípio de reciprocidade com vantagens que constitucionalmente as relações internacionais do país, incluindo o acordo de livre circulação na CEDEAO, deviam ter em devida conta. Aparentemente, neste caso, os sentimentos sobrepõem-se aos interesses do país enquanto, no caso da isenção de vistos para cidadãos europeus, há quem esteja disposta a sacrificar os interesses directos e imediatos dos cabo-verdianos na luta pelo desenvolvimento no altar de pretensos sentimentos forjados e formatados por uma ideologia pan-africanista já completamente datada. A pergunta que legitimamente todos os cabo-verdianos deviam colocar é por que razão o país até hoje não conseguiu isenção de vistos em estadias até 90 dias no espaço Schengen. Países recentes como Timor-Leste e ilhas e arquipélagos na Ásia, nas Caraíbas e na África (Maurícias e Seicheles) conseguiram-na. A resposta talvez seja o facto de Cabo Verde ter uma fronteira permeável com países africanos que por razões múltiplas não gozam dessa mesma isenção de vistos. Se assim for, torna-se evidente que o maior obstáculo em se conseguir circular na Europa com maior facilidade é precisamente o acordo de livre circulação na CEDEAO. E enquanto o acordo existir e/ou se manter o estado actual das coisas em que não se dá garantia de ter fronteiras seguras seria de bom-tom, em termos de honestidade e seriedade, que os governantes e outras forças políticas deixassem de alimentar ilusões de livre circulação para breve na Europa. Todas as opções têm custos e benefícios. A diferença é que em certos casos como é o do acordo de livre circulação na CEDEAO, os custos são completamente desproporcionais em relação aos eventuais benefícios.
Num mundo de clivagens raciais, étnico-linguísticas e religiosas, as características culturais e humanas de Cabo Verde podem constituir uma significativa vantagem competitiva. Para além do clima aprazível e das ofertas de sol e mar, o país está em condições de propiciar aos turistas um ambiente sem tensões raciais e sem choques culturais. Para muitos turistas do Norte da Europa, da Alemanha e do Reino Unido alguns dos destinos tradicionais na bacia do Mediterrâneo já não parecem tão interessantes devidos aos riscos crescentes do terrorismo e hostilidade das populações. Pode ser a oportunidade para Cabo Verde com as suas características únicas oferecer-se não só como destino turístico alternativo, mas particularmente para acomodar os muitos pensionistas que a cada ano que passa procuram viver os seus tempos de reforma num ambiente tranquilo e seguro. Pressupõe, porém, que haja compreensão da importância em se dinamizar o turismo e a imobiliária residencial especialmente se estiver associada à prestação de cuidados de saúde dirigidos à terceira idade, e um comprometimento colectivo nesse sentido.
 Para isso Cabo Verde não pode continuar a passar a imagem de um país dividido, inseguro da sua própria identidade e com mágoas em relação a outros povos que vem sendo projectada, desde o anúncio da decisão do governo em isentar de visto turistas europeus, às vezes de forma aberta, outras vezes do forma velada, em debates calorosos no parlamento, na comunicação social e nas redes sociais. Infelizmente, não é a primeira vez que isso acontece. Viu-se algo similar quando foi do anúncio do acordo cambial em 1998 que estabelecia a ligação do escudo cabo-verdiano ao escudo português e posteriormente ao euro. Não era de repetir, mas parece que ainda há forças na sociedade cabo-verdiana que vêm nas medidas de aproximação à Europa oportunidade para fazer política na base de divisão.
A simples troca de ideias quanto à melhor abordagem para potenciar ainda mais o fluxo de turistas rapidamente baixa o nível, muda o tom do debate e faz lembrar as lutas antigas em que os autoproclamados defensores da africanidade se mostravam demasiado prontos em acusar os outros de assimilados ou de terem sido comprados por interesses estrangeiros. Na actual encruzilhada em que país procura o melhor caminho para crescer, criar emprego e propiciar mais rendimentos às pessoas, não é da perniciosa divisão entre “nós” e os “outros” que o país necessita. Precisa, sim, é de um esforço conjunto de todos para fazer valer as vantagens únicas que o país detém e com a sua utilização inteligente encontrar os caminhos para a prosperidade e o desenvolvimento sustentável. 
           Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 26 de Abril de 2016

sexta-feira, abril 21, 2017

Interesses e não sentimentos

A relação entre Cabo Verde e Europa veio mais uma vez à baila em pronunciamentos de entidades nacionais e estrangeiras. O primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva numa reunião na ilha de Malta disse meio a brincar que a entrada de Cabo Verde para União Europeia podia compensar a saída do Reino Unido. Reacções múltiplas surgiram de vários quadrantes com destaque para o artigo do deputado europeu Ribeiro e Castro e pelas declarações do ministro português dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva, todos de apoio ao aprofundamento da parceria de Cabo Verde com a União Europeia (UE). Nas redes sociais e nos comentários dos jornais online mais uma vez saíram à frente os “africanistas” contra o que consideram tentativas recorrentes de certos sectores e de alguns intelectuais de se aproximar da Europa em detrimento da África. O ex-presidente da república Pedro Pires a partir de Marrocos numa conferência organizada pela Mo Ibrahim aconselhou que com a UE Cabo Verde procurasse ter boas relações e com a África pusesse como objectivo a integração económica.
 Um indicador importante de como e com quem Cabo Verde se situa e se relaciona no mundo pode ser encontrado nos dados do comércio externo. O INE na sua última publicação aponta que no ano 2016 o país importou 79% das mercadorias da Europa enquanto da África só se chegou a 3,2%. Quanto às exportações, 97,4% dirigem-se para Europa e 0,6% tem como destino países africanos. Se acrescentarmos a esses dados o facto de que grande parte das remessas de emigrantes, da ajuda ao desenvolvimento, do investimento directo estrangeiro e das centenas de milhares de turistas têm origem na Europa fica evidente qual é a profundidade e abrangência dos laços que ligam Cabo Verde a esse continente. Com outros países certamente que existem relações económicas e outras que importa sempre aprofundar no interesse da nação cabo-verdiana. Não é razoável que se queira focalizar atenção, energia e recursos numa integração com uma região que mesmo após 40 anos de independência ainda não se conseguiu ir além de algumas centenas de milhares de contos em trocas comerciais com possível prejuízo de uma exploração mais exaustiva de relação multifacetada com a Europa cujo potencial de crescimento se revela cada dia maior.
Por razões ligadas a conjunturas históricas específicas, o Cabo Verde independente afirmou-se como país africano e procurou activamente integrar-se na África via um projecto de unidade com a Guiné-Bissau que não se concretizou e foi dado como morto ao fim de cinco anos. Depois desse falhanço não se conhece iniciativa nos dez anos do então governo que resultasse em passos concretos no sentido de integração para além da retórica político-ideológica de caracter pan-africanista que foi introduzida depois da independência nacional. Nas décadas seguintes também não se adiantou muito apesar das tentativas de estabelecimento de ligações marítimas e de algumas iniciativas sem sucesso de privados na internacionalização das suas empresas para os países mais próximos e na criação de circuitos de exportações para produtos nacionais. Ou porque realisticamente não era possível, ou por não houve medidas de política consentâneas com a retórica político-ideológica, o facto é que as trocas comerciais não passaram do nível quase residual que têm hoje e os cabo-verdianos, não obstante a aproximação, não passaram a conhecer melhor a sociedade, os negócios e a cultura dos países e povos vizinhos.
Dizia Lord Palmerston, um primeiro-ministro inglês do século XIX, que “as nações não têm amigos ou aliados permanentes, só têm interesses permanentes”. Cabo Verde não deve permitir que questões identitárias, ideologicamente criadas, se coloquem no caminho da realização dos seus interesses. É evidente o potencial de crescimento económico que existe no aprofundamento de uma relação estratégica com a Europa. Uma relação aliás que nem deve ser vista logo à partida na perspectiva de mobilidade, ou seja, de facilitação da emigração de cabo-verdianos. A exemplo do que se conhece da construção da União Europeia, convém que a livre circulação venha depois dos vários países já terem ganho maior crescimento e mais emprego com o aprofundamento de integração das respectivas economias. Evitam-se assim desconfianças, mal-estar e ressentimentos. O foco deve estar na identificação de interesses que conjuntamente podem ser realizados juntos com vantagens para todos.
A procura em crescendo de Cabo Verde pelos europeus para gozar uns dias de sol e praia e também para conhecer outras atracções que as ilhas oferecem não deve ficar simplesmente entregue à sua dinâmica própria e aos interesses dos actuais operadores. Deve ser potenciada no sentido da criação de estadias mais prolongadas e com maior impacto na economia nacional. Uma possível via para isso seria procurar estender a Cabo Verde o conhecido fenómeno da fixação de pensionistas britânicos e de outros países do Norte da Europa no Algarve, no Sul da  Espanha, da França e da Itália e também na ilha do Chipre. As incertezas criadas pelo Brexit podiam ser uma oportunidade para se explorar a possibilidade de criar um fluxo em direcção a Cabo Verde. São evidentes os ganhos que viriam de uma população disposta a estadias prolongadas, dotada de poder de compra e a necessitar de acompanhamento local em termos de cuidados de saúde.
A Europa lida com o problema inescapável de envelhecimento da sua população e dos custos associados que com o aumento da esperança de vida ficam mais pesados. Oferecer-se para ajudar a minorar os custos e proporcionar uma melhor qualidade às pessoas pode ser das tais parcerias que poderia pôr Cabo Verde num caminho sólido de desenvolvimento. Daria sentido a uma estratégia de atracção de investimento externo em direcção a investidores institucionais, orientaria a formação profissional para ocupações com futuro e com investimento estratégico na saúde disponibilizaria cuidados que só com os recursos actuais dificilmente se poderá fornecer aos cidadãos. O país ficaria em melhor posição de diversificar a sua economia e diminuiria a sua dependência do turismo nos moldes actuais e dos seus operadores.
Cabo Verde oferece várias vantagens designadamente a sua posição nos trópicos, o tempo de viagem aérea sem “jet lag” e também o facto de a proximidade cultural e religiosa limitar choques culturais. Garantida a segurança das pessoas, o país poderia colocar-se na posição de desenvolver, com ganhos para todos, um nicho de mercado com futuro. Para isso porém teria que mudar a atitude para criar uma cultura de serviço e não se deixar ficar pela retórica político- ideológica que tem-lhe impedido de seguir os seus reais interesses iludido por elementos pseudo identitários. 
       Editorial do jornal Expresso das Ilhas 19 de Abril de 2016

sexta-feira, abril 07, 2017

Inactivos relutantes

A divulgação pelo Instituto Nacional de Estatística dos dados do emprego em Cabo Verde é sempre momento de controvérsia. A impressão que se fica é que tendem a confundir mais do que a esclarecer. O método utilizado na recolha de informação e algumas incongruências nos dados apresentados também não ajudam. Um exemplo é tomar como empregado alguém que só trabalhou uma hora na semana de referência e que continuou a procurar trabalho nas quatro semanas seguintes.Não parece razoável nem muito útil para se ter uma ideia real da situação laboral no país. Também é de alguma forma contraintuitivo ter estatísticas a apontar para uma taxa de crescimento económico do país (3,9%) em 2016, mais do triplo do que foi o crescimento em 2015 (1,1%), e em simultâneo anunciar o desemprego a aumentar em 2,6% em relação a esse mesmo ano. 
Nos dados de desemprego de 2015 apresentados pelo INE, em Maio de 2016, tinha sido o contrário. A queda da taxa de desemprego de 15,8% para 12,4% foi anunciada quando menos se esperava. O PIB nesse ano crescera a 1,1%. A causa desta aparente falta de correspondência entre crescimento do PIB e a taxa de desemprego teria sido o aumento brusco dos inactivos em 2015. Outra vez, mas agora em sentido inverso, nota-se a variação na taxa de desemprego com a baixa do número de inactivos e consequente aumento substancial da população activa. Interessante notar um fenómeno análogo no número de trabalhadores inscritos no INPS. Em 2015, com menos desemprego, tinha passado de 41% para 35,9% e agora no ano de 2016 aumenta de 35,9% para 37,3% quando se anuncia mais desemprego. É evidente que com estes desencontros de números o panorama real do país em matéria de emprego não fica claro. E os ruídos político-partidários com as interpretações de conveniência ainda pioram o quadro, porque desviam do essencial: pôr o país a crescer e a criar emprego com qualidade e sustentabilidade.  
Uma questão de grande importância trazida pelos dados do INE é do aumento progressivo da taxa de desemprego à medida que se eleva o nível de instrução. É maior entre os licenciados do que entre os trabalhadores com instrução básica. A falta de adequação entre o sistema de ensino e as necessidades da economia foi aí comprovada. Não espanta que um significativo número de pessoas classificadas, 36,3% do total, diz que não procura trabalho porque não há emprego adequado. Imagine-se os enormes investimentos do Estado e das famílias na formação das crianças e jovens feitos durante anos que ficam sem retorno e as expectativas de realização pessoal e profissional que ficam goradas. Tudo porque não se conseguiu pôr em prática políticas públicas em domínios chaves de desenvolvimento de forma coerente, articulada e com propósitos bem definidos. São custos que vêem somar aos que paulatinamente se revelam com o esvanecer dos efeitos do ilusionismo que dominou o país por demasiado tempo. 
Num país com as condições de Cabo Verde, sem recursos naturais e como diminuta população, o mais lógico seria que se fizesse um investimento compreensivo e estratégico nos recursos humanos. Foi o que fizeram os grandes casos de sucesso designadamente Singapura, Maurícias, Finlândia, Irlanda e recentemente a Estónia. Tornaram a formação num elemento fundamental de competitividade dos seus países numa perspectiva de integração dos respectivos países em cadeias de valor com abrangência mundial. Não se deixaram cair na armadilha de querer desenvolver-se com reciclagem da ajuda externa e políticas autárcicas e de hostilidade ao investimento estrangeiro e ao turismo.  
Também diferentemente de Cabo Verde, sempre puseram o desenvolvimento do sector privado nacional no centro das suas políticas. Não se deu educação e formação a crianças a jovens mantendo bem presente a ideia que trabalho seguro e desejável é o trabalho do Estado. Excederem-se em promover a necessidade de excelência em tudo e particularmente nos estudos. Não aconteceu como em Cabo Verde que, à procura de excelência, quando repetida nos discursos como um fim a atingir, entrava em contradição com as práticas vigentes de contratação e promoção que demasiadas vezes fugiam a critérios de mérito para serem produto de favoritismo, militância político-partidária e jogo de interesses. 
Hoje, quando muitos lamentam a qualidade do ensino superior e o seu desajuste com as necessidades de mercado, esquece-se o orgulho que as autoridades há poucos anos mostravam com as dez universidades criados em menos de uma década. Deleitavam-se a antever as oportunidades que segundo eles iriam ser criadas. Importava na época era ter os jovens saídos dos vários liceus, e que não viam qualquer sinal na economia que estavam adequados para o mercado de trabalho, a prosseguir os estudos, não interessava quais. Com o diploma de licenciatura teriam trabalho. O resultado é o que se vê. 
Na encruzilhada em que se encontra o país, as perspectivas não são as melhores. Os jovens não têm as melhores competências linguísticas nem a português para não falar na competência a matemática e nas ciências que podiam torná-los atractivos numa série de indústrias e serviços com futuro garantido. O Estado, com os constrangimentos da dívida pública e outros, vai absorver cada vez menos mão-de-obra. Os investimentos no turismo e em certa indústria não exigem, em regra, muita qualificação dos trabalhadores. Os apelos dos governantes para as pessoas se auto-empregarem e serem empreendedores tem efeitos limitados. A serem ouvidos,  na maior parte dos casos só poderão resultar em empreendedorismo de necessidade porque  empreendedorismo de oportunidade exige outras condições e outro ambiente de negócios que o país ainda não tem. 
Facto é que com a mudança de governo muitos que estavam inactivos regressaram à população activa mesmo que como desempregados. Aí há alguma esperança que as coisas podem mudar. O governo deve estar ciente disso e agir para manter vivas as expectativas das pessoas e pensar estrategicamente como deve posicionar o país e adequar os seus recursos humanos para melhor integrar-se em cadeias de valor global, seja em serviços, seja em produção de bens. Para que os que agora voltaram, não caíam outra vez na desesperança dos anos atrás.  
        Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 5 de Abril de 2016