segunda-feira, julho 26, 2021

Mal-estar

 

Há uma sensação de mal-estar na república. Não se sabe precisamente quais as causas, mas sente-se que algo não vai bem nalgumas instituições, a política parece ter sido substituída pelo espectáculo e a exibição de ambições pessoais e o travão que podia ser a postura crítica da sociedade civil deixa-se apanhar nas malhas das redes sociais tornando-se negativa, anárquica e às vezes quase niilista.

Olha-se com perplexidade para o impasse que se instalou nas câmaras municipais da Praia e S.Vicente com o choque entre o presidente e os restantes vereadores da câmara municipal. Também na Assembleia Nacional não se muda o tom do debate político mesmo com a nova legislatura e a meio de uma emergência pandémica. Pela primeira vez deixa-se o órgão mais de dois meses após a sua inauguração a funcionar em reuniões plenárias sem as suas comissões especializadas prejudicando a qualidade do trabalho legislativo e a fiscalização da acção governativa.

O governo, pela forma como lidou com os últimos acontecimentos, vê-se que continua o seu curso no mesmo estilo como se não tivesse recebido um novo mandato e nas condições que o obteve e aconselhariam a uma postura de mais humildade e maior ponderação na abordagem dos problemas complexos do país, particularmente quando incidem sobre sectores-chave para uma eventual retoma da economia. Por seu lado, a sociedade assiste espantada aos ataques desferidos contra o Estado de Direito, o sistema judicial e contra alguns magistrados até a partir do hemiciclo do parlamento e queda-se perplexa perante a aparente incapacidade de uma resposta eficaz e tempestiva das instituições democráticas. A completar todo este ambiente pouco tranquilizador não se pode deixar de ouvir o ruído de fundo que resulta do que aparentemente se afigura uma ofensiva mediática com vista a descredibilizar a democracia cabo-verdiana, o seu percurso e as suas instituições, facilmente verificável numa simples pesquisa no Google. Mas felizmente que nem tudo é negativo. O grau adequado de eficácia conseguido no processo de vacinação, já há mais de 33,8% de pessoas elegíveis que foram vacinadas, e não só, sinaliza que há reservas de competência e liderança que aplicadas podem contribuir para ultrapassar os problemas do momento.

É verdade que o mal-estar verificável nas democracias já vem de longe e só foi aumentado com a pandemia da Covid-19 que há quase um ano e meio anda a limitar o quotidiano, a interromper relações e carreiras e a manter incerto o futuro. Mas, da mesma forma que para uma reacção determinada contra a pandemia vieram as vacinas, houve abertura nacional e internacional para evitar que as pessoas e as empresas fossem completamente submersas pela crise e procurou-se assegurar um rendimento básico a todos, impõe-se que se aja com firmeza para combater as outras causas do mal-estar na sociedade. E não há tempo a perder porque outras ameaças já despontam neste mundo globalizado a começar pelo que de imprevisível pode acontecer com as alterações climáticas. Para as enfrentar há que entre outras coisas reverter a crescente desconfiança em relação à democracia, reforçar a importância do debate na esfera pública com base na verdade e no respeito pela realidade factual e neutralizar a atracção pelas soluções fáceis e polarizantes oferecidas pelos populistas.

Em Cabo Verde há que inverter o caminho que vem sendo trilhado que é o de, com protagonismos pessoais que contrariam as regras do jogo democrático, ampliar na prática competências de órgãos, mudar relações com outros órgãos e seus titulares e imprimir tons autocráticos às relações que deviam ser baseadas essencialmente na colaboração e solidariedade política. O mal-estar instala-se sempre que se procura validar o princípio de que as regras não se aplicam, que o voluntarismo e o não respeito pelos procedimentos é a marca dos bons políticos e que os fins justificam os meios. O que tem ocorrido nas câmaras municipais da Praia e de S. Vicente é paradigmático a esse respeito.

São impasses que estavam destinados a acontecer a partir do momento em que o sentido da colegialidade ficasse mais fraco. A Constituição cabo-verdiana estabelece um sistema diárquico nos municípios com dois órgãos colegiais eleitos directamente. Diferentemente, os Estatutos dos Municípios estabelecem a existência de três órgãos. Inspirados talvez na lei 121/91, que por sua vez é tributária da lei 47/89, preveem um órgão executivo singular no município a par da câmara municipal e da assembleia municipal com competências próprias e abrangentes em relação às quais o recurso só pode ser contencioso e não para o colectivo da câmara municipal como acontecesse, por exemplo, em Portugal onde muitas dessas competências são realmente da câmara municipal e só tacitamente são exercidas pelo presidente. Era só um presidente da câmara ficar em minoria ou mesmo estando em maioria desentender-se com os colegas da lista eleita para que acontecesse o que se vê hoje nestas ilhas.

Num ambiente de enfraquecimento da solidariedade intrapartidária e de exacerbação de ambições pessoais, o mais natural é que situações do género venham acontecer. Negociar compromissos torna-se cada vez mais difícil, quando a tentação do líder é de se impor. Com isso, porém, aumenta o risco de bloqueios e nem a eleição de maiorias para governar dão garantias de estabilidade posterior do mandato. As incertezas que num determinado momento se fizeram sentir à volta da aprovação da moção de confiança no parlamento foram reveladores a esse respeito. Com tais desenvolvimentos confirma-se que nem os partidos estão imunes aos sentimentos anti-política e anti-partidos e que, pelo contrário, há quem se sirva deles para afirmar as suas tendências autocráticas. Aliás, como se pôde ver nas últimas eleições, há partidos a absorver nas suas listas personalidades com esse tipo de discurso populista na perspectiva de alargar o seu eleitorado para certas franjas anti-sistema. Naturalmente que isso tudo tem efeito perverso na democracia e metástasizando dentro do sistema pode levar ao seu descrédito ou mesmo à sua morte.

Uma outra prática que tem um efeito corrosivo na democracia é o de se bloquear o debate político imputando ao adversário intenção antipatrióticas ou de ataque premeditado a classes bem identificadas na administração pública ou na sociedade. Aconteceu no parlamento na semana passada a propósito da alegada ineficácia da polícia em impedir a fuga de um arguido por homicídio em prisão domiciliária. Quando, perante uma situação dessas, o normal seria para o parlamento ouvir em sede da comissão especializada o ministro da tutela e eventualmente o director da polícia o que, de facto, aconteceu foi anular-se como entidade fiscalizadora do Estado ao tomar a declaração política de uma das bancadas como um ataque à polícia nacional. A fazer escola esse tipo de actuação, não há como, por exemplo, discutir a qualidade do ensino sem que alguém diga que se está a atacar os professores, ou que se discuta o sector de saúde, sem que os médicos e enfermeiros sejam mobilizados para enfrentar o “inimigo”.

O resultado de tais práticas só pode ser o descrédito das instituições que fogem ao cumprimento do seu papel, acompanhado de um sentimento de irresponsabilidade conjugado com resistência a reformas dos supostos “atacados”, enquanto que os custos da ineficácia na prestação de serviços públicos são suportados por todos. O mal-estar nas democracias tem muito a ver com a incapacidade continuada de mudar este estado de coisas. Para reforçar a resiliência da democracia há que cumprir e fazer as regras do jogo democrático e imputar responsabilidades a quem é dado o poder de representar, de governar e de julgar em nome do povo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1025 de 21 de Julho de 2021.

segunda-feira, julho 19, 2021

Serenidade, rigor e sentido de futuro

 

Dias atrás o chefe da diplomacia da União Europeia Joseph Borrel dizia que “o mundo como um todo não vai superar a pandemia antes de 2023”.

O aparecimento das variantes do vírus Sars-coV-2 conjugado com o facto de que ainda por algum tempo uma boa parcela da humanidade não vai estar vacinada cria muitas incertezas. Não é claro que seja para breve a retoma económica e o fim da crise social associada, mormente quando começa a desenhar-se um padrão na dinâmica económica mundial de crescimento a duas velocidades: os países emergentes crescem abaixo da média, enquanto que os países mais desenvolvidos dão sinais de estar “a sair do túnel”, caso da Europa, e até de crescimento vigoroso a 6.5% como os Estados Unidos.

Em Cabo Verde as incertezas ligadas à pandemia com impacto negativo nas receitas e aumento nas despesas obrigaram o Governo a apresentar um orçamento rectificativo. No OE de 2021 o défice previsto era de 9,3% porque se esperava a retoma económica no fim do segundo trimestre. Gorada essa possibilidade, rectifica-se o défice orçamental para 13,7% e a dívida pública passa de 145,9% do PIB para 158,4%, criando dificuldades no financiamento do Estado e tornando o país menos atractivo ao investimento privado. Não podendo socorrer-se de “bazucas financeiras” como os fundos disponibilizados aos países membros da União Europeia, Cabo Verde terá que encontrar vias para contornar a escassez de recursos e com esforço e criatividade posicionar-se para a retoma da sua economia.

É já em Outubro o último acto deste ciclo eleitoral com a realização das presidenciais. Como a partir daí, até o último trimestre de 2024, não haverá mais eleições, conviria que esse longo período sem disputas político-partidárias exacerbadas fosse de convergência na realização de reformas estruturantes para o país. Para combater a pobreza e promover a inclusão social é entendimento geral que se deve crescer acima dos 7%. Mas como os anos pré-pandemia provaram, isso não acontece mesmo com o melhor ambiente internacional sem que sejam feitas reformas com impacto na produtividade e na competitividade do país. A pandemia ao longo deste já quase ano e meio insistentemente lembra a todos as enormes consequências de se estar sempre a adiar as reformas que se impõem. Talvez seja este o momento certo para que, como serenidade, rigor e sentido de futuro se construir vontades para concretizar essas reformas e ganhar a resiliência de que tanto se fala e que será necessária para enfrentar alterações climáticas, transição energética e ameaças sanitárias inevitáveis neste mundo globalizado.

A estabilidade política saída das últimas eleições criou um ambiente propício a uma governação serena não obstante as dificuldades existentes e os particulares desafios postos pela conjuntura actual marcada pelo combate ao Covid-19. Sem pleitos eleitorais decisivos para a governação a nível central ou local, os hábitos de campanha permanente dos governantes, autarcas e de outros actores políticos poderiam dar lugar a uma postura mais ponderada nas iniciativas anunciadas e na tomada de decisões. Não se abordariam questões sensíveis e complexas como alterações da lei da nacionalidade da forma como têm sido badaladas na comunicação social, aparentemente sobre pressão de grupos ou em resposta quase epidérmica a alguma injustiça detectada em algumas situações.

Aliás, não deixa de ser estranho que um país como Cabo Verde, arquipelágico e com uma pequena população distribuída por nove ilhas, queira se arvorar em protagonista maior da livre circulação de pessoas com países dezenas de vezes maiores em superfície e população e de rendimento per capita bastante inferior ao seu. Com o argumento de que tem comunidades em vários outros países, quase todos eles com população muito superior e onde os cabo-verdianos constituem uma ínfima minoria, disponibiliza-se a abrir para migrantes sem critérios definidos de selecção.

Num pequeno estado insular e arquipelágico defender a independência nacional, garantir a unidade e preservar a identidade nacional cabo-verdiana (CRCV) obriga a que questões como nacionalidade, mobilidade e capacidade eleitoral de estrangeiros sejam devidamente ponderados. Para os governantes ilhéus a velha máxima de que interesses e não sentimentos devem guiar a política externa dos países tem uma pertinência maior e não deve ser esquecida. Um exemplo eloquente disso é a relação com a Guiné-Bissau. Depois da independência passou a ser construída com base em equívocos de vária natureza e o resultado é que nunca desenvolveu o potencial que eventualmente poderia ter caso interesses económicos fossem preponderantes e constituíssem a base de relações nos diferentes níveis. Na recente tentativa de aproximação dos dois países sentimentos equivocados parecem estar a sobrepor-se outra vez e isso não augura nada de bom.

À serenidade na governação deve juntar-se o rigor na comunicação e na relação institucional por forma a manter confiança, elevar o debate público e conjugar responsabilização com transparência na gestão da coisa pública. A insistência no erro mesmo quando os seus custos são visíveis a olho nu como aconteceu no caso TACV/CVA funciona em sentido contrário. Nestes tempos de incerteza, de escassez de recursos e de maior sensibilidade quanto às opções na aplicação dos mesmos, a imagem de rigor dos governantes é essencial para manter viva a vontade de engajamento para ultrapassar a situação actual e o espírito de solidariedade intergeracional necessária para assumir os custos correspondentes. Em matéria, por exemplo, dos fundos disponibilizados pelo INPS para financiar políticas de layoff do governo não deve haver dúvidas que o Estado fará a sua devolução, não deixando para estudos futuros uma decisão nessa matéria. Não se pode ficar simplesmente por parafrasear o “Whatever it takes” usado por Mario Draghi para salvar o euro e dizer que o governo vai “garantir em qualquer circunstância a sustentabilidade do sistema de segurança social”. Há que agir em conformidade, como fez o “super” Mario no Banco Europeu, e com isso reinará a tranquilidade.

A pandemia da covid-19, além de expor insuficiências várias nos sistemas de saúde e de solidariedade social em quase todo o mundo, veio revelar ainda como em muitos aspectos está-se a viver para o curto prazo, sem uma perspectiva de futuro e sem um sentido de solidariedade para com os outros. O fenómeno parece abarcar os políticos em campanha permanente para fixar eleitorado, operadores económicos focados na maximização dos lucros e descurando a responsabilidade social e os próprios indivíduos centrados em si próprios e sem uma apreciação adequada do que muito que se tem por garantido depende da prestação efectiva e tempestiva de outros. Ultrapassar a situação é fundamental para se evitar que num futuro mais ou menos próximo se venha a enfrentar casos similares à covid-19 que já produziu mais de quatro milhões de mortos e cerca de duzentos milhões de gente contaminada, muitos sem qualquer defesa.

Mesmo com todos os defeitos, ainda é a democracia que melhor cria o ambiente para se encontrar a saída. Baseada no debate comunitário, a democracia concentra-se, como bem disse alguém, no que pode unir e dar razões de esperança em vez de se focar no que pode separar e dar razões de queixa. A pandemia e as ameaças que espreitam mais à frente vieram trazer mais razões para potenciar essas qualidades. Há que aproveitar a crise para fazer o melhor nesse sentido e não deixar que a política de espectáculo e da campanha permanente arruíne o futuro que pode ser construído a partir de hoje.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1024 de 14 de Julho de 2021.

segunda-feira, julho 12, 2021

Fragilidades

 A fragilidade da democracia cabo-verdiana foi sentida como algo muito real nos últimos dias. Os discursos do dia 5 de Julho foram elucidativos a esse respeito em particular o discurso do presidente da república.

Os acontecimentos da semana passada, postos em movimento pela publicitação da fuga à justiça de um arguido em prisão domiciliária e previamente condenado por homicídio, deixaram todos preocupados e perplexos. O espectáculo de se ver o deputado/advogado a confessar cenários de uma fuga para fora do país que acabou por se concretizar sábado passado e depois, na sequência não acontecer nada de relevante, deixou muita gente inquieta. De facto, não é nada tranquilizador ver a autoridade do estado a vacilar.

Não se soube se o ministério público tinha aberto inquérito ao processo de fuga e se a polícia já tinha informação de como a passagem pela fronteira se verificou sem incidentes maiores. Também ficou-se por saber do pedido de levantamento da imunidade parlamentar do deputado para dar continuidade ao julgamento dos casos de difamação e calúnia postos por vários juízes entre os quais juízes conselheiros do supremo tribunal de justiça. Ainda por decidir pela comissão permanente, aparentemente ficou o pedido de detenção do deputado pelo PGR. Habituadas às peripécias da relação do referido advogado com a justiça, em que entre impropérios dirigidos aos juízes e supostas críticas dirigidas ao sistema de justiça, juntam-se adiamentos sucessivos de julgamento do caso interposto pelos juízes, as pessoas foram apanhadas de surpresa com esse novo desenvolvimento. Já não é só a justiça que é posta em causa, mas é próprio sistema político que também fica na berlinda.

De facto, o progresso meteórico feito pelo próprio dentro do sistema a partir de uma entrada inesperada como independente na lista de um partido para o parlamento em posição elegível seguida de nomeação para a comissão permanente da Assembleia Nacional e de ganho de visibilidade no processo de aprovação da moção de confiança ao governo criou outras possibilidades de intervenção que já foram utilizados nos costumeiros ataques aos magistrados. A condição de titular de órgão de soberania também abre a possibilidade de recorrer a outros expedientes para adiar o julgamento perpetuando a não resolução da disputa com os magistrados e confirmando a situação de “não justiça”. Em repetindo-se indefinidamente o ciclo em que há denúncias, mas não há responsabilização, já não é só a justiça a desgastar-se, são todas as instituições democráticas a dar uma aparência de indecisão e desorientamento.

Uma sensação de impotência geral vai-se impondo e aprofundando à medida que também em outros sectores prosseguem ataques e não há respostas convincentes e tempestivas das autoridades. A incapacidade em reverter a situação acaba por provocar uma erosão de confiança geral que não deixa de ter impacto noutros sectores da governação e da vida económica e social. Com o país a viver uma pandemia e as suas consequências na vida das pessoas, no seu rendimento e na sua perspectiva de futuro, era de esperar uma atitude mais firme na resolução dos problemas e maior disponibilidade para solidariamente se enfrentar os enormes desafios que se colocam ao país. Aliás, a decisão do eleitorado em garantir mais uma vez uma maioria absoluta na governação do país, apesar dos apelos em sentido contrário vindos de vários quadrantes, parece confirmar esse sentimento da população. Nesse sentido, compreende-se que para muitos é frustrante ver como por falta de liderança ou tendências autocráticas de líderes de maiorias eleitas tanto a nível local como central o país dá sinais de fragilidade abrindo portas para soluções complicadas e perdendo no processo tempo, energia e recursos vitais.

Perante tal fragilidade, os alertas vindos dos diferentes actores políticos quanto à necessidade de se reforçar os alicerces da democracia, têm razão de ser. Infelizmente em vários aspectos pecam pela ambiguidade e falta de coerência como se pôde constatar nas cerimónias do dia da independência. De facto, dificilmente se pode ter uma nação unida para enfrentar os grandes desafios da sua existência, quando se continua a alimentar um conflito no seu núcleo central de valores.

Há quem acintosamente insista em apresentar o dia 5 de Julho como a “data maior” para destacar que liberdade na sua essência significa libertação do domínio estrangeiro e que na sua defesa é justificável opressão e violação dos direitos humanos, como aconteceu nos primeiros 15 anos de independência. É uma ideia de liberdade em conflito directo com os princípios e valores da República que, como estabelece o artigo primeiro da Constituição, tem como base “o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos”. Imagine-se que manter as duas ideias de liberdade em confronto não deixa de ser um obstáculo sério à valorização plena dos direitos fundamentais, legitimando resistências ao Estado de direito democrático que, sempre que condições se proporcionam, manifestam-se de uma forma outra contra o sistema de garantias consagrado na Lei e contra a independência dos tribunais.

Diz-se que para se ter democracia há que primeiro ser independente, quando a verdade constatada por todo o povo cabo-verdiano é outra. Depois do 25 de Abril de 1974 houve liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de criação de partidos, liberdade de reunião e de manifestação. Faltou o direito universal de autodeterminação dos povos que não foi exercido porque as circunstância histórico-políticas ditaram que o caminho fosse “Não ao referendo e Independência Já”. O país pagou essa omissão com a ditadura de 15 anos de um partido único que só veio a ser efectivamente desmantelada após o 13 de Janeiro de 1991.

A partir daí é que o povo se tornou realmente soberano, escolhendo na liberdade e no pluralismo os seus governantes e criando um Estado que protege os direitos dos indivíduos e não está acima da Lei. Insistir numa outra concepção do Estado, com outras formas de legitimidade do poder e com a menorização dos direitos, liberdades e garantias, pela via da apologia mais ou menos encoberta de uma outra constelação de valores, na prática, mantém viva as forças que vão sempre fragilizar a democracia, não só pela via de resistência às suas normas e procedimentos, como pela a de não contribuição para a sua realização plena através de participação no jogo democrático. Fazer discurso bonito no sentido oposto não altera em nada a realidade divisiva que se mantém por outras via. Só reforça a incoerência de quem o produz e aumenta o cinismo de quem o ouve. Perde a democracia, perdem as pessoas apanhadas entre dois sistemas de valores antagónicos e perde o país que não pode contar com um esforço colectivo unificado para enfrentar os desafios complexos do seu desenvolvimento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1023 de 7 de Julho de 2021.

segunda-feira, julho 05, 2021

Poder e responsabilidade

 

Por todo o mundo as democracias estão sob ataque. Vindo do exterior a ofensiva contra os ideais democráticos comandada pelos estados autoritários procura demonstrar que o modelo autocrático é o que mais se adequa aos desafios da actualidade, seja em matéria de desenvolvimento, seja de segurança, de controlo das migrações e da luta contra a corrupção.

No interior das democracias a luta é mais renhida e sentem-se os efeitos da crescente desigualdade social e o seu impacto na quase ruptura do contrato social. Perda de confiança nas elites do país, descrédito das instituições e a tendência para uma certa anomia social com graves consequências para o futuro são sintomas do que de muito grave vem acontecendo nas democracias e que efectivamente as põe em causa.

Não estranha que por vários países democráticos já se tenham verificado derivas de natureza iliberal que procuram constranger alguns direitos fundamentais como a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa e pôr em causa a independência dos tribunais. Até se constatam outras de carácter mais populista que pelo exacerbar do papel do líder e de protagonismos pessoais em detrimento de formas institucionalizadas de agir e proceder lançam o descrédito no sistema democrático, na classe política e na própria política. Também em Cabo Verde são visíveis as forças, as narrativas e os comportamentos que põem em causa a democracia e tendem a desacreditar os processos democráticos de resolução de conflitos.

Não têm tido muito sucesso e o país tem conseguido manter-se em boa posição nos rankings internacionais de liberdade e democracia. E não há aqui qualquer equívoco como poderão pretender alguns mais cépticos ou cínicos. O que aconteceu nas legislativas de há dois meses atrás e já se tinha verificada nas autárquicas de Outubro mostra uma democracia a funcionar com eleições por todos aceite como justas e livres. É verdade que há deficiências no sistema, muita dependência do Estado e uma classe política mais inclinada a protagonismos pessoais do que a capacitar-se para melhor enfrentar os desafios do país.

Custa acreditar que não se tomem esses momentos de relegitimação do poder democrático como prova de que afinal as coisas não estão tão más como certos populistas querem fazer crer e agir decisivamente para credibilizar as instituições. Nesse sentido ajudaria muito uma outra postura pública dos políticos e uma atitude mais crítica em relação a comportamentos que procuram contornar normas e procedimentos e também mais ponderada no tratamento das questões complexas que se colocam a um pequeno país, de população reduzida e com poucos recursos naturais. Infelizmente não é o que acontece.

Os últimos acontecimentos em que se tem um deputado da nação supostamente a agir como advogado a orquestrar a fuga para o exterior de alguém condenado nos tribunais cabo-verdianos são dos casos que põem em causa tanto a democracia com o Estado de Direito. Pelas declarações feitas pelo próprio à Inforpress fica-se a saber que entre os planos de fuga constavam a possibilidade de uma saída via marítima a ser facilitada com recurso à contratação de ex-fuzileiros. Impunha-se extrair a pessoa que se encontrava em regime de prisão domiciliária e conduzi-la à embarcação que a levaria para fora contornando de uma forma ou outra a vigilância policial.

A extracção acabou por ser de forma mais expedita através de um voo em direcção a Lisboa atravessando as fronteiras do país sem se deparar com obstáculo que normalmente uma pessoa em falta com a justiça deveria encontrar. A falha geral do sistema que se verificou é das situações que levam à profunda descredibilização de todas as instituições, porque foram afectados não só os sectores da justiça e da segurança que veem a sua eficácia questionada como também o próprio sistema político.

O envolvimento de um titular de um órgão de soberania que apresenta a sua participação na fuga à lei e à justiça como um acto político e o apoio que de imediato recebe da força política parlamentar a que pertence não deixa de levantar questões sérias quanto ao nível de adesão de certos sectores políticos à ordem constitucional vigente. A chamada causa da “não justiça” que agora o presidente da UCID veio proclamar como sendo também a causa do seu partido sempre se configurou um ataque ao sistema judicial do país sob a capa de acusações feitas a alguns juízes.

Inquéritos do Ministério Público e do Conselho Superior da Magistratura não encontraram indícios que corroborassem as denúncias feitas e até agora não se conseguiu levar avante o julgamento do autor das mesmas, onde eventuais provas poderiam ser apresentadas, devido a expedientes diversos. Actualmente o obstáctulo é a imunidade parlamentar. Seria de esperar que a condição de deputado levasse a maior contenção nos discursos, mas como as intervenções na última reunião plenária e os últimos acontecimentos mostram, em vez de se trabalhar para melhorar o sistema democrático e o Estado de Direito, age-se para desacreditá-lo completamente. E já não é só uma pessoa a protagonizar a causa, mas também um partido político com assento parlamentar.

Hoje todas as crianças de tanto ver filmes do Homem-Aranha conhecem bem a célebre frase de que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Quem pretende não a conhecer são alguns políticos e dirigentes públicos que se vêem hoje com grandes poderes e rejubilam com os privilégios associados, mas não se mostram tão dispostos a assumir as responsabilidades que resultam do exercício dos cargos. Em vez de servir o interesse público, servem-se dos cargos e ressentem-se com qualquer tentativa de os levar a prestar contas por algo que corra menos bem. A verdade é que a democracia não pode funcionar sem assunção de responsabilidade. Muita descrença na democracia provém do que os cidadãos veem como fuga sistemática à responsabilidade num quadro em que a política é cada vez mais espectáculo e protagonismo individual. Há que quebrar este padrão de comportamento para que a democracia crie resiliência e continue a consolidar-se não obstante as investidas dos seus descontentes e inimigos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1022 de 30 de Junho de 2021.