sexta-feira, janeiro 26, 2024

Omissões pagam-se caro

 

Na quinta-feira passada, dia 18 de Janeiro, a secretária geral da UNTC-CS e membro do conselho directivo do INPS, em entrevista à rádio pública, defendeu que o INPS tinha toda a legitimidade para promover o leilão dos depósitos. Segundo a Inforpress, acusou os bancos de viver às custas dos contribuintes sequestrando fundos públicos. Também teria dito que o BCV esteve muito mal alegando que os fundos não deviam ser transferidos dos bancos para o INPS tornando-se cúmplice do referido sequestro. Seguiram-se comunicados do BCN, do BCV e finalmente do INPS a explicar as respectivas posições sobre o imbróglio. Do governo que tem a tutela do INPS ainda não se ouviu nada não obstante a delicadeza da situação e os cuidados a ter com o sistema financeiro em matéria que o próprio Banco Central classifica de risco sistémico.

A questão que opõe o INPS aos bancos já tinha sido aflorada em dois números anteriores do jornal a Nação com base, supõe-se, em fugas de informação ou acesso privilegiado a fontes sem que as partes envolvidas se sentissem na necessidade de qualquer explicação pública dos acontecimentos. Não deixa de ser uma postura típica no país de, perante coisas importantes a acontecer, faz-se por ignorá-las ou então procura-se varrer para debaixo do tapete. A intervenção da dirigente sindicalista teve o condão de forçar os envolvidos a dar esclarecimentos. A partir daí que se ficou a saber que o BCV, desde 12 de Dezembro, tomou conhecimento da reclamação dos bancos e agiu para acautelar eventuais riscos sistémicos “recomendando aos bancos que se abstivessem de participar nos leilões até que “medidas de mitigação de risco e métricas adicionais de monitorização da liquidez” fossem equacionadas pelo Banco Central.

Da leitura dos comunicados emitidos percebe-se o mal-estar que foi instalado no sector e que tem perdurado por mais de um mês. Aliás, as saídas na imprensa já eram sinal disso culminando nas acusações dirigidas aos bancos comerciais e ao BCV. Quanto a eventuais efeitos no público e nos operadores económicos, o BCN fez questão, através do seu comunicado, de assegurar que os depósitos do INPS estão integralmente disponíveis e que não há condicionantes à sua movimentação. Da parte do BCV a suspensão imediata dos leilões dos depósitos do INPS traduziu a preocupação do BCV com os impactos negativos que uma eventual materialização do risco de liquidez poderia ter em instituições que, embora sem grande importância ou dimensão sistémica, desempenham um papel importante no financiamento das famílias e das empresas.

Desde a crise financeira de 2007-2008 que garantir que a estabilidade financeira, a par da estabilidade dos preços, passou a estar no centro da atenção dos bancos centrais em todo o mundo. Intervenções no mercado são despoletadas para manter liquidez no sistema financeiro e dar combate à inflação sempre que algo anómalo se manifeste. Há quase um ano atrás, por causa de retiradas súbitas de depósitos do banco Silicon Valley (SVB) nos Estados Unidos, rapidamente o banco central em coordenação com a Secretária do Tesouro, Janet Yellen, e outras instituições de regulação se movimentou para garantir liquidez com vista a evitar a corrida aos depósitos e o efeito de contágio nos outros bancos.

O SVB não era considerado um banco sistémico no sentido que a sua falência poderia causar disrupções graves no sistema. Mas há algum tempo que se apercebeu que as crises nascem onde menos se espera. Daí justificar-se ficar sempre alerta. O BCV no seu comunicado diz que já no Relatório de Estabilidade Financeira de 2022 tinha alertado que a “dependência de financiamento de depositantes institucionais [pode] aumentar o risco sistémico e de contágio para todo o sistema bancário nacional. Estranha é que, não obstante todos esses alertas, inovações no sentido de leiloar depósitos do INPS e conseguir taxas de retorno mais altas não tenham aparentemente recebido o devido escrutínio prévio para se ter uma ideia das implicações no sistema.

Os bancos queixam-se que não tiveram conhecimento do regulamento do leilão e dos critérios de selecção e o INPS contrapõe que já constavam da carta-convite e que as dúvidas foram esclarecidas durante a abertura das propostas. O BCV diz que só tomou conhecimento da matéria com a reclamação dos bancos que aconteceu após o primeiro leilão. Quanto ao governo, em particular o ministro das Finanças que, segundo os Estatutos do INPS, alínea e) do nº 2 do art. 3º, exerce a tutela conjunta com o ministro da Família e Segurança Social em matéria de “definição das regras de gestão financeira e investimentos dos fundos próprios do INPS”, não se sabe quando é que teve conhecimento da questão. Até agora não deu qualquer sinal sobre o assunto apesar de tudo o que continua a vir a público na comunicação social.

Infelizmente não é esta a única matéria sensível e urgente que, por exigir acção coordenada de vários intervenientes, precisa de uma atenção mais cuidada do governo. O problema é a tentação generalizada, que também se nota noutras paragens, de fazer da governação uma mistura de marketing político, espectáculo e actos performativos dirigidos para a mobilização de emoções. Não resta muito tempo ou disponibilidade para uma entrega a questões mais complexas e de ganhos a médio e longe prazo que são essenciais para construir um futuro sólido e com menos sobressaltos. E omissões em questões estruturantes acabam por acontecer.

É só ver como nesta questão essencial de “melhor servir e de garantir com maior segurança a rentabilização dos recursos da protecção social obrigatória” como se propõe fazer o INPS no seu comunicado não se avançou com a criação do organismo autónomo de gestão dos investimentos do INPS assim como estipula o artigo 42º dos seus estatutos publicados em Agosto de 2014. É o que existe em todos os países que procuram capitalizar de melhor forma a poupança social. Cria-se capacidade própria e autónoma para gerir uma actividade que exige níveis elevados de especialização técnica, de controlo de riscos e de eficiência e que também inspira credibilidade.

Segundo o decreto-lei nº 40/2014 devia ter sido criada no prazo de quatro meses após a publicação no BO, ou seja, até Dezembro de 2014. Seguramente por conveniências várias os sucessivos governos têm sido relutantes em seguir pelo caminho que a lei os impõe. A responsabilidade de conseguir uma melhor rentabilização dos recursos do INPS e de, ao mesmo tempo acautelar para eventuais riscos sistémicos que os seus enormes depósitos poderão provocar, cria, porém, uma nova urgência. É para se cumprir a lei. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1156 de 24 de Janeiro de 2024.

sexta-feira, janeiro 19, 2024

Semana da República: a reconciliação que não foi

 

O presidente da república tem chamado a atenção para as ameaças à democracia em várias intervenções nos últimos dias, designadamente na sessão solene do 13 de Janeiro, o Dia da Liberdade e da Democracia e nas celebrações do 15 de Janeiro, Dia das Forças Armadas. Em ambos discursos do PR fica-se com forte impressão que considera que é na natureza da disputa entre os partidos políticos que reside o essencial da ameaça ao regime democrático. Uma disputa pelo poder que, segundo ele, “passa a ser uma disputa sem quartel, visando a liquidação do adversário, com acusações, calúnias, insultos, assassinato de carácter, muitas vezes sem possibilidade de defesa, afectando as instituições da República”. Daí que considera “a importância de se reinventar os partidos políticos” e, num outro registo, que face às ameaças à democracia é “fundamental, de mãos dadas, trabalhar para manter o prestígio e a dignidade das Forças Armadas”.

Apesar do PR terminar o discurso do dia 13 de Janeiro com vivas aos partidos políticos, é de se perguntar se não se está a reforçar o sentimento anti-partido com a sugestão de que o problema das democracias modernas (crise de representatividade, a nova realidade das redes sociais e desencanto e ressentimento por razões de exclusão) deve-se essencialmente à acção dos partidos. É que esse sentimento já existe em Cabo Verde devido às décadas de salazarismo, que era um regime anti-partido, seguido de quinze anos de regime de partido único, que era contra o multipartidarismo e devia-se ter algum cuidado em não o alimentar. Sabe-se perfeitamente que ter um sistema partidário funcional é fundamental para as democracias. Ameaças não vêm das disputas entre os partidos num ambiente de liberdade e pluralismo. O mais normal é que resultem do protagonismo de forças com narrativas anti-sistema, de movimentações para coarctar os direitos fundamentais e pôr em causa a independência dos tribunais e de nacionalismos identitários que em roupagens renovadas “tribalizam” a sociedade e impedem o exercício pleno da cidadania.

Mais grave vem se revelando o protagonismo de líderes e partidos que chegados ao poder via processos eleitorais democráticos imediatamente procuram reconfigurar a relação com outros poderes e instituições. Ampliam as suas competências em detrimento de outros órgãos de soberania com custos para o equilíbrio de poderes e criando tensões e instabilidade governativa. Já aconteceu em vários países. Na Polónia o novo governo do primeiro-ministro Tusk está a desenvolver um esforço enorme para reverter os estragos causados por esse tipo de ameaças à democracia. Nos Estados Unidos a preocupação é com a possibilidade, nas eleições de 2024, do regresso a uma presidência musculada e autoritária liderada por Donald Trump.

Em Cabo Verde o confronto que já se desenha entre o presidente da república de um lado, e o governo e a sua maioria parlamentar do outro, não augura nada de bom para os próximos tempos. Corre-se o risco de vê-lo arrastar durante todo o novo ciclo eleitoral que começa este ano e vai até 2026. E a tentação será forte para as forças políticas diversas tomarem partido no confronto, na perspectiva de conseguir vantagens na corrida para as eleições autárquicas e legislativas. A acontecer, como já se notam sinais claros de colagem às posições do presidente da república nas disputas de protagonismo com o governo, não há muita dúvida que os tempos próximos poderão ser de muitos sobressaltos. Aliás, a iniciativa presidencial da Semana da República já dá sinais de como se irá proceder daqui para a frente.

A Semana da República, que já vai na 13ª edição, foi uma iniciativa do presidente Jorge Carlos Fonseca com o objectivo, entre outros, de conseguir uma espécie de reconciliação com as duas datas nacionais: o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia e o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais. A iniciativa não teve o sucesso desejado, as tensões continuaram e a data que simboliza a actual II República nunca teve o brilho que deveria merecer. Durante o seu primeiro mandato e com um governo e uma maioria parlamentar do PAICV nunca se conseguiu sequer aprovar a realização solene de comemoração no parlamento do Dia da Liberdade e da Democracia a exemplo da comemoração do 25 de Abril em Portugal ou do Dia da Constituição, em Espanha. Em contrapartida, acabou-se por instituir em cerimónia de Estado a colocação de flores na estátua de Amílcar Cabral, na Várzea, sem aparentemente qualquer formalidade legal de suporte.

Com uma nova maioria parlamentar do MpD, a partir de 2016 adoptou-se a sessão solene nas comemorações do 13 de Janeiro, mas a rivalidade entre as duas datas só se agravou com a reivindicação cada vez mais estridente da superioridade do 20 de Janeiro. Para uns, é simbólica, dá uma legitimidade histórica incontornável e inultrapassável. Daí, a crescente idolatria de Cabral e a colisão permanente com as instituições democráticas, cuja legitimidade provém do voto popular livre e plural expresso de acordo com a Constituição de 1992. A eleição do novo presidente da república, José Maria Neves, em 2021, veio dar um outro vigor à disputa. A Semana da República de 2024 vai ter o seu ponto alto com a Marcha Cabral sob o alto patrocínio do Presidente da República.

Claramente que neste quadro as disputas entre os partidos tendem a tomar expressões e tonalidades extremas porque os sistemas de referência, no fundo, opõem-se diametralmente. Os efeitos nas instituições ficam cada vez mais visíveis. Começa-se a questionar a legitimidade das decisões do parlamento com base no princípio do voto maioritário e procura-se minimizar o seu papel com pretensas recomendações do conselho da república que, de facto, é simplesmente o órgão de consulta do PR para matérias bem definidas na Constituição. Questões delicadas de politica externa e de defesa nacional cuja articulação entre o presidente da república e o governo, nos moldes definidos na Constituição e na lei, se espera que seja feita com a devida ponderação e discrição, tendem a tornar-se oportunidades para protagonismos que em nada beneficiam a imagem externa do país e afectam instituições sensíveis do país.

Também os problemas com que se depara a administração pública, particularmente no campo salarial das classes profissionais e que pela sua complexidade e responsabilidade cruzada dos sucessivos governos pela actual situação, requeriam especial atenção e cuidado no seu tratamento preparam-se para ser armas de arremesso em vésperas de pleitos eleitorais. Parece não importar o impacto orçamental das soluções propostas. Tudo parece ser legítimo para conquistar o poder, mas só o é realmente numa perspectiva de soma zero que é perpetuada pelo confronto aberto entre dois sistemas, duas legitimidades e duas narrativas do país e da sua história.

Infelizmente, não se avança para uma perspectiva de soma positiva, de win-win, em que o foco estaria no crescimento económico, no aumento da produtividade e da competitividade do país para melhor inclusão e mais justa redistribuição de rendimento. Para isso, ter-se-ia de cooperar, manter o consenso em questões fundamentais e de não cair em cultos de personalidade e armadilhas identitárias que retiram autonomia e iniciativa às pessoas e o espírito de responsabilidade que se deve ter com o presente e o futuro pessoal e familiar e também de Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1155 de 17 de Janeiro de 2024.

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Estabilidade não compagina com voluntarismos

O ano de 2024 anuncia-se complicado. Não deveria precisar de mais problemas, mas foi o que precisamente veio à tona na última semana do ano passado, a partir da presidência da república. Foi revelado ao público que a primeira-dama auferia salário, algo que acontece pela primeira vez na história do Cabo Verde democrático sem qualquer base legal.

Pelas explicações do chefe da Casa Civil publicadas num post da sua página pessoal do Facebook ficou-se a saber da intenção de dotar o país de um estatuto de primeira-dama que prevê salário por exercício de funções incluído num ante-projecto da lei orgânica da presidência. A complicação surgiu do facto de, sem ainda ter lei orgânica aprovada que é matéria absolutamente reservada da Assembleia Nacional, os salários da primeira-dama passaram a ser pagos a partir de Janeiro de 2023, em cumprimento da directiva nº 01/CCC/2023 assinada pelo chefe da Casa Civil.

A reacção geral das pessoas não se fez esperar tanto pela falta de respaldo legal como pelo montante que ultrapassou o auferido por titulares de órgãos de soberania, incluindo o presidente da república. A forma como em comunicados sucessivos a presidência da república respondeu às indagações do público e às questões dos jornalistas não foi convincente como dificilmente poderia ser por não existir suporte legal para os actos praticados. As posteriores declarações do PR não contribuíram para clarificar a situação ao ficar por solicitar ao Tribunal de contas e à Inspecção Geral das Finanças o seu pronunciamento sobre a matéria e por decisões pouco avisadas de suspender o uso de transporte e segurança pessoal à primeira-dama.

No imbróglio ainda foi introduzida a exoneração do conselheiro jurídico que pelo “timing” do acto sugeriu que se estaria a apontar um culpado ou a procurar um bode expiatório. Deixou-se o “equívoco” arrastar-se demais o que levou o presidente da república, num gesto inédito, a pedir desculpas publicamente à pessoa visada através de um post nas redes sociais. Finalmente, acabou por aparecer o chefe da Casa Civil também via Facebook a afirmar que o Estatuto de primeira-dama, embora “não sistematizado e lacunoso”, existe. Prossegue, exigindo celeridade ao governo porque, segundo ele, só “há dois caminhos possíveis: decide o Legislador (Parlamento e Governo) por fixar em diploma único, sistematizado, todo o Estatuto ou, reconhecendo o que já existe, opta pela regulação do que falta”. Fica a sugestão que todo o imbróglio actual é devido à procrastinação do legislador e em particular do governo.

Colocando a questão dessa forma, já se entra no terreno familiar da vida política no país em que tudo o que acontece resulta do conflito entre o governo e a oposição. As declarações de dirigentes do PAICV vão nesse sentido e, pelo posicionamento das hostes partidárias do lado da oposição e da maioria na embrulhada, vê-se como toda a oportunidade é boa para uns se atirarem aos outros. Não há preocupação em salvaguardar que se exerça o poder de acordo com a Constituição e a lei, que os órgãos de soberania cumpram com as suas competências próprias e que recursos públicos sejam gastos dentro da legalidade.

No caso em particular nem se quer ponderar o facto de a lei orgânica só prever um gabinete de apoio ao cônjuge do PR. O mesmo acontece em Portugal e nos Estados Unidos, onde a posição é reconhecida há mais de duzentos anos, mas é claro para todos que “a primeira-dama não é um cargo eleito; não exerce funções oficiais e não recebe salário. No entanto, ela participa em muitas cerimónias oficiais e funções do Estado”. A actual first lady, a doutora Jill Biden, é professora e trabalha. Insistir num voluntarismo em relação à matéria, fazendo vista curta ao facto de não existir base constitucional e legal e não corresponder à experiência de outras democracias com sistemas de governo tanto parlamentares como presidenciais, só pode resultar em mais descredibilização das instituições e, no contexto actual pre-eleitoral, em mais um factor de tensão entre os órgãos de soberania.

Aliás, a conferência de imprensa do paicv a atacar o Tribunal de Contas sob a capa de questionar o parecer desse tribunal sobre as contas de 2021, com afirmações do tipo governo comete ilegalidades na barba cara do tribunal de contas e nada acontece; manda fazer auditorias e acusa pessoas, é um sinal como se vai alargando para outras esferas institucionais a possibilidade de se ser apanhado na onda de polarização e de crispação política do país. Nesse sentido, por um lado, faz-se por se mostrar colado à presidência da república mesmo sabendo que esta deve ser suprapartidária e, por outro, deixa-se entender que há subserviência ao governo da parte do tribunal de contas quando devia existir independência do poder político. Já se vinha fazendo algo similar por causa das contendas do presidente da câmara da Praia com esse tribunal. A impressão que fica é que facilmente se sacrifica lealdade ao sistema constitucional e às instituições democráticas a troco de pequenos ganhos tácticos no jogo político do momento.

Com um certo tipo de “voluntarismo”, que vai ao encontro de alguma cultura revolucionária ainda existente que não se deixa constranger pelas leis, mas deixa-se levar por outros princípios entre os quais o princípio de que os fins justificam os meios, incorre-se no risco de aumentar as tensões institucionais, de prejudicar tudo e todos com falta de previsibilidade e de minar a confiança no sistema democrático. A estabilidade é uma das marcas da democracia cabo-verdiana e deve-se em boa parte ao sistema de governo parlamentar adoptado na Constituição de 1992. Inovações no sistema político tanto no sentido de mais protagonismo presidencial ou de omissões e demonstrações de fraqueza do governo tendem a perturbar o equilíbrio entre os órgãos de soberania e a criar a instabilidade que adia a resolução dos problemas. Experiências tanto em democracias mais amadurecidas como Portugal como em outras mais frágeis como São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau provam isso.

Em Cabo Verde, o Presidente da República é o árbitro e moderador do sistema, não tem iniciativa em matéria de revisão constitucional e não se pode recusar a promulgar as leis de revisão. Os governos são de maioria absoluta e só governam plenamente depois de aprovada uma moção de confiança. Nestas circunstâncias não fica muito espaço para o tipo de intervencionismo do PR que governos minoritários muitas vezes propiciam. Querer forçar nesse sentido cria tensões desnecessárias e só prejudica o sistema porque fragiliza o seu papel de árbitro e moderador. O pior acontece se na proximidade de actos eleitorais partidários se verificar tentativas de colagem e de fazer do presidente da república o chefe da oposição.

Diz-se que normalmente em sistemas de governo semelhantes ao de Cabo Verde tal pode até acontecer, mas em geral só no segundo mandato do PR. Curiosamente parece que está a acontecer agora. Se assim for não é uma boa notícia para Cabo Verde neste ano em que a nível global há muitas incertezas e o país necessita recuperar do impacto de crises sucessivas na economia, nas empresas, no emprego e no rendimento das pessoas. O que menos se precisa é de instabilidade e de “casos e casinhos” que minam a confiança das pessoas e descredibilizam a partir de dentro as instituições. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1154 de 10 de Janeiro de 2024.