Há três anos atrás, a 24 de Fevereiro, a invasão da Ucrânia pela Rússia provocou sobressaltos em todo o mundo. Aparentemente estar-se-ia a voltar aos tempos de resolução violenta dos conflitos, do desrespeito pela integridade territorial dos Estados e de anexação de países inteiros para saciar apetites imperialistas. A resistência heróica do povo ucraniano que se seguiu à invasão trouxe alento que não seria assim.
O apoio militar imediato que a Ucrânia recebeu dos Estados Unidos e da Europa foi crucial para conter a incursão russa e para reforçar a importância de se garantir o respeito pela integridade dos Estados soberanos, independentemente da sua dimensão, localização ou peso económico. No mesmo sentido foi a posição tomada na Assembleia Geral das Nações Unidas, com 145 votos a favor num total de 190, de apoiar a Ucrânia e exigir a retirada das tropas russas. O sentimento geral era que, apesar dos sinais a apontarem para o aparecimento de um mundo multipolar, a ordem liberal construída depois da segunda guerra mundial manter-se-ia.
A realidade actual veio provar que isso não estava para acontecer. Se dúvida houvesse foi dissipada no encontro entre Trump e Zelensky na Casa Branca em que ao presidente da Ucrânia se quis impor um acordo de fim da guerra, sem a sua participação nas negociações e sem garantia de segurança. Ainda se lhe exigia que mostrasse gratidão disponibilizando recursos ricos do seu país a empresas americanas. Antes, uma resolução da Assembleia Geral da ONU de condenação da invasão russa tinha passado com o voto contra dos Estados Unidos e só com 93 dos votos a favor, num total de 174.
De facto, o tratamento indigno dado ao presidente Zelensky, incluindo o de lhe chamar ditador, e o voto dos EUA contra a condenação da agressão russa indiciam que os princípios e valores que nortearam o mundo nos últimos 80 anos deixaram de ser seguidos. Aparentemente já não se pode confiar que países grandes ou pequenos sejam igualmente merecedores de respeito, nem que, sem seu consentimento, tenham mudanças territoriais ou que os países possam livremente escolher os seus governantes e relacionar-se ou fazer comércio em igual termos que os outros. Se não houver qualquer inversão desse comportamento, provavelmente será o fim da uma era nas relações internacionais iniciada por Roosevelt e Churchill, em 1941-2, na Carta Atlântica e que abriu caminho para a criação da ONU e de outras organizações multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, a OMS e a Organização Mundial do Comércio.
Infelizmente não se vê muito espaço para optimismo nesse sentido. Há um mês atrás, a 4 de Fevereiro, o presidente Donald Trump emitiu uma ordem executiva decretando a retirada dos Estados Unidos de organizações como a UNESCO e a UNHRC. Também deu o prazo de 180 dias para a revisão da presença e financiamento do país em todas as organizações intergovernamentais internacionais. Certos observadores não excluem a possibilidade de saída do FMI e do Banco Mundial. Aliás, o Projecto 2025 associado à candidatura de Trump explicitamente reduz o FMI e o BM à condição de intermediários caros que interceptam o financiamento americano antes de chegar aos projectos no estrangeiro.
O esventramento da USAID nas últimas semanas é sinal claro que essas políticas de diminuição da sua participação na ajuda internacional e nas organizações multilaterais são para continuar. Problemático também é que é provável que essa atitude não fique só pela América e que seja imitada na Europa. No Reino Unido uma boa parte da ajuda externa vai ser reconduzida para a defesa nacional e tudo leva a crer que outros países europeus vão se sentir pressionados a fazer algo similar, considerando a necessidade de apoiar a Ucrânia e de responder à ameaça russa, particularmente quando não há garantia absoluta do apoio americano em caso de guerra.
O enfraquecimento do princípio da solidariedade mútua entre os aliados expresso no artigo 5º da NATO é mais um elemento que anuncia que se está no fim de uma era e no início de uma outra mais caótica, mais propensa a conflitos e fundamentalmente mais desigual na relação entre os Estados. No mundo multipolar que se desenha aparentemente dominado pelos Estados Unidos, pela China e pela Rússia já livre da guerra e das sanções internacionais por obra e graça de Trump, não vão faltar tensões complicadas. São esferas de influência a consolidar, podem ser novas potências nucleares a surgir para evitar o destino da Ucrânia e também novas cadeias de valor e de abastecimento a serem forjadas. Paralelamente a isto tudo há que lidar com as grandes manchas de pobreza e subdesenvolvimento que não deixaram de pressionar o resto do mundo, ora limitado na sua intervenção por deficiências das organizações multilaterais e ausência de uma solidariedade universal consolidada e focada nos mais carentes.
Há quem diga que a União Europeia mais o Reino Unido, se souberem ultrapassar as rivalidades no seu esforço para garantir a segurança do continente e o estatuto de superpotência económica, poderão fazer a diferença na nova era e manter a esperança que o mundo não é apenas para os mais fortes, os mais ricos e os mais sem escrúpulos. Não será uma tarefa fácil porque é perceptível que uma vaga iliberal, potencialmente maioritária, como já provou ser nos EUA e cresce a olhos vistos noutras democracias, poderá torpedear a UE ao aliciar alguns países a criar individualmente relações especiais com os centros multipolares. E para a ascensão dessa vaga maioritária mais migrações e mais pedidos de ajuda vindos do Sul serão um incentivo perfeito, criando um círculo vicioso que só pode contribuir para mais caos internacional.
Naturalmente que nessas circunstancias os países mais pequenos e mais expostos a choques externos sejam eles climáticos, económicos, sanitários ou resultantes de guerras são os mais afectados. Na lei da selva que tende a prevalecer e na nova era de relações “transaccionais” é cada vez mais forte a pressão para ceder a exigências dos mais fortes. Como a Ucrânia constatou, essa pressão não é acompanhada de qualquer acréscimo de confiança ou de garantia de segurança.
Mais uma razão para que ao nível de cada país haja um maior esforço de conhecimento da nova realidade internacional marcada por tensões entre as grandes potências e pela diminuição catastrófica da ajuda externa. Infelizmente, em vários casos, ao nível local, forças similares aos que alimentam o processo de desagregação da ordem liberal no mundo trabalham na perspectiva de lucrarem politicamente com o caos institucional, relacional e pessoal que é gerado sempre que não se consegue conciliar recursos, expectativas e a realidade do mundo envolvente.
Em Cabo Verde, também acontece e são nesses momentos pré-eleitorais e eleitorais que são mais perceptíveis assim como também as opções para as evitar. Nada está predestinado. Na encruzilhada perigosa em que o mundo se encontra neste momento é fundamental um olhar especialmente atento para todos os lados para se fazer a melhor escolha.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1214 de 5 de Março de 2025.