segunda-feira, setembro 30, 2024

Celebrar a Constituição para aumentar confiança e resiliência

 Celebra-se hoje, 25 de Setembro, o trigésimo segundo aniversário da Constituição da República. Trinta e dois anos atrás, pela primeira vez Cabo Verde, enquanto país independente, cumpria o estipulado no artigo 16º da declaração universal dos direitos humanos e do cidadão aprovada em 1789 na sequência da revolução francesa: A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. A partir de 25 de Setembro de 1992 passou a ter uma Constituição com os direitos fundamentais garantidos, o poder legitimado pelo voto popular, a separação dos poderes, o Estado de Direito democrático e a independência dos tribunais.

Finalmente Cabo Verde conseguia basear a sua ordem constitucional nos princípios e valores civilizacionais hoje considerados universais que tinham sido enunciados mais de duzentos anos antes nas revoluções americana e francesa. A ascensão à civilização e à modernidade que isso representou foi acompanhada nos anos seguintes de crescimento económico e social num ritmo nunca antes verificado à medida que se libertavam as energias sociais na forma de iniciativa individual, criatividade e disposição para correr risco. Contribuía ainda para motivar as pessoas a confiança que naturalmente emerge da vivência num Estado de Direito democrático, com governos estáveis e garantia de alternância no governo e transferências pacíficas de poder.

As dificuldades nestas duas décadas deste século em propiciar as taxas de crescimento, que o país precisa para se desenvolver e eliminar a pobreza extrema, interpelam a todos o quão efectivo tem sido o aproveitamento dessas energias individuais e sociais libertadas. Nesse sentido, interroga-se o quanto a manutenção de uma economia a funcionar de forma ordeira tem servido de incentivo à iniciativa privada e o quanto a existência de uma cultura meritocrática tem contribuído para motivar as pessoas para serem agentes de mudança e inovação. É também de perguntar o quanto é que, pela promoção de uma cultura de respeito à ordem constitucional, se tem reforçado as bases da confiança nas instituições, confiança cívica e, por extensão, confiança interpessoal.

O facto de um número crescente de pessoas estarem a ponderar a possibilidade de emigração não só à busca de trabalho e de melhores salários como de possibilidade de fazer uma carreira profissional e académica já é preocupante. Pode sugerir que não se está a explorar bem o potencial do país, em particular do seu capital humano. Ter outras pessoas a querer deixar o país à procura de um ambiente mais seguro, de melhores cuidados de saúde e mais favorável para a educação dos filhos é bastante complicado. Levanta outras questões de confiança na viabilidade do país ou na capacidade de produzir uma liderança à altura dos desafios actuais e focada na prossecução do bem público.

Crises sucessivas (secas, pandemia da covid-19, guerra na Ucrânia e inflação geral dos preços) e num curto espaço de tempo podem criar algum desânimo, mas o que se revela perturbador são as fragilidades da liderança política enquanto os seus titulares disputam influência e esforçam-se por ter protagonismo pessoal e ganhos eleitorais. Notam-se as perdas em sede de responsabilização política, de prestação de contas, de transparência e de ética republicana. Daí pode ser um passo para se contestar o sistema político e exacerbar as tensões naturais que asseguram a sua dinâmica e estabilidade recorrendo aos posicionamentos anti-sistema que caracterizam muitos dos populismos em voga. É mais fácil isso acontecer quando disputas ideológicas remanescentes do velho regime de partido único continuam a ter vida própria, insuflada por instituições do Estado e actores políticos prominentes em colisão directa com os princípios e valores constitucionais.

Os trinta e dois anos da vigência da Constituição da República têm sido de estabilidade política, de governos a cumprir mandatos completos e já com duas alternâncias na governação sem crise. Na base deste sucesso está o sistema de governo de base parlamentar em que o presidente da república não governa e quem define e implementa as políticas interna e externa do país é o governo suportado pela maioria no parlamento perante o qual é exclusivamente responsável. Desde dos primórdios da II República certas contestações à ordem constitucional tomaram a forma de críticas dirigidas ao sistema de governo no sentido de acentuar os poderes presidenciais em detrimento do seu pendor parlamentar. Mesmo as décadas de estabilidade e de tensões sem grande impacto entre o PR e o Governo, somadas às alterações feitas nas revisões constitucionais de 1999 e 2010 no sentido dessas críticas, não atenuaram o teor do discurso produzido nesse sentido. Assiste-se agora ao seu recrudescimento nas actuais tensões entre esses dois órgãos de soberania.

Curiosamente, o momento de menor tensão terá sido quando José Maria Neves era primeiro-ministro e em entrevista publicada em Outubro de 2014 na revista Vozes das Ilhas revelava ser “contra o sistema presidencialista (…) para evitar a excessiva personalização do poder”. Justificava com o facto que podia abrir “espaços a clientelismos, a compadrios, a jogos de bastidores, a fragilização dos partidos políticos”. Na entrevista ainda mostrou-se a favor de um PR eleito pelo parlamento e defendeu a adopção de um regime de chanceler, supõe-se à imagem da Alemanha onde o chanceler é eleito pelo parlamento e seu peso na orientação das políticas do governo é maior do que o dos primeiros-ministros noutros países. De lá para cá, deve ter mudado de ideias e, pelo conteúdo do ante-projecto da presidência da república dado a conhecer ao público no Facebook pelo chefe da casa civil, percebe-se que se tornou desejável um protagonismo que vai mais além do verificado com os três presidentes que o antecederam.

É evidente que num sistema marcado pela separação de poderes os equilíbrios perdem-se quando à acção não é contraposta uma reacção igualmente forte e em sentido contrário. Nas legislaturas anteriores a 2016, a firmeza da relação entre o governo e a sua maioria parlamentar não deixavam margens para dúvidas. Nos últimos anos o aparente descaso do primeiro-ministro em agir como presidente do partido perante sinais de fractura na maioria parlamentar revelam fragilidades que tendem a acentuar tensões entre os órgãos de soberania no exercício das respectivas competências. É o que aconteceu entre o PR e o Governo, mas também entre o governo e a assembleia nacional que neste caso precipitou o pedido de demissão da direcção do grupo parlamentar do MpD face à atitude de governantes e instituições do Estado de se associarem oficialmente às comemorações sem aprovação legislativa prévia.

Uma outra pressão sobre o sistema democrático, a exemplo do que se tem verificado noutras democracias, tem vindo de manifestações de carácter populista que tem como alvo o poder judicial. Apoiando-se nas deficiências da justiça, em particular na morosidade e na falta de eficácia em certos casos, ataques dirigidos ao sistema no seu todo chegaram mesmo ao Tribunal Constitucional e estiveram à beira de pôr em confronto órgãos de soberania. Uma eventual colisão foi evitada a tempo pela decisão do PR em rejeitar liminarmente a petição apresentada. Infelizmente, algo similar parece estar a repetir-se em relação ao Tribunal de Contas. Apoiando-se no facto de que foi ultrapassado o tempo de mandato dos juízes do TdC, como aliás de vários órgãos para cuja nomeação participam órgãos do poder político, para falar de precariedade e transitoriedade, quando é sabido que os mandatos dos juízes só terminam com a posse de um novo juiz, pode configurar pressão sobre os tribunais.

Com questões sérias de prestação de contas e responsabilização política por resolver, a última coisa que podia acontecer é qualquer sinal vindo de actores políticos a procurar deslegitimar o TdC. A vítima maior disso seria a perda da confiança na democracia e nas suas instituições quando o que urge neste 25 de Setembro é que se reforce a confiança na ordem constitucional aprovada há 32 anos. Para que o país possa estar em melhor posição de enfrentar os enormes desafios que tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 20, 2024

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

A paz passa pela justiça e pela verdade

 

No Festival Pela Paz, no Tarrafal, em comemoração do centenário de Amílcar Cabral, que terminou, sábado, dia 14, o abraço do presidente da república e do primeiro-ministro, na óptica dos organizadores, terá sido o ponto alto do evento. Estaria em linha com as declarações dos artistas no sentido de que a paz é um bem precioso. A encenação do acto trouxe à memória a iniciativa de Bob Marley em Abril de 1978 a chamar ao palco os dois protagonistas da violência política, em Jamaica, Michael Manley e Edward Seaga, para apertar as mãos num show de paz e unidade. A evocação pretendida, porém, não cola aqui. A diferença é que Cabo Verde não está em estado de guerra civil, nem há facções armadas ou se verificam distúrbios de monta na via pública como então acontecia nessa ilha das Caraíbas.

O PR e o PM apressaram-se a dizer isso mesmo, afirmando em uníssono que “sempre estivemos com a paz”, mas não desfizeram o equívoco criado. Pelo contrário, espalhou-se via os média e as redes sociais, como pretendido, substanciando a ideia do Tarrafal como um sítio de encontro espiritual em relação à paz. A verdade é que Bob Marley com base no rastafarianismo e na crença no Black Messiah pensou que através da música poderia unir e trazer paz para Jamaica. Não conseguiu como era óbvio. A repetição da sua iniciativa como uma espécie de farsa – em Cabo Verde não há violência política – procura trazer ao de cima, pela via da música e de iniciativas como Marcha Cabral Pela Paz, um certo espiritualismo, alimentando a idolatria de Cabral que caracteriza as comemorações do centenário.

Entretanto, na sociedade o efeito provocado é o de confirmar nas pessoas o cinismo e a hipocrisia que caracteriza muita da actuação da classe política. E é esse descrédito nas instituições e nos seus titulares que, quando criado, pode ser uma ameaça para a paz social. A Constituição de 1992 logo no seu artigo nº1 reconhece como fundamento para paz a inalienalibilidade e a inviolabilidade dos direitos humanos. De facto, sem os direitos, liberdades e garantias e o Estado de Direito não há forma de se viver na paz como um indivíduo livre, num ambiente plural e autónomo para perseguir interesses próprios. Sem uma ordem constitucional baseada nesses valores liberais, a alternativa é a ordem autocrática ou totalitária em que a maior ameaça à paz vem do próprio Estado que a qualquer momento e com total impunidade pode atirar-se contra indivíduos ou grupos despojando-os de direitos, de propriedade ou da própria vida.

Cabo Verde conhece isso da sua própria experiência dos primeiros quinze anos após a sua independência. Por isso que tem esse longo catálogo de direitos na constituição de 92. Por isso é que o país tem mais de um partido a concorrer nas eleições periódicas e o próprio poder do Estado é repartido pelos diferentes órgãos de soberania sem hierarquia entre eles e cada um exercendo as suas competências de acordo com o princípio da separação e interdependência dos poderes. Ameaça-se quebrar a paz quando por excesso ou omissão não se cumprem as competências próprias e se foge aos procedimentos democráticos instituídos a favor de arranjos e conluios paralelos sem possibilidade de escrutínio.

Ameaça-se ainda a paz usando poder do Estado para disseminar conteúdos ideológicos em directa colisão com os princípios e valores constitucionais. Nos países democráticos as ideias fluem naturalmente, mas a quem tem responsabilidades do Estado não lhe é permitido que no exercício das suas funções promova ideologias contrárias à democracia e ao Estado de Direito. Razão entre outras porque não há personificação do Estado num líder histórico. Isso só acontece actualmente na Coreia do Norte onde Kim-il Sung é considerado símbolo nacional e é tido como pai da nação. No passado, aconteceu com líderes na ex-União Soviética, Cuba, China. Por isso é que não faz nenhum sentido considerar Amílcar Cabral como símbolo nacional. O regime democrático não permite a personificação nacional senão como figuras alegóricas ou iconográficas como Marianne, em França, a imagem da república em Portugal ou o tio Sam nos Estados Unidos da América. Acresce ainda o facto da figura de Amílcar Cabral ter sido assumida pelo regime pós-independência de partido único como Fundador da Nacionalidade e Militante nº 1 do partido único, o PAIGC.

O artigo 8ª da Constituição da República estabelece quais são os símbolos da República: a Bandeira, o Hino e as Armas Nacionais. É evidente que sem uma revisão constitucional não é possível alterar ou acrescentar outros símbolos, algo que só pode acontecer com iniciativas de revisão pelos deputados e depois de uma votação por maioria qualificada de dois terços dos efectivos no parlamento. Nesse sentido, não se compreende a declaração do presidente da república no dia 12 de Setembro ao afirmar que “Amílcar Cabral é um símbolo da República e como tal merece a atenção de todas as instituições da República”. As instituições da república, assim como o próprio PR, estão, de facto, obrigados a cumprir os comandos da Constituição, que, neste caso particular dos símbolos nacionais, são de aplicação directa e tratam de valores de referência de toda a colectividade nacional. O normal funcionamento de todo o sistema político e a manutenção da paz social exige que não se deixem subordinar a qualquer conveniência político-ideológica, vinda de onde vier.

Os múltiplos momentos de tensão entre os órgãos de soberania, presidente da república, parlamento e governo, a que se vem assistindo, têm os elementos de um conflito ideológico que ainda opõe o antigo regime à democracia, mesmo trinta e dois anos depois. Perante a dificuldade de fazer valer certo tipo de argumentos hoje quase universalmente considerados retrógrados, recorre-se à figura de Amílcar Cabral para ainda manter uma ascendência sobre a sociedade cabo-verdiana. A sua morte prematura e trágica permitiu criar um mito quase messiânico à sua volta com mistérios à mistura, designadamente em relação ao seu assassinato e interrogações esperançosas de como seria se tivesse governado.

Daí as proclamações de “Cabral ka mori”, e lamentos de que é repetidamente morto e até há quem fale numa segunda vida. A idolatria não parece ter limites e no Tarrafal faz-se uma encenação de que em seu nome a paz pode chegar aos homens de boa vontade. O país é que não merece ficar numa situação de apanhado entre dois mundos enquanto quem outrora teve ascendência ideológica sobre o povo, a sua cultura e a sua história tudo faz para o manter cativo. A paz passa pela justiça e pela verdade. Cinismo e hipocrisia não podem ser normalizados como forma de fazer política. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

sexta-feira, setembro 13, 2024

Para um ano lectivo sem sobressaltos

 

O novo ano lectivo arranca na próxima semana a partir do dia 16 de Setembro e já se anuncia que vai ser conturbado. Aliás, há meses que se vem preadivinhando que iria arrancar a meio de conflito aberto entre o governo e os sindicatos dos professores. A iniciativa governamental, após vários rounds de negociação, de avançar com um decreto-lei dando satisfação à parte significativa das reivindicações, em particular, quanto às requalificações e ao aumento do salário-base abriu a possibilidade de se evitar perturbações na abertura das aulas. Rapidamente, porém, as esperanças nesse sentido se desvaneceram.

Os sindicatos manifestaram imediatamente a sua oposição ao diploma e pediram ao presidente da república para o vetar. Na sequência, o PR acedeu a receber os sindicatos com o objectivo de “garantir paz social, favorecer a melhoria da qualidade do sistema educativo cabo-verdiano e garantir que o arranque do ano lectivo 2024-2025 seja feito com tranquilidade”. Pelas declarações dos sindicatos à saída dos encontros com o PR, a confessarem-se “intransigentes” em matéria de estatuto dos professores, percebeu-se logo que o mais provável era dar-se continuidade ao que acontecera no ano transacto, ou seja, paralisação de aulas, manifestações e ameaças de não publicação das notas dos alunos.

Nesse sentido, a audiência pelo PR apenas criou oportunidade para reiterar posições já conhecidas dos sindicatos. E com o veto, aparentemente em resposta ao pedido explicitamente feito pelos sindicalistas, claramente que não foram criadas as melhores condições para se ultrapassar as intransigências das partes envolvidas, com todas as consequências já conhecidas. É um exemplo clássico da razão por que o presidente da república não deve se colocar na posição de mediador de conflitos laborais, mormente quando em confronto se encontra o governo, que dirige superiormente a administração pública, e as classes profissionais. Pior ainda quando parece reforçar a posição negocial dos sindicatos.

De facto, é o governo quem conduz as políticas públicas e presta contas pelos resultados da governação perante o parlamento e o eleitorado. Nessa qualidade está em melhor posição de conhecer e gerir os recursos públicos, fazer as ponderações necessárias no uso dos recursos e estabelecer prioridades, responsabilizando-se no fim do dia pelas suas escolhas. Em se tratando de matéria complexa e potencialmente fracturante é de toda a importância que a comunidade nacional reforce o que a une para que o debate democrático no seu pluralismo não seja divisivo e, pelo contrário, ajude a iluminar os problemas e abrir caminhos para se encontrar soluções factíveis.

A educação, como sector fulcral para o desenvolvimento do capital humano do país, é uma dessas matérias complexas que a existência de um consenso geral, quanto à necessidade de preservar a sua estabilidade, de manter o foco na sua qualidade e de valorizar social e profissionalmente os seus quadros, é fundamental. Disrupções no sector têm repercussões que levam anos e às vezes gerações a reparar e a ultrapassar. Deficiências na qualidade põem em perigo a possibilidade de realização dos indivíduos e de ter um país produtivo, competitivo e próspero. A eventual falta de autoestima e de brio profissional dos seus quadros poderá revelar-se fatal, independentemente dos meios que venham a despejar sobre o sistema.

Para um país que praticamente não tem nenhum outro recurso que não a sua gente, os seus jovens e crianças, a educação não devia ser matéria para tricas político-partidárias, jogadas eleitoralistas e activismos ideológicos. O envolvimento do presidente da republica, enquanto figura suprapartidária e representativa da unidade da Nação à volta dos princípios e valores constitucionais, tem sentido se é visto como promotor desse consenso geral. Também se é tido como facilitador ao longo do processo de reformas muitas vezes árduo devido à escassez de recursos, à resistência a mudanças e ao lastro acumulado de medidas pouco avisadas e oportunidades perdidas. Não pode é ser tomado como parte, como mentor ou como activista de alguma causa fracturante.

A confiança nas instituições é fundamental em democracia. A sua manutenção depende em grande medida da vontade de todos os actores políticos em seguir as regras do jogo democráticos, em prestar contas e a se responsabilizarem pelos seus actos. Também essencial é haver um consenso geral quanto ao exigir dos detentores de cargos públicos o cumprimento das regras, uma exigência que não seja diminuída pela conveniência do momento, nem pelo cinismo. Como no futebol ou em qualquer outro desporto, considera-se que há bom jogo quando jogadores e os árbitros, cumprindo com as regras, permitem que a perícia individual e a estratégia da equipa sejam dirigidas espectacularmente para marcar pontos. O espírito desportivo que emerge daí até dá para aceitar resultados em que nem sempre os melhores em campo ganham. Algo similar devia acontecer em democracia com a assunção de uma cultura democrática tendo na base o cumprimento das normas e procedimentos democráticos. Menos crispação e mais resultados seriam obtidos.

Um outro elemento importante para a confiança é a forma como são geridos pelo governo os recursos públicos e como são aplicados ao serviço do interesse geral. Princípios como os da justiça, da transparência, da imparcialidade e da boa-fé devem ser respeitados. A par disso, deve imperar a preocupação com os resultados e a necessidade de ter em atenção a relação custo/benefício nos investimentos e assegurar o equilíbrio das contas públicas. Projectando essa imagem da gestão pública, reforça-se a confiança e diminui-se a possibilidade de negociações em curso de vários interesses em jogo degenerarem em conflito aberto. Também será mais fácil para o público reconhecer quando há intransigência das partes e se fazer pressão para ultrapassar bloqueios. Por outro lado, é evidente que não contribui para a confiança desejada excessos de protagonismo, extravagâncias e falta de rigor e de sobriedade na condução dos assuntos públicos de parte de quem exerce cargos políticos.

Depois de todas as perturbações que marcaram o ano lectivo 2023/24 e das extenuantes e complicadas negociações entre o ministério da educação e os sindicatos, o governo produziu um decreto-lei que regula as requalificações dos professores. Certamente que não contempla tudo o que era reivindicado, mas, como em qualquer negociação, há que se chegar a compromissos, principalmente quando a questão é tão complexa, e pelo número de professores envolvidos, qualquer alteração tem custos enormes. O importante é que com o actual compromisso se reforce a base de confiança entre as partes para continuar a negociar, e de forma programada se chegue a acordo para resolver os problemas dos profissionais do sector.

A educação é demasiado importante para o futuro do país para ficar em situação de instabilidade, com os professores desmotivados e num conflito aberto que põe em causa o seu comprometimento com os alunos. O governo deve levar ao parlamento com urgência uma proposta de lei que já responda a reivindicações de requalificação e aumento salarial dos professores em linha com o negociado. Deverá haver abertura e boa-fé para continuar a negociar sem ser afectado pelo ciclo eleitoral que se inicia. Os alunos, as famílias e o país esperam um novo ano lectivo a funcionar com normalidade. 

Humberto Cardoso