segunda-feira, março 25, 2019

Não dá para continuar a empurrar com a barriga

É notório que não se vive, não se participa nem se reivindica como se fazia poucos anos atrás em Cabo Verde. Num dia Brava manifesta-se na ilha e na capital. A morte de uma parturiente que não teria sido evacuada a tempo foi a justificação. Noutro dia grupos cívicos criticam a justiça e exigem que alguém de direito assuma a responsabilidade pelas falhas no sector e pela frustração sentida pela população que quer justiça competente e em tempo útil. Em dias certos no mês os partidos literalmente engalfinham-se no parlamento prejudicando o equacionamento dos problemas, a criação de vontade para as resolver e a própria busca de soluções.
 Algo recentemente mudou na postura das pessoas e no comportamento das organizações e das próprias instituições. Os sinais vinham de muito atrás, mas provavelmente foi a mudança de governo que terá propiciado a viragem que actualmente se constata. A agitação social e política dos últimos três anos supera em muito o que se passou na década anterior.
Claro que o fenómeno não é exclusivo de Cabo Verde. Com especificidades próprias acontece em maior parte do globo. Há quem aponte a crise financeira, a chamada Grande Recessão de 2008 como o ponto de viragem. Outros vão mais longe e apontam os ataques terroristas de 11 de Setembro como o fim do período aberto com a queda do Muro de Berlim, em 1989, em que se viu o avanço aparentemente imparável da democracia e a adopção generalizada das regras da economia de mercado acompanhada de prosperidade sem precedentes particularmente na China. A verdade é que hoje principalmente nas economias mais avançadas vive-se com o sentimento de que há desigualdade crescente de rendimentos com concentração de riqueza numa pequena minoria e que os governos se mostram impotentes para inverter o processo e também para gerir adequadamente as migrações de pessoas vindas de outras paragens à procura de uma vida melhor. Em consequência nota-se que aumenta a reacção contra a globalização e a favor do proteccionismo e que não há certezas que o futuro traga mais rendimento e mais qualidade de vida e que dúvidas crescentes em relação às instituições democráticas, aos média e a outras entidades mediadoras incluindo as científicas levam ao extremar de posições na sociedade.
Já nos países emergentes como por exemplo o Brasil há reacções similares, mas com efeitos mais complicados considerando a fragilidade maior das instituições e também a precariedade de existência de largas camadas da população mesmo aquelas que recentemente se viram elevadas ao nível da classe média. As causas aí pesam bastante pelo lado da corrupção, pela incapacidade do Estado em propiciar os serviços desejados com eficiência e eficácia e a dificuldade em avançar como um modelo de desenvolvimento que garanta crescimento sustentável e criação de empregos seguros. Em Cabo Verde acontece algo semelhante com a diferença de o sistema produtivo ser muito limitado e a atenção geral fixar-se no Estado e nos recursos que concentra ou pode dar acesso. Por isso é que quando fica claro que o panorama sócio-económico é mais complicado do que o esperado porque se perdeu tempo, se investiu mal e as prioridades foram trocadas a reacção é de maior impaciência, de descrença nas instituições e na classe política e de corrida desenfreada especialmente da parte dos interesses corporativos para assegurar o seu quinhão no bolo representado pelo Estado. Depois de se ter constatado que afinal problemas a todos os níveis foram em boa medida varridos para debaixo do tapete e ressurgem agora com vigor surpreendente e consequências funestas a dúvida é se agora não se está simplesmente a “empurrá-los com a barriga” não obstante os governantes garantirem que as “suas soluções são inovadoras e criativas”.
A UCID há dias publicamente afirmava que as câmaras de vigilância não têm transmitido a sensação de segurança às populações. Depois de milhões de dólares gastos na instalação das câmaras e do centro de comando e controlo esperava-se o trabalho complementar de fazer chegar a polícia junto das comunidades e potenciar de facto o investimento feito. Ao que parece ainda não aconteceu e só a divulgação da baixa das ocorrências registadas pela polícia não é suficiente para dar confiança que a criminalidade esteja efectiva e significativamente a diminuir. Também depois dos extraordinários investimentos feitos no sector da justiça não deixa de causar perplexidade que num julgamento de um caso com notoriedade, porque resultante de acusações graves feitos contra juízes e contra o sistema de justiça, o juiz peça escusa e o processo fique adiado sem data conhecida. A sensação é que, não obstante os meios muitas vezes avultados postos em certos sectores, os resultados estão a ficar muito aquém do esperado como cada vez mais se apercebe na área de educação e formação. Da mesma forma, ninguém fica realmente indiferente quando por exemplo se divulga que houve 24 mortes por negligência médica ou se apercebe da dimensão de bebidas produzidas fora dos parâmetros aceites e da quantidade de medicamentos e produtos alimentícios sem condições para o consumo que são retirados do mercado.
Saltando para outras áreas também não se deixa de ficar perplexo quando depois de 20 anos de vigência do Trust Fund e na hora de assumir os compromissos de resgatar os títulos (TCMF) emitidos desde a constituição do fundo é que se vai operacionalizar uma solução que passa por transferir o dinheiro do Trust Fund para um Fundo Soberano de garantia a investimento privados. Pergunta-se onde pára a visão estratégica nesta e noutras situações para que, quando se age, evitar ficar na posição de praticamente encurralado e muito limitado nas posições negociais como aconteceu no processo da privatização da TACV. Levar as pessoas a recuperar confiança e fazê-las acreditar num futuro melhor é essencial para libertar da vitimização do passado e agarrar o futuro encarando os problemas sem necessidade de os varrer para debaixo da tapete nem os de empurrar com a barriga num ilusionismo que já provou não servir o país.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 903 de 20 de Março de 2019.

segunda-feira, março 18, 2019

Corda esticada

Há dias Marcelo Rebelo de Sousa, na resposta à pergunta o que falta a Portugal para sair de cepa torta, disse: faltam consensos de regime em matérias básicas, não há uma atenção dos protagonistas políticos à reforma do Estado e falta capacidade de antecipação e de fortalecimento da sociedade civil. As três dicas do presidente português podiam ter aplicação directa em Cabo Verde.
 No país reina um ambiente de crispação política e não há uma base política comum seja para entendimentos, seja para contraditórios construtivos. Quanto às reformas constata-se que, apesar de promessas repetidas da classe política, a máquina do Estado mantém-se no essencial centralizadora e burocrática e os interesses corporativos devidamente salvaguardados. E em relação à sociedade civil pouco mudou no grau de sua dependência do Estado e na capacidade de autonomamente forçar alterações profundas na forma da condução dos assuntos públicos. O caso último da privatização do negócio internacional da TACV é ilustrativo a esse respeito.
A situação da empresa era por todos conhecida. Foi notório como o arresto do avião em Amsterdão precipitou a derrota eleitoral do partido então no governo. Por outro lado, ninguém desconhecia a sangria que representava para as finanças públicas. Apesar da extrema gravidade do caso TACV (dívida de mais de 100 milhões de dólares e permanente risco orçamental) foi impossível criar entre os principais partidos qualquer base de discussão do futuro da transportadora. O mesmo aconteceu face a outras situações graves designadamente com o programa Casa para Todos bloqueado sob o peso de uma dívida de 200 milhões de dólares e com o Novo Banco em virtual estado de insolvência. Quando veio a seca de 2017 que deixou a nu a vulnerabilidade da população apesar dos muitos milhões que tinham sido investidos no mundo rural também não se conseguiu criar uma base de consenso para equacionar intervenções com vista a minorar a precariedade actual e abrir o caminho para um futuro com prosperidade. Algo similar já tinha acontecido numa outra situação extrema como foi a da erupção vulcânica do Fogo em Dezembro de 2014. Picardias político-partidárias passam a dominar o espaço público, em particular o debate parlamentar, e logo de seguida fica comprometida a eficácia da acção pública junto de quem mais necessita.
O sentimento que se vive hoje no país é que metaforicamente se esticou a corda toda. Não é só a TACV que ultrapassou o limite da sustentabilidade. Os transportes marítimos na sequência de acidentes e afundamentos seguiam o mesmo caminho. A dívida pública subiu para níveis muito superiores a 100% do PIB que deixam o Estado quase sem margem para prosseguir com investimentos públicos indispensáveis. A situação habitacional agravou-se apesar dos milhões gastos no Casa para Todos. A segurança não obstante os enormes investimentos ainda não dá confiança ao movimento livre e despreocupado de cidadãos e estrangeiros em todas as cidades e nos vários pontos do país mesmo considerando indícios recentes de se estar a inflectir a situação da criminalidade. A educação apesar dos investimentos das famílias e do Estado nos três níveis de ensino ficou aquém do esperado na preparação dos jovens para o mercado de trabalho e enquanto factor de competitividade da economia. E os custos crescentes da saúde devido ao aumento da esperança de vida, mudanças no perfil das doenças mais frequentes e investimentos necessários em instalações e equipamentos estão cada vez mais difíceis de serem suportados por uma economia há pouco tempo saído de um ciclo longo de crescimento raso.
Depois da corda esticada seguindo o tipo de políticas enquadradas no modelo de reciclagem da ajuda externa quis-se virar para outros sectores da economia. O facto porém é que o sector privado nacional que poderia trazer dinâmica económica não parece descolar seja por causa de financiamento, seja pelos exagerados custos de factores, pela insensibilidade da administração pública ou por falta de acesso a mercados estruturados. Os investimentos externos no domínio do turismo concentrados nas ilhas do Sal e da Boa Vista por falta de estratégia dos poderes públicos a vários níveis ainda não se mostram capazes de impactar a economia nacional como seria desejável. Mesmo assim são os empreendimentos no domínio do turismo e as unidades industriais criadas pelo capital externo que mais criam empregos e suportam as exportações de bens. Para a elite dirigente distraída pelas lutas partidárias não há consciência clara da realidade de se ter há muito atingido o limite na aplicação de certas políticas e da necessidade de agir para sair da armadilha. Não há o sentimento da urgência do agora como diria o ex-presidente americano Barack Obama.
Por isso é que em qualquer matéria que venha à discussão pública seja a ela a TACV, a problemática dos transportes marítimos, o futuro do Trust Fund, concessão de aeroportos, estratégias para as telecomunicações, para agricultura e pecuária, estratégia para educação e para a política energética cada um traz a sua verdade normalmente de um passado congelado no tempo e sem um pingo de responsabilidade pelas consequências de actos e omissões cometidos. Claro que o diálogo só pode ser o de surdos. No processo o país perde, os cidadãos ficam sem dados fiáveis para compreender o que está em causa e o nível do debate tende a piorar porque cada vez mais distancia-se dos factos para ficar com as “verdades” convenientes de cada um. Prioriza-se a exploração de paixões, a identificação com a cor política e as promessas demagógicas porque distantes da realidade dos recursos disponíveis. Com esta atitude continua-se a esticar a corda mesmo perante resultados decrescentes. Os países que se desenvolveram só o conseguiram ultrapassando o círculo vicioso que impede de facto o país “sair da cepa torta”.
Diz-se que neste mundo cada vez mais centrado em questões identitárias a política tende a imitar cada vez mais o futebol. A postura dos partidos e dos cidadãos assemelha-se à perspectiva clubista que só vê a realidade pelo filtro dos clubes levando a sectarismos diversos, à violência e também a qualquer impossibilidade de se chegar a consensos sobre qualquer matéria não interessando a relevância, urgência ou importância estratégica. Na verdade, exemplos espelhados pelo mundo deixam saber que a posição clubista na política tem sido pior do que no mundo do desporto. Os ataques sectários não poupam nada, nem as instituições, nem os procedimentos democráticos e nem o próprio Estado de Direito, e levam à degradação gradual da democracia. No futebol pelo menos procura-se garantir que as regras sejam cumpridas, os árbitros respeitados e a integridade dos jogadores assegurada. Consegue-se que os jogos cheguem ao fim com resultado claro, que se realizem campeonatos nacionais sem disputas intermináveis e que de quatro em quatro anos o futebol seja o espectáculo planetário das Copas do Mundo. A democracia e o Estado de Direito com a sua importância central para a o exercício da Liberdade deviam merecer o mesmo. Substituindo narrativas de ressentimento que estão na base dessas identidades sectárias por narrativas de possibilidade não se estaria nunca em posição de ver a corda esticada e por isso limitado o horizonte do possível.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 902 de 13 de Março de 2019.

segunda-feira, março 11, 2019

TACV e a política dos transportes aéreos

No passado dia 28 de Fevereiro finalmente se concretizou a venda de 51% dos TACV a um parceiro externo, a Loftleider Cabo Verde, subsidiária da Loftleider Icelandic pertencente ao Grupo Icelandair. Terminava assim um processo que se iniciara em Agosto de 2017 com assinatura de um contrato de gestão com a Loftleider Icelandic que deveria ter a duração de um ano e criar as condições para a privatização da empresa.
.Era desde o início assumido que a Loftleider poderia ser o parceiro estratégico que o país precisava para construir um hub no Atlântico Médio capaz de aproveitar o fluxo de passageiros entre a Europa e América do Sul e entre a África e a América do Norte. Como parte do grupo Icelandair que tem uma história de sucesso na criação de um hub no Atlântico Norte, a disponibilidade e o interesse da Loftleider em assumir a gestão da TACV foi de grande importância. Emprestava credibilidade à ideia de um hub na Ilha do Sal que poderia capitalizar com ganhos os activos da empresa e do país designadamente os recursos humanos, certificados ETOPS e localização geográfica que de outro modo poderiam ser desbaratados liquidando a empresa como propunha o Banco Mundial e outras instituições internacionais. A assinatura do contrato de compra e venda no valor de 1,3 milhões de euros acompanhada de uma capitalização no valor de 6 milhões de dólares pelo parceiro estratégico pode ser visto como um sinal que depois de mais de um ano de teste do potencial acredita mesmo no sucesso um hub aéreo na Ilha do Sal. E essa é a boa notícia.
É uma boa notícia porque todo o investimento feito pelo país na TACV, nos aeroportos, na regulação aeronáutica e fundamentalmente nos recursos humanos poderá ser aproveitado para gerar riqueza numa escala nunca vista porque já não mais limitado ao tráfego de e para Cabo Verde e perfeitamente apto para competir na prestação de serviços intercontinentais de passageiros. É uma boa notícia também pelo efeito de arrastamento que terá sobre empresas fornecedoras de bens e serviços à aviação particularmente se se conseguir conjugar o hub com stopover. É ainda uma boa notícia porque aumenta a conectividade de Cabo Verde contribuindo extraordinariamente para acabar com o relativo isolamento em relação a regiões dinâmicas do globo com vantagens directas para o turismo, aproximação de mercados e atracção de potenciais investidores. Naturalmente que como tudo no mundo de negócios há riscos como a própria Loftleider reconhece quando cria uma subsidiária para os representar no negócio e evitar o contágio da empresa-mãe na eventualidade das coisas não correrem bem.Entrementes nos próximos cinco anos os riscos vão ser partilhados pois só depois desse prazo é que a Loftleider Cabo Verde poderá vender as suas acções reservando o Estado de Cabo Verde o direito de preferência de as comprar. Mas certamente que será do interesse das partes e muito particularmente de todos no país que o empreendimento tenha sucesso. O ruído causado pela disputa partidária poderá sugerir que haja desejos em contrário, mas a verdade é que sucesso significa mais empregos, mais rendimentos e mais certeza no futuro. Toda a gente tem interesse que assim seja. Envereda-se pela má política quando uns e outros confundem deliberadamente diferença de opiniões e de políticas com falta de engajamento com os interesses do país.
Privatizações são objecto de discordância em todo o sítio onde são intentadas. Quando iniciadas, há sempre quem discorde do momento ou da oportunidade. Quando vistas em retrospectiva, mesmo os seus promotores acham que podiam ser melhor conduzidas. O facto é que no momento de decisão ninguém tem a informação completa. Trabalha-se com os dados disponíveis e num contexto específico que exige muitas vezes acção decisiva, tempestiva e encadeada para se conseguir os objectivos de política pretendidos. Razões para privatizar são múltiplas designadamente para diminuir o risco orçamental, arrecadar despesas extraordinárias, promover o sector privado, atrair investimento externo que traz capital, know-how e mercados, desenvolver parcerias estratégicas para a modernização do país e inserção da economia nacional na economia global. Privatizações em grande escala acontecem quando há um esforço de diminuição do Estado na economia como aconteceu na Inglaterra de Margaret Thatcher ou em processos de transição de economias estatizadas para economia de mercado conduzidos na Europa de Leste e na Rússia depois da queda do comunismo. Em Cabo Verde também foram privatizadas várias empresas na década de noventa no quadro de construção de uma economia de mercado e de reformas estruturais que aumentaram o potencial do país permitindo-lhe crescer a uma média superior a 7% entre 1995 e 2008. Apesar de globalmente positivas as privatizações continuaram a ser o tema fracturante preferido para se fazer política de divisão, com “patriotas” de um lado e “antipatriotas” do outro.
As tentativas de privatização da TACV iniciadas em 2000 no governo do MpD e com seguimento posterior nos governos do PAICV a partir de 2002 goraram-se em parte por causa de resistências de vários quadrantes na sociedade e no Estado. Dados vindos a público na sequência de audiências feitas em sede de comissão parlamentar de inquérito deixaram perceber as interferências governativas, as deficiências de gestão e as fragilidades dos modelos de negócios adoptados que cumulativamente conduziram a empresa à situação de falência com dívidas à volta de 100 milhões de dólares. Entre liquidar a empresa ou mantê-la nos mesmos moldes, uma opção que se tinha tornado impossível devido à dívida acumulada e ao grande risco orçamental que entretanto passou a representar, o governo decidiu explorar um novo modelo de negócios baseado na construção de hub na Ilha do Sal. Aparentemente, de lado ficaram as pretensões de desenvolver as outras unidades de negócio identificadas. A CV Handling já tinha sido entregue à ASA em 2015, os transportes aéreos domésticos e regionais foram descontinuados a partir de Maio de 2017 e a unidade de manutenção ressentia-se da perda de aviões próprios da companhia. Em todo este processo o governo teve objecção do Banco Mundial materializada na suspensão desde 2016 da ajuda orçamental mas persistiu apesar dos constrangimentos ao tesouro público. A aposta já parece dar frutos mas a questão que se coloca agora é que resposta dar aos sectores que foram negativamente afectados.
O resgate da TACV poderá ter sido iniciado mas onde param as políticas de transporte que procuram, por um lado, melhorar a ligação entre as ilhas com segurança, frequência e preço ajustado para incentivar a circulação nas diferentes ilhas do país, a exemplo do que se passa nos outros arquipélagos da Macaronésia. Claramente que a via não pode ser a de empresas a praticarem preços máximos sem sinais evidente de uma política comercial atractiva. A ligação regional na aparente impossibilidade da Binter realizá-la como estava prevista inicialmente foi tomada pelos concorrentes na região. Os voos para Lisboa objecto de reclamação de passageiros principalmente em S. Vicente mas também na Cidade da Praia e noutras ilhas sofrem com a posição quase monopolística das transportadoras. As vias para solucionar isso tudo terão que ser encontradas no âmbito de uma política compreensiva de transportes que não se deixe ficar pela lógica pura e dura do mercado. Pequenos países e países arquipélagos têm imperfeições e falhas de mercado que não se resolvem com o laissez-faire. Há que encontrar o meio termo entre o excesso e a omissão do Estado para que nas ilhas e no país as reformas surtam o efeito desejado.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 901 de 05 de Março de 2019.

segunda-feira, março 04, 2019

Caboverdianidade sem complexos

Na semana passada, 21 de Fevereiro, celebrou-se mais um Dia da Língua Materna. Como de há muito acontece nessa data foi mais uma oportunidade para as opiniões se dividirem à volta do crioulo. Há quem insista na urgente oficialização do crioulo e há outros que perguntam qual é a pressa. O Presidente da República aconselha “a definição de regras claras para a sua escrita” e que isso seja feito “num espaço de tempo razoável”.
 O Governo através do Ministério da Cultura em comunicado diz que quer “prosseguir com a sua oficialização através da Constituição da República e por fim avançar com a padronização”. Acrescenta ainda que a “padronização é moroso e pode levar duas ou três gerações para que ela passe a ser assumida naturalmente pela sociedade”. A Constituição da República no nº2 do artigo 9º parece apontar num outro sentido ao determinar que “o Estado deve promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Supõe-se que já havendo reconhecimento do crioulo no texto constitucional trata-se é de dar o passo seguinte de também ser língua escrita o que só é possível depois da padronização. Destes aparentes desencontros em como proceder não é de estranhar que hajam dúvidas quanto às prioridades, que surjam agendas dos mais apressados para acelerar o processo e que se ouçam vozes a aconselhar prudência para que a questão não seja factor de divisão quando, como bem lembra o PR na sua mensagem, o crioulo é “um dos principais traços de união entre os caboverdianos”.
A enfase no discurso repetido todos os anos a propósito do Dia da Língua Materna tem sido posta na oficialização do crioulo como acto indispensável para a dignificação da língua. E aí é que começam as divergências, porque vê-se na relação do cabo-verdiano com a sua língua que ela não precisa ser oficializada para ter dignidade. Aliás, a relação que há séculos todos os cabo-verdianos independentemente da sua origem, posição socioeconómica e nível de educação têm com a sua língua materna, visível na forma como é expressa em todos os momentos da sua vida e em particular na sua música, não deixa entender que o seu uso é acompanhado de qualquer sentimento de inferioridade. Mesmo oficialmente ninguém se sente diminuído porque recorre ao crioulo para se comunicar no parlamento, ou enquanto membro do governo ou na qualidade de presidente da república, nem tão pouco quando trata com a administração pública e depõe nos tribunais. A diferença com a língua portuguesa é que a sua escrita ainda não está padronizada para que designadamente os documentos da administração pública e a comunicação oficial do Estado possam ser escritos nas duas línguas. Trazer a questão da dignidade quando não há uma relação de opressão e de subjugação – Cabo Verde é independente há mais de 43 anos – só contribui para pôr as duas línguas em rota de colisão. No processo criam-se anticorpos na aprendizagem do português com evidentes prejuízos para o esforço, essencial para o exercício pleno da cidadania, de tornar os caboverdianos fluentes nas duas línguas.
Reduzir problemas complexos à questão de dignidade é sempre útil para aqueles cujo objectivo central é reforçar a identidade das vítimas versus os opressores ou simplesmente a do “nós”contra os “outros”. Na época actual em que proliferam políticas identitárias e em que questões fracturantes trazem vantagens diversas a quem se apresenta como resistência face à opressão de toda espécie, seja real ou virtual, a tentação é grande para se enveredar por esse caminho. Quantas carreiras políticas e também noutras áreas não foram assim fabricadas supostamente para terminar a opressão, para dar força à resistência ou para restituir a dignidade. A verdade é que na generalidade dos casos o problema não é de facto resolvido mas as divisões na sociedade persistem e tendem a tornar-se extremas. As divisões e os desencontros por causa do crioulo não são de hoje e tudo leva a crer que vão se repetir e poderão aprofundar-se considerando os ventos de feição que hoje sopram em todo o mundo. Os seus efeitos em particular na aprendizagem da língua portuguesa e na qualidade do ensino em geral não deixarão de se fazer sentir. A exemplo de outras sociedades que se deixaram apanhar nesse tipo de armadilhas, o mais provável é que aumente a debandada dos com maiores posses para colocar os filhos em escolas privadas.
Cabo Verde não devia estar a confrontar-se com certo tipo de divisões culturais com que outras nações se deparam. A consciência da caboverdianidade vem de longe e é muito anterior à independência. É evidenciada na língua, na música, na literatura e em várias outras manifestações de cultura, mas opções várias de política terão levado a que não se aprofundasse o conhecimento do processo da emergência dessa consciência nacional. O estudo do passado ficou demasiado sujeito a conveniências várias. Curioso que dias atrás por ocasião do 70º aniversário do desastre da Assistência o historiador António Correia e Silva tenha chamado a atenção para o aparente esquecimento das fomes periódicas com milhares de mortes que assolaram o arquipélago durante séculos até a última fome de 1947. Parece que o país esteve demasiado tempo a entreter-se na consolidação de uma herança escravocrata enquanto as fomes que a sua literatura narra nas obras de Manuel Lopes, Baltasar Lopes, Luís Romano, Teixeira de Sousa e de muitos outros escritores e poetas ficavam num segundo plano. Talvez porque nas fomes as causas eram fundamentalmente as secas enquanto falar da escravatura permitia mais facilmente desenvolver uma cultura de vitimização mais conducente com a “escolha do destino africano” feito no acto de proclamação da independência de Cabo Verde.
Depois dessa “escolha”, o esforço de reafricanização dos espíritos que se seguiu só podia levar a divisões como a referida à volta do crioulo assim como ao aparecimento de outras linhas de fractura à medida que a história dos cinco séculos de existência era submetida a análises de conveniência e a procura de conformidade com a ideologia desses tempos e a racionalidades de poder. Para se distanciar o crioulo do português e fazer dele uma língua de resistência tinha-se que se deixar a escrita etimológica usado nos trabalhos de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ovídio Martins, Luís Romano e outros para adoptar o ALUPEC, como se a base lexical do crioulo não fosse quase toda ela de origem portuguesa. A crise identitária que se abriu com ofensivas em várias outras áreas para além da linguística deixaram feridas na sociedade que se podem descortinar nas disputas entre ilhas, em certos discursos políticos e na atribuição de valor ao património cultural prejudicando a coesão do país. Infelizmente, o processo erosivo continua porque as instituições do Estado em geral com destaque para o sistema educativo dão seguimento ao trabalho de outrora. O Estado democrático dá sinais de se ter mantido refém do passado e por isso as divisões na sociedade e a crise identitária aprofundam-se, enfraquecendo a vontade da nação, dificultando uma visão do todo nacional e deixando espaço para que lógicas identitárias das mais nocivas possam desenvolver. Há que reverter a situação e fazer da afirmação da caboverdianidade sem complexos a chave para um futuro de desenvolvimento.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 900 de 27 de Fevereiro de 2019.