segunda-feira, novembro 28, 2022

Quer-se debate construtivo e voltado para o futuro

 

​Nas vésperas da discussão na especialidade do Orçamento do Estado para o ano 2023 vai-se mais uma vez a debate com o Primeiro-Ministro na Assembleia Nacional com o tema “A Transparência como factor de desenvolvimento”.

No ano passado tinha sido o mesmo tema e, recorrentemente, volta-se às questões de governança e de acountability sem que, pelo tom e substância de debates subsequentes no parlamento, se perceba que houve algum progresso no sentido supostamente desejado. Os argumentos continuam primários, não são avançadas soluções e não se vê vontade para fazer reformas, presos como todos parecem estar aos cálculos eleitorais, independentemente da distância que no momento se está das eleições. Os debates acabam por traduzir-se em simples oportunidades para acusações mútuas, para suspeições de favoritismos e até de corrupção e para denúncias de partidarização da administração do Estado. 

Dificilmente no debate de hoje, dia 23 de Novembro, será muito diferente. E é pena porque os tempos actuais de grandes incertezas exigem que se renove e se consolide confiança na democracia. Para isso, porém, é fundamental que, como alguém bem disse, sejam disponibilizados “instrumentos que poderão permitir uma maior transparência, verdade e clareza na defesa de uma sociedade aberta, na qual as políticas públicas resultem de opções realmente partilhadas por todos e adequadamente sujeitas ao controlo efectivo dos cidadãos”. Num ambiente em que se privilegie mais os supostos ganhos de deixar mal o outro, como se todos estivessem envolvidos num jogo de soma zero, não há muito espaço para se chegar a acordo sobre como afinar esses instrumentos. Nem mesmo para reconhecer o caminho em termos institucionais que já se percorreu nas três décadas da democracia para se combater a opacidade do Estado e fazer da transparência e da accountability um princípio fundamental do Estado de Direito democrático. 

De facto, apesar das querelas constantes avançou-se e muito nestes trinta anos. Não é à toa a posição actual de Cabo Verde nos ranking de governação (51) e de corrupção (39). Poderia ser melhor se houvesse um comprometimento para que certas reformas chaves na administração do Estado tivessem continuidade para além das legislaturas. Diferentemente de países tão diferentes como as Maurícias e Botswana que, mesmo com alternância no governo, conseguiram manter uma orientação estratégica consistente e que lhes proporcionou crescimento e prosperidade e os colocou entre os primeiros de África, Cabo Verde deixou-se tolher no seu desenvolvimento pela crispação política. Com isso, quebrou-se o ritmo de reformas e alimentaram-se resistências às mesmas, enquanto o discurso político degradava-se e fixava-se completamente fora de contexto no passado das realizações no governo de cada partido. Depois perguntava-se porque não tiveram continuidade. 

Quando se institui essa forma de fazer política corre-se o risco do país paulatinamente deixar de contar com visões de desenvolvimento dos diferentes partidos porque, de facto, da forma como politicamente se engajam já não estão virados para o futuro. 

A democracia perde porque não apresenta à sociedade reais alternativas mas sim versões “do mais do mesmo”. Por outro lado, toda a acção política passa a configurar no que já foi chamado de técnicas de poder, de como ocupar e usar o Estado para dominar a sociedade e a economia. O calculismo eleitoral acaba por se impor e toda a oportunidade é tida como boa para ganhar pontos sobre o adversário. A tentação maior será de transformar o adversário no “outro” que, conforme as circunstâncias, se pode apresentar como não defensor dos interesses do país, de profeta de desgraças e até de anti-patriota. A democracia, porque baseada no respeito pela dignidade da pessoa humana, reconhece que os indivíduos e cidadãos são livres e têm interesses e que esses interesses são diversos. O facto de se suportar no pluralismo e na tolerância assumidos por todos como princípios permite que da interacção desses interesses resulte o interesse geral. Ninguém, seja ele indivíduo ou grupo, detém o monopólio da verdade ou encarna sozinho o interesse público. Da organização política social e económica que resultam dos princípios democráticos e do Estado de Direito espera-se que emerjam as mais ricas expressões de criatividade, de capacidade inovadora e de energia e vontade para correr riscos e criar o novo. E isso é provado historicamente pelas democracias a todos os níveis, designadamente de crescimento económico, de qualidade de vida, dos avanços científicos e tecnológicos e de expressão artística, quando comparadas com formas de poder autocrático, sejam eles autoritários ou totalitários. Empobrecese, pois, a democracia e o país quando se deixa instituir uma forma de fazer política que exclui e toma o adversário como inimigo e não representativo de interesses legítimos dentro da comunidade, os quais, pela sua expressão contribuem para se definir o interesse nacional. 

Em Cabo Verde, nota-se ainda hoje resistências ao pluralismo e à expressão da diversidade de interesses. Sente-se na hostilidade aos partidos e ao multipartidarismo em certos círculos que, curiosamente, logo nos primórdios da democracia já denunciavam os males do bipartidarismo. Vê-se também na desconfiança como certos sectores da sociedade encaram a iniciativa privada e actividade empresarial e seu impacto nos rendimentos e bem-estar dos indivíduos que são bem sucedidos. Ainda tributários da ideia de que o Estado é o principal provedor de recursos no país não interiorizam como realmente se cria riqueza e como se pode organizar para garantir rendimentos e combater a pobreza de forma sustentada por outras vias que não a da mobilização de recursos externos. A relutância sentida à volta dessas questões não é de estranhar considerando a trajectória histórico- político do arquipélago ao longo da qual se cultivou o igualitarismo, se entregou a política a um grupo supostamente impoluto, porque na “luta” se suicidou como classe social, e se combateu a iniciativa e expressão individual enquanto se procurava enquadrar as pessoas em organizações de massa. 

A política no presente ainda é marcada por confrontos que nos debates trazem ao de cima todo esse legado. Com certo tipo de acusações procura-se excluir o adversário e retirar qualquer legitimidade ou credibilidade aos seus argumentos. Com as suspeições cria-se o ambiente adequado para desconfiança em relação às intenções. Claramente que debates que tem como foco escrutinar a actividade estatal e do governo são os mais propícios para esse tipo de exercício. Em nome da transparência, em vez de procurar consolidar as instituições de controlo e aprimorar o sistema de pesos e contrapesos de forma a se exigir uma prestação de contas atempada e responsável e cada vez mais rigorosa e intransigente, opta-se por repisar velhos argumentos, repetir escaramuças antigas e sair de mãos a abanar depois de mais um debate. 

Há que abandonar essa forma de actuação que não é salutar para a democracia e não ajuda o país e as suas gentes. Se não for agora, que o mundo e também Cabo Verde enfrentam crises múltiplas e sem precedentes, quando será?

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1095 do Expresso das Ilhas de 23 de Novembro

segunda-feira, novembro 21, 2022

Câmaras e populismo: Reforçar pesos e contrapesos

 Com os resultados surpreendentes das eleições brasileiras no dia 30 de Outubro, seguidas das americanas a 9 de Novembro, ouviu-se, no entender de muitos observadores, o quebrar da onda de populismo que há anos tem posto em causa os valores liberais e até ameaçado de morte as democracias.

Bolsonaro e Trump são as duas personalidades cujas vitórias eleitorais em países com peso e influência global tinham tornado plausível a ideia de inverter o curso das democracias e caminhar para autocracias eleitorais. As derrotas por eles sofridas nas eleições referidas necessariamente irão levar a rever o quão longe poderão ir outros movimentos de inspiração populista que vem tendo algum grau de sucesso em países como Hungria, Itália, Polónia e Israel. A verdade é que o ambiente propício para essa forma de entender e fazer política vai continuar a existir e para as democracias particularmente as mais recentes ou ainda pouco consolidadas a questão que se coloca é como atenuar ou neutralizar os seus componentes e, quando isso não for possível, como sobreviver às investidas.

Da experiência do populismo neste século, e em particular nos últimos dez anos, se pode provavelmente dizer que já se viu o “filme” completo: de como se mobilizam paixões no eleitorado servindo-se do nacionalismo, do medo e do ressentimento para chegar ao poder e, como a partir de lá, se move decididamente para fragilizar as instituições, descredibilizar os médias e o sistema judicial, ao mesmo tempo que é afirmado o poder autocrático do líder. Ao longo de todo o processo o “chefe” aparenta ter impunidade perante tudo e todos. Procura mostrar que pode sobrepor-se à lei e às normas estabelecidas, menorizar o papel tradicional dos partidos e do parlamento e, como se viu nas eleições americanas, até proclamar que não aceita o resultado eleitoral se não lhe for favorável. E essa percepção de impunidade tende a consolidar o suporte dos seus seguidores mesmo quando sinais graves de incompetência na governação com resultados às vezes catastróficos, como aconteceu durante a pandemia da Covid-19 nos Estados Unidos com Trump e no Brasil com Bolsonaro. A pouca diferença nas eleições, apesar de desfavorável para os populistas, dá conta de como a sociedade fica polarizada e o quanto se desviou dos padrões da racionalidade, da civilidade e do diálogo político suportado nos factos.

Nenhuma democracia está livre de derivas populistas, especialmente agora que se vive uma época que alguns já chamam de “policrise” em que as crises se sucedem umas às outras e os seus efeitos, interagindo de forma complexa, criam imprevistos e incertezas. E certamente que Cabo Verde não é excepção. A tentação populista existe e é visível a todos os níveis de governação e do exercício do poder. Poderá ganhar força se, perante a incapacidade de se estabelecer um forte sentido de solidariedade nacional em situação de precariedade geral, for desencadeada uma corrida aos recursos do país em particular os públicos. Quando é assim, tudo, designadamente sentimentos de abandono, ressentimentos anti-elites e frustrações de diversa ordem, pode servir para inflamar paixões e abrir caminho à ascensão de pequenos e grandes autocratas. Mas, como bem demonstram as experiências referidas de populismo, o que finalmente põe algum travão à deriva e evita que desemboque na autocracia é a insistência na aplicação nas regras do jogo democrático, no uso dos pesos e contrapesos do sistema político e na afirmação a todo o tempo do primado da lei.

Mais uma razão para uma acção concertada dos vários actores políticos para se pôr cobro à crise político-institucional existente nos municípios da Praia e de São Vicente. Tanto um como o outro tem câmara municipal com composição plural mas as forças políticas não conseguem entender-se quanto ás regras do jogo democrático quando elas deviam ser claras e suportadas por trinta anos de experiência de poder local democrático no país. Não é à toa que só uma única vez, no ano de 1995 em São Vicente, foram realizadas eleições intercalares para se ultrapassar bloqueios nos órgãos municipais. O sistema de governo local é estável apesar do que comparativamente se pode considerar de poderes excessivos atribuídos ao presidente da câmara e que podem deixar espaço para derivas populistas e autocráticas. De facto, a colegialidade da câmara tende a ser sacrificada a favor do poder do presidente e com ela o equilíbrio de poderes no município. De acordo com a Constituição, artº 234, é a câmara, enquanto órgão executivo colegial, que é responsável perante a Assembleia Municipal.

A Constituição, ao estabelecer no artº 121 que os órgãos de poder político colegiais só deliberam com a presença da maioria dos seus membros reforça a natureza colegial e obriga os membros a um diálogo para garantir que o órgão seja efectivo e representativo dos seus eleitores. Parece daí lógico que o que realmente não se pode ter sob pena de desvirtuar toda a razão de ser do sistema é a deliberação de um único eleito ou de uma minoria de eleitos sobre matérias que são da competência da câmara municipal. No caso do imbróglio à volta do orçamento apresentado à assembleia municipal da Praia é evidente que devia resultar de uma deliberação da câmara, da mesma forma que a proposta de orçamento do Estado só vai para discussão e aprovação no parlamento depois de aprovada no conselho de ministros que é o órgão colegial do governo. A proposta do OE não é do primeiro-ministro nem do ministro de finanças, que o elabora, mas sim do governo. E certamente que não seria pela via de uma lei de finanças locais, como se vem sugerindo, que o legislador iria alterar as competências de um órgão de poder político como é a câmara municipal.

Aliás, não é esse o entendimento que todos os órgãos municipais do país, ao longo das três décadas, têm dos procedimentos a seguir na aprovação dos instrumentos fundamentais do município que são o plano de actividades e o orçamento. Insistir em ir por procedimento que não é usual e aceite configura muito do que se tornou prática entre os populistas nas suas investidas contra as instituições. Em São Vicente e na Praia o conflito com o presidente da câmara aparentemente bloqueou o órgão executivo colegial com uma diferença entre os dois casos. Em São Vicente o presidente não ganhou com uma maioria de vereadores e, in extremis, os outros vereadores podem provocar a perda de quórum do órgão e forçar eleições intercalares para reconfigurar a câmara municipal. Na Praia foi o próprio presidente, aparentemente por falta de diálogo, que acabou com a maioria recebida nas últimas eleições e agora procura esvaziar a câmara das suas competências.

Claro que isso só aconteceria com a conivência da mesa da assembleia municipal e da sua maioria de eleitos e com isso efectivamente colocando todos os poderes no município nas mãos do presidente da câmara. Esse é um resultado que não pode ser visto com complacência por parte de todos os outros poderes que garantem que a constituição é cumprida, as regras do jogo democrático são seguidas e que a legalidade no exercício do poder é respeitada. Se faz escola ao nível local essas acções ostensivas para esvaziar de competências os órgãos eleitos, não dura muito tempo que práticas similares sejam tentadas noutras sedes do poder político.

A dificuldade em reverter situações de atropelo às democracias e suas instituições que as últimas eleições brasileiras e americanas revelaram devia um ser aviso a todos os actores políticos para que, seja na sua actuação directa, seja no processo de nomeação de titulares de cargos públicos, tenham presente a importância crucial para a democracia de se ter funcional e efectivo o sistema de pesos e contrapesos previsto na constituição e nas leis.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1094 do Expresso das Ilhas de 16 de Novembro

segunda-feira, novembro 14, 2022

Foco, um ano depois

Foi há precisamente um ano a tomada de posse do Presidente da República José Maria Neves. Com esse acto terminava o ciclo eleitoral que se tinha iniciado em Outubro de 2020 com as eleições autárquicas e depois continuado nas legislativas de Abril de 2021. À frente, Cabo Verde poderia contar com três anos sem pleito eleitoral, o que provavelmente viria a jeito. Praticamente todo o período eleitoral verificou-se durante a pandemia da covid-19 e o país precisaria de uma certa acalmia nas disputas partidárias para melhor poder focar em como trazer de volta a economia depois de uma violenta contracção de quase 15% do PIB e em como construir bases para resistir futuros choques. Infelizmente não foi isso que aconteceu apesar da invasão da Ucrânia pela Rússia e do seu impacto global a vários níveis terem vindo relembrar a urgência em se obter convergências em questões fundamentais e em conseguir mobilizar vontades para a consecução dos grandes objectivos do desenvolvimento.

O Presidente da República foi eleito por uma maioria confortável e, apesar de ser originariamente de uma área política adversária da do governo, não se descortinava, à partida, que poderiam surgir tensões que impedissem consensos nacionais. Até porque o governo é suportado por uma maioria parlamentar clara, o que em princípio limita o espaço para protagonismos do tipo que se viu recentemente com governos minoritário e a chamada “geringonça” em Portugal. Por outro lado, o que está em jogo no momento é a recuperação da dinâmica pré covid-19 e a preparação do país para enfrentar as incertezas e imprevistos que vão aparecendo quase todos os dias, algo que devia ser a preocupação chave de todos os actores políticos. Por isso é que não deixa de ser revelador o facto de até agora, passado um ano, não se ter conseguido ir além do ambiente habitual de crispação, dos ruídos causados pelo excessivo protagonismo comunicacional dos políticos e das tentações populistas que apostam no ressentimento das pessoas e na descredibilização das instituições para assegurar apoio a certas formas de jogo político que talvez em tempo eleitoral tivessem algum sentido, o que não é o caso. 

No sistema de governo criado pela constituição de 1992 o Presidente da República não governa nem o governo é politicamente responsável perante ele, apesar de por ele nomeado. Mas tem um conjunto de competências tanto na nomeação de altos cargos públicos na magistratura judicial, no ministério público, nas forças armadas e para as representações do país no exterior que deixam claro o papel essencial que desempenha para o funcionamento do sistema e para a estabilidade institucional. Também, enquanto órgão de soberania singular, é representativo da unidade da Nação e do Estado e garante o cumprimento da Constituição. Está, por todas essas razões, em boa posição de desempenhar um papel fundamental na criação do ambiente político-institucional favorável à criação de consensos das forças políticas quanto aos objectivos comuns. 

A dificuldade em ir por esse caminho parece estar no como fazer sem interferir na governação. Até agora as eleições legislativas têm resultado em maiorias absolutas na governação do país limitando o eventual protagonismo e espaço de manobra políticos que os sucessivos Presidentes da República poderiam ter com governos minoritários ou em situações de instabilidade governativa. E isso de alguma forma terá contribuído para cimentar a ideia de que o presidente da república em Cabo Verde não teria poderes reais e seria mais uma espécie de “rainha de Inglaterra”. Poderá também ter provocado reacções dos titulares em certas circunstâncias na forma de protagonismo desajustado. 

A origem dessa interpretação provavelmente estará nas discussões que antecederam à Constituição de 1992. O actual sistema de governo de pendor parlamentar foi adoptado em substituição do sistema semi-presidencialista que a monopartidária assembleia nacional popular tinha forçado no texto constitucional em Setembro de 1990 e que se previa como potencialmente desestabilizadora como veio a revelar-se, por exemplo, em São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau. Criou-se, no entanto, o preconceito de “presidente fraco” para servir de arma de arremesso político e isso não deixou de afectar a forma como os diferentes titulares acabaram por exercer a presidência. Algum protagonismo excessivo poderá ter sido ajudado pela crescente exposição mediática que se tornou normal entre os políticos, imitando o estilo de Marcelo Rebelo de Sousa requintado em tempos do governo minoritário do PS e da geringonça em Portugal. Não é à toa que com o actual governo suportado por uma maioria absoluta está-lhe a ficar difícil manter o estilo de comentar tudo, interpelar ministros e sectores de governação e de servir de ponte a todos. 

Depois da morte de Elisabeth II e de todas as manifestações de apreço pelo que representou ao longo dos 70 anos de garante da unidade da nação, de afrmação de princípios e valores constitucionais e de estabilidade institucional, a acusação de ser “rainha de Inglaterra” já não deve ter a carga pejorativa de antes. Pelo contrário, nos tempos actuais, em que em vários países se assiste ao espectáculo de presidentes, primeiros-ministros e outros titulares de órgãos de soberania a atentarem contra o Estado de Direito democrático e a ir pelo caminho que recentemente o constitucionalista Vital Moreira chamou de “progressiva subversão do sistema de governo constitucionalmente estabelecido”, deve-se dar a maior importância ao cumprimento dessas funções fundamentais ditas da “rainha de Inglaterra. São indispensáveis para se poder preservar as bases da democracia e o senti- do de pertença à comunidade política e nacional necessários para se ter liberdade, pluralismo e alternância de governo. 

De se evitar também é que, em reacção à acusação ou percepção induzida de presidente da república fraco e insufcientemente ocupado porque não governa, se tenha o que alguém já uma vez caracterizou de um “presidente a falar tanta vez, em todo o lado, a propósito de tudo”. A dignidade e a imparcialidade do cargo exigem necessariamente contenção e discrição nas intervenções. A efectividade da magistratura presidencial também depende disso. E em tempos em que se nota da parte de muitos políticos sinais preocupantes do que o autor inglês David Owen chamou no seu livro Hubris de “impetuosidade, recusa de ouvir os outros ou ser aconselhado”, é de maior importância que na chefia do Estado reine a ponderação e a prudência e uma preocupação fundamental em fazer cumprir as regras. Relevância e dimensão histórica ganha-se com esse serviço à nação e não se deixando apanhar por agendas ultrapassadas e narrativas fracturantes.

Humberto Cardoso

Texto publicado originalmente na edição nº1093 do Expresso das Ilhas de 09 de Novembro

 

segunda-feira, novembro 07, 2022

Não é tempo para complacência

 

Na sexta-feira passada o Banco de Cabo verde, como habitualmente em Outubro/ Novembro, trouxe a público a segunda edição do seu bianual relatório de política monetária. As informações sobre a performance do país foram melhores do que eram esperadas. No World Economic Outlook do Banco Mundial de Outubro último a previsão de crescimento da economia nacional era de 4% para o ano de 2022 e de 4,8% para 2023.

Para o BCV, porém, já se pode contar com um crescimento este ano à volta de 8% e esperar por 5% no ano de 2023. Pensava-se que o PIB do país só iria atingir o nível de 2019 em 2023 mas, segundo os dados agora revelados, isso será possível ainda em 2022. 

A par com outras boas notícias, como por exemplo, a de se ter garantido credibilidade do regime cambial do peg unilateral da moeda cabo-verdiana ao euro e a reserva em divisas correspondente a mais de sete meses das importações, no relatório do BCV veio uma série de recomendações para se manter o país estável e a crescer com sustentabilidade. O mundo não está fácil e incertezas e imprevistos tornam difícil antecipar o futuro, mesmo o mais próximo, e prevenir as dificuldades em forma de choques de vários tipos que eventualmente venham a surgir. 

A humanidade encontra-se numa encruzilhada perigosa. A invasão da Ucrânia pela Rússia e a reacção dos países do Ocidente em apoiar os ucranianos na defesa da sua soberania e integridade territorial e do seu direito à liberdade e democracia lançou o mundo num mar de incertezas e de disrupções de vária ordem, designadamente geopolítica, comercial e militar em relação ao qual ninguém vê um fim à vista. A desglobalização já está a acontecer, blocos de nações rivais já são uma realidade e mesmo a possibilidade de uma guerra nuclear deixou de ser uma hipótese remota. 

Tudo isso ocorre tendo como pano de fundo as alterações climáticas de abrangência planetária cujo impacto no quotidiano de muita gente e na economia global é já praticamente incontornável. E a verdade é que, sem cooperação entre os vários Estados, particularmente as grandes potências políticas e económicas, dificilmente se vão tomar as medidas de protecção do ambiente, agir concertadamente para fazer a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis e proceder à descarbonização da economia que se impõe no momento. Mesmo a muito curto prazo pouco se consegue prever considerando que imprevistos vários, sejam eles políticos, económicos e até logísticos acabam por afectar num sentido ou noutro. 

Da vitória ou derrota do Lula no Brasil, por exemplo, dependiam decisões com impacto nas alterações climáticas, o mesmo acontecendo com as eleições da próxima terça-feira nos Estados Unidos em que uma eventual derrota dos democratas poderá assinalar mudanças na política de protecção do ambiente com impacto global. Da evolução das relações com a China, a segunda maior economia do mundo, nos últimos tempos marcada por tensões geopolíticas, vai depender muito a possibilidade de avanços numa política global do clima. Também como se está já a constatar, falhas no fornecimento do gás ou do petróleo russo ou então perturbações nos transportes de cereais constituem uma fonte de graves problemas de abastecimento e escaladas de preços que acabam por criar instabilidade geral, em particular nos países mais frágeis. 

A estes, e em especial aos que como Cabo Verde ainda suportam os custos da insularidade, há que preparar para o mundo propenso a choques, de que fala Kristalina Georgieva do FMI, e não cair na tentação de pensar que à conta de alguns indicadores mais favoráveis já se pode dizer que a normalidade está aí mesmo à porta. Aliás, em matéria das exportações do turismo, que mais impacto têm sobre a economia nacional, o BCV veio relembrar que só em 2024 se estima que atinjam os níveis pré-pandémicos de 2019. Acrescenta ainda que há riscos à materialização das actuais projecções, entre os quais, a evolução adversa da guerra na Ucrânia e os seus efeitos nos preços de energia e alimentos e nas cadeias de abastecimento globais, a adopção de políticas monetárias agressivas que poderão expor a vulnerabilidade da dívida e levar ao sobre endividamento e, ainda, um possível ressurgimento da pandemia com uma nova variante. Por isso é que passa a recomendar que a prioridade nos próximos meses seja de combater a inflação e que nesse sentido se tenha atenção nas políticas redistributivas para que sejam direccionadas para quem realmente precisa e se equacione a tempestividade da sua retirada.

Outras recomendações com o mesmo objectivo de combater a inflação e lidar com a dívida incidem sobre a necessidade de coordenação dos agentes económicos para conter aumentos de salários geradores de pressões sobre preços. A solidariedade aí sugerida deverá ser acompanhada de um esforço visível e credível da parte de todo o Estado na contenção das despesas e num funcionamento mais eficiente e eficaz. Aliás, esse esforço deverá servir de elemento motivador do engajamento colectivo necessário para se pôr em prática as sugestões do relatório de se avançar com políticas públicas urgentes, como melhorias na infra-estrutura dos transportes e investimentos na saúde pública para melhor enfrentar eventuais pandemias, e de se proceder a reformas estruturais, abrangendo educação, ambiente de negócios e infra-estruturas digitais. 

É evidente que sem esse comprometimento de todos, neste momento de grandes mudanças e grandes incertezas no mundo, a tentação maior vai ser de gerir o país como se fez nas crises passadas. E da experiência tida sabe-se que não se conseguiu de facto debelar as vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações. Mas, a olho nu, nota-se que a dependência das populações e da sociedade em relação ao Estado aumentou. A tudo isso não é estranho o tipo de política de soma zero que se insistiu em perpetuar e que nem a alternância política no governo conseguiu realmente pôr cobro. Acompanhada de crescente personalização da política que não deixa espaço para diálogo e compromissos e para se criar vontade de reforma, as suas consequências são ainda piores. 

O primeiro-ministro, citado pela Lusa num despacho de 26 de Outubro, apresenta-se como uma espécie de treinador de futebol que toma decisões governativas não em função da reacção daquilo que alguns dirão, seja com que formato, seja com que membro de governo for, focado a fazer bom trabalho. Aos outros, políticos e entidades, provavelmente deverá restar o papel de denunciar situações e procurar tirar benefícios eleitorais das denúncias. Daí talvez se compreenda que nos confrontos políticos em Cabo Verde o que mais se ouve é discurso de abandono e de discriminação e acusações de favoritismo partidário. E também se justifique o frenesim de toda a classe política nas suas visitas às ilhas e nos encontros repetidos com a população que só a pandemia da covid-19 conseguiu travar, deixando a nu o desperdício visível que boa parte dessas deslocações e estadas representam em tempo, em dinheiro e em oportunidade de criação de uma consciência nacional dos problemas do país. Aparentemente não há perspectiva de ganho em dialogar, debater e chegar a acordos. 

Se isso é mau em geral, na actual conjuntura política e económica é muito pior. E nem a publicação agora dos novos indicadores macroeconómicos, aparentemente mais favoráveis do que o esperado, devia retirar gravidade à situação actual e convidar à complacência habitual no país. Tornar o país resiliente para enfrentar choques futuros impõe que se vá além da política rasa e sem imaginação que faz escola no país.

Humberto Cardoso


Texto publicado originalmente na edição nº1092 do Expresso das Ilhas de 02 de Novembro