Meses de apreensão geral no mundo sobre o futuro presidente dos Estados Unidos de América chegaram finalmente ao fim com a realização das eleições de 5 de Novembro. Uma sombra tinha descido sobre a América desde que ficou claro que Donald Trump seria o candidato republicano, não obstante todas as transgressões imagináveis entre as quais o incitamento à insurreição e fraude eleitoral, desvio de documentos secretos, crimes fiscais e assédio sexual. Nessas circunstâncias, aparentemente, só o presidente Biden que o derrotara antes estaria na posição de o vencer pela segunda vez, afastando o espectro de uma América errática, no suporte a instituições de governança global e de luta contra as mudanças climáticas e outros desafios planetários, sem engajamento firme com os aliados e a flirtar com autocracias.
A realidade dos efeitos da idade avançada sobre Biden ficou impossível de ignorar na sequência do debate falhado com Trump em Junho, abrindo caminho para o lançamento da candidatura de Kamala Harris sem o tempo e sem o escrutínio que, normalmente, pela via das primárias são escolhidos os candidatos ao cargo de presidente. Apesar dos percalços, a nova candidata rapidamente conseguiu o apoio das várias alas do partido democrático e soube galvanizar o país com uma campanha que rivalizou com a de Trump reflectida nas sondagens que sistematicamente ao longo dos meses a puseram em termos de intenção de voto a par ou ligeiramente acima do adversário. E o extraordinário é como, no confronto com um projecto político (Trump) que põe em causa a democracia constitucional de quase 250 anos, o eleitorado parece dividido a meio.
Trata-se de um verdadeiro aviso para todas as democracias. Aliás, a dinâmica de uma certa direita radical na generalidade das democracias no mundo inteiro deixa aperceber que o fenómeno na base da emergência de Trump está presente ou latente em diferentes democracias só que ainda não suficiente amadurecido, mas a crescer paulatinamente, eleição a eleição. Na América pode-se observar o desgaste da democracia provocado por anos de posicionamentos iliberais vindos de diferentes quadrantes políticos e de contestações à ordem constitucional vigente. Chega-se à situação actual do partido republicano, que em certos aspectos já não aparenta ser um partido político, mas uma organização política que cegamente serve um chefe, de ter uma fracção expressiva dos seus dirigentes de décadas a incentivar publicamente a votação no candidato do outro partido.
Na Europa e em outros países, pode-se não ter chegado a esse nível de captura dos partidos por um outsider, mas ninguém pode garantir que, com o tempo e a entrada em cena da figura certa, o mesmo fenómeno Trump não apareça com todas as consequências. O motor para a sua expansão tem sido fundamentalmente o medo, os preconceitos, o ressentimento e a xenofobia. São os sentimentos que se procura suscitar na população e no eleitorado para exprimir os problemas reais das pessoas e da sociedade e as suas expectativas em relação ao futuro. Com maior ou menor grau de sucesso essas tácticas tem surtido efeito e a tendência é de progressivo alargamento eleitoral, contribuindo para isso não só as redes sociais, mas também as posições de certa esquerda focada em políticas identitárias, por si próprias iliberais.
A consequência óbvia disso é a tribalização da sociedade, o enfraquecimento da coesão social necessária para se manter a ordem constitucional e a oportunidade aberta ao surgimento de demagogos. Na América provavelmente deu-se um passo mais além porque se acrescentou mais uma componente que é a impunidade dos actores políticos envolvidos. Donald Trump ao longo de anos, primeiro como candidato, depois como presidente e outra vez como candidato não reconhecendo a derrota, nunca mostrou limites nos insultos proferidos, nas mentiras espalhadas, nas ameaças feitas e nos actos praticados contra pessoas e instituições. Até agora ficou impune apesar dos “impeachments”, dos processos judiciais, das denúncias nos média e de todos terem conhecimento do que ele fez. Ele próprio os confirma. Com isso tem provado que, como disse em Janeiro de 2016, podia atirar em alguém em plena 5ª avenida de Nova Iorque e não perderia nenhum voto.
De facto, não tem perdido votos apesar da incoerência das suas propostas políticas, da falta de idoneidade para exercer o cargo de presidente como testemunhado por grande número dos antigos colaboradores e da sua insensibilidade, revelando narcisismo extremo, chamando soldados mortos em combate de tolos e perdedores. Pelo contrário, os apoiantes têm aumentado e o seguidismo do líder parece sobrepor-se à discussão de políticas para o país. Para eles o objectivo de conquista do poder prevalece sobre tudo, na lógica de que os fins justificam os meios.
A de facto tirania da minoria que os republicanos têm exercido e que lhes permitiu fazer a captura do Supremo Tribunal de Justiça generalizou uma forma de política que não se deixa limitar pelas regras do jogo democrático. Chegou-se ao ponto de pôr em causa a ordem constitucional mesmo na relação entre o poder civil e os militares, como testemunham altas patentes das forças armadas. Com tudo isso, terão ultrapassado de uma certa forma os limites, o que terá levado uma parte importante dos republicanos influentes a se distanciarem do partido. Uma outra consequência é que gerou uma grande movimentação das mulheres a favor dos direitos reprodutivos que tinham ficado em perigo com as decisões dos tribunais, provocando uma onda de suporte a Kamala Harris. A grande questão é se será suficiente para travar o avanço do que personalidades e académicos como Robert Paxton estão a chamar de fascismo em outras roupagens que se está a querer impor à América.
Noutros países existem também perigos similares de surgimento de demagogos que com impunidade consigam descredibilizar as instituições, mentir descaradamente e construir realidades alternativas de base partidária bloqueadoras de qualquer tipo de diálogo na arena pública. Para isso, muitas vezes recorrem a partidos já existentes e, passando uma imagem de outsider, de anti-elites e de anti-partido, movem-se para capturar as organizações partidárias e transformá-las nos seus instrumentos pessoais de conquista do poder. Apesar dos ataques cirúrgicos dirigidos aos média e ao poder judicial na generalidade dos casos, não há sinal que venham gozar do mesmo grau de impunidade que tanto tem intoxicado os apoiantes de Trump. De qualquer forma, há que estar alerta para o fenómeno que até aqui em Cabo Verde já se faz sentir e que certamente vai afectar as eleições autárquicas em particular na Cidade da Praia com possibilidades de derrame sobre as eleições seguintes para a legislatura de 2026.
A possível vitória de Donald Trump ou de Kamala Harris significaria desfechos opostos com impactos profundos.
Uma vitória de Trump colocaria o mundo numa montanha-russa de imprevisibilidade, com consequências difíceis de conter, incentivando movimentos populistas e fascistas noutras democracias e potencialmente intensificando o desengajamento global dos Estados Unidos. Isso poderia aumentar a pressão migratória em direcção à Europa e à América e o exacerbar de sentimentos anti-imigrantes, trazendo o risco de um retrocesso civilizacional onde os ideais de liberdade e democracia cedessem espaço à autocracia como solução aparente num mundo de crises inesperadas, instituições multilaterais frágeis e segurança coletiva precária.
Já uma vitória de Kamala Harris seria vista como um travão à deriva anti-sistémica e um reforço dos valores democráticos, permitindo enfrentar ameaças existenciais como alterações climáticas e abordando tensões geopolíticas e guerras em curso com esperança de se encontrar soluções. Também significaria que, não obstante a forte tendência para a polarização de opinião pública e para uma tribalização da acção política, há esperança que o equilíbrio poderá ser retomado, os compromissos negociados e que o sentido do bem comum se sobreponha ao individualismo extremo, à atomização social e à guetização em identidades cada vez mais diminutas e desconfiadas dos outros. Que renasça a esperança e a solidariedade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1197 de 06 de Novembro de 2024.