A Constituição da República entrou em vigor a 25 de Setembro de 1992.
Comemora-se hoje os 16 anos da tarefa histórica que a Nação se impôs ao adoptar a Constituição: A defesa da dignidade da pessoa humana; a valorização do indivíduo enquanto como sujeito incontornável da realização não só da sua felicidade pessoal e familiar como também da prosperidade geral; a edificação do Estado de Direito; o lançamento das bases de uma sociedade civil autónoma. Nesse sentido, leis foram criadas para dar corpo ao novo ordenamento jurídico no País, instituições da república foram construídas para garantir legitimidade, responsabilidade e accountability no exercício do Poder e no processo de tomada de decisões e uma cultura democrática foi incentivada com a insistência no respeito estrito pelos processos e procedimentos constitucional e legalmente estabelecidos.
Todo esse esforço de construção não tem sido fácil. Ao longo do tempo, empecilhos diversos, resquícios de culturas políticas autoritárias e totalitárias, vêm se colocando no caminho da assunção plena da Constituição. Para isso têm contribuído a situação sócio-económica frágil, o espírito de dependência nas elites e nas populações, induzido pela ajuda externa e remessas dos emigrantes, e o excessivo peso do Estado em determinar quem são os ganhadores no processo económico. Também prejudica o esforço democrático as dificuldades em se ter uma comunicação social livre e um poder judicial independente, competente e célere.
Não obstante as dificuldades, a democracia caboverdiana tem-se distinguido pela sua estabilidade. Em retrospectiva, pode-se dizer que as soluções, encontradas pelo legislador constitucional em 1992, parecem ter sido as mais ajustadas.
A Constituição estabelece o seu próprio processo de revisão. Em 1995 foi feita uma revisão extraordinária e em 1999 uma revisão ordinária. Enquanto a revisão de 1995 centrou-se num ponto específico à volta da lei eleitoral, a revisão de 1999 foi muito mais abrangente. Duas alterações, a criação do Tribunal Constitucional e a introdução da alínea q do artigo 175, que passou a exigir maioria qualificada de dois terços para matéria fiscal, tiveram consequências profundas no sistema. Nos anos seguintes condicionaram o discurso político. Hoje, são aquisições basicamente consensuais.
Desde de Novembro de 2004 que a Constituição pode ser revista. Apesar de prever a sua própria revisão de 5 em 5 anos não se deve tomar essa possibilidade como uma exigência/imposição de alterar a Constituição. O consenso à volta da Constituição está intimamente ligado com a sua estabilidade.
A Constituição de 92 é moderna. Encarna o mundo pós-queda do Muro de Berlim, de reconhecimento universal dos direitos do indivíduo, de consagração da democracia e da aceitação da iniciativa privada e do mercado como indispensáveis ao desenvolvimento. Também não apresenta muitas normas reactivas que convidassem à revisão. Por isso, Cabo Verde parece não ter a necessidade de fazer as múltiplas revisões que, por exemplo, Portugal foi obrigado para se libertar de resquícios ideológicos.
Isso não impede uma profunda reflexão sobre o funcionamento do sistema nos actuais parâmetros. Que se analise a sua adequação à realidade do país, se procure antecipar às consequências da dinâmica actual e identificar tendências evolutivas. E, finalmente, que se prepare o país para as mudanças de paradigma nas relações entre Estados, ditadas pela globalização em curso.
A revisão da Constituição podia orientar-se, designadamente, pelas seguintes linhas de força:
· Reforço do Parlamento na fiscalização do Governo e aprofundamento do controlo judicial das leis
· Reforço da independência do poder judicial
· Absorção das consequências da natureza arquipelágica do país:
· Redefinição do quadro constitucional das relações internacionais,
· Redefinição do conceito de segurança e defesa nacional
O reforço do Parlamento no controlo da legislação passaria, nomeadamente, pela extensão aos decretos-leis do Governo dos poderes de ratificação, hoje restrita aos decretos legislativos. O aprofundamento do controlo judicial envolveria o alargamento das competências do Tribunal Constitucional na fiscalização abstracta e sucessiva da legalidade. Dessa forma garantir-se-ia uma maior coerência nas leis, não permitindo, designadamente, que o Governo contorne leis de valor reforçado, votadas por maioria de dois terços dos deputados.
O reforço da independência do poder judicial implicaria a eliminação de quaisquer interferências do poder político na nomeação dos juízes, designadamente a alínea l do artigo 134 da CR, que confere ao Presidente da República a competência de nomear um juiz para o Supremo Tribunal. No mesmo sentido iria a eliminação da presença do Inspector Superior Judicial, nomeado pelo Ministro da Justiça, no Conselho Superior da Magistratura. O controlo jurisdicional das Contas do Estado ganharia credibilidade e legitimidade maiores com a eliminação do poder do governo na nomeação dos juízes do Tribunal de Contas.
Cabo Verde é um país arquipélago. É facto evidente que a identidade caboverdiana emergiu da interacção das ilhas entre si e com o mundo. A riqueza, versatilidade e potencial inovador da cultura caboverdiana dependem da manutenção do protagonismo de cada ilha. A Constituição deve garantir a preservação das condições necessárias a uma participação efectiva, e por igual, das ilhas nas decisões essenciais e na distribuição de recursos.
O conceito de capitalidade deve ser revista por não se apresentar como fundamental em países em que unidade nacional não é posta em causa por forças centrífugas. A constitucionalização da capital normalmente existe em países como Canadá, Brasil, Nigéria de organização política federal ou em países como Espanha e Bélgica de divisões históricas de natureza étnica e linguistica. O caboverdiano já se vê como parte de um todo indivisível.
Por outro lado, a experiência dos arquipélagos da Macaronésia, mas não só (caso de Comores), aponta para a necessidade de uma desconcentração da presença do Estado. Nos Açores, os órgãos do Estado e departamentos da administração têm sede em diferentes ilhas, nomeadamente, S.Miguel, Terceira e Faial. Nas Canárias a capitalidade distribui-se pelas cidades de Santa Cruz de Tenerife e Las Palmas. O efeito directo e induzido do Estado nas economias insulares, pequenas e frágeis por definição, torna inevitável que, em se concentrando num ponto ou ilha, leve necessariamente a desequilíbrios no todo nacional. Migrações internas dirigem-se para a capital e zonas de estagnação surgem noutros pontos do território nacional.
A esperança de todos é que outras dinâmicas contrabalancem o efeito centralizador da presença do Estado num ponto único do território nacional. Mas isso nem sempre acontece, porque as ilhas, pela sua pequenez, não podem mover o mundo a seu favor. Só podem agarrar-se a janelas de oportunidade, cientes que não duram para sempre.
Em Cabo Verde, é já preocupante o crescimento da cidade da Praia, sorvendo recursos humanos e outros do interior de Santiago e das outras ilhas, com consequências graves para a sua própria governabilidade no que respeita à expansão urbana, energia, saneamento, saúde pública, ordem e segurança. Entretanto, o País globalmente perde porque, com a concentração de recursos e as fracas condições nas outras ilhas para a criação e manutenção de elites próprias, retira a si próprio os elementos chaves da sua própria vitalidade e capacidade de inovação.
Um segundo aspecto que resultaria de absorção pela Constituição da natureza arquipelágica do País é a flexibilidade na adequação das instituições às ilhas e na diferenciação de regimes de aplicação de políticas, designadamente, fiscal, laboral e de segurança. Flexibilidade que, por exemplo, permitiu às Maurícias, aproveitar novas oportunidades e manter-se competitivo perante alterações profundas nas relações económicas globais. O modelo actual em que as ilhas aspiram a desenvolver-se numa relação directa com o mundo exige flexibilidade.
A dinâmica da globalização - oportunidades/ameaças -, não se compadece com certo tipo de rigidez constitucional nas relações internacionais. Passos já dados, em matéria de acordo cambial, de acordos de segurança mútua e controlo dos diferentes tráficos e procura de convergência normativa, no âmbito do desenvolvimento do princípio de parceria especial com a União Europeia, apontam para opções no domínio das relações internacionais já consensuais na sociedade caboverdiana.
Assim como Cabo Verde, de facto, com o peg da sua moeda ao euro, cedeu o essencial da condução da política monetária ao Banco Central Europeu e em matéria de segurança assinou acordos com outros países para controlo da sua Zona Económica Exclusiva, urge que se reflicta sobre que outras áreas flexibilizar. Considerando a natureza criminal e transnacional das ameaças, a cooperação no sector de justiça, designadamente, com o Tribunal Penal Internacional, parece imprescindível. Para evitar que Cabo Verde seja visto como um paraíso para criminosos e traficantes, e para que seja capaz de confrontar situações que, sozinho, não conseguiria
Em matéria de Defesa e Segurança, a Constituição apresenta a divisão clássica entre a defesa face ao inimigo externo, a cargo das Forças Armadas, e a segurança interna, entregue às polícias. No mundo pós 11 de Setembro essa diferença entre segurança e defesa desvanece-se. As ameaças actuais, na generalidade dos casos, de entidades sub-estatais no crime, no tráfico ou no terrorismo, exigem métodos de actuação policial, mesmo que, em termos operacionais, as forças tenham de mostrar perícia e usar tácticas militares.
As fragilidades de Cabo Verde têm muito a ver com a sua pequena economia, pequena população e condição de ilhas espalhadas por uma grande área do oceano. Isso implica uma grande linha de costa para controlar e uma área enorme de águas territoriais e zona económica para vigiar. Essas fragilidades tornam extremamente difícil montar uma defesa convincente contra uma ameaça externa protagonizada por um outro Estado.
As Forças Armadas, tendo como seu núcleo essencial o Exército, dificilmente poderiam responder cabalmente à missão que a Constituição lhes dá. Essa é provavelmente uma das razões porque sempre os governantes se viram tentados a encontrar outras missões para as forças armadas, principalmente, em matéria de segurança interna.
A questão que se põe é se, face à inexistência de ameaças de outros Estados e à incapacidade do país, pelos próprios meios, de fazer a sua defesa militar, é de se investir os parcos recursos em forças armadas. Forças armadas, que pela Constituição, estatuto e composição com base no serviço militar obrigatório estão impossibilitados de agir ou limitados na sua acção em situações que configuram ameaças reais e actuais. Ou se Cabo Verde estaria melhor se aderisse a projectos colectivos de segurança, dissuasores de atentados à sua soberania, e dirigisse recursos para forças de segurança especialmente treinadas. A cooperação, que é parca em termos estritamente militares, poderia ser profusa no combate ao crime e ao terrorismo.
Para além das alterações na estrutura das forças, importa rever outros impedimentos à efectividade do combate ao crime. Alguns são elementos essencialmente reactivos, presentes na Constituição. É o caso da proibição de entrada no domicílio durante a noite, em qualquer circunstância que não as que configuram estado de necessidade. A problemática da extradição também poderia ser revista no quadro do envolvimento do País em projectos colectivos de resposta às ameaças actuais.
A revisão ordinária da Constituição é urgente. É fundamental que se desenvencilhe o caminho para adopção em pleno das alterações da revisão de 99, no que respeita ao Tribunal Constitucional e ao estabelecimento do Supremo Tribunal de Justiça, livre de interferência política na sua composição. Da revisão próxima poderá vir, ainda, o quadro constitucional necessário para o País aproveitar as oportunidades, relacionar-se com um mundo em mudanças profundas e associar-se a outros Estados para garantir a sua Segurança.
Que a Constituição continue a ser o veículo fundamental para a realização da Liberdade e da Felicidade dos caboverdianos.
Publicado no jornal ASEMANA de 26 de Setembro de 20091