segunda-feira, dezembro 26, 2022

Para um Natal de paz e esperança

 

Nas últimas semanas a questão da segurança capturou mais uma vez a atenção das pessoas e da comunicação social na sequência de vários assassinatos verificados na capital do país. Os relatos de violência grotesca que vinha acontecendo já tinham despertado a sociedade para o que já se tornou na habitual onda de crimes que recorrentemente atravessa a urbe. Em Outubro de 2021, quando algo similar aconteceu, o departamento de estado americano classificou de crítica a situação da criminalidade em Cabo Verde e desaconselhou viagens para o país. Na passada segunda-feira, o presidente da república veio alertar para o facto de “a criminalidade na Cidade da Praia está a atingir níveis dramáticos e que a situação é extremamente preocupante”.

A reacção da polícia nacional foi accionar o seu costumeiro plano de prevenção no período de Natal e de Fim do Ano ao mesmo tempo que reiterava a intenção de continuar a fazer a sua parte, mas não sem apontar a omissão dos pais no controlo e educação dos filhos. Para o governo e os partidos políticos na última sessão plenária deste ano foi mais uma oportunidade para as habituais escaramuças no parlamento que terminam sem assunção de responsabilidades e sem soluções, mas a lembrar como, nas sucessivas governações, recursos e meios têm sido “despejados” sobre os problemas de segurança. O presidente da república ainda veio apelar no sentido de se mobilizar todos os esforços do governo, das autarquias locais, das empresas, das organizações não governamentais e das igrejas para se criar uma cultura da paz e da não-violência.

O mais normal é que se fique por essas reacções já elas próprias habituais e esperar que a onda passe. “Varrer os problemas para debaixo do tapete” é uma prática estabelecida que nem situações de crise das mais graves como a da pandemia da Covid-19, acompanhada de uma profunda recessão económica, conseguiu abalar. E as consequências já se fazem sentir nos mais diferentes sectores da vida do país, umas mais visíveis e outras a despontar. Em matéria de segurança, num relatório de 25 de Outubro de 2021, as autoridades americanas alertaram para o facto de o crime na cidade da Praia estar a tornar-se mais violento e que por causa disso as ruas ficam desertas de gente logo após o escurecer. Também apontaram que o número de armas de fogo no mercado tinha aumentado e o seu uso no cometimento de crimes que antes era raro tinha-se tornado prevalecente.

Um ano depois, a percepção geral é que os crimes são mais violentos e as armas mais abundantes. A própria polícia diz, de acordo com o despacho da Inforpress de 15 de Dezembro, que em 2021 apreenderam um total de 355 armas de fogo e que neste ano de 2022 já iam em 523, um aumento de 47%. Nas apreensões de armas brancas, segundo o porta-voz da PN, passaram de 1.820 unidades, em 2021, para 2.751 neste ano, numa escalada de 51%. Num ambiente que é claramente de violência crescente, compreende-se o apelo do presidente da república para uma cultura de paz e de não-violência. Só que, perante a incapacidade evidente das instituições, apanhadas como estão em lutas político-partidárias, em lidar com o problema, o aparente desconhecimento das suas causas que nem a proliferação de estudos sociais e teses universitárias parece elucidar e o falhanço em mobilizar a sociedade com a promoção de civismo e reconstituição do capital social, não se vislumbra como se pode inflectir a tendência actual e repor a tranquilidade pública com diminuição significativa do sentimento de insegurança.

Há muito tempo que Cabo Verde, o país da Morabeza, devia ter tomada a questão da segurança como estratégica para o seu desenvolvimento. Nenhuma mancha devia ofuscar a imagem de país seguro a projectar para atrair turistas, visitantes, investidores e residentes. Sendo o país que, como bem refere o referido relatório das autoridades americanas, não tem os problemas habitualmente fracturantes de natureza étnica, linguística e religiosa, nem tem exemplos de violência política, deveria ser capaz de ultrapassar com relativa facilidade conflitos de origem sócio-económico que eventualmente surgissem.

Uma via possível talvez passasse por um forte engajamento de toda a colectividade nacional no desenvolvimento do país com ênfase posto na solidariedade e inclusão. Talvez não deixando instalar a cultura de dependência, mas trabalhando para resultados e investindo no capital humano, se pudesse combater as desigualdades e manter a confiança num contrato social (win-win) em que todos ganhariam e a prosperidade estaria ao alcance de todos. Infelizmente, o caminho tem sido outro e nestes tempos de crise a corrida aos recursos, particularmente os públicos por uma via ou outra, acabou por se tornar marcante. O resultado viu-se no aumento das desigualdades, na atitude de secundarizar resultados e de varrer problemas para debaixo do tapete a favor dos “ganhos à cabeça” e ainda em maior dependência do Estado.

A oportunidade que as crises poderiam oferecer para se reverter a tendência com espírito de solidariedade e maior sentido do bem comum não tem sido aproveitada. Pelo contrário, a situação actual cuja gravidade é sentida por todos, tem levado ao recrudescer dessa corrida por uma via que tende a configurar um jogo de soma nula. Um jogo terrível que, ao terminar com uns poucos ganhadores, gera em contrapartida muitos perdedores devido às ineficiências criadas a todos os níveis, à destruição de uma cultura de cooperação essencial para se ter estruturas produtivas e criar riqueza e ao desenvolvimento de um sentimento de injustiça que mina a comunidade. A perspectiva de mais um ano difícil e cheio de incertezas, em 2023, não augura uma melhoria neste quadro. O que já claramente se constata em matéria de segurança pode bem vir a revelar-se noutros sectores com problemas por resolver ou que sofrem a erosão provocada por esse mal-estar que afecta de uma maneira ou outra as instituições e a sociedade em geral.

Seria da maior importância que houvesse uma forte liderança nos diferentes níveis e sectores do país no sentido de se reverter as tendências negativas nas instituições e na sociedade cabo-verdiana. Paradoxalmente, o que se nota é a tentação de se fazer o aproveitamento da situação de crise para que, ao chegar ao seu término – não se sabe quando e como – alguns indivíduos e grupos estejam melhor posicionados em termos políticos, político-eleitorais, económicos, sociais, etc. Também não ajuda nestes tempos difíceis esse avivar do saudosismo do regime de partido único sob disfarce do culto de Cabral que estranhamente é patrocinado por diversas entidades do Estado quando o sistema de valores da Constituição da República é-lhe completamente oposto. Mantém acesa uma guerra cultural que só fragiliza a unidade do país.

Com o ano de 2023 a despontar e a guerra na Ucrânia sem um fim à vista e cheio de incertezas um sentido de urgência devia impor-se para se deixar de “fazer o mesmo” favorecendo alguns. Já provou que não funciona e mantém o país vulnerável e num círculo vicioso cada vez mais difícil de romper. Tomando de exemplo os ucranianos que lutam e morrem pelo mesmo sistema de valores do Cabo Verde moderno e que inclui liberdade, pluralismo, justiça e solidariedade, o foco deve estar na realização do potencial do país e das suas gentes com ganhos para todos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1099 de 21 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 19, 2022

Fugir das armadilhas

 

A problemática dos transportes em Cabo Verde, em particular dos transportes aéreos, tem sido matéria quase permanente de discussão pública, de debates parlamentares e arma de arremesso que as forças políticas atiram umas contra as outras. É verdade que a questão é de maior importância, senão vital para o país, e compreende-se que focalize muita atenção não só da classe política como de toda a sociedade. Mas difícil de entender é que, iniciada a discussão, a tendência é para todos se distraírem do que é essencial para se se transformar num misto de jogo de culpas e de promessas muitas vezes irrazoáveis.

Até agora o embate de posições do como fazer para enfrentar a situação é que não tem sido muito produtivo e as soluções já tentadas pelos diferentes governos em boa medida só prestaram para acumular ainda mais a dívida pública. Também com a destruição de valor, perda de oportunidades provavelmente irrepetíveis e pesados custos de estrutura vê-se que se vai tornando cada vez mais remota a possibilidade de o sector aéreo vir a cumprir as expectativas estratégicas para o desenvolvimento do país que todos parecem acreditar que possui. No processo de discussão não ajuda que não se tenha como pano de fundo uma visão realista do que podem ser os custos dos transportes num país insular, arquipelágico, população diminuta, mercado restrito e relativamente remoto dos espaços continentais. E muito menos como assumi-los considerando que Cabo Verde não beneficia dos subsídios e transferências públicas com que os restantes arquipélagos da Macaronésia são privilegiados no quadro das regiões ultraperiféricas.

Às dificuldades mais evidentes em conduzir um debate mais frutífero em matéria dos transportes no país, junta-se uma aparente insensibilidade em procurar compreender por que iniciativas empresariais no sector têm dificuldades e até acabam por descontinuar, como aconteceu com o Icelandair e a Binter, ou já mostram dificuldades em expandir os negócios como a Bestfly. No caso desta companhia de aviação, que tem todo o tráfico doméstico do arquipélago, o mais normal seria que no último debate na Assembleia Nacional fosse questionado o governo pelas razões por que a empresa ainda não avançou com os seus planos de expansão. No mês de Junho trouxe um avião Embraer que se veio juntar aos dois ATRs que já operam supostamente para entrar em operação com conexões para Europa, África Ocidental e os Açores. Recebido com pompa e circunstância e presença de três ministros, o avião até agora continua sem voar, porque não certificado e os Twin Otters, que deviam seguir-se para aumentar a frota, parece que foram adiados.

Em entrevista a este jornal, na edição de 7 de Dezembro, o Director-geral da Companhia explicou que para essa expansão “primeiro de tudo, tínhamos de aumentar o fluxo de tráfego e era aqui que entrava o Embraer”. Como não foi certificado, tiveram de cancelar o projecto Embraer. Acabaram por não desistir e agora estavam a avaliar o retorno do projecto Embraer e que o plano B, provavelmente para contornar o ambiente pouco facilitador, seria de registá-lo noutro sítio. Nas entrelinhas percebe-se a dificuldade em operar em Cabo Verde com rotas ineficientes para os aparelhos ATR e com os altos custos dos bilhetes e a impossibilidade de aumentar frequências que afectam a procura e a que vem somar o ambiente de negócios um tanto rígido.

Ou seja, promove-se o investimento e depois não se faz o seguimento da implementação de modo a assegurar que bloqueios diversos, designadamente de regulação, de práticas monopolistas ou de concorrência informal, sejam com segurança ultrapassados e que se desenvolvam sinergias e criadas cadeias de fornecedores e de outros operadores conexos. Sem isso, tanto os objectivos directos pretendidos com a iniciativa empresarial como os indirectos, através do arrastamento do resto da economia, não se materializam. Para garantir que se vai no sentido desejado, é fundamental que o Estado assuma na plenitude o seu papel em todas as suas capacidades, designadamente de promotor, facilitador, regulador e de garante da segurança jurídica da propriedade e dos contratos.

Do governo que orienta e dirige o Estado não se pode esperar que tenha uma postura passiva quando dele se espera uma abordagem compreensiva, coordenada e dirigida para resultados, num quadro da legalidade vigente. De outro modo arrisca-se a que eventualmente se ficar na posição de não ter disponíveis certos bens e serviços públicos essenciais como recentemente se vislumbrou em mais de que uma situação com a quase paralisação dos voos internos. Também, para se ter crescimento sustentável e inclusive, há que qualificar a intervenção estatal de forma a abranger – como diria a economista Mariana Mazucatto na defesa do seu conceito de Estado empreendedor – doações, créditos, benefícios fiscais e aprovisionamento público. A perspectiva é que com essas medidas de política e em combinação com o sector privado, e a partilhar tanto nos ganhos como nos riscos dos investimentos na inovação e crescimento, é possível maximizar o valor público dos mesmos.

A dificuldade em se mover pela via óbvia de procura de resultados que é deixada transparecer nas discussões estéreis, onde não se identificam as causas dos problemas e não se fazem correcções, pode ser sintoma de uma armadilha (trap) em que o país foi apanhado e que pode estar a se revelar no maior entrave ao seu desenvolvimento. São famosas as várias armadilhas que se podem apresentar no processo de desenvolvimento. Há países onde se fala, por exemplo, de “middle income trap” que não deixa países de rendimento médio dar o salto para o desenvolvimento, ou de “resources curse” que lança países ricos em recursos naturais numa espiral de endividamento e empobrecimento acompanhada de grandes desigualdades sociais. Nem os países mais desenvolvidos estão livres de armadilhas como o Japão bem o provou nos anos noventa com a “liquidity trap” que deixou o país mais de uma década na quase estagnação económica.

Saber identificar a armadilhas que ameaçam o país é fundamental para se pôr cobro ao que vai ficando claro a todos. Despeja-se dinheiro na educação, na segurança, na saúde, na justiça, nos transportes, mas não se está a conseguir inverter a percepção de que os serviços estão a se deteriorar e as instituições a se mostrarem cada vez mais frágeis. Criam-se ecossistemas, mobilizam-se linhas de crédito de milhões, formam-se empreendedores em todos os cantos do país e descobrem-se talentos aos magotes, mas os resultados não se notam na actividade empresarial, na criação de empregos e na criação de riqueza. A economia continua fortemente atracada às vicissitudes de um turismo que tarda em crescer para os números que eram expectáveis, a população diminui com a emigração e a confiança no futuro revela-se precária. Orientar-se para resultados com base no aumento da competitividade e da produtividade deve ser o caminho para se libertar da armadilha (trap). Há que, com visão e liderança realista, pragmática e competente mobilizar energia e vontade para isso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1098 de 14 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 12, 2022

Por um regular funcionamento das instituições

 

Por decreto presidencial publicado no B.O. de 1 de Dezembro renovou-se o mandato do presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Foi nomeado para o cargo o juiz de Direito Bernardino Delgado sob proposta dos membros do CSM.A nomeação do presidente não foi, porém, precedida da completa renovação do órgão de autogoverno da magistratura judicial como seria de esperar. Apesar da assembleia dos juízes ter eleito os representantes no conselho e do presidente da república ter nomeado um juiz para o integrar não foi possível ter os quatro eleitos da Assembleia Nacional para substituir os que de há muito terminaram o mandato ou exerceram mandatos consecutivos, em alguns casos desde 2011 e outros desde 2015.

Como a composição do conselho com juízes e não juízes na actual proporção de 5-4 não é algo indiferente e, muito pelo contrário, é essencial para se contrabalançar tentações corporativistas, faria todo o sentido que se esperasse a renovação dos conselheiros não juízes para se escolher o presidente. Num momento em que a situação da justiça é uma preocupação central da sociedade, como ficou evidente nas intervenções do arranque do ano judicial, devia ser de todo interesse que houvesse a percepção de um regular funcionamento das instituições no sector. Deu-se recentemente o exemplo com a normalização do funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça, após a saída, há quase dois anos, dos juízes conselheiros jubilados, e espera-se ver mais nesse mesmo sentido proximamente com uma inspecção judicial efectiva.

De facto, não se tem procurado assegurar o regular funcionamento das instituições com suficiente vigor e perseverança. E é pena porque revela-se essencial para melhor credibilizar a democracia e as regras do jogo democrático e plural e também garantir a liberdade e a segurança a todos níveis. O que se viu por exemplo na Assembleia Nacional em Outubro a propósito da eleição dos novos membros para o conselho superior da magistratura é paradigmático dessa atitude de descaso. Tudo serviu para não se avançar com um acordo que devia ser para renovação do CSM: desde disputas interpretativas quanto aos procedimentos a seguir, como se fosse a primeira eleição para os órgãos externos por lista plurinominal exigindo maioria de dois terços que se estava a fazer, até o interesse em manter candidatos que não era razoável propor, em primeiro lugar porque há muito que já tinham completado um tempo superior a dois mandatos.

Num ano que foi de muita contestação e crítica dirigida ao sector da justiça, o parlamento perdeu a oportunidade de enviar um sinal de que com a eleição de novos representantes querer imprimir uma outra dinâmica e uma outra sensibilidade e capacidade de gestão ao órgão para, entre outros objectivos, responder aos problemas da morosidade e às acusações de denegação de justiça. A aparente precipitação em se avançar com a proposta e a nomeação do presidente do CSM pelo presidente da república, num quadro em que quase 45% dos proponentes ultrapassaram o seu tempo ou estão de saída, certamente que não qualifica de melhor forma o sinal a enviar para a sociedade. A compor e a melhorar ainda mais o sinal podia-se eleger um vice-presidente não magistrado estatutariamente previsto para coadjuvar o presidente do CSM. Até agora não foi possível ir por esse caminho apesar de o Tribunal Constitucional (TC) num acórdão de 2016 ter unanimemente estabelecido que não tinha razão quem tinha questionado a constitucionalidade da norma que estabelece que o vice-presidente deve ser escolhido entre um dos não-magistrados.

Determinar o nível óptimo de representatividade dos membros não magistrados nos órgãos de autogoverno das magistraturas não tem sido matéria pacífica em Cabo Verde como aliás também não é noutras paragens. Há quem considere que os juízes devem ter a maioria e há quem ache que para se conseguir conter o espírito corporativista há que coloca-los em minoria. Todos, porém, parecem estar de acordo que a presidência deve ficar com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mas cedendo a maioria no conselho aos não-juízes. Em Cabo Verde, na última revisão constitucional datada de Maio de 2010, foi-se por uma solução sui generis do presidente do STJ não ser também presidente do CSM podendo sê-lo porém qualquer magistrado eleito pelos seus pares ou nomeado pelo presidente da república para integrar o órgão. Na mesma revisão inverteu-se ainda a tendência que tinha sido vincada na revisão constitucional anterior de 1999 e afirmou-se em seu lugar uma maioria dos magistrados no CSM. O lugar de vice-presidente que devia traduzir-se em algum reequilíbrio foi contestado e mesmo com o acórdão favorável do TC não foi preenchido nos seis anos que se seguiram.

Uma dinâmica dessas que passa por as instituições não funcionarem regularmente como planeadas e desenhadas não deixa de indiciar eventuais interesses que muitos consideram de corporativistas e que levam à protecção da classe face aos críticos que clamam por uma justiça mais célere, de maior qualidade e com maior eficácia. Numa democracia em que todos os órgãos de soberania estão vinculados pelo princípio da separação e interdependência é fundamental que haja o regular funcionamento das instituições para que o sistema de peso e contrapesos (checks and balance) se faça sentir e o equilíbrio político, económico e social seja mantido. Nos tempos actuais, em que certo tipo de activismo político se torna cada vez mais atractivo para ganho pessoal ou de grupo, fazer as instituições sair de práticas já consolidadas e ignorar interpretações de procedimentos de há muito assentes com argumentos disruptivos, é fundamental seguir-se por caminhos que privilegiem conhecimento, maturidade e memória institucional.

Já se viu recentemente o ridículo das acusações de “golpes e contragolpes” que se seguiram ao fracasso do parlamento em eleger personalidades para o órgão de governo da magistratura no momento de maior tensão social dos últimos tempos e em que a justiça é visada. Também não se deixou de notar as várias tentativas de bloquear a competência da comissão permanente de exercer os poderes da assembleia nacional relativamente aos mandatos dos deputados como manda a Constituição, o regimento e os estatutos dos deputados e tem sido a prática estabelecida ao longo dos trinta anos de democracia constitucional. A impressão que se fica é que se quer passar tudo para o Plenário de forma a propiciar espectáculos potencialmente descredibilizadores da instituição.

Práticas similares que mexem com o regular funcionamento das instituições já se notam com maior ou menor gravidade em várias actuações de actores políticos. Na Câmara da Praia e de S. Vicente já levaram à quase paralisação da vida político-institucional desses municípios. Outros alvos poderão estar em mira, mas não se pode esquecer que para o populismo e outras derivas iliberais o principal objectivo é descredibilizar o parlamento e a justiça. Por aí é que se procura ferir de morte a democracia. Fazer cumprir as regras democráticas e assegurar o regular funcionamento das instituições é a via para se manter o sistema de liberdade e pluralismo a funcionar de forma a conservar sempre viva a esperança de uma vida de paz, justiça e prosperidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1097 de 7 de Dezembro de 2022.

segunda-feira, dezembro 05, 2022

Corrida ao voto não deve prevalecer

 

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatísticas divulgados ontem, dia 29 de Novembro, o indicador de confiança no consumidor continuou a cair no terceiro trimestre. Inquiridas, as famílias cabo-verdianas fazem uma apreciação negativa do que para os próximos 12 meses será tanto a sua situação financeira como a situação económica do país. A esmagadora maioria confessa incapacidade de fazer qualquer poupança e o número dos já poucos que podiam pensar em comprar carro, ou construir casa, diminui. As incertezas para o ano 2023 são muitas. Está-se perante múltiplas crises e é natural que haja alguma cautela ou mesmo pessimismo em relação ao futuro próximo considerando que ninguém realmente sabe como irá terminar a guerra na Ucrânia e como se irá resolver a crise energética e diminuir a pressão inflacionista que tem prejudicado toda a gente em todo o mundo.

É um sentimento que de certa forma também é partilhado por instituições como o BCV no seu relatório de política monetária e de parceiros como o GAO no seu último comunicado de 18 de Novembro e também patente nas últimas recomendações do FMI. Demonstram sobriedade nas suas projecções e estimam o crescimento económico de Cabo Verde para o ano 2023 à volta de 8,3% e 8%. Do lado do governo, quase com euforia deixa-se passar a ideia que o país poderá crescer dois dígitos. Também dessas instituições ouvem-se recomendações para se conter o défice orçamental e a dívida pública, para se apoiar quem realmente precisa e durante o tempo estritamente necessário e para se investir na competitividade, produtividade e diversificação da economia. Do governo fala-se em alargar o Estado social, eliminar a pobreza extrema e diminuir a pobreza, mas não fica claro que isso só é sustentável com criação de riqueza nacional. De outra forma, terminados os projectos de ajuda externa, na primeira crise revelam-se as vulnerabilidades anteriores e fica claro para todos a precariedade das populações.

Curiosamente, quem em contraste com o sentimento generalizado das pessoas parece compartilhar o aparente optimismo que emana dos lados do governo é a oposição, mas por razões diferentes. O governo ao projectar optimismo quer destacar o sucesso da governação. A oposição aproveita-se da perspectiva rósea do país para reivindicações que embaraçam quem governa e a deixam de bem com sectores da sociedade que poderiam beneficiar da iniciativa. Um resultado de todo esse jogo em nome da caça ao voto é a impressão de que a classe política está algo desfasada do que se passa no país e a projectar e a discutir o futuro económico e social numa perspectiva que nem é comungada pelas instituições mais sóbrias (BCV, FMI, GAO) na apreciação do contexto nacional e internacional, nem pela esmagadora maioria da população do país, como se pode depreender do inquérito do INE.

Compreende-se assim porque da discussão da proposta do Orçamento do Estado, na semana passada, a oposição saiu a acusar que nenhuma das suas propostas foi absorvida e em resposta o primeiro-ministro na comunicação da segunda-feira veio notar que na discussão do Orçamento do Estado “as propostas da oposição são mais para criar problemas do que para resolver problemas”. Acrescentou ainda que são despidas de racionalidade porque “pedem para reduzir o peso da dívida pública e depois vêm com propostas que aumentam a despesa”. Mas governar é priorizar e não é expectável que a oposição e o governo comunguem das mesmas prioridades particularmente quando não há incentivo de nenhuma das partes para se chegar a acordos.

É facto que em Cabo Verde os governos têm sido de maioria absoluta, e como não precisam dos votos dos outros partidos para passar o Orçamento do Estado, não se sentem na necessidade de negociar qualquer proposta vinda das outras bancadas. Aliás, quando pedem à oposição para votar favoravelmente é só para depois a acusar de não querer ou de não se prestar a servir o interesse nacional. Orçamentos do Estado reflectem as opções de política de cada partido e só em situações excepcionais seria expectável que poderiam disponibilizar-se para chegar a algum tipo de compromisso. Como em geral não reconhecem situações excepcionais, ninguém, e em particular os partidos na oposição, se arriscam a perder negociando com o governo.

Curiosamente, neste tipo de arranjos, em que a corrida ao voto parece ser o móbil principal e razão de discórdia, há questões aparentemente tabu. Num momento de maior rigor na definição das prioridades ninguém parece contestar as centenas de milhares de contos gastos em campos relvados por todo o país, ou, num Estado supostamente laico, os investimentos também em centenas de milhares de contos nas igrejas em nome da salvaguarda do património religioso para servir um turismo diversificado. Prefere-se ficar pelo que dá dividendos políticos rápidos porque traz à tona sentimentos como ganância, inveja e ressentimento como são os cargos, as viagens e os carros. Outros projectos que deviam ser estranhos a um Estado sujeito a comando constitucional que o impede de impor ideologias, expressões estéticas e filosóficas aos cidadãos e à sociedade também parecem não merecer escrutínio mais apertado de todos.

É o caso da promessa feita, esta terça-feira, pelo governo de “tudo fazer” para apoiar o projecto da Fundação Amilcar Cabral que, segundo uma nota de imprensa, “decorre da necessidade de os principais protagonistas dessa história narrarem em primeira pessoa a gesta heroica e libertadora de seus povos, visando repor a verdade histórica, a qual vem sendo deliberadamente adulterada nos últimos tempos”. Ninguém compreende como um Estado liberal e democrático como o de Cabo Verde pode querer apoiar ou financiar um projecto dos antigos dirigentes do partido único, que nos moldes descritos mais parece uma acção de Agitação e Propaganda (agitprop), para salvaguardar a memória da luta de libertação que legitimou esses regimes, do que escrever História. Até parece que o surrealismo impera com a maior complacência de todos quando tal não devia ser, considerando os tempos críticos vividos actualmente e as reais prioridades às quais se tem de dar uma resposta eficaz e tempestiva.

As crises múltiplas que afligem o mundo poderiam ser uma oportunidade para, em algumas questões essenciais, se transcender legislatura e agendas partidárias. Mas, sem acordo sobre a situação real do país e em dissintonia com o sentir das populações tudo leva a crer que não vai acontecer. É mais provável que o jogo de quem dá ou promete mais continue. Dizer um basta a isso é fundamental para se evitar o resvalar para as imperfeições de uma democracia simplesmente eleitoral. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1096 de 30 de Novembro de 2022.