segunda-feira, junho 29, 2020

Convergência vs. desunião

O SARS-Cov-2 por ser um vírus que potencialmente a todos pode infectar constituiu um candidato sério à categoria de ameaça existencial que poderia unir a humanidade. Assim pensaram muitos optimistas que viram na conjugação de esforços indispensável para se dar combate efectivo ao vírus o prelúdio de uma acção conjunta de todos os povos e nações que depois poderia ser dirigida para enfrentar os efeitos das alterações climáticas, lutar contra a pobreza global e criar as condições para paz e justiça no mundo.
Para os pessimistas, porém, a reacção inicial de muitos países em dar uma resposta nacional à epidemia chegando mesmo a proibir exportações de medicamentos, de equipamentos médicos e de materiais de protecção, foi indício evidente que afinal nada mudou e que interesses mesquinhos e o egoísmo continuam a prevalecer nas relações humanas.
A verdade é que, com as incertezas actuais quanto à duração da pandemia, quanto à rapidez com que se pode vir a desenvolver vacinas e estabelecer tratamento médico para os casos de infecção e também sobre as consequências sócio-económicas da crise, ninguém está em posição de prever qual será o futuro a médio prazo. Chances há que afinal os realistas poderão ter razão suficiente e que existe espaço para convergências num quadro de diálogo tanto a nível nacional como internacional, apesar de se conhecerem forças apostadas na divisão e em lançar uns contra os outros em nome da luta contra a desigualdade, a xenofobia e o racismo. O problema é saber para onde penderá a balança quando ainda a esfera pública dá sinais de bloqueio devido a guerras tribais entre os partidos, ao fomento do ódio e ao uso sistemático da vitimização e do ressentimento como formas de protesto e de luta política.
Provavelmente a evolução das democracias vai depender muito da forma como se ultrapassar a actual crise sanitária. Se depois de todos os sacrifícios passados rapidamente se regressar aos comportamentos e políticas habituais dificilmente não haverá mais polarização e propensão para dar ouvidos a populismos tanto da esquerda como da direita. Se pelo contrário se for por um outro “contrato social”, que focalize a atenção da sociedade em ganhar mais resiliência contra choques externos, em distribuir melhor a prosperidade criada e em criar mais oportunidades para todos, mais bem preparado se poderá estar para enfrentar crises futuras. É algo assente que o coronavírus não vai ser eliminado a curto ou médio prazo e que se terá de conviver com ele por algum tempo sujeitando-se todos a constrangimentos que se mostrarem necessários para conter surtos e quebrar cadeias de contágio. O nível elevado de colaboração que se terá de exigir só poderá ser mantida numa base de confiança entre o governo e os cidadãos alicerçada em políticas públicas nas quais a generalidade das pessoas veja vantagens reais e uma hipótese de futuro para as novas gerações.
Infelizmente os efeitos da pandemia sobre as pessoas em muitos países têm favorecido mais razões para desunião do que incentivos para um diálogo mais alargado na sociedade. A covid-19 torna mais saliente os males sociais, entre eles as posturas discriminatórias das instituições, o acesso diferenciado aos cuidados de saúde e as insuficiências habitacionais. É facto assente que a doença expôs por todo o lado com notável crueza a vulnerabilidade das populações e a precariedade da vida das pessoas. Nas condições específicas dos Estados Unidos da América veio à superfície com particular força o racismo sistêmico que ainda subsiste e cujos efeitos foram sentidos tragicamente no número desproporcional de mortes de afro-americanos devido à covid-19.
A morte lenta de George Floyd sob a pressão do joelho do agente da polícia vista por milhões de pessoas na televisão e nas redes sociais em todo o mundo acabou por encapsular os abusos e a discriminação que se vêm arrastando há séculos. Os protestos que se seguiram em todo o mundo realçaram o quão universal são os valores da liberdade e da igualdade e como se reage em choque quando a América falha em os seguir. Já não tão positivo foi a tentação de usar localmente esses protestos para fazer da vitimização e do ressentimento as vias para exprimir e denunciar condições discriminatórias e de reduzida oportunidade com que minorias, imigrantes e africanos se deparam em vários países, designadamente na Europa. O “estado de guerra” que daí resulta impede o diálogo e prejudica a convergência necessária dos vários grupos sociais para que individualmente e institucionalmente todos se ponham à altura dos princípios e valores civilizacionais nos quais dizem rever-se.
Cabo Verde não ficou de fora em toda esta movimentação. Também aqui está-se a contestar recorrendo à vitimização e ao ressentimento. Para dar corpo à vitimização esforça-se por trazer ao de cima o esclavagismo, quando é óbvio que a experiência cabo- verdiana é diferente das ilhas do Caribe e do Brasil e até de São Tomé e Príncipe. De facto, não há sistema de plantações com suas «casas grandes e senzalas» que aguente no regime de chuvas escassas de Cabo Verde, pontuado por secas e fomes sucessivas. Também procura-se cultivar o ressentimento e atirar as ilhas umas contra as outras servindo-se de narrativas que fazem de umas agentes de conspiração na discriminação e subalternização de outras. O facto de ao longo de cinco séculos na diversidade das nove ilhas ter emergido uma nação, uma língua e uma cultura não parece importar nada. Entretanto perde-se a oportunidade para a convergência a meio de uma crise cujos efeitos terríveis já lançaram o país numa recessão nunca antes vista.
Sem um esforço colectivo de encontrar o melhor caminho para o mundo pós covid-19 a disputa vai realmente quedar-se por quem fica com o controlo e a distribuição dos recursos. Nesse sentido a configuração social e económica com as suas desigualdades, falta de oportunidades e baixa produtividade só poderá autorreproduzir-se pois o mais provável é que irão repetir-se os modelos que num e noutro momento foram aplicados em Cabo Verde. Sem um olhar para a criação de riqueza não se vai ter a preocupação em potenciar o que já existe e funciona para diminuir o impacto da recessão e os seus efeitos no crescimento e no emprego.
Com a possibilidade de criar air bridges como propõe a TUI nos voos do Reino Unido para a ilha do Sal associados ao turismo all inclusive existente, por sua natureza mais restrito à zona dos hotéis, provavelmente haverá condições para se retomar a dinâmica económica com os operadores que são responsáveis por cerca de 80% do fluxo turístico, conquanto tudo seja bem planeado e gerido com segurança sanitária e o mínimo de risco de contágio para população. Ainda se poderá aproveitar das exigências especiais do momento para regular convenientemente a prestação de serviços aos hotéis e potenciar o impacto na economia local. No mesmo sentido de criar condições para o aumento da riqueza nacional dever-se-á dar maior importância à organização de uma logística de transporte de carga entre as ilhas de forma a melhorar a eficiência do mercado interno e por essa via se estimular a produção nacional de bens alimentares na agricultura, pecuária e pesca.
Ênfase na criação de riqueza só pode vir de uma atitude que rejeita a tentação fácil de vitimização para exigir reparação por males reais e imaginários e recusa alimentar ressentimento para extrair valor dos outros. Convergência num quadro plural e não de desunião deve ser a opção a ser feita. A covid-19 veio relembrar a nossa humanidade comum e os desafios que tem que ser enfrentados não num jogo de soma nula, mas sim com a convicção de que todos podem ganhar.
Humberto Cardoso 
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 969 de 24 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 22, 2020

Culpar os outros

Mais de duas semanas depois do fim do estado de emergência na ilha de Santiago a situação da Covid-19 em Cabo Verde não é a mais rósea. Os números de contágio quase de duplicaram passando de 406 casos no dia 29 de Maio para 781 no dia 16 de Junho.
No mesmo período confirmaram-se novos casos em S. Vicente e Boa Vista e os primeiros na Ribeira Grande de Santo Antão, Ribeira Brava em São Nicolau e em Santa Catarina de Santiago. Autênticos surtos verificaram-se em Santa Cruz e na ilha do Sal que elevaram em poucos dias o número de casos positivos nessas duas ilhas a 74 e 71 respectivamente, segundo dados do dia 16 de Junho. As razões para isso são múltiplas, mas certamente que não se resumem apenas à falta de colaboração ou de sentido de responsabilidade de franjas da população.
Aparentemente o processo de desconfinamento não correu de melhor forma e terá contribuído para isso a facilitação da circulação de pessoas pelas ilhas, o desejo de maior interacção social depois do período restritivo e algum descaso da população porque não se verificaram as piores previsões. Neste particular é de notar que a maior parte dos casos têm sido assintomáticos ou com sintomas leves e que mesmo em termos de óbitos não se atingiram os números alarmantes de outros países. Os casos de mortes, até agora sete, são apresentados como tendo entre as causas comorbidades detidas pelos pacientes e não qualquer sobrecarga ou deficiência nos cuidados prestados. Um outro factor a ter em conta é a ânsia das autoridades talvez preocupadas com a economia e a perda de rendimento das pessoas em fazer crer que a restauração da normalidade não tarda muito. Com a ideia de que se terá ganho a luta contra a Covid-19 é mais difícil para as pessoas cumprirem na íntegra as recomendações de distanciamento social e as transgressões tendem a multiplicar-se particularmente entre os jovens como se pode constatar dos dados estatísticos dos casos confirmados apresentados por faixa etária.
Processos de desconfinamento noutros países pelas mesmas ou outras razões foram acompanhados de surtos e picos de contágio. Em certos casos de maior gravidade como na China e na Coreia do Sul houve quem tenha falado numa segunda vaga da Covid-19. Poucos dias atrás a OMS veio reafirmar que ainda se trata da primeira vaga e que para enfrentar o recrudescimento de casos positivos a resposta das autoridades nunca deve ser complacente nem cair em triunfalismos. O coronavírus está bem presente, ninguém o eliminou e tem que se aprender a conviver com essa realidade até que apareçam vacinas ou se identificam tratamentos para as múltiplas complicações por ele provocadas.
Nesse sentido, além do rigor em manter restrições diversas com vista a impedir proximidade excessiva das pessoas, as autoridades devem melhorar continuamente a capacidade de testar, seguir e rastrear indispensável para se conter a transmissão do vírus. A colaboração das pessoas é essencial para o sucesso no combate ao vírus e no processo de retoma da economia. Para o conseguir como diz ao jornal Financial Times o presidente da câmara de Seul, a capital da Coreia do Sul, há que, a par de medidas de prevenção e de mitigação necessárias, mostrar humildade, ser capaz de recentrar posições e até de voltar atrás nas medidas tomadas e admitir erros.
A tentação oficial em Cabo Verde de apontar a falta de colaboração das pessoas como a causa principal das falhas no combate ao coronavírus não beneficia ninguém. Aconteceu no caso do surto do vírus na Boa Vista e está acontecer actualmente com os surtos nas ilhas de Santiago e do Sal. De facto, a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso nesse e noutros domínios da vida do país é sempre do governo. Governar não significa dividir responsabilidades e assumir que cada um faz a sua parte. De quem governa exige-se liderança com vista à criação de vontades e mobilização de energia e de recursos para consecução dos objectivos traçados. Um ingrediente essencial nisso tudo é a confiança que, para ser preservada, particularmente quando se enfrenta um inimigo existencial e desconhecido como o coronavírus SARS-cov-2, se exige humildade, capacidade de reconhecer erros e abertura para rever decisões erradas.
A verdade é que se levou demasiado tempo a ir atrás do vírus e não se fizeram testes suficientes e numa perspectiva epidemiológica que pudessem dar uma visão mais clara do que se passava em cada uma das ilhas antes de se pôr fim às restrições na circulação das pessoas. Também da mesma forma como não se ouviram durante demasiado tempo as vozes que diziam para testar, testar, não se prestou a devida atenção aos que diziam que num país de nove ilhas não era racional ter-se um único laboratório para testes de Covid-19 à espera de amostras vindas por barco ou avião fretado das outras ilhas. Noutros países mobilizaram-se universidades, profissionais de saúde na reforma e investigadores nos institutos e faculdades para participar do esforço que todos reconhecem ser fundamental de testar, seguir e rastrear. Em Cabo Verde, há umas duas semanas que se acrescentou equipamento ao laboratório do INDP em S. Vicente para poder fazer testes, só agora é que se está a falar em equipar a UNICV com um RT-PCR e quanto a prover o país de recursos humanos preferiu-se usar ajuda externa do Luxemburgo para trazer uma equipa cubana.
As declarações de estado de alerta, contingência, calamidade e por fim de emergência em Março, Abril e Maio tinham como objectivo primeiro ganhar tempo para o país se preparar para enfrentar a pandemia, impedir o colapso do sistema de saúde e adequar-se ao “novo normal” que se iria instalar de convivência com o vírus, das novas relações entre as pessoas e da nova realidade de um mundo pós-covid. Era de todo o interesse que políticas nesse sentido fossem consistentes e eficazes para granjear a colaboração de todos e para potenciar o esforço que seria exigido para adaptar o país às novas circunstâncias e evitar a ilusão de que se pode voltar à normalidade anterior. O facto de perante novas falhas se estar outra vez a apontar o dedo às pessoas em vez de avaliar onde a liderança do processo ficou aquém do que era esperado e outra vez estar-se a “ir atrás do vírus” como acontece na ilha do Sal, é caso para se interrogar se alguma vez se vai deixar de fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes.
Mais de duas semanas depois do fim do estado de emergência na ilha de Santiago a situação da Covid-19 em Cabo Verde não é a mais rósea. Os números de contágio quase de duplicaram passando de 406 casos no dia 29 de Maio para 781 no dia 16 de Junho. No mesmo período confirmaram-se novos casos em S. Vicente e Boa Vista e os primeiros na Ribeira Grande de Santo Antão, Ribeira Brava em São Nicolau e em Santa Catarina de Santiago. Autênticos surtos verificaram-se em Santa Cruz e na ilha do Sal que elevaram em poucos dias o número de casos positivos nessas duas ilhas a 74 e 71 respectivamente, segundo dados do dia 16 de Junho. As razões para isso são múltiplas, mas certamente que não se resumem apenas à falta de colaboração ou de sentido de responsabilidade de franjas da população.
Aparentemente o processo de desconfinamento não correu de melhor forma e terá contribuído para isso a facilitação da circulação de pessoas pelas ilhas, o desejo de maior interacção social depois do período restritivo e algum descaso da população porque não se verificaram as piores previsões. Neste particular é de notar que a maior parte dos casos têm sido assintomáticos ou com sintomas leves e que mesmo em termos de óbitos não se atingiram os números alarmantes de outros países. Os casos de mortes, até agora sete, são apresentados como tendo entre as causas comorbidades detidas pelos pacientes e não qualquer sobrecarga ou deficiência nos cuidados prestados. Um outro factor a ter em conta é a ânsia das autoridades talvez preocupadas com a economia e a perda de rendimento das pessoas em fazer crer que a restauração da normalidade não tarda muito. Com a ideia de que se terá ganho a luta contra a Covid-19 é mais difícil para as pessoas cumprirem na íntegra as recomendações de distanciamento social e as transgressões tendem a multiplicar-se particularmente entre os jovens como se pode constatar dos dados estatísticos dos casos confirmados apresentados por faixa etária.
Processos de desconfinamento noutros países pelas mesmas ou outras razões foram acompanhados de surtos e picos de contágio. Em certos casos de maior gravidade como na China e na Coreia do Sul houve quem tenha falado numa segunda vaga da Covid-19. Poucos dias atrás a OMS veio reafirmar que ainda se trata da primeira vaga e que para enfrentar o recrudescimento de casos positivos a resposta das autoridades nunca deve ser complacente nem cair em triunfalismos. O coronavírus está bem presente, ninguém o eliminou e tem que se aprender a conviver com essa realidade até que apareçam vacinas ou se identificam tratamentos para as múltiplas complicações por ele provocadas.
Nesse sentido, além do rigor em manter restrições diversas com vista a impedir proximidade excessiva das pessoas, as autoridades devem melhorar continuamente a capacidade de testar, seguir e rastrear indispensável para se conter a transmissão do vírus. A colaboração das pessoas é essencial para o sucesso no combate ao vírus e no processo de retoma da economia. Para o conseguir como diz ao jornal Financial Times o presidente da câmara de Seul, a capital da Coreia do Sul, há que, a par de medidas de prevenção e de mitigação necessárias, mostrar humildade, ser capaz de recentrar posições e até de voltar atrás nas medidas tomadas e admitir erros.
A tentação oficial em Cabo Verde de apontar a falta de colaboração das pessoas como a causa principal das falhas no combate ao coronavírus não beneficia ninguém. Aconteceu no caso do surto do vírus na Boa Vista e está acontecer actualmente com os surtos nas ilhas de Santiago e do Sal. De facto, a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso nesse e noutros domínios da vida do país é sempre do governo. Governar não significa dividir responsabilidades e assumir que cada um faz a sua parte. De quem governa exige-se liderança com vista à criação de vontades e mobilização de energia e de recursos para consecução dos objectivos traçados. Um ingrediente essencial nisso tudo é a confiança que, para ser preservada, particularmente quando se enfrenta um inimigo existencial e desconhecido como o coronavírus SARS-cov-2, se exige humildade, capacidade de reconhecer erros e abertura para rever decisões erradas.
A verdade é que se levou demasiado tempo a ir atrás do vírus e não se fizeram testes suficientes e numa perspectiva epidemiológica que pudessem dar uma visão mais clara do que se passava em cada uma das ilhas antes de se pôr fim às restrições na circulação das pessoas. Também da mesma forma como não se ouviram durante demasiado tempo as vozes que diziam para testar, testar, não se prestou a devida atenção aos que diziam que num país de nove ilhas não era racional ter-se um único laboratório para testes de Covid-19 à espera de amostras vindas por barco ou avião fretado das outras ilhas. Noutros países mobilizaram-se universidades, profissionais de saúde na reforma e investigadores nos institutos e faculdades para participar do esforço que todos reconhecem ser fundamental de testar, seguir e rastrear. Em Cabo Verde, há umas duas semanas que se acrescentou equipamento ao laboratório do INDP em S. Vicente para poder fazer testes, só agora é que se está a falar em equipar a UNICV com um RT-PCR e quanto a prover o país de recursos humanos preferiu-se usar ajuda externa do Luxemburgo para trazer uma equipa cubana.
As declarações de estado de alerta, contingência, calamidade e por fim de emergência em Março, Abril e Maio tinham como objectivo primeiro ganhar tempo para o país se preparar para enfrentar a pandemia, impedir o colapso do sistema de saúde e adequar-se ao “novo normal” que se iria instalar de convivência com o vírus, das novas relações entre as pessoas e da nova realidade de um mundo pós-covid. Era de todo o interesse que políticas nesse sentido fossem consistentes e eficazes para granjear a colaboração de todos e para potenciar o esforço que seria exigido para adaptar o país às novas circunstâncias e evitar a ilusão de que se pode voltar à normalidade anterior. O facto de perante novas falhas se estar outra vez a apontar o dedo às pessoas em vez de avaliar onde a liderança do processo ficou aquém do que era esperado e outra vez estar-se a “ir atrás do vírus” como acontece na ilha do Sal, é caso para se interrogar se alguma vez se vai deixar de fazer as mesmas coisas e esperar resultados diferentes.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 968 de 17 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 15, 2020

Política habitacional omissa

A problemática da habitação vai mais uma vez ao parlamento esta quarta-feira. Pela forma como o palco foi montado nas últimas semanas com denúncias na comunicação, visitas de deputados da nação e cenas de demolição de barracas sob protecção ostensiva da polícia e de militares, pode-se imaginar que o resultado do debate parlamentar não será muito diferente do já verificado em sessões anteriores.
As exigências a serem apresentadas para discussão, segundo declaração de deputados à imprensa, resumem-se à “distribuição de lotes para as pessoas de pouco renda, distribuição de lotes aos privados para a venda ou então o próprio Estado construir ou disponibilizar casas para venda”.
O direito à habitação, no entendimento geral, significaria que as pessoas teriam direito a casa própria e também que o Estado e as autarquias deveriam assumir a responsabilidade de proporcionar os meios para a sua efectivação. O facto de até agora essa política ser uma das principais razões pela situação de défice habitacional no país, pela existência de bairros degradados nos principais centros urbanos e pelo aparecimento das barracas nas ilhas da Boa Vista e Sal, parece não incomodar. Insiste-se na ideia peregrina de que todo o cabo-verdiano deve ter direito a um lote de terreno e à possibilidade de por si próprio nele construir a sua residência sem olhar às consequências que vão se acumulando ano após ano.
Uma das dissonâncias cognitivas produzidas por esse “direito inalienável” é a separação que na prática se faz entre habitação e economia como se fossem dois mundos à parte. Por um lado, não se vê que a edificação de casas constitui uma parte substancial do sector da construção civil e que como outros sectores deve poder orientar-se pela procura de ganhos de produtividade e de qualidade e ainda pela maior eficiência na utilização dos recursos humanos e físicos disponíveis. Resumindo, a informalidade na construção não deve ser norma. Por outro lado, não há aparentemente compreensão imediata que para se ter casa é preciso ter rendimento, seja para amortizar o financiamento de casa própria, seja para pagamento da renda. Ou seja, não é viável ter-se uma política de habitação separada de uma política de estruturação e modernização do sector da construção civil e de políticas de criação de emprego sustentáveis para a generalidade da população.
O chamado projecto Casa para Todos é o exemplo acabado do que acontece quando, por razões espúrias, não se dá atenção ao óbvio. Criou-se o projecto de habitação social, mas também com ofertas para as classes média e média baixa na base de um crédito de natureza comercial, mas com juros bonificados pelo Estado português. Como contrapartida ao subsídio, as obras seriam feitas por consórcios maioritariamente portugueses e utilizando material de construção de origem portuguesa até 60% do total. Pelo que se vê, o projecto não resultou da aplicação da poupança interna, não serviu para estimular e estruturar o empresariado nacional e não foi concebido como gerador de empregos. Aconteceu o contrário, o país agravou significativamente a sua dívida externa, o empresariado do sector de construção saiu fragilizado e por todo o país ficaram milhares de apartamentos por vender e por arrendar porque, ou por razões de custo, de localização ou da adequação dos imóveis, não havia mercado para os absorver.
Ainda se criou um banco, o Novo Banco, para completar a ilusão de que o projecto era racional e era viável. Como podia-se prever, logo à nascença dessa instituição, em 2010, o desfecho não foi o melhor. Quando finalmente se disponibilizaram os apartamentos já não havia o Novo Banco para financiar créditos aos eventuais compradores. Considerando o timing de lançamento do projecto Casa para Todos e da criação do Novo Banco nas vésperas de eleições legislativas, é natural pensar que existissem outras motivações por detrás. A verdade, porém, é que o défice habitacional continuou e as barracas aumentaram enquanto alguns milhares de apartamentos do projecto até agora permanecem sem destino certo.
Estranhamente, ainda hoje não há certeza de que o país reflectiu devidamente sobre a dimensão do erro cometido. Mesmo depois da dívida pública ter atingido os três dígitos, de ter aumentado o número de barracas e de se ser obrigado cinco anos depois a conviver com o espectáculo de prédios vazios e apartamentos sem compradores, ainda no confronto político se trocam acusações sobre quem é o culpado por ter feito e quem é culpado por não ter vendido. As questões de fundo sobre a política de habitação continuam sem resposta e persistem equívocos em como proceder para gerar riqueza, criar empregos e garantir rendimento sustentável às famílias. Também nota-se a tentação de se regressar sempre às opções e soluções que, por experiência repetida, conduzem a elefantes brancos e a ineficiências diversas e ao tipo de vulnerabilidades e de precariedade que, quando acontecem secas e outros choques externos, facilmente se revelam. É como se o país não tivesse capacidade de aprender, de alterar o rumo e de inovar a partir dos próprios erros, mesmo em situações extremas.
Um exemplo disso é a questão do emprego. Com a dinâmica do crescimento dos últimos anos, em particular do turismo e de actividades conexas, o desemprego aproximou-se da barreira que o podia fazer cair para um dígito. Provavelmente os empregos podiam ser maiores e mais qualificados se houvesse um esforço mais dirigido para se conseguir um maior impacto do turismo e melhorar os recursos humanos. Isso, porém, seria incompatível com discursos e políticas que dizem querer combater o desemprego, mas opõem-se ao chamado êxodo rural, e querem fixar as populações nas ilhas quando se sabe que para criar riqueza tem que se aumentar a produtividade e direcionar a mão-de-obra para os sectores mais produtivos da indústria e dos serviços. Também deve-se proporcionar mão-de-obra qualificada nos pontos de maior investimento e nesse sentido criar condições para migrações internas e programar formação profissional de forma a se ter mão-de-obra competitiva a nível global em sectores emergentes, particularmente nos domínios da tecnologia de informação e de comunicação.
Uma política habitacional adequada é essencial para se conjugar recursos financeiros físicos e humanos e obter o maior retorno possível em termos de criação de riqueza e de emprego. Infelizmente a debandada que se verifica actualmente em direcção às ilhas de origem na sequência da paralisia da economia ligada ao turismo e à aviação deixa antever que não se conseguiu criar nos jovens estabilidade e sentido de pertença essenciais para o sucesso de uma política de habitação nas ilhas turísticas. Se, de facto, está-se de passagem, não espanta que proliferem barracas e falhem as tentativas de produzir um crescimento urbano ordeiro e inclusivo. Da mesma forma, mantendo-se aliciante a ideia de trabalhar para o Estado, não há como evitar o crescimento descontrolado dos bairros particularmente na capital do país.
O grande desafio que se coloca é como harmonizar políticas de crescimento e de criação de emprego com a política de habitação de forma a garantir maiores ganhos para o país, diminuir a vulnerabilidade e precariedade das populações e manter viva a diversidade cultural enriquecedora das diferentes ilhas. Até agora tem imperado o desnorte nestas matérias com todas as consequências que se conhecem. Talvez seja desta que finalmente se trace um novo rumo que traga prosperidade e uma vida melhor para todos. 
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 08, 2020

Desafios do pós-confinamento

Depois de dois meses em estado de emergência a ilha de Santiago finalmente sai do confinamento domiciliário imposto à população e vê diminuídas muitas das restrições à actividade económica. Boa Vista duas semanas antes tinha sido aliviada das exigências do estado de emergência enquanto S.Vicente e as ilhas sem casos confirmados de covid-19 viram-se libertas das medidas de excepção a 2 de Maio.
Sente-se o suspiro de alívio do país, mas de facto não há muito espaço para baixar a guarda. O aparecimento dos primeiros casos na ilha do Sal e a importação de outro em S.Vicente vindo do Sal vieram relembrar que o fim do estado de emergência não significa que o país esteja livre do coronavírus.
Nem tão pouco implica que o desconfinamento e a diminuição de constrangimentos na circulação de pessoas constitui o regresso à normalidade social antes vivida. De facto, a pandemia persiste em todo o mundo e a possibilidade de surtos de coronavírus vai existir até que se crie uma vacina ou que a população de outra forma ganhe imunidade. Em qualquer dos casos não é algo que vai acontecer amanhã – as previsões apontam para mais de ano e meio – e por isso é fundamental que se adopte a atitude certa e se aprenda a conviver com o coronavírus, evitando contágio a nível individual, identificando surtos e movendo-se de forma rápida e efectiva para desmantelar eventuais cadeias de transmissão.
Com o fim do estado de emergência terminou uma etapa que a exemplo do que aconteceu noutros países procurou-se ganhar tempo para proteger os mais vulneráveis e para não sobrecarregar os serviços de saúde com um fluxo insustentável de pessoas infectadas. O quadro de excepção permitiu impor o confinamento das pessoas, indispensável para quebrar cadeias de contágio e conter a propagação do vírus, mas não para o eliminar. Nesse sentido parecem deslocadas e contraproducentes quaisquer manifestações de triunfalismo vindas de onde vierem. Tendem a fazer baixar a guarda da população, quando precisamente se quer que as pessoas mantenham um nível de alerta necessário em relação ao vírus e mostrarem-se dispostas a acatar as regras de distanciamento social para impedir a transmissão.
Tratando-se apenas de uma primeira batalha numa guerra que possivelmente vai ter mais episódios, deveria ser fundamental não se fazer aproveitamentos que pudessem prejudicar a colaboração essencial que de todos se espera para realmente se dominar a covid-19. Infelizmente não foi o que se viu na última sessão plenária da Assembleia Nacional em que o “regresso da política” aconteceu da pior forma. O surgimento de novos casos diariamente em Santiago e a eventualidade de nas outras ilhas virem a surgir surtos do vírus devia levar a uma atitude mais sóbria capaz não só de focalizar a atenção de todos nos efeitos da pandemia como também de manter a confiança nas autoridades sanitárias. Está-se num ano de eleições e é de evitar posições partidárias extremadas que podem interferir com a gestão da pandemia, como se vê acontecer nos Estados Unidos e no Brasil.
É assumido que à crise sanitária da covid-19 vai seguir uma crise económica e social. Crescimento negativo e desemprego resultante da paralisação da economia em todos os países afectados pelo coronavírus colocam desafios especiais de como gerir a quebra nos rendimentos da generalidade das pessoas, as incertezas trazidas pelo desaparecimento de certos tipos de negócios e pela suspensão por tempo desconhecido de outros, o aumento da pobreza e da precariedade de existência de muitos e as interrupções na vida académica e profissional de jovens a entrar na idade adulta. São questões complexas que só no quadro da Democracia e do pluralismo terão uma chance de encontrar soluções que respeitando a liberdade e o primado da lei tragam respostas para a necessidade de criar riqueza, garantir inclusão e limitar as desigualdades. Para isso, porém, é preciso ter partidos cientes das suas diferenças de políticas, mas capazes de construir entendimentos para se mitigar os efeitos da pandemia na economia e preparar o quadro de uma retoma. Ganhos de curto prazo ou a expensas do outro não têm aqui lugar porque a verdade é que o mundo pós/covid-19 vai ser muito diferente daquele que existia antes da pandemia e vai exigir políticas e investimentos que realmente capturem o futuro.
Olhando para outros países, vê-se por exemplo a União Europeia com o seu Fundo de Recuperação de 750 mil milhões de euros e a aposta na criação de riqueza vai investir nas tecnologias verdes, nas infraestruturas e na habitação, na reorganização e melhoria da resiliência das cadeias de abastecimento, no sistema de saúde para fazer face a crises futuras e especialmente no capital humano para os jovens se prepararem para um mundo em constante mudança. O objectivo como disse a Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen é uma recuperação colectiva da Europa e a construção de um futuro comum em que ninguém fica para trás. Em Portugal, já está em discussão um plano que também vai completar infra-estruturas físicas e digitais, acelerar a transição digital na administração pública, escolas e universidades, potenciar investimento no sistema de saúde, apoiar redes logísticas na agricultura e na indústria e apostar nas energias renováveis e na exploração de recursos minerais. Como diz o mentor do plano, o engenheiro António Costa e Silva, há que acabar com a ladainha que o país não tem recursos. O que se tem de fazer é desenhar políticas públicas para criar valor, gerar riqueza e emprego.
Em Cabo Verde também um exercício de planificação do futuro terá que ser feito para que o país possa perspectivar retoma da economia, recuperar-se do desemprego actual e abrir o caminho para o futuro. A crise da covid-19 deverá servir para abrir os olhos de todos para os resultados das políticas aplicadas nos 45 anos de independência e que deixaram o país na situação de precariedade e de vulnerabilidade que hoje é impossível de ignorar. Insistir em fazer as mesmas coisas e em repetir as políticas do passado certamente não irão dar resultados diferentes dos que actualmente se constatam e que são manifestamente inadequados. Também a incapacidade de chegar a acordos entre os partidos em matérias de políticas de médio e longo prazo será um grande empecilho para se fazer diferente desta vez. Por último, não querer falar à Nação honestamente sobre os problemas do país e persistir nas visões fantasistas só vai continuar a alimentar o populismo, a semear a divisão e a nunca se poder colher e direcionar a energia necessária para levar o país para um outro rumo que finalmente lhe permita vencer a pobreza ancestral que sempre caracterizou estas ilhas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 966 de 03 de Junho de 2020.

segunda-feira, junho 01, 2020

O regresso da política

Passados os momentos piores da pandemia da covid-19, assiste-se em muitos países ao recrudescer da actividade política com as polarizações de sempre e em certos casos com as costumeiras ameaças de bloqueio.
O ambiente de consenso próprio de situações de emergência já começou a ceder lugar a desacordos em várias matérias designadamente como e quando proceder ao desconfinamento e à abertura da economia. A agitação social e política que se vê, por exemplo, na Espanha, Itália, Reino Unido e Estados Unidos espelha essa dinâmica. Depois das subidas de popularidade que quase inevitavelmente quem está no governo a gerir a crise acaba por obter, nota-se a preocupação da oposição em ganhar outra vez protagonismo e em cumprir plenamente a sua função de fiscalização do governo e de promotor de ideias, perspectivas e políticas diferentes das defendidas pelo executivo. E é bom que assim seja, porque mesmo em estado de excepção não há suspensão da democracia. Para além disso o desafio de construir o futuro no pós-covid-19 tornou-se mais complexa e precisa da participação de todos, mas de uma forma livre e plural.
Estados de emergência, particularmente aqueles provocados por ameaças existenciais do tipo que o coronavírus representa, convidam a um certo unanimismo e servem de pretexto para derivas autoritárias. Com o foco em salvar vidas, tende-se a inibir perspectivas diferentes das preconizadas por quem está a dirigir os esforços de toda a colectividade. Igualmente com a disponibilização de todos os meios possíveis, em nome de maior eficácia na mitigação dos efeitos da pandemia, surge a tentação de fazer da concentração pontual de poder algo mais durável e talvez permanente. É de esperar que a tendência seja essa na medida em que estados de excepção, pela sua própria natureza, invariavelmente levam à deslocação de poder para o executivo na proporção inversa em que se vê diminuir o poder do parlamento e se verifica a compressão dos direitos dos cidadãos. Por definição, são estados temporários mas ninguém garante que não apareça quem queira tornar permanente uma nova configuração das competências dos órgãos de soberania com prejuízo para o parlamento, poder judicial e para os próprios indivíduos.
Isso está visivelmente a acontecer na Hungria de Viktor Orban com a subalternização do parlamento, com as tentativas de submissão dos tribunais e os ataques às minorias. Nos Estados Unidos e no Brasil está-se a ver como nenhuma instituição vai ficar ilesa de todos os ataques populistas e demagógicos que lhes são dirigidos diariamente. Mesmo nas democracias onde não são perceptíveis ataques ao Estado de Direito a coberto da “guerra” ao coronavírus é notório que no futuro próximo o poder executivo vai ficar mais forte e que, devido à recessão económica junto com altos níveis de desemprego, os indivíduos e a sociedade civil vão passar a depender mais do Estado. Conter os efeitos dessa tendência é um dos grandes objectivos da política no mundo pós-pandemia da covid-19. Os sinais de regresso da política são por isso bem-vindos. Não devem, porém, ser um regresso à política do antigamente que deixou bem claro as suas falhas, limitações e inadequações na revelada precariedade e vulnerabilidade de largas camadas da população constatada nas últimas semanas.
Em Cabo Verde, a Assembleia Nacional reúne-se na quarta-feira, dia 27 de Maio, com uma ordem de trabalhos densa e mais em linha com o que se verifica no período pré-covid-19. Até vai ter debate com o Primeiro-ministro o que não acontecia desde 19 de Fevereiro. O governo e a maioria parlamentar sempre que questionados sobre a ausência do PM justificaram a indisponibilidade do primeiro-ministro com as exigências da luta contra a covid-19. Em democracia porém as causas públicas ficam sempre prejudicadas quando são subtraídas de uma forma ou de outra à fiscalização legítima do parlamento. A eficácia do governo depende da confiança que granjear e conservar junto da população para que esta siga as suas orientações e cumpra as suas instruções. Contribui para essa confiança a disponibilidade do governo em responder pelas suas acções e explicar-se perante a Nação em sede do contraditório como acontece no parlamento. Em plena segunda guerra mundial o parlamento inglês, a grande referência dos regimes parlamentares, não deixou de se reunir, nem Churchill se esquivou a ir ao parlamento para justificar a condução da guerra. O problema é se com a desconfiança reforçada entre as bancadas por causa da subalternização do parlamento se venha ainda a constatar menos disponibilidade dos partidos para renovar a forma de fazer política e poder assim enfrentar os desafios enormes do mundo pós-pandemia.
A crise da covid-19 deixou a nu a precariedade da existência de muitos e as profundas vulnerabilidades ainda existentes em particular nas populações rurais e nas cinturas urbanas do país. Os efeitos socio-económicos imediatos da crise e a perspectiva do prolongamento da ameaça do coronavírus por um, dois ou mais anos, dependendo de vacinas e medicamentos antivirais que forem disponibilizados, obrigam a uma radical mudança de atitude dos partidos políticos. Não se pode realmente continuar a fazer mais do mesmo. A política não pode resumir-se a quem dá ou promete mais. Não deve ficar por quem instiga mais, quem se indigna mais e quem denuncia mais. Algum sentido colectivo de responsabilidade sobre a situação real do país neste ano dos 45 anos de independência devia servir de guia para entendimentos entre as forças políticas quanto ao que deve ser feito para não se repetir o passado. É fundamental que não se continue a reproduzir as condições que resultaram na pobreza a desigualdade tornadas notórias nestas últimas semanas. Tempos difíceis estão aí à porta e é bom que não se permita que a desesperança se instale.
É verdade que o ambiente político não é o melhor para entendimentos entre os partidos. Para além da desconfiança mútua renovada nos últimos tempos, há ainda a perspectiva de conquista do poder seguida de forte bipolarizacão que o próximo ciclo eleitoral, a começar pelas autárquicas em Setembro/Outubro vai colocar. A crescente dependência da população contribuirá para fazer do papel do Estado na economia e na sociedade um elemento-chave do posicionamento das forças políticas. Mais ajuda externa irá fazer da gestão dos recursos disponibilizados um elemento de contencioso forte entre os partidos com as habituais suspeições pelo meio. A conjugação de mais ajuda e mais pobreza poderá constituir um incentivo mais no sentido de se reproduzir modelos anteriores, com resultados já conhecidos, do que em lançar o país noutros caminhos de maior sustentabilidade dos ganhos conseguidos.
Ou seja, tudo vai concorrer para que mais uma vez um choque externo de grande envergadura não sirva de pretexto para se mudar o rumo do país. Seria porém de grande importância que não fosse assim. O regresso das tradicionais palmas nas reuniões plenárias do parlamento, depois do apelo ao unanimismo de conveniência que as calaram, deveria significar a assunção de um discurso aberto, franco e construtivo de todos os sujeitos parlamentares com vista a entendimentos de fundo para se enfrentar os grandes desafios actuais e futuros. O país agradeceria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 965 de 27 de Maio de 2020.