Segundo a Inforpress, anteontem, a ministra de Defesa de Cabo Verde assinou com o Ministro de Interior espanhol um memorando de cooperação visando a fiscalização do espaço aéreo e marítimo do País. A não coincidência das pastas ministeriais dos dois governantes sugere diferentes perspectivas quanto aos meios, métodos e forças necessários ao cumprimento da missão. Para o espanhol trata-se de matéria de Segurança Interna, competência natural do Ministério do Interior, e para isso engaja a Guarda Civil, uma força de Segurança, apesar de militarizada. Para Cabo Verde são as Forças Armadas, constitucionalmente vinculadas à defesa nacional, que se envolvem em matéria de segurança das costas e praias e de controlo da imigração clandestina e do narcotráfico, ou seja de questões essencialmente policiais, questões de Segurança Interna. Imagine-se as dificuldades de cooperação com outros países e instituições internacionais devido à disparidade de entendimento sobre questões de Defesa e Segurança. Sem falar nos constrangimentos postos pela Constituição que, no n.1 do art. 240º, entrega à Polícia a segurança interna e, na alínea b do n.2 do art. 244º, diz que as Forças Armadas podem prevenir os diferentes tráficos, mas em colaboração e sob a responsabilidade das autoridades policiais. Ou seja, a Ministra de Defesa assinou, mas para a Guarda Costeira operar efectivamente tem que ter a colaboração da Polícia Nacional, do Ministério da Administração Interna. Uma questão se põe imediatamente: Como justificar a integração da Guarda Costeira nas Forças Armadas se a sua missão natural é de natureza policial? Nos Estados Unidos, a Guarda Costeira sempre esteve com o Departamento dos Transportes e, recentemente, passou para o Departamento da Homeland Security, correspondente ao ministério do interior. Noutros países como é o caso da Espanha a missão da Guarda Costeira é cumprida por forças de seguranças e não pelas forças armadas. Pode-se ainda perguntar porque razão o Governo, vários anos falando de reformas, não faz a reforma óbvia que é dotar o País de uma força capaz de policiamento dos espaços, aéreo e marítimo, e das costas e praias. A dificuldade, parece, está em encontrar missões para as Forças Armadas, assim como estão estruturadas. Fala-se de missões de paz mas não se sabe em que especialidade as FA iriam contribuir na força multinacional. Ultimamente surgiu a ideia da polícia militar. Não é aparentemente visível de onde viria a experiência das FA neste domínio capaz de potenciar um centro de formação de formadores para os países da CPLP. Nesta busca vê-se que o Governo quer salvar as FA, mas não sabe como. No processo, prejudica a criação de uma guarda costeira e adia a adequação dos escassos recursos humanos e materiais às reais exigências da Segurança Nacional. As FA herdaram das FARP o essencial das suas opções de organização. Mas as FARP constituíam o braço armado do Partido, nos primeiros 15 anos após a independência, e a sua estrutura reflectia o papel que desempenhava no aparato de defesa do regime. A ênfase era colocada no exército porque o inimigo mais provável do regime seria interno, seria a própria população. A Guarda Costeira, virada para conter ameaças do exterior, nunca passou, em termos organizacionais de um estado incipiente. Ninguém espera que oficiais do exército construam, de raiz, um outro ramo das forças armadas. Não têm expertise específica, não têm sensibilidade para as necessidades e desafios de outros ramos e não conseguem gerar uma cultura organizacional distinta do seu ramo de origem. Os resultados da teimosia vêem-se por aí: CV é um país arquipélago e não desenvolveu forças para policiar as suas águas, costas e praias. Nem se capacitou para operações de busca e salvamento, muito menos para controlo de poluição marítima e combate aos diferentes tráficos. Se tivesse adquirido experiência e capacidade operacional nesses domínios, hoje, estaria numa posição vantajosa para fornecer serviços na sub-região, a cooperação com outros países seria muito mais abrangente e a possibilidade de participação em forças multinacionais realizar-se-ia. O País precisa debater, com profundidade, as suas opções no domínio da Segurança Nacional e adequar as suas forças às ameaças actuais e emergentes. Ter Guarda Costeira, como uma força de segurança, é uma opção a considerar.
sexta-feira, março 09, 2007
quarta-feira, março 07, 2007
Sanha contra os anos 90
A governação da década de 90 é sistematicamente atacada pelos actuais governantes. Tudo leva a crer que os ataques persistirão por muito tempo. É uma situação algo estranha na democracia. Noutras paragens, ao novo governo, permite-se cem dias de lua-de-mel, durante os quais as críticas da oposição e dos mídias são mitigadas, e seis meses para ainda culpar a governação anterior. Passado esse período, o novo governo assume total responsabilidade e sofre o impacto total do criticismo da comunicação social e da oposição. Em Cabo Verde acontece algo de extraordinário: o governo, no seu segundo mandato, ainda continua a confrontar o que o antecedeu, seis anos antes. E a confrontá-lo de forma dura, cáustica e belicista. A percepção geral é que isso constitui perda de tempo, de energia e de atenção, com consequências na resolução eficaz e atempada dos problemas actuais. De facto o País não pára. O Cabo Verde que teve a governação do MpD não é o mesmo de vários anos depois. Não se pode, em boa fé, exigir, hoje, do MpD algo que, há muito, não tem possibilidade de resolver - porque não governa - ou de o culpar, por eventuais erros cometidos, quando, pela mesma razão, não os pode corrigir. A irrazoabilidade dos ataques, aliada à sua natureza sistemática e permanente, pode dirigir qualquer observador a concluir que os verdadeiros alvos não são o MpD, ou a sua governação. Procura-se atingir, realmente, a memória e o significado profundo dos anos 90. De facto, essa década decisiva do Pais, não se define como o ano dos dois mandatos do MpD. Ficará fundamentalmente para a História como os anos da libertação do totalitarismo, da adopção da primeira Constituição, Democrática e Liberal, da construção do Estado de Direito democrático, da emergência do mundo autárquico, e das reformas económicas, entre as quais a liberalização económica, as privatizações e o acordo cambial, que restauraram a dignidade e a iniciativa ao indivíduo e integraram o País no mundo e na modernidade. O grande problema nisso tudo é que o PAICV foi um protagonista inconformado em todo o processo. Forçado a fazer a Abertura pelos acontecimentos que desembocaram na queda do Muro de Berlim e no fim da Guerra Fria, tentou manter-se no Poder na nova fase, mas perdeu. A 13 de Janeiro de 1991, viu-se na condição de oposição num sistema político que, de forma inexorável, se afastava dos princípios e valores do regime dos primeiros 15 anos após a independência. A adopção de uma nova Constituição e de uma nova bandeira nacional simbolizou a ruptura completa com o passado. Para o PAICV, apresentar-se perante a sociedade, os correligionários e os amigos internacionais como vítima do novo regime passou a ser um componente essencial da sua estratégia de sobrevivência. Resultou, mas o preço a pagar é demasiado caro, tanto para o partido como para o País e a sociedade. O PAICV vê-se completo na sua trajectória histórica. Não assume o conflito inevitável entre o passado de partido único, que nunca renegou, e a sua condição de partido legitimamente eleito para governar num sistema democrático. O conflito de um partido, hoje no Governo, a beneficiar dos ganhos do percurso em direcção à Boa Governança, ou seja em direcção à Liberdade Política, à Liberdade Económica e à afirmação do indivíduo, e, ao mesmo tempo, a resgatar e a integrar, como inseparável de si próprio, uma longa história de luta contra esses mesmos princípios. As baterias apontadas contra a década de noventa, aparentemente numa postura bélica contra o MpD, são na realidade a forma como o conflito é resolvido no seu seio. Esse é o drama do PAICV. O drama do País é que o Cabo Verde moderno tem que ser construído a partir dos alicerces já erguidos. Ao dedicar tanta energia em atacar a década de noventa o Governo fragiliza o trabalho de continuidade, que é forçado a fazer por razões várias entre as quais obrigações internacionais, e mantém o País numa postura de, permanentemente, rever os seus passos, passos esses cada dia mais distantes e cada vez mais longe do contexto onde se situaram, e eventualmente se justificaram. É tempo dos caboverdianos dizer aos governantes que ninguém os elege para olhar para o passado e para procurar reinterpreta-lo. Não é esse o papel do Estado. Foram eleitos para construir o futuro, salvaguardando as conquistas fundamentais, designadamente as que garantem a dignidade do indivíduo, as que preservam a sua liberdade e as que lhe possibilitam exercer o seu direito à felicidade e à prosperidade pessoal e familiar.
segunda-feira, março 05, 2007
Conflito de interesses: Negar ou prevenir
Negam-se ou suprimem-se quando, como Amílcar Cabral, se pensa que a Luta só podia ser dirigida por uma pequena burguesia capaz de se suicidar, enquanto classe, e de se identificar com as massas populares. O irrealismo da proposta de suicídio, conjugado com a sua defesa activa como condição para se ser dirigente do Partido, criou uma cultura política onde o culto do igualitarismo anda de mãos dadas com o cinismo e a hipocrisia. Onde se faz o alarde do ascetismo revolucionário e, em simultâneo, se dá aos dirigentes acesso a benesses únicas, onde se joga livremente com a verdade para manter a esperança das massas nos amanhãs que cantam e onde se proclama exclusividade na defesa dos interesses públicos quando, de facto, a gestão do Estado é privada e serve desígnios de Poder de alguns. É esta cultura política que sentou arraiais no País durante os quinze anos do Partido Único e que se caracterizou por uma arrogância sem paralelo. Parafraseando Lord Acton, se o Poder gera arrogância, o Poder absoluto gera arrogância absoluta. E isso é patente na célebre declaração do então Primeiro Ministro, Pedro Pires, no comício da Proclamação do PAICV, a 20 de Janeiro de 1981: Não admitimos que pessoas de passado confuso e duvidoso pretendam agora erigir-se em moral desta sociedade. Só existe uma única moral, a revolucionária. A moral dos que deram tudo para que este país fosse independente e para que este seja o que é neste momento. No debate sobre a Gestão Pública e Transparência, ficou claro essa cultura política e essa arrogância persistem no PAICV. O Presidente do MpD foi confrontado com um alegado passado confuso e duvidoso para lhe negar o direito de alertar para o deslize nos procedimentos públicos em direcção a uma gestão privada e opaca dos assuntos do Estado. O Primeiro Ministro e Ministros, pateticamente, proclamaram a sua seriedade pessoal entre gaffes várias, indiciadoras de conflitos de interesses na adjudicação e fiscalização de obras. Exibiu-se, como faces da mesma moeda, um patriotismo exclusivo para qualificar quaisquer críticas como atentados aos interesses de Cabo Verde e uma insensibilidade inaceitável face a potenciais conflitos de interesse. Assim, parece natural que um empresário, cuja hiperactividade é verificável no Google, seja membro da Comissão Política, o órgão central de decisão do partido que suporta o Governo, e tenha exercido a função de financeiro no partido num passado recente. Ou que o presidente da RTC, com o seu intervencionismo conhecido na Televisão e na Rádio, seja um militante activo, reeleito, em Outubro passado, para a direcção do partido. Ou ainda que o Instituto das Comunidades, uma entidade sensível ao qual se exige altos níveis de isenção e imparcialidade, seja presidido pela mesma pessoa que no Secretariado Nacional do PAICV detém o pelouro das comunidades. Com tal insensibilidade não é de estranhar que conflitos de interesses proliferem. Previnem-se, porém, os conflitos, instituindo as regras da Boa Governança. Mas é preciso compreender, primeiro, que Boa Governança é um ideal. Luta-se por ela construindo as instituições do Estado de Direito, implementando os procedimentos, que salvaguardam os princípios de justiça, imparcialidade e isenção na tomada de decisões, e respeitando os direitos fundamentais dos cidadãos. E só se realiza com um esforço permanente de reforma da Administração. Para se ter uma ideia da magnitude do desafio, convém lembrar Renato Cardoso. Num artigo publicado em Outubro de 1988, chamou a atenção para às consequências desastrosas na eficácia da Administração [causadas] por afogamento da máquina do Estado no mar de intervenção omnipresente e omnipotente das instituições políticas. Acrescentou ainda no mesmo artigo que o poder político desenvolve uma noção limitativa da função da administração pública querendo-a instrumento amorfo das suas orientações, estabelecendo com ela relações autoritárias baseadas na desconfiança permanente e cerceando-lhe qualquer participação cívica responsável. Esse foi o ponto de partida. Como se vê, um ponto muito abaixo do zero quando se parte dessa máquina descrita por Renato Cardoso para construir uma Administração com uma ética republicana de serviço público. Por isso, o que menos ajuda o País e a sociedade nessa tarefa é o cinismo e a hipocrisia reinantes, produtos dessa ética do homem novo em que os fins justificam os meios. Também não ajuda a dificuldade, particularmente dos políticos, do poder judicial e dos mídias em vislumbrar, de forma plena, as consequências, para o País e para a sociedade, da persistência de conflitos de interesse entre o público e o privado.
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