segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Sonho adiado

A descentralização vai estar hoje, dia 19 de Fevereiro, mais uma vez em debate na Assembleia Nacional. É um tema que tem sido recorrente na agenda do parlamento através de várias iniciativas legislativas sobre a relação entre o poder central e poder local e que, por se tratar de um país arquipelágico capta a atenção geral das pessoas e facilmente mobiliza paixões.
Todos parecem perfilhar a ideia de que é urgente descentralizar, mas não há acordo sobre “quando e como proceder”. Recentemente, a lei da regionalização que deveria representar um grande passo em matéria de descentralização foi chumbada no parlamento deixando o governo, os deputados e os partidos a acusarem-se mutuamente pelo fracasso da iniciativa. Entretanto, outras propostas de lei sobre os municípios já foram apresentadas sem que aparentemente se tivesse trabalhado para limar as divergências entre as partes e abrir caminho para os compromissos necessários. Face a isso não é claro que mais um debate parlamentar com os holofotes focados sobre todos os protagonistas seja neste momento o melhor passo a dar, se realmente é a descentralização do país que se pretende.
No próximo ano completam-se trinta anos da realização das primeiras eleições autárquicas no país e da restauração das câmaras municipais anteriormente existentes com atribuições e órgãos representativos próprios. Apesar do extraordinário esforço de descentralização então realizado com o reconhecimento dos municípios como comunidades locais com interesses específicos que se diferenciam de outras comunidades e não se esgotam no interesse nacional, a verdade, que é percepção geral, é que Cabo Verde ainda continua altamente centralizado. Nota-se uma centralização que condiciona a tomada de decisões no que respeita ao timing e oportunidade, afecta a distribuição de recursos, impõe custos de contexto avultados e alimenta uma cultura administrativa mais virada para procedimentos do que para resultados que acaba por ser hegemónica no país. Aliás, uma primeira falha que se pode constatar no processo de descentralização é não ter produzido exemplos de administração municipal que não reproduzissem os defeitos centralizadores da administração central. Ou seja, que se tivesse uma administração com uma atitude mais facilitadora na resolução dos problemas dos munícipes e mais sensível às solicitações dos utentes dos serviços.
O crescimento exponencial da Cidade da Praia nos 45 anos de independência reflecte o processo de centralização que mesmo com o aumento do número dos municípios dos primeiros 14 para os actuais 22 não foi possível travar. A Praia concentra 45% do PIB nacional e tem problemas sérios designadamente em matéria de segurança, saneamento e habitação derivados da população que já se aproxima dos duzentos mil habitantes e do influxo de milhares de pessoas que todos dias entram e saem da cidade. A incapacidade ou a falta de vontade acrescida da falta de visão em mudar o modelo de desenvolvimento do país baseado na reciclagem de fluxos externos impediu que fossem criadas bases de sustentabilidade de uma verdadeira descentralização. A redistribuição de recursos para os municípios apesar de ter propiciado benefícios consideráveis para as ilhas nunca poderia ser suficiente para fazer desaparecer as vulnerabilidades e diminuir a precariedade da existência das populações, em particular as rurais. A história das ilhas mostra que momentos de alguma prosperidade no país só aconteceram quando de alguma forma o país pôde exportar, prestar serviços para o exterior ou servir de base logística para ligações entre os continentes.
Não ver isso e viver na ilusão que autonomias locais podem afirmar-se quando se privilegia gestão de ajudas e não criação de riqueza só levaria a que malefícios que eventualmente se desejaria ultrapassar viessem a se instalar de novo. Ao invés de câmaras municipais facilitadoras de actividades nos seus municípios teve-se de lidar com protagonismos de autarcas que se assenhoreavam de iniciativas, servindo-se de recursos via transferências estatais e outras fontes. Ao invés de uma administração municipal de proximidade reproduziu-se o espírito centralista da administração do Estado. Ao invés de órgãos eleitos com foco na resolução dos municípios com medidas de grande alcance deparou-se em muitos casos com uma atitude em relação ao mandato de na prática nunca deixar de fazer campanha e de permitir que o eleitoralismo condicionasse por completo a actividade autárquica.
Em tais condições, os objectivos da descentralização não se realizam, a utilização de recursos é ineficiente e a relação entre o poder central e o poder local tende a navegar por caminhos perversos. Um exemplo de desvios possíveis é a postura reivindicativa em relação ao Estado cujo objectivo central é conseguir meios e justificação para ser repetidamente eleito. Pode levar a derivas identitárias, trazendo à tona sentimentos bairristas e de vitimização, ao mesmo tempo que desvirtua a política local reduzindo-a a estar ou não alinhada com a estratégia de poder do partido no governo. Uma consequência directa desse tipo de desenvolvimento foi a pressão para o envolvimento do governo na política local e no quadro já estabelecido de campanha permanente. Não espanta que em muitos momentos a relação do governo com as câmaras se mostrasse benévola, renitente ou omissa conforme as conveniências eleitorais. E não tardaria muito que o peso para quem estivesse a governar não acabasse por fortemente condicionar quem ficaria no comando das câmaras municipais. Escusado dizer que o grande sacrificado no processo foi a autonomia municipal e a promessa de diversidade de perspectivas e de sensibilidade em relação às questões regionais e nacionais vindas das ilhas e dos municípios que à partida se quis assegurar e salvaguardar no tempo.
São óbvias as insuficiências do processo de descentralização que se manifestam na excessiva centralização do Estado ainda existente, na fragilidade da administração municipal e na real dependência financeira que limita a actuação dos municípios. Têm sido reconhecidas pelos governantes e pelos partidos quando, por um lado, se propõe dar um salto para cima criando regiões e, por outro, se experimenta com outras entidades designadamente sociedades de desenvolvimento regional e zonas económicas especiais (ZEE). Já se sabe qua a regionalização foi adiada e que presentemente está na forja uma lei sobre as ZEE. A exemplo do que aconteceu em outros países, o que no fundo se pretende com iniciativas similares dirigidas para a atracção de investimento externo e a constituição de bases exportadoras de bens e serviços central é contornar obstáculos e fragilidades institucionais ao desenvolvimento. Ter isso claro é fundamental para que na discussão da lei e na criação do quadro institucional próprio não se repitam erros ao tentar acomodar interesses já existentes que de facto as inviabilizem.
Falhou-se na descentralização, porque em muitos aspectos não se quis fazer o rompimento com práticas do passado e a dado ponto ficou impossível voltar atrás. Os custos do relativo fracasso do processo são pesados. Ultrapassá-los não é fácil, mas certamente que será mais difícil se o jogo for não negociar e de seguida posicionar-se para ver sobre quem cai a culpa de não se ter avançado com a descentralização efectiva do país. 

Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 951 de 19 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Dilemas

Na primeira sessão plenária de Fevereiro da Assembleia Nacional reinou, pelo menos por uma vez, o unanimismo nas posições dos sujeitos parlamentares.
Deputados, bancadas parlamentares e governo em uníssono manifestaram o seu apoio à resolução que aprova o acordo de comércio livre continental africano. As razões apresentadas a favor do acordo salientaram o potencial de um mercado constituído por mais de mil milhões de pessoas e referenciaram que para muitos o futuro pertence à África e que depois de criado o mercado continental será possível negociar com outras potências económicas em melhores condições. Um senão do acordo é o facto de obrigar à liberalização de 90% da pauta aduaneira resultando em perdas significativas de receitas para financiamento do Orçamento do Estado. Na sua intervenção no parlamento o Vice-Primeiro-ministro (VPM) Olavo Correia disse que nessa liberalização a abordagem deve ser faseada, progressiva e nunca uma decisão abrupta. Acrescentou que estudos estão a ser feitos nesse sentido para que a integração efectiva de Cabo Verde vá ao encontro dos interesses específicos do país. Fica a dúvida, porquê a pressa em integrar quando até Dezembro de 2019 só 28 países dos 54 signa­tários do acordo o tinham ratificado.
A perda em receitas aduaneiras poderia ser compensada se a integração resultasse em prazo razoável num aumento da troca de bens e serviços com esse mercado continental que fosse vantajoso para o país. Mas é o próprio VPM que reconhece que há falhas na conectividade aérea, marítima e tecnológica e sem isso não há comércio e economia. Também nota que para a integração ser efectiva Cabo Verde tem o desafio adicional de promoção das línguas francesa e inglesa que são essenciais para quaisquer transacções no continente. Resumidamente com a barreira linguística, a falta de conectividade e a quebra prevista nas receitas não é claro os ganhos para o país. O VPM terminou a sua intervenção clamando um estatuto especial para Cabo Verde, porque como pequeno país arquipelágico se for tratado como o Senegal ou a Costa do Marfim jamais conseguirá ter uma integração efectiva. Depois de toda essa argumentação fica difícil justificar o entusiamo nas posições assumidas pelos parlamentares. Os discursos produzidos parecem ter sido ditados mais pelo coração do que pela razão. O problema é que como já foi dito bastas vezes, os países têm interesses e não sentimentos.
O mais normal é que Cabo Verde na implementação da sua estratégia de desenvolvimento procurasse engajar de forma proveitosa os países vizinhos. Historicamente a sua economia sempre esteve ligada à Europa de onde recebe o grosso do investimento directo estrangeiro e que é origem de grande parte da ajuda externa, de uma fatia enorme das remessas de emigrantes e do fluxo turístico que já dinamiza mais de 25% da economia. Para além disso, é para a Europa que vão as exportações e daí é que vem cerca de 90% das importações. Poder expandir o seu comércio com os países africanos constituiria uma mais-valia importante. Exigiria porém que investimentos a vários níveis fossem feitos, entre eles os apontados pelo VPM na sua intervenção para que uma relação com benefícios para as partes fosse estabelecida. Infelizmente nada disso aconteceu. Nem foi possível com Guiné-Bissau que séculos de história, a existência de uma comunidade antiga e facilidade da língua poderiam constituir uma vantagem no estabelecimento de uma base comercial a partir da qual se pudesse dar outros saltos no continente.
A realidade é que ao longo dos anos de independência tem-se ficado pelos discursos e sem qualquer acção consequente. Ou no caso da Guiné, que se permitisse que as relações fossem inquinadas até hoje desbaratando proximidades antigas. Insiste-se em apresentar Cabo Verde como porta de entrada para a Africa Ocidental, mas não é algo que mereça qualquer crédito considerando que não há nenhum esforço dirigido nesse sentido para além de declarações políticas de amizade e boa vizinhança. Se dúvida houvesse quanto à sua influência na região, ela deixou de existir depois de Cabo Verde ter sido ostensivamente ultrapassado na candidatura à presidência da CEDEAO pelo país que em ordem alfabética lhe estava atrás. Recentemente o embaixador de Portugal no Senegal recebeu o prémio de diplomacia económica pelos seus esforços em, segundo as suas declarações ao jornal Público, fazer do Senegal a porta de entrada das empresas portuguesas na África Ocidental. Por aí vê-se o quão é pouco realista vender a imagem de Cabo Verde como a ponte ligando a Europa à CEDEAO.
Há ilhas como Hong Kong e Maurícias que desempenharam esse papel de porta de entrada para capitais e de porta de saída para exportações em relação a países situados no continente e dessa relação conseguindo um grande impulso para o desenvolvimento. É o que fizeram com a China e a Índia. Hoje as Maurícias depois de perderem a relação privilegiada com a Índia fazem-no com dezenas de países africanos para os quais servem de base segura para o investimento directo estrangeiro (IDE) que lhes é dirigido. Souberam desenvolver vantagens competitivas que lhes permitiram ser úteis aos vizinhos e ganhar extraordinariamente enquanto centros industriais, comerciais e financeiros servindo-se em boa parte da sua condição insular.
A dificuldade com Cabo Verde está fundamentalmente em engajar-se numa estratégia de desenvolvimento num quadro que bem pode chamar-se de inserção dinâmica na economia mundial e fazer o desmame da ajuda externa e dos discursos políticos que se tem de fazer quando se vive ou se opta por estar na dependência da generosidade dos outros. Até lá as oportunidades vão passar ao lado, como aconteceu com o AGOA, e dificilmente se vai investir com visão e mostrar perseverança no esforço de dotar o país de vantagens nos domínios certos que o tornem útil aos outros e integrar cadeias de valor globais e regionais. Não se pode é ficar na posição, como diz o VPM, em que sem estatuto especial na zona de comércio livre pouco se ganha com a integração, mas também não participando fica-se sujeito ao que os outros países negociarem entre si e com outras potências económicas.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 950 de 12 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 10, 2020

Tentações de Chefe

Um dos factos marcantes do congresso do PAICV que decorreu no fim-de-semana passado foi a alteração dos estatutos com vista ao reforço do controlo do grupo parlamentar e dos seus deputados.
Nos novos estatutos pretende-se que os candidatos do PAICV às eleições assumam “por escrito, o compromisso de honra de colocar o seu cargo à disposição caso recusem submeter à disciplina de voto em matérias consideradas essenciais ou objecto de orientação expressa da Comissão Política”. Normalmente nos partidos há exigência de disciplina de voto nos processos de aprovação do Orçamento do Estado ou na aprovação de moções de confiança ou de censura que, conforme o desfecho, podem levar à demissão do governo e mesmo à dissolução do parlamento. Noutras situações a vontade política do grupo parlamentar é construída nas jornadas e não simplesmente imposta pelo líder do partido ou por determinação da comissão política. Em geral o recurso a medidas administrativas coercivas para manter a autoridade só acontece em situações de fragilidade dos líderes. No caso presente, pelo contrário, parece mais uma forma ostensiva de mostrar “quem manda”, em linha com o que se passa nesta era de avanço do populismo em que nos partidos e à frente de regimes democráticos chefes estão a substituir líderes.
E é assim porque na realidade o partido não tem como forçar o deputado a colocar o cargo à disposição e a deixar o parlamento. Os deputados da nação e os eleitos municipais são eleitos directamente pelo povo. O facto de o partido constitucionalmente poder propor candidatos não o faz dono dos mandatos e capaz de obrigar o deputado a renunciar ao mandato. Obviamente que qualquer documento escrito nesse sentido pelo candidato que formalize tal obrigação para o deputado não tem absolutamente qualquer valor real. A Constituição e o regimento asseguram que assim seja. Os deputados no parlamento podem organizar-se por grupos parlamentares representativos dos partidos ou escolher serem deputados independentes. Só estão proibidos de mudar de partido para não alterar a configuração política da Assembleia Nacional saída das últimas eleições. Enquanto deputados não inscritos ou independentes mantêm essencialmente os mesmos poderes dos restantes colegas incluindo o poder de apresentar projectos de revisão constitucional. Quanto à renúncia só se verifica mediante declaração apresentada pessoalmente ao presidente da Assembleia Nacional pelo deputado ou assinatura notarialmente reconhecida e depois de anunciada no Plenário pela Mesa. Dificilmente poderá ser resultado de uma carta/compromisso assinado previamente.
Não sendo fácil nem prática a medida de coarctar os deputados pelas razões apontadas há que perguntar porquê assumi-la frontalmente. É evidente que se quis dar uma resposta ao chamado Grupo de Reflexão exagerando os efeitos desestabilizadores no grupo parlamentar produzidos por intervenções ou sentido de voto de alguns deputados enquanto se escondia a incapacidade ou indisponibilidade em produzir diálogo produtivo. A intenção principal terá sido de demonstrar maior controlo do grupo parlamentar não para fazer funcionar o parlamento com maior eficiência no quadro do sistema político e prestigiar a instituição aos olhos do público, mas sim para deixar claro a determinação em fazer da actuação no parlamento um forte instrumento de luta pelo poder. Como se pode ver pela actuação de outros actores políticos tanto em Cabo Verde como em outras democracias “chefes ou aspirantes a chefes” não têm grandes problemas em sacrificar o parlamento, a classe política e os processos democráticos desde que a sua ambição pessoal e desejo de poder se realizem.
A grande crítica à democracia representativa tem sido a falta de ligação dos deputados aos seus eleitores, a submissão dos políticos aos respectivos partidos e a defesa de interesses particulares em detrimento do interesse público. Curiosamente os políticos que se apresentam como mais sensíveis a essa crítica e que ruidosamente se propõem a mudar a situação são os que mais a agravam. Dizem que são por políticas de proximidade, clamam por renovação das hostes partidárias e acusam os outros de corrupção. Para desalojar elites existentes introduzem formas inovadoras de selecção de dirigentes partidários e deputados, aparentemente mais democráticas como sondagens, primárias, quotas e avançam com alterações estatutárias como incompatibilidades, compromissos de honra e alargamento do universos de votantes para supostamente mudar hábitos arreigados de prática política e trazer mais transparência ao processo político. No fim do dia constata-se que ficam à frente de partidos ou de países onde a sua a voz e vontade são únicas, o debate político é praticamente nulo no meio partidário e nota-se mais dependência da classe política em relação ao Estado.
É por não haver uma resposta séria e honesta às questões levantadas pelos cidadãos que a c
rise da democracia se tem agravado e que em consequência se vem verificando a ascensão de movimentos populistas nos extremos do espectro político. De facto, ninguém ganha em tentar aproveitar o descontentamento em relação ao funcionamento das instituições, ou em potenciar o cinismo em relação à política ou em alimentar a desconfiança em relação às elites e todas as entidades de intermediação e em particular os mídias. Os partidos tradicionais que nas democracias seguiram por essa via perderam terreno com o eleitorado e progressivamente deixaram de ser vistos como alternativa da governação. Entrementes os muitos desiludidos com a democracia foram refugiar-se no campo de políticas identitárias e tribais que nada mais podem trazer senão violência e atraso.
Em Cabo Verde o processo está talvez na sua fase inicial, mas já se nota que o desgaste das instituições tem sido acompanhado de algum desvio no funcionamento e na postura dos órgãos de soberania e seus titulares. Também há a percepção de que reformas essenciais em tempo útil não estão a acontecer o que não augura algo positivo quanto mais se aproximam as eleições e o eleitorado precisará ser confrontado com alternativas reais em matéria de política para o desenvolvimento do país. Se a convenção do MpD em Março afinar pelo mesmo diapasão do congresso do PAICV de Fevereiro e simplesmente revolver o caldeirão dos descontentamentos para interesse de uns, dificilmente o país ficará em posição de poder perspectivar o futuro sem que crispação, tribalismos e visão curta ponham em risco a liberdade, a democracia e a abertura económica que conseguiu até agora construir.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 949 de 5 de Fevereiro de 2020.

segunda-feira, fevereiro 03, 2020

Que prevaleça o bom senso

No dia 22 de Janeiro, Dia do Município de S. Vicente, o governo pela voz do ministro de Estado Fernando Elísio Freire anunciou o reforço da descentralização no ano 2020 com a introdução de várias iniciativas legislativas. Ao longo dos meses e supõe-se até Julho, considerando que as eleições autárquicas terão lugar em meados de Outubro, deverão ser apresentados à Assembleia Nacional propostas de lei do novo estatuto dos municípios, do novo regime financeiro das autarquias locais, da nova lei de bases do orçamento municipal, da nova lei de impostos sobre o património e do regime de projectos de mérito diferenciado.
Entretanto, o governo já fez chegar à Assembleia Nacional a proposta de lei que dota a Praia de um estatuto administrativo especial.
Mesmo pondo de lado a questão se as iniciativas são ou não exequíveis ou podem ser levadas a bom termo num quadro temporal razoável, o momento escolhido não pressagia nada de bom. Conseguir, em cima de um pleito autárquico, acordos alargados das forças políticas sobre matéria de poder local e da sua relação com o governo central não é tarefa fácil. Em 2015, um pacote similar de leis incluindo um novo estatuto dos municípios também tinha sido apresentado pelo então governo do Paicv e foi de todo impossível reunir a maioria necessária para ser aprovado. Algo semelhante tinha acontecido cinco anos antes, em 2010, quando uma lei da descentralização que previa a criação de regiões e freguesias foi contestada pelos partidos da oposição por entre outras razões por não ter sido aprovada por maioria qualificada. Se se ajuntar a todo este historial de desencontros em matéria de descentralização os episódios recentes (2019) que marcaram o processo da regionalização e a discussão da proposta de lei no parlamento não é de se esperar muito dessas iniciativas. No mínimo vai-se constatar mais um pico no ambiente de crispação política. O que ainda poderá ser mais custoso é o país ficar sujeito a um quadro institucional criado por leis que não foram suficientemente debatidas nem devidamente ponderadas as opções de políticas nelas consagradas.
O que aconteceu com a lei da regionalização não deve repetir-se. Então ficou claro para todos que os propósitos eleitoralistas eram mais do que evidentes e que por isso o debate sobre toda a matéria ficou prejudicada. Daí que as soluções encontradas, seguindo essa lógica e que fixavam o princípio de ilha-região (desafiando a realidade de regiões sócio-económicas já existentes como S.Antão-S.Vicente, ignorando a fragilidade humana e material das ilhas com população diminuta e não tendo em devida conta a complexidade da situação vivida pelas ilhas alvo de grandes investimentos e de migrações massivas) geraram tanta controvérsia. O interessante é que depois de todo esse exercício contradizia-se o princípio de ilha-região e duas regiões eram criadas na ilha de Santiago. Não é de estranhar que no fim de tudo isso só tenha ficada a dúvida se os posicionamentos dos partidos em relação à proposta de lei eram sobre a substância da mesma ou se se tratava de um jogo para ver quem ficava com o ónus de ter bloqueado a sua aprovação. Também não espanta a perda subsequente de credibilidade das instituições e em particular do parlamento. Nesse sentido, introduzir outra vez leis sobre a descentralização sem uma discussão prévia entre os partidos e entre estes e a sociedade corre-se o risco de só acumular perdas como foi de outra vez.
Como se constatou em vários momentos, 2010, 2015 e 2019, quando propostas de lei sobre a descentralização foram presentes ao parlamento, torna-se claro que não há uma visão coerente e compartilhada sobre a matéria e que se age fundamentalmente para favorecer interesses reais ou tidos como tal de certos segmentos do eleitorado. O facto de essas datas situarem-se próximas das eleições, deixam transparecer a motivação dos governantes do momento e por isso mesmo a reacção de quem estiver na oposição. O resultado é que nunca há a serenidade necessária para discussão de uma matéria que se revela de extrema importância num país que todos reconhecem como altamente centralizado. E quando, por razões nem sempre claras, se chega a algum tipo de consenso, como aconteceu em 2005, também nas vésperas de eleições, e cria-se de uma assentada mais seis municípios o que se consegue é discutível. As dificuldades em matéria de autonomia, sustentabilidade, capacidade de investimento e de gestão numa perspectiva de futuro, que os novos municípios enfrentam, deviam ter sido equacionadas no âmbito de uma lei-quadro de criação de municípios o que até hoje não existe.
Medidas de grande alcance e impacto sobre o país, em particular na forma como se gerem os recursos disponíveis, se faz a redistribuição, se mantém a coesão nacional, se investe na competitividade e se aposta no futuro deviam ser discutidas em sede mais adequada – seja ela no quadro da aprovação de leis ou mesmo de uma revisão da Constituição – para se poder fazer a melhor ponderação e aprofundar as questões resultantes. Quando não se vai por essa via, porque se está pressionado pelo eleitoralismo, a democracia revela-se no seu pior em termos de ineficiência e a credibilidade das instituições e da política sofre. É nesse sentido que a proposta do novo estatutos dos municípios com mudanças na forma de constituição dos órgãos municipais e eleições para uma única lista para a assembleia municipal e assunção pelo primeiro da lista do cargo de presidente da câmara devia ser precedida de uma alteração na Constituição que contemplasse essa solução. A Constituição portuguesa permitiu uma solução similar, mas só depois da revisão constitucional feita em 1997. Insistir em avançar com a lei, sem clarificar em sede constitucional, pode levar ao mesmo impasse sofrido pela lei de igual teor em 2015. Do mesmo modo também, em sede constitucional, podia-se densificar a questão do Estatuto Administrativo Especial para a Praia para se evitar as controvérsias à volta da lei e suprir a deficiência original deixada pelo legislador constituinte que ao aditar do artigo não o acompanhou de uma justificação.
Por estas e outras razões parece pertinente que se faça proximamente uma revisão da Constituição. Desde Maio de 2015 que já é possível avançar com uma revisão ordinária da Constituição. Em causa está a descentralização que é uma questão central do país e que merece ser tratada em tudo o que implica com a seriedade e as devidas cautelas que se aconselham num país arquipélago de parcos recursos e diminuta população. É fundamental manter a ideia global do país ao mesmo que se assegura a diversidade propiciada pelas suas ilhas que o enriquece culturalmente e potencia o desenvolvimento do todo nacional. O consultor das Maurícias Dev Chamroo, ao observar certas derivas já tinha alertado que “se Cabo Verde acreditar que é 10 ilhas diferentes não vai a lado nenhum”. Por isso, todo o processo de descentralização incluindo a questão do Estatuto Administrativo Especial da Praia, que originalmente era inseparável das opções em matéria de regionalização, deve ser discutido aprofundamento em sede própria, com serenidade e sem pressão eleitoral em cima. É fundamental que, uma vez por todas, prevaleça o bom senso e que ao invés de se multiplicar ineficiências se tenha um país mais ágil, mais competitivo e com visão para agarrar as oportunidades.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 948 de 29 de Janeiro de 2020.