segunda-feira, novembro 27, 2023

Passo atrás para aumentar solidariedade e confiança

 

As eleições do domingo passado, dia 19 de Novembro, na Argentina, parecem ter confirmado uma tendência geral para o extremar de posições nas democracias e para apostas dos cidadãos em lideranças que não primam particularmente pela competência e ponderação no tratamento das grandes questões dos seus países. O candidato eleito Javier Milei, armado simbolicamente de uma moto-serra, propôs durante a campanha eleitoral, entre outras coisas, cortar impostos e despesas, fechar o banco central e avançar com a dolarização da economia, liberalizar o porte de armas e proibir o aborto. Não era um programa que na situação económica dramática que a Argentina tem vivido ao longo de décadas deixaria qualquer pessoa optimista quanto ao futuro. O facto é que não impediu que tivesse ganho com 56% dos votos. A maioria, talvez cansada de soluções passadas que falharam, resolveu ir contra corrente e concordar com a declaração atribuída a um político de que encontrou o país à beira do abismo e o que se tem de fazer é dar um passo em frente.

Essa atitude não é exclusiva da Argentina. Aliás, de outros países onde também num determinado momento se teriam dados passos em direcção ao abismo vieram imediatamente votos de solidariedade designadamente de Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil, e de Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos. A influência política deles continua a ser significativa e, no caso do Trump, em muita boa posição para se candidatar outra vez em 2024. Por aí, vê-se que sentimentos de frustrações, ressentimento e a falta de confiança das pessoas nas instituições do país continuam a desempenhar um papel importante no apoio a soluções que, no caso dos Estados Unidos, prometem pôr em causa a própria democracia e liberdade. Mas, outros factores contribuem para a situação de desnorte, designadamente, a falta de ponderação da classe política perante situações políticas, económicas e sociais complexas, a opção pela política espectáculo e a tendência narcisística crescente no comportamento dos líderes.

Não favorece a credibilidade da democracia a forma como, por exemplo, recentemente em Portugal se interrompeu uma legislatura e um governo com maioria absoluta se vê demitido e o parlamento dissolvido. Ou, em Espanha, se contempla jogada partidária que, para conseguir maioria para governar, assume compromissos considerados inconstitucionais.

Uma das razões para o drama que se vive hoje em Israel são as divisões criadas na sociedade e no país pelo governo na sua luta contra o poder judicial. Abriram o caminho para o país ser apanhado de surpresa por ataque atroz do Hamas à sua população civil. Sendo a única democracia na região, ela é ainda mais enfraquecida com a persistência no erro que permite ao primeiro-ministro continuar a não assumir as suas responsabilidades no que aconteceu a 7 de Outubro. E que, pelo contrário, insiste em manter um governo com extremistas e incapaz de pôr fim à violência na Cisjordânia e de encontrar uma solução para Gaza que não leve à morte de milhares de inocentes.

Com isso, as democracias em todo o mundo, em particular na Europa e nos Estados Unidos, também são enfraquecidas à vista de todos, em particular na busca de uma solução de paz duradoira para a região do Médio Oriente, e as forças extremas da esquerda e da direita saem reforçadas tanto nesses países como no resto do mundo. A tentação para se dar passos em frente em direcção ao abismo nuns casos significa soluções economicamente desastrosas, noutros casos trata-se de derivas autoritárias e noutros ainda de quase colapso de governação ou mesmo de Estados falhados. A possibilidade de vir a existir maiorias eleitorais a apontar nesse sentido é real como já foi constatado no Brasil e nos Estados Unidos e agora acontece na Argentina e, segundo sondagens, poderá verificar-se nas eleições presidenciais americanas de 2024.

Ainda bem que a possibilidade de reverter situações quase dadas por perdidas também foi confirmada. A restauração da importância de carácter, decência e civilidade na actuação política é fundamental para, a par com a credibilização das instituições, se renovar o ambiente de tolerância mas também de cumprimento estrito das regras do jogo democrático. Não é, porém tarefa fácil, especialmente agora que as redes sociais dominam o espaço público, que a política tende a ser cada vez mais performativa e se afirma a atracção pelas celebridades e a apetência pelo culto de personalidade.

Por causa das crises múltiplas e, em particular, da crise existencial criada pela pandemia da Covid-19, os actores políticos deveriam ter posto uma ênfase maior na necessidade de solidariedade, na renovação do contrato social no sentido de diminuição das desigualdades e em mais confiança interpessoal e nas instituições. Infelizmente esses momentos mais difíceis têm sido desperdiçados deixando vulnerabilidades que poderão diminuir a capacidade colectiva de enfrentar ameaças, responder a desafios e lidar com incertezas várias. Em Cabo Verde também se nota esse desperdiço quando devia ser das últimas coisa a acontecer considerando a escassez de recursos naturais, a dimensão territorial e populacional e a fraca conectividade.

O não engajamento da sociedade em enfrentar solidariamente os efeitos das crises múltiplas tem aí a sua raiz. No ambiente político de campanha permanente que se vive no país a acção do governo é tida como propaganda para obter ganhos eleitorais. Já, a actuação da oposição tende a orientar-se exclusivamente para diminuir ou mesmo negar o impacto das medidas de política. Não fica muito espaço para compromissos e acordos com vista a reformas de fundo. Aproximando-se o período eleitoral, como acontece agora, a situação piora, diminui a paz social com agitação sindical e ameaças de greve e torna-se difícil agir para responder aos desafios da actualidade na sua complexidade.

As classes profissionais e os trabalhadores do sector público aproveitam para pressionar com as suas reivindicações salariais e de carreira, cientes do apoio da oposição e do momento único para extrair concessões ao governo. Isso também porque, em tempo certo e de forma coerente, abrangente e compreensiva não se tratou de fazer os ajustes justificados, ficando sectores como o da polícia resolvido e os de professores, pessoal de saúde e de outras classes diferidos no tempo. A recomendação dada pelo FMI e pelo BCV em 2022 para se conter aumentos de salários geradores de pressões sobre preços e combater a inflação não beneficiou da clareza e coerência necessárias para conter os ímpetos das pessoas perante o evidente aumento do custo de vida que enfrentam. Quando saiu a notícia do aumento no BCV a porta das reivindicações escancarou-se e as exigências salariais dificilmente vão parar.

No processo, talvez as maiores perdas sejam o sentido de razoabilidade e a capacidade de ponderação que os tempos de hoje exigem. Só se espera é que ainda haja senso suficiente para se dar o passo atrás e encontrar as vias para aumentar os níveis de solidariedade e confiança que o país tanto precisa. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1147 de 22 de Novembro de 2023.

segunda-feira, novembro 20, 2023

Para aprimorar, não para inovar

 A conversa do Presidente da República José Maria Neves com os seus antecessores, Jorge Fonseca e Pedro Pires, organizada na semana passada no âmbito de uma iniciativa PresidTalk - Inovação Política em Cabo Verde, foi certamente inédita, mas de acto politicamente inovador terá muito pouco.O PR já ouve os ex-presidentes nas reuniões do Conselho da República sobre matérias que a Constituição estipula e, naturalmente, que os pode receber em audiências privadas. Normalmente é esse o quadro porque discrição nas consultas e nas conversas é essencial. O país só tem um presidente da república de cada vez. Um exemplo de referência é a discrição de Bento XVI durante o pontificado do Papa Francisco. De outra forma, podem surgir ruídos e tentações de “eminências pardas” que prejudicam uma das funções fundamentais do PR que é a de garante da unidade da Nação e do Estado.

Um resultado da conversa que fez manchete em todos os órgãos de comunicação social foi o posicionamento das três personalidades sobre a não aprovação pela Assembleia Nacional da resolução sobre a celebração oficial do centenário de Amílcar Cabral. Em aparente contraposição ao Parlamento, defenderam uma comemoração condigna do centenário e procurou-se justificar a falta de um voto maioritário para passar a resolução com excessiva partidarização (PR) e divisão do país em duas representações colectivas, uma com referência à Independência e outra com referência à Democracia (JCF). Quanto ao ex-presidente Pedro Pires, segundo a Inforpress, foi claro a explicar que a proposta levada à Assembleia Nacional não é uma iniciativa do PAICV e sim da fundação [Amílcar Cabral], que consultou todos os líderes parlamentares e o presidente da Assembleia Nacional, e o grupo parlamentar PAICV foi escolhido para levar a proposta.

É evidente que as opiniões expressas nesse encontro, num momento tão próximo da decisão parlamentar, praticamente uma semana depois, não serviram para tranquilizar os ânimos. Enquanto “inovação política”, terá sido tomado como uma espécie de instância em discordância com o Parlamento, como aliás já o PR, por si só, tinha deixado entender. Não será simples coincidência que, na sequência, tenha surgido uma iniciativa de petição para levar a questão outra vez ao Parlamento. Provavelmente a iniciativa terá o mesmo chumbo mas agravando ainda mais a polarização social e política que parece preocupar todos. Mesmo sabendo isso, insiste-se em ir por esse caminho. Não se explica que Cabo Verde é uma democracia e, como tal, é um país livre e plural em que comemorações de centenário ou homenagens a personalidades diversas não são proibidas. Não têm que, necessariamente, serem oficiais ou do Estado e, quando o são, é por decisão da maioria no órgão próprio, o Parlamento, que é aquele que representa os cabo-verdianos no pluralismo das suas ideias e na diversidade dos seus interesses.

A partir da Constituição de 1992 Cabo Verde passou a ser uma comunidade de princípios e valores, uma república que garante o respeito pela dignidade humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento para a paz e justiça e que assenta na vontade popular. Para trás ficaram regimes baseados na legitimidade histórica e em que o exercício do poder não era baseada na legalidade democrática. Se ainda hoje a polarização e a crispação política são extremas, tal não resulta de uma excessiva partidarização que teria nascido com a democracia, como muitas vezes se deixa entender. De facto, não há nada mais partidário do que a administração pública do regime de partido-Estado. Se continua na mesma senda é porque nunca se conseguiu consenso para, depois dos quinze anos de regime e na democracia, se proceder à sua despartidarização. Havia sempre quem se beneficiasse com o status quo e, em fazendo isso, enraizava ainda mais essa cultura de partidarismo na função pública e a transportava para outros sectores da vida na sociedade.

Também não há “separação entre o povo da independência e da democracia”, como foi aventada. O que se nota assemelha-se a uma colisão de sistemas políticos diferentes que se perpetua por causa da relutância do Estado, das instituições públicas e dos actores políticos em assumir por inteiro os princípios e valores da república. Ainda pesam as narrativas históricas que constituíam o núcleo essencial de legitimação do Estado pós independência. O Estado actual, com os seus tentáculos nas instituições, no sector educativo e no sector público da comunicação social, que é hegemónico no país, faz de guardião delas. O resultado é que impedem a assunção plena do presente com outros princípios e valores e constrangem o futuro porque não se consegue fazer política focada na procura de prosperidade geral e na criação de condições para realização pessoal de todos. Todo o imbróglio à volta do centenário de Amílcar Cabral é mais um dos momentos em que essa colisão se torna mais evidente.

Um outro ponto em que recorrentemente se sinaliza essa colisão de sistemas é na questão dos poderes do presidente da república. Da história sabe-se que em Setembro de 1990 o PAICV, ainda único na Assembleia Nacional Popular, impôs o semipresidencialismo que lhe parecia mais familiar com o regime anterior. As eleições de 13 de Janeiro de 1991 deram a maioria qualificada ao MpD que lhe permitiu mudar esse sistema de governo e adoptar um outro de cariz mais parlamentar. Essa mudança, apesar de, ao longo de mais de três décadas ter demonstrado garantir estabilidade governativa, sempre se manteve como um ponto de conflito. De tempo em tempo reaparece.

Na conversa da semana passada sobre o tema de inovação política falou-se do semipresidencialismo e da coabitação. Como não está prevista qualquer revisão constitucional e um novo ciclo eleitoral está à porta pode-se estar a anunciar um tempo de tensões acrescidas e pergunta-se com que objectivo. O país é que, positivamente, não precisa disso, particularmente na nova era de incertezas e em que mesmo uma ameaça de guerra entre grandes potências não é uma possibilidade tão remota como antes. Falar de coabitação no semipresidencialismo francês tem sentido porque o presidente é líder partidário e tem programa de governação. Já em Cabo Verde, o cargo é suprapartidário e os candidatos são propostos por grupos de cidadãos.

Não tendo programa próprio e não sendo o governo responsável politicamente perante o PR, com “inovações” na relação entre os órgãos de soberania pode-se correr o risco de ir por caminhos que fragilizem o essencial no que respeita à garantia da unidade da nação e do Estado e ao normal funcionamento das instituições. Por outro lado, pode prejudicar o papel de árbitro e moderador do sistema político quando se mostra necessário fazer cumprir as regras do jogo democrático e assegurar que as instituições de regulação, de fiscalização e de controlo de legalidade funcionem plenamente. Em particular, em questões de política externa, nas quais para obter vantagens e ser respeitado importa que a posição do país seja única e inequívoca, concertação e discrição na relação deve ser a regra. O mesmo deve acontecer com a política de defesa considerando a necessidade de garantir a unidade na relação com as forças armadas.

Fala-se muito dos movimentos populistas que, de baixo para cima, enfraquecem a democracia desacreditando as instituições. Acontecimentos no Brasil, nos Estados Unidos e no Reino Unido deixam entender que, nesses casos, os avanços do populismo podem ser revertidos. Parece mais difícil conter os estragos quando a fragilização do sistema vem de cima para baixo, como é o caso da Turquia, da Hungria e de Israel. Definitivamente, Cabo Verde não deve deixar-se tentar por essas aventuras. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1146 de 15 de Novembro de 2023.

segunda-feira, novembro 13, 2023

Desafios da nova conjuntura: O debate necessário

 

O Banco de Cabo Verde (BCV) na publicação de Outubro do seu relatório de política monetária anunciou a subida das taxas de juro de referência. As razões apresentadas foram de reduzir o diferencial entre as taxas de juro no País e no estrangeiro, em particular na Europa. Para combater a inflação, os países europeus e os Estados Unidos vêm aumentando a taxa de juros, o que tem pelo menos duas consequências importantes. Tende a arrefecer a economia desses países e atrair fluxos financeiros do resto do mundo. O impacto, porém, não fica por aí.

Para Cabo Verde, cuja moeda está ligada por um peg fixo ao euro, uma europa menos dinâmica pode significar baixa procura das suas exportações e menor fluxo turístico com consequência negativa na entrada de divisas. Também, pode significar saída de capitais do país e menos depósitos dos emigrantes à cata de uma melhor remuneração no mercado financeiro europeu. Daí a necessidade do BCV de pôr um travão à diminuição das reservas monetárias pela via de uma alta de juros que vai dissuadir esse movimento de capitais para fora. Juros altos que internamente vão tornar mais caro o crédito para o investimento e para o consumo, afectando o crescimento económico, criação de empregos e rendimentos.

Cabo Verde tem uma economia aberta e desde de Junho de 2018 permite a livre circulação de capitais. A decisão tomada pelo governo através do decreto legislativo nº3/2018 foi antecedida de algum debate público onde benefícios e riscos da medida de política foram considerados. Num seminário proferido pelo economista António Portugal Duarte, por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário do Acordo Cambial, ele concluiu que a liberalização dos movimentos de capitais pode apresentar-se como grande oportunidade mas também pode levantar importantes desafios e acarretar grandes prejuízos para uma pequena economia. As eventuais vantagens na atracção de investimentos tinham que ser contrabalançadas com as desvantagens que saídas abruptas de capitais, “caprichos” do mercado internacional e situações externas adversas poderiam representar.

Aparentemente vive-se uma dessas situações adversas e, daí, justificar-se que o BCV, no relatório publicado, possa considerar como um sinal de alerta a “canalização de divisas adquiridas junto do banco central para investimentos no exterior” e “o risco de aquisição de divisas por parte dos bancos comerciais nacionais (…) para rentabilização nos mercados financeiros internacionais”. Um outro factor de risco que identifica seria a “saída de depósitos e/ou na redução da capacidade de atracção de novas operações” dos emigrantes. Também já constata que se vive com uma realidade de baixa, ainda confortável, de reservas externas que em 2022 era correspondente a 6 meses de importações e para 2023 e 2024 prevê-se 5,8 e 5,6 meses respectivamente.

A questão que se coloca é se só com mecanismos de mercado de alteração de taxas de juro se vai conter uma eventual drenagem de recursos. O FMI, na última missão a Cabo Verde, em Novembro, acolheu bem a decisão do BCV de aumentar as taxas directoras para diminuir o diferencial com a zona euro e para proteger as reservas cambiais. Entretanto, sabe-se que as projecções para a economia mundial apontam para uma nova era de juros altos. Na eventualidade do país acompanhar essas taxas altas por tempo prolongado, que opções existem para evitar o travão na economia que o crédito caro pode representar para o investimento e para o consumo.

O país tem um peg unilateral no euro e, em consequência, por um lado, não tem grande espaço de manobra em matéria de política monetária. Por outro, não beneficia de outras formas de apoio que poderiam vir da euroização na forma de transferências similares às do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) feitas para os países da União Europeia. Tem que encontrar outras formas de estimular a sua economia enquanto limita o diferencial nas taxas de juro e, provavelmente, não deverá pôr de parte a possibilidade de usar outros mecanismos de controlo de capitais. Outros países já o fazem para evitar os efeitos negativos do hot money e a própria legislação cabo-verdiana o permite em certas circunstâncias.

A verdade é que o mundo de hoje não é o de 2018 quando se liberalizou a circulação de capitais, ponderando os riscos, nem o de 2009 quando se aderiu à Organização Mundial de Comércio (OMC) cumprindo, logo à partida, todos os requisitos de liberalização quando não era necessário enquanto país menos desenvolvido (PMD). Eram os tempos de se mostrar, como “bom aluno”, de acordo com as linhas do chamado Washington Consensus, mesmo que depois os resultados dos financiamentos ficassem aquém do prometido e o crescimento não atingisse as taxas esperadas. Depois da Covid-19, da guerra da Ucrânia e, agora, do conflito potencialmente explosivo no Médio Oriente, a abordagem da problemática de desenvolvimento, na generalidade dos países, é outra, particularmente quando o mundo se vê a braços com uma inflação alta e na perspectiva de crescimento rasteiro em cima de tensões geopolíticas emergentes.

Cabo Verde não deve ser excepção. Nos Estados Unidos, na Europa e noutros países desenvolvidos abundam debates, designadamente, sobre “política industrial” para reconstruir a estrutura produtiva e traçar linhas de orientação para inovação tecnológica, sobre proteccionismo e sobre medidas para evitar os efeitos nocivos da excessiva desregulação financeira. Também se discute como renovar o contrato social de forma a diminuir as desigualdades sociais e incentivar a criação de empregos de qualidade e bem pagos. O tempo do chamado neoliberalismo parece ter ficado para trás quando se vê a globalização a recuar, um mundo multipolar a emergir e um Sul Global a querer afirmar-se.

Importante se torna debater na nova conjuntura qual deve ser o papel do Estado na promoção do desenvolvimento económico e em manter o contrato social em que há oportunidades para todos visto que ficaram evidentes os limites do que o mercado sozinho pode engendrar e propiciar. No meio-termo, como lembra David Pilling num artigo recente do jornal Financial Time focado na África, não convém que se caia na tentação de apostar no micro empresário, no pequeno agricultor e no vendedor de rua como via para resolver o problema da economia. É uma aposta que, segundo ele, condena as pessoas à pobreza porque, citando o economista Paul Collier, só com “ganhos de escala e de especialização” das empresas e não com o microfinanciamento é que se pode construir o edifício da economia moderna. Já sentindo em força os efeitos da mudança, como bem vem relembrar o relatório do BCV, não há tempo a perder para se iniciar o debate. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1145 de 8 de Novembro de 2023.

segunda-feira, novembro 06, 2023

Quebrar as grilhetas

 

Durante as comemorações do dia da cultura, o Arquivo Nacional de Cabo Verde anunciou a proposta da candidatura dos documentos sobre a escravatura ao Registo Internacional da Memória do Mundo da UNESCO. Aparentemente, tratando-se da primeira candidatura, e daí a sua importância para quem a propõe, foi enquadrada como parte do processo de consolidação do papel do arquivo nacional na construção da identidade cabo-verdiana como nação. O que cria alguma perplexidade no acto é a aposta que o Estado faz, e que este e outros actos similares validados pelo governo deixam entender, em colocar a escravatura no centro da história do país e em reduzir a cabo-verdianidade a um produto de uma sociedade escravocrata.

A questão que logo se coloca é quem espera beneficiar com tal reducionismo do passado de mais cinco séculos de povoamento e sobrevivência no arquipélago. Porque a verdade é que essa imagem do país e da sua história não tem eco lá fora designadamente nos estudos e publicações sobre o tráfico de escravos no Atlântico em cujo papel Cabo Verde é marginal, como se pode ver no blog Slave Voyages. Mesmo em instituições como o prestigiado museu La Renaissance Africaine, no Senegal, nota-se a “omissão da Ribeira Grande (Cidade Velha) nas descrições e exposições das rotas do tráfico negreiro” como fez saber o ex-presidente da república Jorge Carlos Fonseca num post recente no Facebook, na sequência de uma visita a Dakar.

A discrepância de percepções vê-se também no facto que para a UNESCO a razão primeira para a Cidade Velha ser Património Mundial da Humanidade é porque a Ribeira Grande foi a primeira cidade colonial europeia a ser construída nos trópicos. Já para o ministro da cultura, segundo a Inforpress, “Cidade Velha é Património da Humanidade, não pela herança judaico-cristã, da matriz portuguesa/europeia, mas sobretudo, devido ao ‘grande contributo’ dos vários povos africanos que passaram por este arquipélago”. De tudo isso fica a impressão que há uma narrativa do processo histórico do país que é oficial, resiste a factos, porque reducionista, e é ostensivamente publicitada.

Normalmente é comportamento de Estados ideológicos, teocráticos e totalitários. Não é certamente próprio de democracias liberais, onde é regra o pluralismo e o Estado está impedido de impor directrizes políticas, filosóficas e estéticas. No passado, teve-se isso com mais ou menos intensidade durante os anos do Estado Novo salazarista e durante o regime de partido único do PAIGC/CV. Pode até acontecer que ainda subsista na actual sociedade aberta como uma espécie de inércia institucional que favorece uma certa tendência ou apetite pela doutrinação da sociedade e das pessoas. Só que vem acompanhado do seu companheiro indissociável que é o conformismo e ausência de espírito crítico que naturalmente induz. E não é bom que aconteça porque quer-se uma sociedade que prospere com criatividade, mérito e propensão para correr riscos e empreender.

A insistência num passado de escravatura e em uma sociedade escravocrata típica das encontradas nas economias de plantações nas caraíbas e nas américas não tem sentido num arquipélago de baixa pluviometria e secas cíclicas seguidas de mortandades terríveis. Aliás, a cidade de Ribeira Grande, depois Cidade Velha, entrou em decadência, segundo os historiadores, antes do fim dos anos quinhentos, precisamente quando as trocas transatlânticas estavam a ganhar fôlego em antecipação dos anos áureos do comércio triangular nos séculos XVII e XVIII. A cabo-verdianidade que viria a emergir no século XIX e XX num outro contexto mundial traduzida na língua, cultura popular, música e literatura pouco poderia dever a um mundo onde só muito marginalmente pôde interagir. Daí a sua especificidade e a particularidade de ser suporte de uma consciência de nação a emergir ainda dentro do império português.

Só razões políticas poderiam justificar narrativas de regresso a um tempo anterior. Primeiro para uns poucos se intitularem de libertadores e depois vestirem as roupagens de governantes únicos. Quanto aos outros restantes, ou seja, a maioria, forçados na narrativa a se identificarem com gente escravizada e à beira de morrer à mingua, deveriam ser eternamente gratos aos libertadores e abdicar da sua liberdade e autodeterminação. A vitimização geral das pessoas subjacente a toda a narrativa servia ainda para justificar que o país não tivesse alcançado grande dinâmica económica e tivesse ficado indefinidamente a depender da ajuda externa. Até podia-se, sem qualquer tipo de conflito interior, ser eternamente vítima e pedinte e ao mesmo tempo conservar dignidade, porque independente. Imagine-se como inevitavelmente tal atitude contribui para as pessoas se conformassem com o regime e com seus fracos resultados económicos.

Paradoxalmente, a narrativa reducionista do passado do país nos seus contornos mais largos de escravatura, de reafricanização dos espíritos, de identificação de resistências e enaltecimento de revoltas populares e de um culto idólatra de um pai fundador sobreviveu ao advento da democracia e às tentativas de imprimir à economia uma dinâmica de crescimento mais rápido. Por isso não se conseguiu pôr a sociedade e os indivíduos num caminho de maior autonomia, iniciativa e de participação plena porque se mantém em tensão permanente sistemas de princípios e valores diametralmente opostos e se impede a apropriação livre de todo o legado histórico do país. Choques constantes continuam polarizando o país, restringindo as suas opções e sugando energias criativas que o podiam tirar do círculo vicioso que a falta de consenso para fazer reformas, para mudar a atitude e investir seriamente no capital humano ainda o mantém.

A prova mais recente disso foi a rejeição no parlamento de uma resolução para comemorar o centenário de Amílcar Cabral que, enquanto fundador e ideólogo do PAIGC e depois PAICV, foi o símbolo maior do regime de partido único. À partida devia ser óbvio que não podia ser distinguido da mesma forma numa democracia liberal. A fúria com que foi recebido o chumbo da resolução dá conta das enormes tensões provocadas pela intolerância dos que pretendem ter o monopólio da narrativa histórica do país.

Os efeitos já se fazem sentir na relação entre os órgãos de soberania, a que não é estranho as críticas do presidente da república de terça-feira dirigidas ao governo e ao parlamento, e também em posicionamentos díspares de membros do governo e de deputados quanto à matéria. O mais normal é que ainda venha afectar outras instituições e entidades sem que se tenha muito cuidado nos limites e na integridade das mesmas, como, aliás, vem fazendo escola nos últimos tempos.

O país de alguma forma continua sequestrado e parece que, como nos países africanos de que fala Patrick Chabal no seu livro, as elites aprenderam a usar a desordem como instrumento de política e nesse sentido procuram “maximizar os seus ganhos no estado de confusão, incerteza e às vezes de caos que caracteriza muito da política africana”. Há que quebrar as grilhetas e mudar de rumo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1144 de 1 de Novembro de 2023.