segunda-feira, março 30, 2020

Solidariedade em tempos de coronavírus

A pandemia do novo coronavírus continua. Depois de ter tido o epicentro localizado na China em Janeiro/Fevereiro chegou agora à Europa e a OMS já avisou que proximamente estará nos Estados Unidos da América. Ninguém sabe dizer para onde se deslocará depois da passagem pela América, mas não faltam candidatos.
A Índia, depois do Reino Unido e de vários estados nos EUA, vai estar também em lockdown nos próximos 21 dias. No Brasil o vírus foi detectado nas favelas e na África já chegou a mais de 40 países. Tendo em conta o impacto terrível que o vírus já teve nos países desenvolvidos dotados de sistemas de saúde robustos, imagine-se o que não será nas regiões menos desenvolvidas do globo com problemas graves de pobreza e habitação e com estruturas sanitárias precárias. Depois de o novo coronavírus ter tratado todos por igual independente da nacionalidade, riqueza pessoal ou estatuto social, espera-se que um sentido de solidariedade reacenda em todo o mundo e se faça sentir com força e atempadamente nos países mais frágeis. O vírus da Covid-19 veio lembrar a todos a nossa humanidade comum. Há que assumi-la e agir em consequência encontrando as melhores formas de cooperação tanto entre as nações como entre as pessoas dentro de cada país.
Na situação difícil actualmente vivida em que por todo o lado se trava uma luta cerrada contra o novo coronavírus, uns apostados na supressão dos efeitos do vírus com a instauração do distanciamento social e outros na contenção via testes e identificação de surtos de transmissão, há uma preocupação comum: salvar vidas, mas também salvar a economia. Conciliar medidas num e noutro sentido de forma e atingir esses dois objectivos em simultâneo não é tarefa fácil. Haverá sempre sacrifícios e contrapartidas. Para os suportar há que procurar manter a coerência e a paz sociais necessárias para as pessoas continuarem confiantes e se disponibilizarem para mudar hábitos e aceitar restrições diversas. Contribuirá certamente para isso algum sucesso alcançado na contenção dos efeitos negativos do desemprego e da perda de rendimentos que resultaram da queda brusca da procura interna e externa provocada pela Covid-19 e do impacto dessa quebra no volume de negócios das empresas. Da eficácia das medidas preconizadas irá depender em muito que se mantenha a confiança das pessoas na governação e que se se consiga conservar o tecido empresarial necessário para depois de passada a crise se proceder à retoma da actividade económica. Considerando tudo o que está em jogo, não há dúvida que quebrar as redes de transmissão do coronavírus sem, no processo, paralisar a economia é sem dúvida o grande desafio com que os governantes em todos os países do se veem hoje confrontados.
Desde que a pandemia começou que tem sido assim. Em Cabo Verde a questão tem sido sempre até onde manter activos os fluxos turísticos que produzem milhares de postos de trabalho e têm efeito de arrastamento no resto da economia sem agravar excessivamente os riscos de contaminação. Infelizmente apesar das medidas tomadas semanas atrás de paralisar os voos para a Itália e de se ter aumentado o controlo sanitário nos aeroportos, o país nesta última semana teve que encarar o facto de que a Covid-19 já chegou aqui. Dos três casos positivos todos eles importados já se registou um morto. Não se sabe ainda se mais alguém foi infectado, se houve casos de transmissão do vírus e se tudo ficou na Boa Vista. A ilha foi posta em quarentena, mas ninguém pode garantir à partida que o vírus não foi levado para outras ilhas, considerando que não havia restrições nas comunicações inter-ilhas.
É verdade que tratando-se de uma pandemia era uma questão de tempo para que a doença chegasse cá. A forte ligação com o exterior através do turismo que move milhares de pessoas tornava o país permeável a uma importação directa da doença em particular nas ilhas de acolhimento dos turistas. Conhecendo os riscos, espera-se que as autoridades tenham um plano de acção com meios para identificar com rapidez eventuais surtos de contágio e que também inclua a capacidade de contenção dos mesmos de modo a evitar transmissão para as outras ilhas. Cabo Verde é um país arquipélago e todas as ilhas não têm os mesmos recursos para responder às epidemias. Por isso, há-que, perante qualquer ameaça, estabelecer atempadamente barreiras defensivas para as mais desprotegidas sob pena de o país vir a sofrer perdas humanas e materiais desproporcionais numa resposta apressada e não planeada. Neste sentido, o controlo aéreo e marítimo nas ligações inter-ilhas é fundamental assim como também o é ter os meios aéreos e marítimos para responder a qualquer emergência das ilhas. Infelizmente é um aspecto central da segurança nacional cuja realização tem sido sistematicamente protelada.
Depois dos casos positivos do novo coronavírus, o aparecimento de surtos nas diferentes ilhas coloca problemas extremamente complicados ao país considerando as fragilidades de que padece. O governo já declarou o estado de contingência, mas dependendo de como a situação vier a evoluir poderá ser elevado para o estado de emergência. Entretanto, já um forte apelo para o distanciamento social e medidas diversas foram tomadas em vários sectores da vida social e cultural para se evitar ajuntamento de pessoas e diminuir a circulação de pessoas. Ontem, terça-feira, o governo, os sindicatos e os representantes do patronato acordaram num conjunto de medidas que visam proteger os trabalhadores em vias de perder emprego e proteger empresas ligadas à aviação, turismo, hotelaria e restauração com problemas de liquidez nesta conjuntura caracterizada pela quebra acentuada no volume de negócios. Na calha para ser ajudados estarão muitos novos empreendedores nas pequenas e microempresas, os trabalhadores independentes e os muitos ocupados no sistema informal. A verdade é que é fundamental neste momento e nos próximos tempos garantir que todos tenham algum rendimento.
O problema são os custos disso tudo versus eventuais custos da inacção. É um facto que custos de fazer agigantam ainda mais a dívida pública externa num país sem muito espaço para se endividar. Para não ter que se ver nesse dilema é fundamental que o país aja rapidamente para conseguir ajuda junto das organizações multilaterais e internacionais ao mesmo tempo que deverá reforçar a cooperação bilateral com os parceiros mais próximos para poder enfrentar a pandemia e poder logo que a “tempestade” passar vir com outro ânimo e urgência retomar o processo de desenvolvimento. Simultaneamente um apelo forte deverá ser dirigido às comunidades cabo-verdianas no exterior no sentido de estreitar ainda mais os laços de solidariedade. Podia também ser uma oportunidade para os bancos e as telecom nacionais se abrirem a propostas inovadoras que facilitem transferências de pequenas quantias a baixo preço entre os residentes no país e as comunidades no exterior. Tempos de maior stress e necessidade sempre foram catalisadores de uma maior aproximação e identificação entre os cabo-verdianos. Já que os temos de enfrentar, procuremos fazer o nosso melhor no sentido de mais paz e solidariedade no mundo.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 25 de Março de 2020.

segunda-feira, março 23, 2020

Serenidade e autodisciplina precisam-se

O avanço do coronavírus continua e de uma epidemia localizada na China e países próximos transformou-se numa pandemia ameaçando toda a humanidade.
Actualmente o epicentro localiza-se na Europa, mas já é evidente o seu avanço pelos Estado Unidos e não tarda muito que o seu forte impacto seja sentido na África e América do Sul onde até agora não se verificaram grande número de casos para além dos importados. Em Cabo Verde os casos suspeitos têm-se revelado negativos, mas é uma questão de tempo para que também no país apareçam pessoas infectadas e na sequência casos derivados de contágio. Em todo o mundo a preocupação com a contenção do coronavírus e a mitigação dos seus efeitos na população tem conduzido a medidas cada vez mais exigentes a culminar no estado de emergência declarado primeiro na China e depois em vários países da Europa a começar pela Itália. Cabo Verde ciente dos riscos existentes e da possibilidade de contágio e tendo em conta eventuais transmissões furtivas a partir de pessoas sem sintomas, já declarou estado de contingência. Medidas efectivas a partir desta quarta-feira foram tomadas para provocar o social distanciamento necessário entre as pessoas e dificultar o quanto possível a progressão do vírus na população.
A híper conectividade das sociedades modernas determinou que o surto do vírus se transformasse em pandemia em menos de três meses. A contenção do contágio vai depender da disponibilidade de todos em contribuir para quebrar as cadeias de transmissão do vírus numa perspectiva de ganhar tempo. Ganhar tempo para proteger os mais vulneráveis entre os quais os idosos e os com outros problemas de saúde. Ganhar tempo para que se encontre tratamento específico para a doença e se desenvolva vacina contra o vírus. Ganhar tempo para que o sistema imunitário reaja ao novo vírus. E sobretudo importa, com o abrandamento do número de casos infectados, não sobrecarregar o sistema de saúde por forma a que esteja disponível para os que criticamente precisam de assistência. Para o sucesso nesse esforço colectivo de mitigação dos efeitos da Covid-19 vão contribuir todas as medidas tomadas de controlo das fronteiras, a proibição de entrada de cruzeiros e iates, o cancelamento de eventos, fecho de estabelecimentos e condicionamento de presença nas lojas, serviços e locais públicos de entretenimento. A contribuição maior virá da total disponibilidade de cada pessoa em cumprir com as regras de higiene e as regras de civilidade aplicáveis aos tempos extraordinários de hoje e também em demonstrar uma especial sensibilidade na protecção dos mais vulneráveis. Nos tempos actuais agir nesses termos é o maior acto de cidadania que se espera de todos e que todos esperam de cada um.
É evidente que as medidas tomadas para garantir esse distanciamento social são prenhe de consequências particularmente no domínio económico. Por exemplo, já se tem por garantido uma recessão mundial. Não se sabe até onde irá e qual será a duração, não obstante as iniciativas em curso de tentar imprimir alguma dinâmica à economia através da baixa nas taxas de juro e outras intervenções dirigidas para manter liquidez do sistema financeiro, garantir rendimentos a trabalhadores obrigados a ficar em casa e assegurar que as cadeias de abastecimento continuem abertas. Quanto às consequências políticas, uma questão que se coloca é como ficarão afectadas as relações entre os Estados no mundo pós-pandemia depois de na contenção do coronavírus se ter visto o ressurgimento do protagonismo do Estado-Nação com recurso a declarações de estado de emergência, fecho de fronteiras e limitação das viagens e outros intercâmbios. Um outro elemento novo a considerar é a ausência da liderança americana num problema global pela primeira vez depois da II Guerra Mundial e as dificuldades da União Europeia e de organismos multilaterais em articular uma resposta conjunta dos seus membros.
Numa nota mais positiva já se vê e se constata uma adesão das pessoas ao esforço da luta contra o coronavírus e uma disponibilidade em seguir as regras e em mudar os comportamentos. É uma nova atitude que pode vir a marcar o fim do período de egocentrismo levado ao extremo pela emergência das redes sociais e que não parecia esmorecer perante a evidência das alterações climáticas, dos extremos do consumismo e do aumento das desigualdades sociais. Também pode significar uma inflexão no que já parecia um enviesamento da relação com a verdade e com os factos e que alimenta fake news, cultiva posições anti-ciência e alicia muitos com realidades alternativas. De facto, não é possível continuar a alimentar esse tipo de posições perante a realidade incontornável de um vírus que pode vir a contaminar entre 60 e 70% da população mundial e que só poderá ser combatido com ciência pura e dura, com instituições confiáveis e com informação correcta. Espera-se também que pelas mesmas razões a conquista do poder fique mais difícil aos políticos e ao populismo que polarizam as sociedades, desprezam o conhecimento e descredibilizam as instituições.
Cabo Verde já se encontra em estado de contingência declarado ontem pelo governo. Imagine-se o quanto foi difícil decidir pelo “lockdown” de um país com as fragilidades de um país arquipélago dependente do turismo e com problemas de conectividade e uma base produtiva pobre e pouco diversificada. E isso acontece precisamente no momento em que globalmente se reduzem as comunicações, cadeias de abastecimento estão sob stress e a generalidade dos Estados que têm sido parceiros do desenvolvimento e são emissores dos fluxos turísticos estão concentrados na resolução dos seus próprios problemas de contenção da Covid-19. Na ponderação que antecedeu a decisão ter-se-á certamente levado em conta os efeitos no emprego em particular nas ilhas do Sal e da Boa Vista derivados da interrupção brusca de actividades nos sectores do turismo e da aviação e o facto que a recuperação ao nível actual poderá levar algum tempo. A prioridade em garantir a saúde pública no país e em particular dos mais vulneráveis prevaleceu, mas os problemas de hoje e de amanhã não desapareceram.
Tanto a eventualidade de elevado desemprego nessas duas ilhas como o aparecimento de fluxos migratórios em sentido inverso para as ilhas de origem irão exigir uma resposta pronta das autoridades. Problemas outros terão muitas empresas com falta de actividade e muitos dos novos empreendedores sobrecarregados com a amortização de investimentos feitos que também deverão merecer a atenção do governo. A verdade é que a paz social, confiança nas instituições e boas maneiras e civismo das pessoas são requisitos fundamentais para manter o ambiente de serenidade e autodisciplina que o país precisa neste momento. Garanti-los é o que vai permitir que se consiga o “distanciamento social” imprescindível para se ter sucesso na contenção do coronavírus e evitar que o sistema de saúde fique sobrecarregado.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 955 de 18 de Março de 2020.

segunda-feira, março 16, 2020

Preparar-se para o impacto do coronavírus

As consequências a todos os níveis do surto do coronavírus, Covid-19, estão a se revelar piores do que inicialmente se esperava. Nesta última semana assistiu-se a uma evolução dramática na disseminação do vírus. Não mais confinado a partes da China e a pequenos surtos na Coreia do Sul, Japão e Irão, o Covid-19 irrompeu-se nestes dias na Itália a ponto de todo o país ter sido posto em quarentena e vários caos surgiram noutros países da Europa.
Ao mesmo surgiram focos nos Estado Unidos e Brasil e casos mais isolados em alguns países da África subsaariana como o Togo, a Nigéria, os Camarões e também o Senegal. Parece inevitável que a epidemia se transforme numa pandemia com impacto tremendo em todo o mundo e particularmente onde o sistema de saúde não tem grande capacidade de resposta e a pobreza associada a problemas de habitação tornam difícil pôr em prática recomendações para contenção do vírus. A esperança é que com a subida da temperatura à medida que se aproxima o Verão no hemisfério Norte o vírus se torne menos activo e dê uma trégua no processo de contágio de forma a permitir que se desenvolva vacinas que o possam combater.
Já é óbvio o impacto que o vírus está a ter na economia e na interacção social e cultural das pessoas. Nos últimos dias viu-se o movimento negativo em todas as principais bolsas de valor a indiciar incertezas quanto ao futuro e antecipar uma possível recessão. Gita Gopinath, a economista-chefe do FMI num texto publicado no site dessa organização, fala de choques na oferta e na procura. Segundo a mesma, a convergência de disrupção na produção e no fornecimento de produtos intermédios com quebra na demanda dos consumidores e nos investimentos pode lançar a economia mundial numa recessão mundial similar à provocada pela crise financeira de 2008. De entre os sectores afectados, claramente que os da aviação e do turismo serão os primeiros a sofrer. Prevêem-se perdas de receitas na aviação entre 60 a 110 mil milhões de dólares. No turismo espera-se uma contracção nas receitas com perdas entre 30 a 50 mil milhões de dólares. E globalmente o sector de hospitalidade incluindo hospedagem, restaurantes, bebidas, parques recreativos, cruzeiros e outros transportes será o que mais irá ressentir das quarentenas, da proibição de eventos públicos e fecho de escolas, museus e outros sítios que possam aglomerar um elevado número de pessoas.
As dificuldades provavelmente não ficarão por aí. Ter-se-á ainda de contar com desenvolvimentos inesperados como o já em progresso na guerra dos preços de petróleo desencadeada pela Arábia Saudita. E sempre vai aparecer quem queira aproveitar das fragilidades criadas pela epidemia do coronavírus para se reposicionar no quadro das relações comerciais internacionais e ganhar vantagem numa perspectiva geopolítica. A questão que se poderá colocar é, se na sequência da crise que se avizinha, se a globalização será reforçada ou, se pelo contrário, haverá uma retracção nas relações entre as nações. Os governantes poderão ver-se pressionados a responder de forma substantiva e sem ambiguidade quando confrontados com interrogações sobre a livre circulação, migrações internacionais e dependência de fornecedores estrangeiros em produtos vitais.
As respostas não serão fáceis principalmente a meio da avaliação política que irá incidir na forma como terão gerido a epidemia e como o sistema de saúde nacional reagiu à ameaça. Nessas circunstâncias, poderá haver uma forte tentação para dar satisfação a sentimentos localistas em detrimentos dos globalistas até como subterfúgio para esvaziar soluções populistas vindas dos extremos do espectro político. O perigo de uma deriva nesse sentido é que certamente no futuro irão aparecer outras ameaças globais – sejam elas epidemias, alterações climáticas e constrangimentos energéticos a forçar transições para fontes renováveis e, quem sabe, emergências planetárias – que vão exigir uma abordagem compreensiva só possível se a política internacional não estiver dominada por interesses egoístas e pela lei do mais forte deixando de lado a cooperação entre as nações e o multilateralismo.
Para Cabo Verde, as notícias da epidemia do coronavírus não podiam ter vindo em pior momento. Actualmente a crescer acima dos 5% do PIB e com perspectivas positivas nos sectores do turismo e da aviação com o hub na ilha do Sal, nada é mais prejudicial do que o surto do Covid-19 precisamente nos países emissores de turistas e que também são destino dos passageiros aliciados a fazer o stopover no Sal nas viagens entre a América do Sul e a Europa e entre a África e os Estados Unidos. A expectativa de ver a economia nacional a ganhar maior dinâmica por arrastamento induzido por desses dois sectores corre o risco de, pelo menos por algum tempo, ficar frustrado. As vias para isso ainda não foram suficientemente desenvolvidas e uma perda da dinâmica pode constituir um sério retrocesso em particular no que respeita ao desenvolvimento do hub do Sal. Mais um exemplo que oportunidades quando aparecem devem ser aproveitadas com acções planeadas e encadeadas e com forte sentido do tempo certo para as implementar se realmente se se quiser atingir os objectivos de um desenvolvimento sustentável num país com as fragilidades de Cabo Verde.
De facto, não se pode continuar a agir como se o país tivesse todo o tempo do mundo, na expectativa de que oportunidades resultantes da dinâmica da economia mundial vão perdurar para sempre. É por se insistir nesse comportamento que há quem considere que Cabo Verde é o país das oportunidades perdidas. Não é fácil sacudir o espírito rentista induzido pela reciclagem da ajuda externa e que reproduz dependência e desigualdade na sociedade cabo-verdiana. Nem tão pouco se mostra prioritário Fazê-lo. Ficam-se pelos discursos que rotineiramente são feitos à volta da iniciativa individual, da meritocracia e da urgência em se ter uma base produtiva de criação de riqueza.
A opção assumida pelos dois grandes partidos nas suas reuniões magnas de Fevereiro e Março em manter em 2020 o essencial do discurso e as propostas de estratégia apresentadas em 2016 e sem um sinal forte de renovação da sua liderança não indicia que haja um forte empenho de fazer diferente. Não deram o melhor sinal de que os seus projectos políticos têm em devida atenção a realidade mundial, as oportunidades que se oferecem e as dificuldades internas em mobilizar vontades para fazer as reformas indispensáveis para o país se desenvolver e aproveitar as oportunidades oferecidas. Há sim vontade de chegar ao poder. Mas o poder só se legitima se é veículo para uma vida de liberdade e de prosperidade com dignidade e segurança. Algo a ter em devida conta nestes momentos de incerteza.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 954 de 11 de Março de 2020.

segunda-feira, março 09, 2020

Urgências

Nestes dias a atenção do mundo está centrada no coronavírus (Covid-19) e na forma como se alastra por vários países e continentes e ameaça transformar-se numa pandemia com consequências catastróficas globais a vários níveis. Aparentemente trata-se de mais um exemplo daquilo que o autor e professor de finanças Nassim Nicholas Taleb chamou de “cisne negro”, ou seja, um fenómeno raro e imprevisível cujo impacto é incerto e possivelmente de grande gravidade. No seu livro apontou o 11 de Setembro de 2001 e a crise financeira de 2008 como dois cisnes negros.
Tudo leva a crer que o surgimento do coronavírus e o impacto que já teve e presumivelmente vai ter nos próximos tempos o qualifica como mais um cisne negro. Milhões de pessoas na China estão há semanas de quarentena, cidades na Itália foram isoladas, eventos culturais e desportivos foram cancelados, ligações aéreas para os focos da epidemia têm sentido limitadas e cadeias globais de valor sofreram perturbações graves com fecho de fábricas, incerteza nas entregas e demora na prestação de serviços. Previsões de instituições internacionais como a OCDE já baixaram para metade as taxas de crescimento da economia mundial no ano 2020.
Até bem pouco tempo os efeitos da epidemia tinham-se concentrado na China onde o número de pessoas infectadas se situava em mais de quarenta mil e o número de mortos já tinha atingido os três mil. Neste preciso momento vive-se uma outra fase em que focos da doença já foram identificadas em 60 países com tendência para aumentar e provavelmente atingir países do continente africano e sul-americano que até agora praticamente têm sido poupados. Apesar do Covid-19 não ter revelado o nível de letalidade que outros vírus da mesma estirpe – SARS que apareceu em 2003 e MERS, em 2012 – dificilmente se poderá prever o efeito que terá em países com estruturas de saúde deficientes e capacidade de resposta limitada.
Nos países afectados é visível a correlação entre o número de mortos e qualidade da prestação global em matéria de saúde pública. Por isso mesmo é de esperar que as semanas de conhecimento prévio da epidemia ganhas em boa medida pela forma eficaz como a China impôs a quarentena na região de Wuhan tenham servido para que o resto do mundo elevar a qualidade e o nível de prontidão dos serviços de saúde e melhorar a articulação global na resposta à ameaça. Previsões de exposição ao vírus que atingem 40 a 70% da população mundial feitos pelo epidemiologista de Harvard Mark Lipsitch e corroborada por outros especialistas deviam inculcar um sentido de urgência que infelizmente nem sempre se adopta, em alguns casos por falta de meios, noutros por descaso das autoridades, noutros ainda por razões políticas.
Eventos do tipo “cisne negro”, não obstante os seus efeitos terríveis, servem muitas vezes de teste a sistemas, organizações e procedimentos. Tudo indica que, a se verificar, a pandemia do coronavírus será o primeiro grande teste do mundo globalizado, interdependente e altamente conectado que se esteve a construir nas duas décadas deste século. Pode ser a oportunidade de articulação global para evitar quebra excessiva na taxa de crescimento da economia mundial, para se fazer ajustes nas cadeias globais de valor e conter os seus efeitos negativos e ainda para limitar os efeitos nocivos de hiperconectividade e evitar o pânico, a desinformação e teorias de conspiração. O coronavírus não é a única ameaça global a despontar. Certamente outros vírus irão fazer o salto para o homem à medida que a população cresce e reduz o habitat animal e certos microorganismos são libertados na sequência do recuo dos glaciares. A aceleração das mudanças climáticas trará também o seu cortejo de secas, inundações, furações e elevação do nível do mar cujos efeitos para serem contidos vão exigir algum tipo de coordenação ao nível planetário. Por tudo isso o foco hoje deve ser aumentar resiliências e não ficar só pelos critérios de eficiência. Há que criar capacidade local, nacional e global não só para responder a fenómenos imprevisíveis e potencialmente catastróficos como também para “vir outra vez de baixo” quando o inesperado acontecer.
Em Cabo Verde, um país arquipelágico com uma história de secas e fomes, não devia faltar um forte espírito de resiliência. Infelizmente políticas de reprodução de dependência levadas a cabo durante décadas seguidas acabaram por enfraquecer esse espírito. Pior ainda, deixando-se seduzir pelo modelo de reciclagem da ajuda externa, esqueceu-se de construir diversidade e com isso reduziu as suas opções em caso de calamidades. A Standard & Poor’s já veio avisar do risco que o abrandamento do turismo pode constituir para o crescimento do país. E compreende-se que assim seja considerando que o turismo representa cerca de 40% da economia e o fluxo que gera revela-se contingente ao depender de vários factores não controláveis. Apesar dos discursos, não se pôs suficiente energia nem se foi perseverante na criação de uma base produtiva e exportadora de bens e serviços. Não se investiu o suficiente para fazer o país mais competitivo e mais produtivo.
Considerando a eventualidade dos cisnes negros se tornarem mais frequentes, há que procurar obter resiliência que permita enfrentar eventos e conjunturas adversas. Para isso é fundamental o investimento estratégico na segurança, na saúde e na educação com vista a construir diversidade e capacidade inovadora. E é bem claro que não basta dar continuidade ao que já existe e que não se adequa às exigências de um mundo caracterizado por constante conectividade tanto física como digital e como uma economia global e interdependente. O coronavírus está aí para lembrar da urgência do que se tem a fazer.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 953 de 4 de Março de 2020.

segunda-feira, março 02, 2020

Derivas linguísticas

Por altura da celebração do dia internacional da língua materna que acontece anualmente a 21 de Fevereiro mais uma vez vozes se fizeram ouvir a clamar pela “oficialização” do crioulo. De entre essas vozes soou mais alto a do Ministro de Cultura que no seu discurso disse que “consagrar a oficialização da língua cabo-verdiana como língua oficial em paridade com o português é o desígnio máximo do povo cabo-verdiano”.
O Presidente da República na sua mensagem instou a que se acelerem os mecanismos e se apurem os instrumentos para se cumprir a Constituição. Todos os anos repetem-se os apelos à oficialização, pede-se revisão constitucional urgente e deixa-se entender que há “opositores de oficialização” a enfrentar. Fica-se por saber é por que vias o Estado e o governo têm promovido as condições para uma oficialização em paridade com o português como comanda a Constituição. Pressionar todos anos para se rever a Constituição não é promover condições. É procurar impor “facto consumado” para além de passar a culpa da inacção ou de falta de acção consequente para outros.
A verdade é que a partir da revisão da Constituição em 1999 com a introdução do artigo 9º sob a epígrafe “línguas oficiais” passou-se a referenciar o crioulo como tal. Reconhecendo existir dificuldades no seu uso na plenitude nas funções do Estado por razões que, entre outras, advêm de não se ter uma forma estandardizada de escrita, ficou estabelecido no nº2 do mesmo artigo 9º que o Estado deveria tomar medidas para as ultrapassar. Já no nº 3 consagrou-se logo o direito de todos de conhecer e de usar as duas línguas. Por isso é que ninguém se sente impedido ou inibido de usar o crioulo no país. O PR faz declarações em crioulo, debate-se no parlamento em crioulo, pode-se depor nos tribunais em crioulo e a administração pública não deixa de responder se a solicitação vem em crioulo. Também não se pode falar de estigma social derivado do uso da língua, quando pessoas de todos os extractos sociais e em todas as ilhas falam variantes do crioulo nas mais variadas circunstâncias.
Por tudo isso é evidente que não faz sentido estar a apontar pessoas como opositores da oficialização do crioulo. Em relação ao que a Constituição estabelece há consenso geral. O problema surge quando não se cumpre a parte de “promover as condições” e se faz fuga em frente não só com propostas de alterações constitucionais mas também forçando a sua adopção como língua de ensino. A justificação pela sua introdução urgente nas escolas em nome da qualidade do ensino, da melhoria do sistema de educação e dos processos de aprendizagem não convence e isso já é notório na forte preferência de muitos pais e alunos pela escola portuguesa e outras escolas privadas. Aliás, aconteceu algo similar noutras paragens nomeadamente em Madagáscar, Haiti e Curaçau onde as elites moveram os filhos para escolas francesas e holandesas logo que se impôs a língua malgaxe o crioulo haitiano e o papiamentu nas escolas públicas. Insistir nessa via naturalmente que cria “opositores” em todos aqueles que aflitos e sentindo-se impotentes vêm todos os dias a degradação do ensino e aprendizagem do português e seu impacto na qualidade do ensino ministrado no país às novas gerações.
Em Cabo Verde o crioulo ainda oficialmente não é língua de ensino, mas na prática o seu uso em todos os níveis de ensino, do básico à universidade, à discrição do professor, já afecta negativamente todo o processo de aprendizagem. Contraposto ao português em termos identitários gera resistências que impedem que as horas dedicadas ao português nas escolas se traduzam num domínio da língua que seja considerado satisfatório. De alguma forma ter-se-á falhado em passar às novas gerações o papel que as duas línguas tiveram na sedimentação de uma identidade cabo-verdiana como se pode ver, por exemplo, no papel do português na criação de uma literatura genuinamente cabo-verdiana e do crioulo na expressão da morna. O uso das duas línguas por todos os extractos sociais também indicia que não há uma relação antagonística, nem há necessidade de exclusão de uma para afirmação da outra.
De facto não se é mais cabo-verdiano falando só o crioulo e hostilizando o português. Para todos devia ser evidente que o português não é ameaça para o crioulo. Diferente do que se passa no Brasil e cada vez mais em outros países de língua oficial portuguesa, em Cabo Verde o português não é língua materna, possivelmente nunca foi e certamente que no futuro não será. Há quem queira ver no crioulo cabo-verdiano o resultado de alguma espécie de resistência cultural. O mais provável é que seja um produto peculiar do isolamento e da precariedade destas ilhas. De outra forma não se compreenderia por que em países como o Brasil, os Estados Unidos e outros países os “afrodescendentes” não tenham criado uma qualquer língua de resistência e pelo contrário acabaram por adoptar a língua do colonizador como língua materna. E o facto não o terem feito não os impede de, por exemplo, fazer do samba um fenómeno cultural genuíno e expressão viva de uma cultura brasileira única também toda ela expressa em português.
Semanas atrás o VPM e Ministro das Finanças no parlamento constatou que não há competência linguística em francês e inglês que seria necessária para que Cabo Verde pudesse investir numa relação proveitosa com a África. A essas insuficiências acrescenta-se a cada dia que passa a manifesta dificuldade dos cabo-verdianos em fazer uso do português. Tanto no país como no estrangeiro essas dificuldades estão a prejudicar em particular os jovens no prosseguimento dos estudos e na procura de emprego. Perante uma situação dessas o país devia já estar num estado de alarme e especialmente proactivo e enérgico na identificação da raiz deste problema que ameaça confinar e limitar as suas possibilidades de desenvolvimento. Infelizmente o que se vê na utilização do sistema educativo e da comunicação social pública e nos discursos de políticos é o contrário. Nota-se uma convergência em fazer do crioulo uma questão identitária, em procurar engajar os jovens numa luta contra a sua suposta desvalorização ao mesmo tempo que se faz um alerta para a existência de opositores, nas entrelinhas mentes colonizadas. Enquanto no Ruanda de Kagame se adopta o inglês como língua oficial para aumentar as chances de desenvolvimento do país aqui celebra-se a vitória do paroquialismo mais crasso.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 952 de 25 de Fevereiro de 2020.