segunda-feira, outubro 25, 2021

Os dados estão lançados

Realizadas as eleições presidenciais de 17 de Outubro, termina o ciclo eleitoral que tinha sido inaugurado a 25 de Outubro do ano passado com o pleito autárquico. A corrida presidencial foi ganha por José Maria Neves que era o candidato apoiado pelo Paicv, abrindo as portas para mais uma experiência no relacionamento entre o presidente e o governo e a sua maioria parlamentar, quando oriundos de campos políticos diferentes.

Já tinha acontecido há 10 atrás, em 2011, quando o presidente Jorge Carlos trabalhou com o primeiro-ministro José Maria Neves suportado por uma maioria parlamentar do Paicv. Nada de realmente anómalo aconteceu então e o mais provável é que também, nos próximos cinco anos de mandato, a governação não seja demasiadamente perturbada por crises institucionais para além das costumeiras tensões entre órgãos de soberania no exercício das suas respectivas funções. O sistema de governo é parlamentar e, assegurado o apoio de uma maioria na Assembleia Nacional, não há margem para situações que possam pôr em causa o regular funcionamento das instituições.

O processo eleitoral terminou bem com todos a reconhecer a lisura dos procedimentos na votação e na contagem de votos e a aceitar prontamente os resultados. O comportamento geral dos candidatos e dos directamente envolvidos nas eleições contrastou, porém, com muito o que, por várias razões, se foi dizendo ao longo da campanha eleitoral. Falou-se de fraude, de hackers, de esquemas de compra de votos e outros estratagemas para manipular as eleições. Da forma como essas acções eram apresentadas, ficava a impressão que uns e outros eram useiros e vezeiros no recorrer a essas manobras e que se nada houvesse para as impedir, podiam determinar os resultados.

É verdade que a dependência das pessoas em relação ao Estado e a favores e boa vontade de outrem tende a abrir espaço para abusos diversos e para manipulação de consciências. Não se pode é, no momento de campanha acusar com veemência adversários de cometer fraude, receber financiamentos duvidosos e de comprar votos para de seguida esquecer das acusações feitas e, pior ainda, estando no governo ou em posição de pressionar para se saber as raízes e as intrincâncias dos esquemas montados para essas práticas, não se agir para finalmente sanar o sistema dessas ilegalidades. Ao insistir nesse tipo de comportamento, eleição após eleição, só se acaba por aumentar o cinismo das pessoas em relação à política e globalmente manter sob suspeita o sistema eleitoral e as instituições que regulam o sistema como o CNE e a DGAPE e que ao longo dos anos têm feito avanços consideráveis para garantir que o processo de legitimação da vontade do povo seja o mais livre, justo e inclusivo.

Há que realmente pôr um fim a essas práticas, particularmente, quando já se tornou habitual, para certos candidatos a autocratas nas democracias, questionar os resultados eleitorais para se perpetuarem no poder ou negar a legitimidade do poder exercido pelos vencedores. Também de evitar, até porque vai no mesmo sentido, é excitar paixões com base em acusações mais ou menos abertas de anti-patriotismo e de conluio com forças estrangeiras ou recorrendo a outras teorias de conspiração. Na realidade, com essas tácticas o que se quer é negar a participação política do outro. A prova disso é que, fora do contexto da política reduzida a uma luta tribal, não se dá nenhuma credibilidade a esse tipo de alegações e não são accionadas quaisquer autoridades para as investigar. O espectáculo marcado por gestos de conciliação e de respeito pelo sistema democrático que todos quiseram dar na noite eleitoral para ter significado real, em termos de credibilização das instituições e da política e não ser um jogo cínico e hipócrita, deve querer dizer que nem sempre os fins justificam todos os meios, mesmo no processo de conquista do poder.

O jogo democrático no processo eleitoral, não obstante as suas insuficiências e fragilidade perante actos de manipulação e também de não ir completamente ao encontro dos desejos de participação de todos, deve ser valorizado pelas razões óbvias de garantir a representatividade dos cidadãos nos órgãos políticos, de escolher governantes e de legitimar o exercício do poder. O facto de não poucas vezes surpreender nos resultados, mesmo quando são usados os instrumentos mais sofisticados das sondagens para orientar a campanha e os meios mais modernos de marketing político para imagem e mensagens dos candidatos e recursos financeiros desiguais de suporte, serve para o credibilizar ainda mais. As pessoas querem acreditar que “o povo é a voz que fala mais alto”.

Este ciclo eleitoral que chega ao fim surpreendeu em toda linha. Nas eleições autárquicas de Outubro de 2020, quando a Capital passou para o Paicv. Nas legislativas de Abril de 2021, quando numa inversão do voto autárquico em vários círculos, o MpD ganhou em quase todo o território nacional com excepção da Ilha do Fogo. Agora nas presidenciais o candidato José Maria Neves, apoiado pelo Paicv, vence em todos as ilhas com excepção de S. Nicolau, Sal, Maio e Brava. No ciclo anterior de 2016 não houvera surpresas e não eram de esperar, considerando que o Paicv saía de um longo período de 15 anos de governo. O MpD ganhou as legislativas e as autárquicas e o candidato por ele apoiado venceu as presidenciais. Já neste ciclo, ainda só com um mandato do MpD, as inflexões no sentido de voto do eleitorado de uma eleição para outra podem estar a traduzir algum desencanto com as políticas do governo.

O desencanto transpareceu nas autárquicas, em particular com a perda da Câmara Municipal da Praia. Pouco depois, em sondagens vindas a público em Outubro/Novembro, manifestou-se na intenção de voto nas legislativas a favor do Paicv. Terá sido atenuado com a ofensiva do partido no governo, o arrastar da pandemia e alguma incapacidade da liderança da oposição em capitalizar os ganhos das autárquicas e conduzido à vitória do MpD nas legislativas, mas com uma maioria menos confortável. Agora, nas eleições presidenciais, apesar dos bons resultados da vacinação da população, as dificuldades do governo em lidar com as consequências socioeconómicas da pandemia terão outra vez redirigido a intenção de voto para um candidato apoiado pelo Paicv. Perante os resultados das eleições presidenciais, a impressão com que se pode ficar é que em algum momento, em 2020, o eleitorado começou a virar-se para o Paicv e que realmente não parou ao longo destes meses.

Os resultados das legislativas nesse sentido constituíram uma espécie de anomalia dados os condicionalismos vividos no momento. Se assim for, o governo ainda com vários anos de mandato terá que saber como lidar com a situação complexa que vai ter entre mãos e eventualmente contorná-la, reconquistando a confiança dos segmentos mais flutuantes do eleitorado. Não vai ser fácil, considerando que a derrota de Carlos Veiga nas presidenciais poderá arrastar consigo a perda de algum capital no campo simbólico, identitário e de legado do partido que nos anos noventa construiu a democracia e as suas instituições e ainda liderou o processo de transformação de uma economia estatizada numa economia de mercado.

De facto, a afirmação do MpD como alternativa de governo tem muito a ver como manter o essencial do seu legado que o distingue de políticas rentistas e de reciclagem da ajuda externa que sempre caracterizaram os governos do Paicv e que invariavelmente têm conduzido o país a taxas baixas de crescimento como aconteceu nos fins dos anos oitenta e entre os anos 2011-2015, acompanhado de dívida pública de mais de 120% do PIB. A liberalização da economia foi seguida de grandes reformas no sistema fiscal, sistema financeiro, de privatizações esforço de industrialização e atracção de investimento externo e ainda do o acordo cambial com Portugal e a União Europeia que serviram de base para elevação do potencial de crescimento do país e proporcionaram as maiores taxas de crescimento do PIB de sempre. O esbatimento desse legado pode trazer dificuldades em afirmar-se como alternativa às narrativas, práticas e atitudes que sempre foram protagonizadas pelo Paicv. De qualquer forma, os dados estão lançados e a bem da democracia é fundamental que se conserve sempre a possibilidade de alternância no governo do país. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1038 de 20 de Outubro de 2021.

segunda-feira, outubro 18, 2021

Pensar fora da caixa

 Ainda no último trimestre do ano de 2021 o caminho para a retoma da economia na generalidade dos países sejam eles desenvolvidos, emergentes ou menos desenvolvidos continua semeado de incertezas. Não era esse sentimento nos primeiros meses do ano, quando se iniciou a vacinação massiva das pessoas em particular nos Estados Unidos e na Europa.

Acreditava-se que em Julho e até o mais tardar no fim do Verão estar-se-ia perante um regresso à normalidade e que o esperado crescimento económico seria vertiginoso, suportado por uma procura suprimida por meses de restrições diversas e mesmo quarentenas estritas e agora libertada. A realidade é que o aparecimento de variantes mais contagiosas do coronavírus, o Alfa e depois o Delta, a resistência inesperada à vacinação e os persistentes problemas de produção e distribuição das vacinas que vão deixando milhões desprotegidos não permitiu que essas expectativas se concretizassem completamente.

Há, de facto, crescimento, mas não nas taxas previstas, e dá sinais de ser assimétrico em detrimento dos países mais pobres alargando em consequência o fosso entre os países pobres e os países ricos. Quanto ao emprego, continua muito aquém do desejado a meio com incertezas por causa da Covid-19 e em alguns casos de resistência de uma parte significativa de pessoas em regressar ao que tinham ou faziam no mundo pré-pandémico. Nota-se ainda a tendência para o aumento da inflação também de forma desigual, menos nos países ricos e mais nos outros, o que pode vir a traduzir-se em mais um obstáculo para a retoma da economia. A persistência dos efeitos da pandemia com impacto nas cadeias de abastecimento tem-se traduzido na escassez de certos produtos, atrasos na entrega de componentes necessários para a produção e naturalmente num aumento geral de preços de vários produtos, de bens alimentares e de fornecimento de energia.

Tudo leva a crer que os aumentos mais pronunciados dos preços de energia, em particular, dos produzidos a partir de combustível fóssil resultam dos efeitos cumulativos da retoma da actividade no período pós-pandémico. Também podem dever-se ao fraco investimento no sector energético de base fóssil em reacção às opções de se proceder à transição energética e de dar combate às alterações climáticas e ainda aos constrangimentos gerados pela rivalidade entre as grandes potências e que afectam os stocks de petróleo e gás natural em todo o mundo. Nestas condições provavelmente não será tão cedo que se poderá regressar a um mundo de menos incertezas e com capacidade de crescer e criar empregos. Há os mais optimistas que apontam para o segundo semestre de 2022 como de regresso à normalidade e à retoma mundial, mas há quem veja um caminho mais longo e mais sinuoso a percorrer. São vários os sinais que se vai regredir no grau da globalização com proteccionismos, onshoring de empresas em sectores-chave, reformulação de cadeias de valor, impactando nas possibilidades e oportunidade de muitos países retirarem milhões de pessoas da pobreza como aconteceu nas últimas décadas.

Em Cabo Verde, já se sentem os efeitos das deficiências na circulação de bens e da alta de preços em vários bens e serviços entre os quais energia e transportes. A economia nacional, extremamente dependente do turismo, sofre ainda as consequências de um sector que pelas suas características provavelmente vai levar algum tempo até atingir o vigor anterior e afectar o emprego, as receitas públicas e as exportações do país da mesma forma que outrora. Com mudanças a se verificarem no ambiente económico a nível mundial, dificilmente um restauro das actividades irá acontecer retomando simplesmente o que se fazia antes. Será fundamental saber adaptar-se às novas condições e poder inovar e ser mais produtivo e competitivo. Também será essencial saber aproveitar as oportunidades e explorar novos mercados e canalizar o que de melhor se tem para investir no futuro de modo a garantir um desenvolvimento sustentável.

É evidente que não se consegue adequar o país e as pessoas ao novo paradigma de relações que está a emergir do mundo pós-pandémico repetindo a mesma forma de pensar, de encarar e fazer as coisas do passado. Por causa das extraordinárias mudanças verificadas no mundo, em todos os países e nas relações internacionais e na atitude das próprias pessoas há um apelo geral para se pensar “fora da caixa “,out of the box, e encontrar soluções novas para realidades novas não devia certamente ser este o momento para se enfiar a box na cabeça e insistir em pensar dentro dela. Infelizmente, é o que está a passar. Ouvindo o parlamento no que foi a primeira reunião plenária desta sessão legislativa tem-se a impressão que se vive e debate-se num mundo à parte. Os aumentos dos custos de energia em proporções similares ao que se passa em vários países em vez de ser um convite a discussões construtivas sobre a problemática energética de um país insular no actual contexto mundial é oportunidade para mais um jogo de culpas entre os partidos do arco da governação.

Acontece o mesmo quando é trazida à discussão a questão da TACV e do hub na ilha do Sal. Repetem-se as mesmas acusações, mas, quando possíveis soluções são discutidas, não se fica com a impressão que se está a tomar em devida conta a realidade actual do impacto sem precedentes da pandemia e das incertezas que existem quanto ao futuro e à evolução do sector da aviação comercial. O mesmo padrão de comportamento repete-se quando a temática é outra, seja ela à volta da água, da energia, dos transportes, da habitação, ou das barragens. Tudo parece funcionar num registo eleitoralista permanente em que quem governa mostra triunfalmente o quanto é que já ofereceu à população e a oposição esforça-se por demonstrar que foi muito pouco, alguém foi discriminado e está-se a fazer para ganhar votos.

Todos dizem querer um Estado Social cada vez maior, mas sem os sacrifícios e os compromissos necessários para construir a base económica que o tornaria sustentável. Em tal ambiente, são quase estéreis os debates democráticos que pela sua função deviam ser esclarecedores da situação do país e do mundo envolvente e precursores de soluções. Daí é só mais um passo no sentido da degradação do discurso político e da sua não correspondência com a verdade e a realidade factual, submetido que fica à logica segundo a qual “os fins justificam os meios”. O outro lado deste estado de coisas, que configura um autêntico bloqueio ao desenvolvimento, é a crescente dependência da ajuda externa, tornada mais evidente quando perante choques, sejam eles de origem interna ou externa, como está a acontecer há mais de três anos, primeiro com a seca e depois com a pandemia e os seus efeitos socioeconómicos a nível local e global.

As eleições presidenciais podiam ter o efeito de uma “pedrada no charco” e ajudar o país a sair do torpor mental e intelectual que a política partidária com discurso rasteiro, populista e permanentemente eleitoralista o está a condenar. O presidente da república não governa, mas pode ser um promotor do “mercado de ideias” que, segundo pensadores como John Stuart Mill, deve-se criar na busca da verdade. O país, na procura da prosperidade, precisa pensar “fora da caixa” e só pode fazê-lo com o respeito pela verdade e pelo conhecimento. Nesse aspecto, o presidente da república através das suas mensagens e iniciativas e também do seu papel de moderador e árbitro do sistema político pode ter um papel importante para ajudar o processo democrático a ser virtuoso e por essa via credibilizar ainda mais a democracia liberal e constitucional.

Diminui-se, porém, esse papel se se deixa que as eleições presidenciais sejam capturadas pelas mesmas tricas e futricas partidárias – (SOFA, dois primeiros-ministros, dois milhões, profanações) – que só contribuem para manter a actual falta de diálogo no país. Na sequência, descredibilizam-se as instituições competentes para as investigar e que em tempo as deram por resolvidas (Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal de Justiça, Ministério Público) e deixam o país numa crispação política paralisante, quando mais precisa movimentar, experimentar e inovar na busca de soluções para sair da crise, voltar à normalidade e fazer a retoma da sua economia. É preciso deixar o país respirar e libertá-lo das grilhetas das inverdades, dos mitos e do ilusionismo que o aprisionam. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1037 de 13 de Outubro de 2021.

segunda-feira, outubro 11, 2021

Ir além dos equívocos da função presidencial

 

Com o início da campanha para as eleições presidenciais a atenção do eleitorado foca-se cada vez mais na questão dos poderes do presidente da república no sistema político cabo-verdiano.

Os candidatos em debates, entrevistas e encontros com a população têm deixado claro a forma como vêem os poderes do presidente e como pretendem exercê-los se forem eleitos. Os pontos de divergência normalmente são à volta da relação, mais ou menos próxima com o governo, da influência mais ou menos aberta e assertiva sobre as políticas do governo e da abertura e independência em nomeações partilhadas do governo e do PR para cargos como Procurador Geral da República, Presidente do Tribunal de Contas, embaixadores e Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Nos extremos encontram-se posições de candidatos que se colocam em franca ruptura com o que a Constituição estabelece como sendo as competências do presidente da república e até clamam por mudanças constitucionais de fundo.

Perante o quadro algo confuso assim exposto, nem sempre é fácil para o eleitor comum discernir se se trata de um novo escrutínio para eleger um arbítrio e moderador do sistema político ou se se trata de uma espécie de repetição das legislativas para se obter uma “maioria presidencial” susceptível de ser instrumentalizada, dependente da sua origem no quadrante político, para reforçar ou para se opor ao governo. A condicionar o debate está uma insuficiente discussão sobre os poderes presidenciais que até agora não se fez porque ficou inquinada logo nos primórdios da adopção da Constituição de 1992. Ao invés de se densificar o papel que o presidente suprapartidário eleito por sufrágio universal tem na nova Constituição de pendor parlamentar, optou-se por manter vivo o conflito com o sistema semipresidencial, na época de preferência de uma minoria. Daí que durante a vigência da II República haja sempre quem diga que o PR não tem poderes, que eleições presidenciais são inúteis e que o titular é um simples corta-fitas. Contraditoriamente são praticamente os mesmos que, quando os ventos são de feição, querem que o PR ajude o governo e, quando são contrários, que se transforme numa oposição activa. Nessas condições é evidente que o debate não evolui.

No sistema de pendor parlamentar existente no país, o PR não governa, o governo só é responsável politicamente perante a assembleia nacional e o poder de demissão do governo e da dissolução do parlamento pelo presidente da república não é livre, dependendo o seu exercício de condicionalismos muito especiais estabelecidos na Constituição. O parecer favorável do Conselho da República só caiu na revisão da Constituição de 2010. A estabilidade governativa que Cabo Verde tem gozado, 8 governos nos trinta anos da II República, deve-se muito a este modelo constitucional. Vê-se que é assim comparando com Portugal que nos seus primeiros seis anos de democracia, quando o pendor presidencialista do sistema político era mais forte, teve oito governos, três dos quais de iniciativa presidencial. São Tomé e Príncipe, nos últimos trinta anos, já vai em 17 governos, vários deles demitidos pelo presidente da república. Na Guiné-Bissau a situação é ainda mais complicada com bloqueios devidos a conflitos entre os PRs e os primeiros-ministros. O presidencialismo que para alguns parece a melhor solução não dá garantia de estabilidade como se pode ver no Brasil com os casos de impeachment e de corrupção e tem o perigo de evoluir para formas autoritárias do exercício do poder do tipo ensaiadas por Donald Trump e por Jair Bolsonaro.

Essas experiências deviam ser suficientes para que a questão dos poderes do presidente da república fosse já pacífica em Cabo Verde. A verdade é que não é e vê-se no espectáculo dado por candidatos com programas eleitorais que não se ajustam ao quadro das competências definidas na Constituição. Há quem queira ser autoritário e há quem não queira ser corta-fitas como se fossem opções reais no quadro existente. Um elemento perverso que resulta de se insistir em diminuir e subestimar os poderes do PR é a pressão que em certas circunstâncias os partidos políticos, grupos de interesses e pessoas próximas põem sobre o titular e compelem-no a agir sob pena de ficar a ser visto como inefectivo ou peça decorativa. Em Cabo Verde, já algumas vezes e com diferentes presidentes da república viveram-se momentos em que pressões para um maior protagonismo do presidente fora do quadro da lealdade institucional esperado e quase a ultrapassar as competências próprias levaram a situações complicadas. Talvez não as mais graves ou mais visíveis como a demissão do governo, dissolução do parlamento e eleições antecipadas, mas nem por isso menos preocupantes.

Valeu algumas vezes a capacidade dos outros órgãos de soberania de se acomodar às incursões nas suas competências sem mágoas públicas. Dentro de certos limites, algo similar acontece num momento ou noutro em qualquer sistema político com separação e interdependência de poderes. Normalizar tais situações, porém, pode abrir caminho para a instabilidade que se tem visto em países com governos que não completam mandatos e têm eleições antecipadas demasiado frequentes, com todo os custos que isso acarreta. Velar pelo normal funcionamento das instituições, enquanto arbitro e moderador do sistema, é a tarefa principal de quem não tem funções de governação e que só é responsável perante a nação que o elegeu. É uma função essencial que exige muito de quem a exerce designadamente em termos de maturidade, percurso, dedicação à causa pública e humildade para se assegurar que o sistema funciona no seu todo sempre no quadro da legalidade e respeitando o sistema de princípios e valores que lhe serve de referência principal.

Por outro lado, quem a exerce não deve cair na tentação de substituir o governo no desenvolvimento e implementação de políticas, porque pressionado por pessoas, grupos ou situações específicas. Deve, sim, tudo fazer para que os que foram eleitos para governar e para ser oposição cumpram os respectivos papéis e as virtualidades do sistema em encontrar soluções para os problemas sejam sempre potenciadas. O exercício de competências partilhadas em nomeações e exonerações de titulares de certos órgãos constitucionais essenciais para o normal funcionamento do sistema como o PGR, CEMFA, TC deve ser feito com firmeza e total autonomia. Da mesma forma, também devem ser exercidos os poderes de fiscalização como o poder de veto político a diplomas legislativos vindos do governo e do parlamento e os pedidos de fiscalização preventiva da constitucionalidade para que alguma coerência seja mantida e percepcionada pelos cidadãos e pela sociedade, tanto em matéria dos mandatos recebidos como de aplicação de comandos constitucionais, em particular em matéria de direitos.

A função presidencial não devia ser procurada por quem apresenta tiques de megalómano ou narcisista, nem quem tem vocação de ilusionista e mostra pouca adesão à verdade e aos factos. Compreende-se a atractividade do cargo para essas figuras. Cabe naturalmente ao cidadão ajuizar das propostas feitas e escolher. Não se pode é ignorar que acontecimentos recentes têm alertado contra os saltos para fora da realidade e reafirmado a necessidade de cooperação e solidariedade para se ultrapassar as extraordinárias situações vividas actualmente por toda a parte. Só garantindo que o sistema funcione e que resultados chegarão a todos é que se poderá impedir que perante o caos emergente – criado com todos a procurar tirar a sua quota parte, pouco interessando quem fica sem nada – alguém se proponha como ditador e acabe por ser eleito, deixando para trás não só a liberdade, mas também a possibilidade de prosperidade. Aconteceu em outros países e ninguém pode garantir que algo similar ou pior não venha acontecer aqui. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1036 de 6 de Outubro de 2021.

segunda-feira, outubro 04, 2021

Não há Justiça sem Liberdade

 

Este sábado, dia 25 de Setembro, realizaram-se manifestações clamando por “mais justiça” e repudiando a situação de “não Justiça” com a presença de centenas ou alguns milhares de pessoas em S.Vicente e na Cidade da Praia.

Tudo leva a crer que não conseguiram ter o impacto desejado nem a adesão esperada apesar dos esforços feitos pelos seus mentores, da cobertura recebida dos órgãos de comunicação social e da forte presença nas redes sociais. A anteceder essas manifestações já se vinha verificando passeatas em vários pontos do país com paragens nos tribunais. Razões invocadas são em alguns casos discordância com as formas de coação (TIR) impostas a pessoas acusadas de crimes e noutros casos considerar como excessiva a prisão preventiva. Em outros casos ainda há o que o presidente da república, em entrevista à televisão pública, no domingo passado, chamou de confusão da justiça com segurança.

A novidade em todas estas situações está na aparente predisposição das pessoas em levar as suas queixas, insatisfações e receios às sedes dos tribunais aparentemente fazendo o poder judicial o principal culpado pela insegurança, criminalidade e falhas da justiça. A morosidade e a qualidade da justiça dispensada poderão eventualmente justificar críticas ao sistema e acções para responsabilizar quem deve assegurar que a justiça é realizada com eficácia e em nome do povo. Incitar a população contra os tribunais não é certamente a forma de fazer isso, particularmente quando se levanta em arco um caso de fuga do país de pessoa acusada e julgada por homicídio. Um caso que parece configurar a chamada justiça justiceira ou justiça pelas próprias mãos que é incompatível com o primado da Lei, o Estado de Direito e a existência de uma sociedade civilizada.

O incitamento contra o poder judicial infelizmente tem-se tornado normal em democracias em que já é notório uma espécie de “deriva iliberal”. A Hungria e a Polónia nos últimos anos têm sido objecto de resoluções do parlamento europeu condenando ataques aos juízes, à imprensa e aos direitos das minorias. No Brasil, o confronto do presidente Bolsonaro com o sistema de justiça visando a sua descredibilização é parte essencial da deriva para um Brasil menos livre e menos democrático. Nos Estados Unidos da América, os quatro anos de Trump foram de ataque sistemático a todas as instituições democráticas. Segundo revelações recentes, aventava-se mesmo a possibilidade de um golpe de estado na sequência da derrota eleitoral do presidente. O assalto ao Capitol por populares no 6 de Janeiro deste ano era para desencadear o plano para esse efeito. Em todos esses casos o objectivo é o exercício do poder sem os limites que os direitos humanos, o primado da Lei e uma justiça independente impõem.

Aos seus seguidores e à sociedade em geral quer-se fazer crer que é o excesso de direitos e o excesso de garantias que dificultam a realização da justiça. Muitas vezes a mensagem é condimentada com acusações de corrupção ou de incompetência dos magistrados e com queixas em relação às exigências processuais procurando capitalizar sobre o sentimento generalizado das pessoas que a justiça não é suficientemente célere e eficaz. Invariavelmente, o objectivo é conseguir com promessas de acção musculada, guerra ao crime e justiça imediata que as pessoas cedam liberdade em troca de segurança e deixem de acreditar num poder judicial independente. A tentação das forças de segurança e de alguns políticos de se justificarem passando a ideia que fazem a sua parte, mas que os tribunais atrapalham tudo com o invocar de direitos e garantias, reforça esse sentimento, mas tem o seu contrário. Deixa no ar a ideia de que, ou se está perante confissão de incompetência, ou de má-fé vinda de quem por lei devia estar na primeira linha de defesa dos direitos dos cidadãos quando investiga e combate o crime e quando impõe a autoridade do Estado. Não ver um caso investigado avançar devia ser motivo para rever práticas e melhorar a cientificidade da abordagem e não para alimentar desconfiança no sistema de justiça, tornar aceitável fazer a justiça com as próprias mãos e promover políticas do tipo “bandido bom é bandido morto’’.

Um facto já constatado repetidas vezes em vários países, incluindo Cabo Verde, é que não há Justiça sem Liberdade e sem Justiça não há paz. Ir por atalhos que sacrificam direitos, aumentam o poder arbitrário e discricionário do Estado e deixam os cidadãos sem possibilidade de defesa, não é o que se espera de um Estado constitucional. A expectativa é que qualquer deriva deve poder ser controlada e revertida com “checks and balances”, pesos e contrapesos, que resultam designadamente do pluralismo do sistema político, da actuação moderadora do presidente da república suprapartidário e das decisões de magistraturas independentes. Para isso é fundamental a assunção plena dos cargos e o exercício das respectivas competências num quadro de lealdade, ciente de que as virtudes do sistema só se revelam com o funcionamento na totalidade das suas diferentes partes. Também fundamental é manter bem vivo do lado dos cidadãos o sistema de valores e princípios consagrados na Constituição e trabalhar para que seja seguido e aplicado por todos na república. Como disse James Madison se não há virtudes [republicanas] entre nós, vamos estar numa situação miserável.

Administrar a Justiça significa dirimir conflitos partindo do princípio que todos são iguais perante a lei e que a lei deve ser aplicada a todos de forma igual. Para que a justiça seja eficaz e aceite por todas as partes é evidente que tem que ser independente, em particular na relação com o Estado que é a entidade mais poderosa no país, e há que assegurar que o próprio Estado se submete à lei e às decisões dos tribunais.Conseguir criar um corpo de magistrados com uma cultura institucional em que todos e cada um veja como sua missão realizar com independência, com competência e com celeridade razoável para ser efectiva não é tarefa fácil em qualquer democracia. De facto, quantas vezes já se tentaram reformas da justiça em países como Portugal e França. Na Itália, há uns três meses atrás, estava-se a ultimar a mais recente reforma centrada nos prazos processuais e nas prescrições. Em Cabo Verde, avançou-se com uma revisão constitucional em 2010, instalaram-se os tribunais de relação, em 2016 e fizeram-se várias alterações nas leis para além de injecções de recursos materiais e humanos ao longo dos anos para se ter uma justiça mais eficaz.

Ninguém está completamente satisfeito com os resultados obtidos, mas é claro que conciliar a independência em relação ao poder político com a exigência de uma prestação na administração da justiça atempada para ser útil a uma magistratura com autogoverno, e por isso propício a atitudes corporativistas, também não deverá ser fácil. Há opções que podiam ser feitas para melhorar a situação e garantir uma maioria de não magistrados nos conselhos das magistraturas como a Constituição anteriormente previa e acontece noutros países. De qualquer forma, o parlamento está em falta há vários anos ao não eleger substitutos nos conselhos superiores que terminaram o mandato. Também devia-se avaliar se a inovação quanto à composição e a presidência do CSMJ, que deixou de ser por inerência o presidente do supremo tribunal de justiça, tem sido útil para o sistema e qual deve ser o papel do Presidente da República no processo da nomeação dos presidentes desses órgãos. A Inspecção Judicial merece uma outra reflexão provavelmente “fora da caixa” para se encontrar uma solução que sirva os objectivos da autogestão da magistratura e ajude a recuperar a confiança dos cidadãos na capacidade de o sistema rever as suas práticas, promover o mérito no seu seio e manter-se distante da influência política e de outros interesses prejudiciais à integridade da magistratura.

É evidente que o que não se precisa é instigar as pessoas contra o sistema como se verificou nos últimos dias. Na prática significa atirá-las contra as instâncias que eventualmente poderão defendê-las se todos as outras falharem em reconhecer-lhes direitos. Por outro lado, há que existir maior sensibilidade da parte da magistratura quanto à oportunidade de apresentação da questão salarial e outros benefícios como pensões em caso de aposentação. Não é o que transparece no relatório sobre o Estado da Justiça entregue ao parlamento. Com o país a enfrentar a crise pandémica, não é o melhor momento para isso. De qualquer maneira, a suposta indexação aos salários dos políticos já foi contornada com os vários subsídios e depois dos acórdãos do STJ de 2019, tais subsídios já contam para a pensão.

Contenção e razoabilidade devem prevalecer principalmente quando existem forças que, aproveitando-se das fragilidades da democracia, procuram pôr em causa as instituições. Deve-se entender que, ao atacar a justiça da forma como tem sido feita, é a própria liberdade que fica em risco de ser esvaziada. O momento é para unir esforços para enfrentar essas ameaças e impedir que a crise pandémica vá além dos seus efeitos socio-económicos e se transforme numa crise da democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1035 de 29 de Setembro de 2021.