segunda-feira, julho 31, 2023

Não ao desalento. Pelo crescimento

 

Nos tempos conturbados de hoje, marcados por incertezas e imprevistos diversos, o foco no crescimento económico é fundamental para se estar minimamente preparado para enfrentar crises de origem económica, climática e sanitária. Esta é uma recomendação que Cabo Verde, que segundo os últimos dados do INE, sofreu uma contracção de 20,3 % da sua economia em 2020 devido à Covid-19, uma das maiores entre os países do mundo, devia merecer a maior atenção de todos, em particular dos seus governantes e da totalidade da classe política. A pressionar o caso veio o memorando do Banco Mundial de 14 de Julho a alertar para o esgotamento do modelo de desenvolvimento do país que vem dando sinais de cansaço desde 2008.

Entre as chamadas de atenção do BM está a constatação da importância do Investimento Directo Estrangeiro (IDE) como factor-chave do crescimento económico. De facto, num ambiente a partir de 2008 em que a produtividade deixa de ser um grande contribuidor para o PIB, o crescimento, segundo os dados do BM, teve de depender do nível do IDE. Os anos de maior crescimento na última década, entre 2016-2019, foram os de maior investimento em infraestruturas do turismo numa contribuição para o PIB de 2,6%. O foco no crescimento económico deve, pois, significar um esforço maior na atracção de investimento externo e na implementação de políticas que tragam de volta a produtividade como grande contribuidor para o PIB.

Tanto a primeira como a segunda tarefa enfrentam dificuldades, se não obstáculos, de monta. Da produtividade já se sabe das resistências para se diminuir a rigidez estrutural na utilização dos factores de produção. Em relação à atracção de investimento directo estrangeiro, que devia merecer todo o engajamento do país e da sociedade, trabalha em sentido contrário o discurso político. Cada vez mais polarizado, é um discurso que tende a cair para os estereótipos antigos, onde de um lado estariam os “patriotas e amantes da terra” e do outro “os vendedores da terra”.

Num arquipélago onde ao longo da sua história secular, os momentos de prosperidade estiveram ligados a uma articulação mais próxima com a economia mundial através de exportação de bens e serviços, fixar-se nesse tipo de retórica é condenar o país a níveis baixos de crescimento económico. Em vez de um espírito de abertura ao mundo e de cosmopolitismo acompanhado de uma efectiva fiscalização democrática e responsabilização do governo alimentam-se medos, desconfiança e ressentimentos que tendem a reduzir o IDE a “esquemas” para roubo de recursos do país e exploração dos cabo-verdianos.

O resultado não podia ser mais desastroso. Neste quesito o Memorando do BM relembra que uma das razões por que a média de crescimento nos primeiros quinze anos após a independência ficou nos 3% do PIB foi precisamente por “baixo investimento”. Excluía-se então o investimento directo estrangeiro. Na época, segundo o mesmo documento, os maiores contribuidores para o PIB eram a Ajuda Pública ao Desenvolvimento(APD) e as remessas dos emigrantes. E essa referência à constituição do PIB nesse período de baixo crescimento serve também para lembrar aos novos entusiastas da nação global e da nação diasporizada que não há remessas de emigrantes que substituam a necessidade do país de atrair investimento directo estrangeiro e de se organizar para ser competitivo e aumentar a produtividade. O IDE não significa apenas capital, como também tecnologia e know-how e, fundamentalmente, mercados de exportação e procura externa em forma de fluxos turísticos.

O economista Mohamed A. El-Erian num artigo recente explicou que tanto os países desenvolvidos como os em desenvolvimento correm o risco de verem, num momento ou outro da sua trajectória económica, os seus modelos de crescimento esgotarem-se e caírem na estagnação e até mesmo em regressão. Para evitar a armadilha, têm-se que encontrar uma forma de revigorar a estratégia de crescimento. Mohamed A. El-Erian e outros economistas como Gordon Brown que foi primeiro-ministro do Reino Unido e Michael Spence num livro “Permacrisis” sugerem acções em três áreas para conseguir esse revigoramento: fazer a reengenharia de modelos de crescimento que se têm revelado inefectivos; melhorar a gestão económica nacional e aprimorar a coordenação e as respostas políticas globais.

Como tiveram a oportunidade de salientar o crescimento económico pode não ser tudo, mas não há muita coisa que se consegue fazer ou resolver sem ele. Com a crise pandémica e as outras que vieram logo atrás, viram-se as consequências. O aumento da pobreza e da desigualdade social, seguido de tensões sociais e em certas partes do mundo até de tumultos, demonstraram a importância fundamental de se focar num crescimento que seja inclusivo, durável e sustentável. Para o desencadear e alimentar há que criar um ambiente competitivo capaz de atrair investimentos e garantir a produtividade que assegura a contínua produção de riqueza.

A grande questão que se coloca é qual o engajamento que se pode esperar da classe política para ir além da política, que apenas procura atingir e conservar o poder, e fazer outra política, capaz de encontrar respostas para as dificuldades actuais. Uma política que seja de mobilização da energia e da criatividade nacional para se realizar as reformas indispensáveis ao crescimento. Também que seja de promoção de uma nova atitude em relação ao mundo e que afaste qualquer sinal de desalento perante o desafio de se construir um Cabo Verde em sintonia com os desejos e expectativas de todos. Do Banco Mundial veio o alerta para se revigorar o modelo de crescimento e desenvolvimento. Do debate da próxima sexta-feira no parlamento, a Nação espera um firme comprometimento de toda a classe política para que isso aconteça. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1130 de 26 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 24, 2023

Urge mudar de rumo

 

A Moção de Censura como era de esperar não passou. Apesar de ter unido toda a oposição na votação final não havia sinais de que o governo tivesse perdido a sua maioria de apoio no parlamento. Enquanto instituto parlamentar para responsabilizar governos pelas suas políticas, a moção de censura foi vista neste caso fundamentalmente como um expediente para continuar o confronto político dos últimos dois meses tendo como pano de fundo acontecimentos recentes designadamente os relatórios do fundo do turismo e do fundo do ambiente. Não trouxe nova matéria para discussão, nem foi oportunidade para o maior partido da oposição apresentar-se como alternativa de governação na eventualidade da moção passar.

Claramente que o país precisa de um sério e aprofundado debate sobre o seu futuro. Um sinal disso é a procura sem precedentes de vistos e as pressões sobre os serviços consulares responsáveis ventiladas pela comunicação social durante semanas seguidas. Indicia que para muita gente e em particular para os mais jovens há uma preocupação genuína sobre o que será o amanhã. De facto, percebe-se que há uma vontade crescente de emigrar que provavelmente não é de agora como se pode ver pelos dados do INE de Abril de 2022 que revelaram, para espanto geral, que o país perdeu população ao invés do aumento esperado. Aparentemente, só para a classe política é que ainda não chegou o momento para enfrentar com desassombro e clareza a questão como se pôde constatar no que afinal se mostrou o último desperdício de tempo parlamentar que foi a discussão da moção de censura. Provavelmente acontecerá o mesmo no debate sobre o estado da Nação na próxima semana.

Um dado novo, entretanto, surgiu que talvez ajude a focar melhor a atenção sobre a problemática de desenvolvimento de Cabo Verde. Um memorando económico do Banco Mundial de 14 de Julho veio com uma clareza fora de comum lembrar que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008”; que a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década 2000 e para 1,2% na década de 2010, excluindo o ano 2020; que o potencial de crescimento da economia caiu de 6% na década de 1990 para 3,5% por cento após 2010. A queda no potencial de crescimento, segundo o memorando do Banco Mundial, deve-se ao facto da produtividade (PTF) que, devido às reformas estruturais dos anos noventa, tinha uma contribuição de 51% no crescimento ter passado a uma contribuição só de 1% na década de 2010-2019 atribuída à rigidez estrutural.

Comparando Cabo Verde com outros pequenos países insulares com características económicas e dotações semelhantes, o memorando do BM, que os distingue entre os pares estruturais (Samoa, São Tomé e Príncipe e Vanuatu), e os pares aspiracionais (Maurícias, Seicheles, Nevis e Santa Lúcia), considera que a produtividade do trabalhador cabo-verdiano só é superior ao de São Tomé e Príncipe. Acrescenta ainda que a produtividade do trabalho em Cabo Verde, que em 2009 correspondia a 42% do nível dos seus pares, passou para 39%, o que evidencia que o país não só não consegue alcançar os pares mais avançados como está, de facto, atrasado. O fraco crescimento da produtividade no sector dos serviços, que constitui a maior parte da economia cabo-verdiana, na ordem dos 0.70% evidentemente que acaba por condicionar a produção, o emprego e os salários, com impacto directo na vida das pessoas e nas suas expectativas em relação ao futuro e também na capacidade do país de responder a choques económicos externos e aos efeitos das alterações climáticas.

Reconhece-se no memorando que o turismo contribui directamente para 25% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, que cria cerca de 45% do emprego formal, representa 55% das receitas de exportação e que indirectamente a sua contribuição atinge os 44% do PIB. O mais natural é que uma maior atenção fosse dedicada ao sector e se verificasse o engajamento de todos no país e na sociedade por forma a potenciar no máximo o impacto do fluxo turístico sobre toda a actividade económica do país. Pelo que é explicitado no memorando, fica claro que se está muito aquém de fazer o aproveitamento adequado desse efeito de arrastamento da economia. Como ainda 80% dos produtos alimentares e bebidas consumidos nos hotéis são importados, existe uma grande margem para aumento da produção nacional. Também pode-se diminuir as rejeições de produtos de ordem dos trinta por cento por falta de qualidade e perdas também de 30% por razões de transporte inadequado de produtos.

Por isso, recomenda-se que o foco deva estar na construção da logística necessária para ligar as ilhas produtoras de bens agrícolas e industriais aos mercados de consumo nas ilhas do Sal e da Boa Vista de forma a conseguir ganhos de escala e responder às exigências de qualidade dos produtos, certificação e fiabilidade das cadeias de abastecimento. No processo eliminavam-se ineficiências várias nas transacções e diminuíam-se custos nos transportes e na utilização das infraestruturas portuárias. Uma parte do esforço no desenvolvimento do sector privado e da estrutura produtiva capaz de criar riqueza de forma sustentável e empregos estáveis poderia beneficiar de investimentos dirigidos para suprir as insuficiências e também de perseverança para ultrapassar as naturais dificuldades de um país arquipélago e com um mercado fragmentado.

Infelizmente não é essa a atitude que tende a prevalecer. Mais facilmente se vai atrás de políticas que estão em voga e que vêm juntos com promessas de milhões do que procurar potenciar o que na prática existe e pode-se aprofundar e até desenvolver estrategicamente. Ou então, fica-se por confrontos que tendem a fazer da política exclusivamente um jogo para chegar ao poder e não fundamentalmente o processo para uma sociedade plural e democrática encontrar vias e soluções para os desafios do presente e futuro e até rectificar opções passadas. Uma outra tentação é ir atrás de objectivos que só ideologicamente se justificam como o de se aproximar da África sem que se tenha descortinado, ao longo de quase 50 anos de independência, que utilidade as ilhas poderão ter para o continente, desperdiçando tempo, recursos e oportunidades outras.

A percepção de que o modelo actual de desenvolvimento poderá estar a esgotar-se devia ser um alerta forte para um país que já ocupa a 9ª posição mais alta nas taxas de emigração mundial e que em média, de acordo com o Memorando do BM, perde 1% da população por ano. A aumentar essa sangria, como parecem sinalizar as pressões para conseguir vistos, é também mão-de-obra que se perde trazendo constrangimentos graves ao investimento directo estrangeiro e comprometendo ainda mais o futuro do país. É, de facto, mais do que tempo para se mudar de rumo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1129 de 19 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 17, 2023

Apelos levados pelo vento

 

Na sua intervenção nas cerimónias comemorativas do dia 5 de Julho o presidente da república trouxe à baila mais uma vez a questão da não partidarização da Administração Pública. É uma matéria recorrente nos discursos de outros titulares de órgãos de soberania, dos partidos políticos e de personalidades, académicos e activistas sociais.Todos parecem estar de acordo que o problema da partidarização existe, mas aparentemente ninguém sabe como ultrapassá-lo porque, apesar dos partidos se alternarem na governação do país, os seus efeitos não desaparecem, nem se atenuam. Como solução vai-se sugerindo entre outras acções a obrigatoriedade de concursos públicos para os cargos na administração do Estado, mas, enquanto panaceia, é evidente que essa medida não satisfaz, porquanto as denúncias de partidarismo na função pública continuam.

A chamada de atenção do PR, quarenta e oito anos após a independência e trinta anos depois da adopção de uma Constituição democrática talvez seja um sinal de que se vai tornando cada vez mais difícil ignorar as consequências do país ter uma “administração pública sobre a qual recai a desconfiança de não funcionar de acordo com princípios de justiça, isenção e imparcialidade e de igualdade de tratamento de todos os utentes”, como prevê a Constituição da República. E também que em acréscimo não há garantia que os funcionários e demais agentes do Estado são pessoalmente “beneficiados ou prejudicados ou se beneficiam ou prejudicam outrem em virtude das suas opções partidárias”. De facto, um Estado que funciona com tais constrangimentos, com impacto inevitável na sua eficiência e eficácia, não deixa de acarretar custos consideráveis para a sociedade e para a economia, afectando negativamente a competitividade do país.

Pôr cobro a esta situação devia ser uma prioridade fundamental quando o foco é desenvolver o país e a realidade é difícil e complexa e os recursos são escassos. Num momento crucial da ascensão à independência, Singapura, também uma realidade insular, erigiu através do seu líder Lee Kuan Yew como objectivos fundamentais o comprometimento com a meritocracia e a luta contra a corrupção. Nem todos podem repetir o feito de Singapura de passar de um rendimento per capita de 517 dólares em 1965 para 59 mil dólares em 2020, mas é um facto que isso só foi possível com uma administração pública competente e eficaz e a utilizar de forma eficiente os recursos públicos. Vários exemplos por todos os continentes têm demonstrado a importância para o desenvolvimento de um país de um serviço público com base em critérios meritocráticos e uma ética e um ethos a condizer, em que o utente não têm que se colocar na posição de quem está a receber favores e até mesmo de mostrar-se politicamente grato.

Infelizmente não é o que se conseguiu erigir ainda em Cabo Verde. Com a independência em 1975 a administração pública que se pretendeu construir foi a que melhor se adequava ao regime de partido/Estado. O critério de base era aderência aos princípios do partido único e naturalmente que a carreira na administração pública teria que se orientar mais pela fidelidade ao regime do que por considerações de competência técnica e profissional. Com o advento da democracia, 15 anos depois, o problema que se colocou ao novo governo era como conciliar a cultura de militância partidária dos funcionários herdada do outro regime com a necessidade de cumprir o seu programa sufragado nas urnas. A dificuldade aumentou com a liberdade de exercício de direitos políticos quase sem limites garantida aos funcionários públicos pela Constituição de 1992. Não é de estranhar que na ausência de constrangimentos efectivos houvesse a desconfiança que o fervor partidário em determinadas situações pudesse sobrepor-se ao sentido de dever enquanto funcionário público e que, em reacção, com a colocação de quadros de confiança política se procurasse minimizar os riscos.

A dificuldade com essa solução é que, como veio a se verificar, ficou quase impossível construir uma administração pública competente, experiente, com memória institucional e com outros valores e outra cultura ao nível que seria desejável para responder com a maior eficácia aos desafios de desenvolvimento do país. As alternâncias no governo acabaram por normalizar as nomeações e as carreiras na base partidária, mas ainda sem eliminar as vantagens iniciais dos que mais tempo tiveram no aparelho do Estado, facto que continua a alimentar ressentimentos de parte a parte e a desconfiança que bloqueia as tentativas de adopção de critérios meritocráticos. A grande apetência por cargos públicos acirrada por alguma precariedade de outros sectores de actividade e pela continuada ascendência do papel do Estado no domínio socioeconómico favorece a crispação política e retroalimenta todos os impulsos para não se chegar a compromissos que pudessem alterar a situação existente.

Apesar das denúncias de partidarismo na administração pública e dos apelos à despartidarização toma-se de alguma forma como normal a situação existente porque em boa medida responde à ideia do exercício de poder com base em clientelas, fazendo favores, garantindo acessos e reproduzindo dependências várias. A cumplicidade é geral como se pode constatar pelos conteúdos transmitidos na rádio e na televisão, pelo número de eventos em que autoridades nacionais e locais doam alguma coisa e as pessoas mostram-se gratas frente às câmaras e aos microfones. Num ambiente de campanha permanente e lutas por ganhos eleitorais futuros quando se fala de despartidarização está-se, de facto, a querer pôr em cheque quem está, no momento e no local em posição de dar, mas não a forma como está a exercer o poder.

As críticas aí, assim como com as denúncias sobre os resultados das inspecções aos fundos do turismo e do ambiente, são fundamentalmente para conseguir vantagem política sobre o adversário. Não para pôr em causa o sistema que permite que falhas similares tenham acontecido no passado, estejam a acontecer no presente e voltem a verificar-se no futuro. Aliás, percebe-se perfeitamente que muitos desses jogos de poder acontecem no lidar com os municípios e o normal seria melhorar e tornar mais rigorosos os processos decisórios e de fiscalização e controlo nos órgãos do poder local e na administração local. Pelo contrário, nota-se uma preocupação para aumentar ainda mais os poderes dos presidentes das câmaras municipais contribuindo eventualmente para mais exemplos de caciquismo local.

A incongruência é reveladora de como o tema da partidarização é tomada pelas forças políticas em presença como simples pretexto para ganhos tácticos contra o adversário e não para se juntar esforços e construir o Estado e a Administração Pública que o país precisa para enfrentar os extraordinários desafios do seu desenvolvimento. Na mesma linha vai a moção de censura ao governo que foi apresentada esta terça–feira. À partida não terá no parlamento a maioria necessária para ser aprovada, mas de qualquer maneira vai cumprir o seu propósito. No texto repetem-se todos os velhos clichés ideológicos e os argumentos e supostos factos que os sustentam ou justificam simplesmente para tentar conseguir ganhar alguns pontos políticos. O debate político não vai elevar o seu nível, o país não fica melhor preparado para enfrentar os desafios e afirma-se mais uma vez que não há nenhuma base para construir os acordos e compromissos para fazer o país avançar. Os apelos de despartidarização da administração pública serão mais uma vez levados pelo vento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 10, 2023

5 de Julho, celebrar a República e a Democracia

 

Passados 48 anos após a independência nacional o 5 de Julho deve ser o dia em que a comunidade política nacional, enquanto república soberana, reafirma que as suas bases são a dignidade humana e a vontade popular. E que entre os seus objectivos fundamentais estão a inviolabilidade e a inalienabilidade dos direitos fundamentais, a igualdade de todos os cidadãos sem qualquer tipo de discriminação, a realização da democracia plena e de uma sociedade livre, justa e solidária, e ainda a criação de condições para a realização pessoal e participação efectiva de cada cidadão.

Com a celebração do 5 de Julho deve-se procurar reforçar a unidade da nação para poder enfrentar, num ambiente de pluralismo e de diversidade de interesses, os extraordinários desafios que se colocam no presente e no futuro próximo. O que não deve ser é a oportunidade para se pôr em causa os valores da república e da democracia e para validar anos de ditadura e os projectos de poder de um grupo e seus protagonistas.

A verdade é que o 5 Julho, a república, enquanto produto de uma situação histórica específica de desmoronamento tardio de um império colonial e em que movimentos de libertação reivindicavam exclusivo direito de representar povos e a legitimidade histórica para governar, levou tempo para cumprir as suas promessas de liberdade, de autogoverno e de cidadania plena. Só 15 anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 é que, recuperado o protagonismo popular, se amarraram os alicerces da república na Constituição de 1992 e se reacendeu a esperança num futuro de prosperidade. Para trás então ficou o tempo dos obstáculos à iniciativa individual e desenvolvimento da pessoa humana, de ausência da participação efectiva e de constrangimentos na relação com o mundo. Também se abriu o caminho para libertar o país do peso de ideologias que justificaram aventuras insensatas como a unidade com a Guiné, que procuraram estatizar tudo na economia e na sociedade e que tomaram a legitimidade histórica como fonte primária do poder.

Chegado ao dia de hoje, é preciso ter em perspectiva o caminho percorrido, as insuficiências existentes e em que medida está-se a utilizar o potencial despoletado pela democracia, pelo Estado de Direito e pela livre iniciativa e maior autonomia de acção das pessoas para manter acesa a esperança. Alguns sinais preocupantes, designadamente a perda de população revelada no último Censo e a pressão cada vez maior de uma parte da população, em particular dos jovens em emigrar para a Europa e para os Estados Unidos, sugerem que não se está a fazer o melhor. É verdade que nas últimas três décadas mais do que se triplicou o rendimento per capita do país, mas, por outro lado, as desigualdades sociais aumentaram e bolsas de pobreza subsistiram apesar de programas repetidos dirigidos para combater as vulnerabilidades das populações.

Não se conseguiu modernizar suficientemente a agricultura para fazer o melhor uso da água e da terra arável disponível, nem se conseguiu desenvolver canais de escoamento dos produtos agrícolas para um melhor aproveitamento do mercado nacional, já naturalmente fragmentado nas ilhas, nem do novo mercado criado pela procura externa via turismo. A população que deixa os campos e as ilhas mais agrícolas à procura de emprego não é absorvida por unidades indústrias porque a industrialização, por razões ideológicas, veio tarde e posteriormente não resistiu às mudanças nas cadeias de valor. O turismo afirmou-se como motor da economia, mas, sem uma estratégia consistente e um comprometimento nacional com a actividade turística, continua dominado por alguns operadores e cria milhares de postos de trabalho, mas de baixos salários com o agravante dos trabalhadores, na maioria vindos de outras ilhas, arcarem com o custo das insuficiências existentes em infraestruturas e habitação.

Outros sectores, que foram alvo de projectos estratégicos dos sucessivos governos apresentados na forma de clusters, hubs e plataformas, não tiveram o retorno prometido apesar dos grandes investimentos feitos. Acabaram por contribuir para o aumento substancial da dívida pública conjuntamente com o crédito conseguido para financiar um conjunto de infraestruturas que também em boa medida ficaram subutilizadas. A pesca que podia beneficiar da vocação secular das ilhas e da instalação de grandes conserveiras com mercado certo na União Europeia também não foi foco de uma estratégia para aumento da capacidade de captura com impacto em produtos que mais peso têm nas exportações do país.

A percepção da população que as medidas políticas ficaram aquém do prometido em termos de dinâmica da economia e de criação de emprego cria alguma ansiedade, agravada pela expectativa de mobilidade social dos jovens e das suas famílias que resulta da massificação do ensino primário e secundário e da disponibilidade crescente de ensino superior no país. Perante isso o trabalho no Estado surge como o mais seguro devido à precariedade que rodeia os outros sectores. Mas a cada vez menor oferta de empregos no Estado e na administração acaba por provocar a corrida feroz aos lugares na função pública seguindo linhas partidárias e consequente ambiente político mais crispado e menos compromissório. Para muitos que não conseguem de uma forma ou outra singrar nesse ambiente resta o sector informal que cresce rapidamente, particularmente depois das crises sucessivas dos últimos anos, ou a possibilidade de emigrar como se pode ver pela pressão cada vez mais notória para conseguir vistos para a Europa. E a promoção de um empreendedorismo massificado não provou que é a panaceia para a falta de emprego e de oportunidades.

Claramente que as opções que se colocam a muitos cabo-verdianos e principalmente aos jovens não as mais consentâneas com as grandes promessas da república e com a esperança de uma vida melhor. A celebração do 5 de Julho deve também ter como objectivo renovar o comprometimento de todos e em particular dos governantes para mobilizar a energia e a vontade da colectividade na procura de soluções para os grandes desafios e para renovar a confiança no futuro. As crises sucessivas foram um forte estímulo para se mudar a atitude geral no sentido de uma mais “perfeita união” como diria Abraham Lincoln. Infelizmente não tiveram o impacto esperado e nota-se isso na tendência crescente para o divisionismo interno, para a descredibilização das instituições, para a falta de civismo e criminalidade.

O espectáculo que se vem assistindo na França nos últimos dias vem relembrar que emigrar para Europa também não é uma opção segura e tende a tornar-se pior ou pela reacção a incidentes similares ou pelo aproveitamento que políticos de outros países, caso do Primeiro-ministro polaco, fazem dos acontecimentos. Tudo isso vem relembrar a importância de se acreditar no Cabo Verde de esperança como cantava Norberto Tavares e da urgente necessidade de, e na república democrática que hoje todos celebram no 5 de Julho, se ultrapassar os obstáculos que ainda impedem a realização plena das suas promessas. 

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1127 de 05 de Julho de 2023.

segunda-feira, julho 03, 2023

Tempo para debater o papel do Estado

 

No dia 28 de Junho iniciou-se a segunda sessão plenária do mês com o debate com o Primeiro-ministro sobre “os negócios do Estado e a protecção do interesse público” proposto pelo maior partido da oposição.Vindo na esteira do imbróglio à volta das inspecções ao Fundo do Ambiente e ao Fundo do Turismo, o mais certo é que rapidamente o debate irá degradar-se pelas habituais acusações e as incursões ao passado que não deixam ninguém incólume. Por causa disso, normalmente desses debates só resulta o aumento do stock do cinismo nacional relativamente à política e aos políticos. Fica por avaliar, por exemplo, o quanto que o país já evoluiu na institucionalização dos seus mecanismos de responsabilização e prestação de contas nas últimas três décadas de democracia.

Também não se faz o suficiente por identificar os sectores da vida nacional onde o nível de acountability é mais baixo, a fiscalização política é mais frágil e a cultura política e administrativa favorece a falta de rigor no uso dos recursos públicos apesar das pistas que serão deixadas ao longo do debate. Prefere-se ficar por suspeições de corrupção que vão reforçar narrativas da existência de dois campos opostos: um que se reclama de estar num plano moral superior e diz querer preservar os recursos do Estados em nome do interesse público e outro que é acusado de querer delapidá-los em negócios que favorecem, acima de tudo, interesses privados.

É evidente que nesse tipo de confrontos põe-se de lado qualquer discussão compreensiva sobre o que deve ser o papel do Estado numa pequena economia insular e arquipelágica como Cabo Verde. Designadamente, não se procura descortinar que dimensão deverá ter o sector estatal e em que áreas económicas envolver-se. Ou como articular uma intervenção qualificada do Estado com a promoção do sector privado nacional e a atracção de investimento estrangeiro. Ou ainda como construir um sector público e administrativo que, regendo-se pelos princípios de eficiência e eficácia, contribua para a diminuição dos custos de contexto e também um sector público empresarial que mantenha a um nível adequado certos custos como os de energia, água e transportes.

Numa realidade como a cabo-verdiana, de uma pequena estrutura produtiva e um mercado minúsculo e fragmentado onde economias de escala não existem e falhas de mercado são inevitáveis, não é tarefa fácil determinar qual a dimensão e o papel certo do Estado. Como em qualquer democracia sempre vai haver um campo a propor mais Estado e outro a querer posturas menos intervencionistas. O debate fundamental que daí resulta, traduzido nos embates eleitorais em alternâncias na governação, serve para adaptar a condução da política económica aos desafios do momento e periodicamente fazer as correcções que se mostrarem necessárias. Diminui-se a utilidade do debate quando uma das partes trata propostas de diminuição da intervenção estatal vindas de outros actores políticos como inimigas do interesse público.

Ora, sabe-se de experiência directa duas coisas muito importantes: uma que ter o Estado a dominar toda a economia não é garantia que se está a proteger o interesse público. Ao estatizar tudo sacrifica-se em simultâneo a liberdade e a iniciativa individual e, por aí, a capacidade de inovação e produtividade de qualquer país. Uma outra consequência é que se limita o acesso aos recursos externos para financiamento da economia e não se consegue chegar aos mercados, constrangendo severamente as possibilidades do país se desenvolver. O crescimento verificado em Cabo Verde nos últimos trinta e dois anos na sequência da desestatização da sua economia, com todas as suas vicissitudes, testemunha a necessidade de se encontrar o equilíbrio adequado entre o público e o privado. E não é só uma questão que se coloca a economias frágeis como a cabo-verdiana.

A discussão à volta da intervenção do Estado na economia reentrou recentemente na ordem do dia na generalidade dos países democráticos. Os múltiplos problemas de circulação criados pela pandemia da Covid-19 e as perturbações graves na cadeia de abastecimentos de produtos essenciais e estratégicos obrigaram a repensar a integração na economia mundial numa perspectiva mais de resiliência do que de eficiência. Neste sentido, políticas de onshoring e de friend-shoring têm sido propostas por governos dos Estados Unidos e da União Europeia que, aliadas a iniciativas de financiamento de sectores estratégicos chamadas de “política industrial”, procuram dar um outro sentido à globalização.

Com isso, quer-se diminuir os riscos (de-risking) ligados às mudanças geopolíticas precipitadas pela invasão da Ucrânia pela Rússia e pelas tensões entre a China e o Estados Unidos. Também quer-se dar uma resposta a alguma desindustrialização e consequente erosão da classe média e aumento das desigualdades sociais que a globalização na base da procura de eficiência tinha gerado nas últimas décadas. Para muitos observadores, o novo intervencionismo do Estado traduzido na Europa entre outras iniciativas pela “bazuca financeira” e nos Estados Unidos pela lei das infraestruturas e pelo investimento nos semicondutores acaba por simbolizar uma nova era que se está a abrir e que põe fim à chamada globalização neoliberal iniciada nos anos noventa.

Repensar o país para os novos tempos é fundamental. No quadro mundial que se desenha há que procurar o melhor papel para o Estado de forma a ser não um entrave, mas sim um promotor e facilitador da economia de base privada que deverá criar prosperidade para todos. Para isso, preconceitos ideológicos de antigamente devem ser ultrapassados designadamente os que não vêem possibilidade de convergência entre o interesse público e o interesse individual e também os que consideram que qualquer redefinição do papel do Estado abre portas à corrupção. Aliás neste quesito era bom relembrar que, como diz o Lord Acton, o poder corrompe, mas que o poder absoluto corrompe absolutamente. Ou seja, mesmo que aparentemente invisível, está lá bem presente e tem custos, de uma forma ou de outra.

Em democracia, e com uma economia de mercado, querendo pode-se assumir colectivamente um comprometimento geral para a construção da indispensável máquina do Estado competente e eficiente e com cultura de serviço público que o país precisa. E para combater a corrupção, ciente das deficiências ainda existentes, em parte derivadas de uma cultura política de crispação permanente que urge ultrapassar e que alimenta desconfiança, devia-se agir com firmeza e determinação para aprimorar os mecanismos de controlo e prestação de contas. Com isso, o país ganharia com os custos mais baixos, maior confiança e atraindo mais investimento.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1126 de 28 de Junho de 2023.