segunda-feira, março 10, 2025

Fazer a melhor escolha para a nova era que se avizinha

 

Há três anos atrás, a 24 de Fevereiro, a invasão da Ucrânia pela Rússia provocou sobressaltos em todo o mundo. Aparentemente estar-se-ia a voltar aos tempos de resolução violenta dos conflitos, do desrespeito pela integridade territorial dos Estados e de anexação de países inteiros para saciar apetites imperialistas. A resistência heróica do povo ucraniano que se seguiu à invasão trouxe alento que não seria assim.

O apoio militar imediato que a Ucrânia recebeu dos Estados Unidos e da Europa foi crucial para conter a incursão russa e para reforçar a importância de se garantir o respeito pela integridade dos Estados soberanos, independentemente da sua dimensão, localização ou peso económico. No mesmo sentido foi a posição tomada na Assembleia Geral das Nações Unidas, com 145 votos a favor num total de 190, de apoiar a Ucrânia e exigir a retirada das tropas russas. O sentimento geral era que, apesar dos sinais a apontarem para o aparecimento de um mundo multipolar, a ordem liberal construída depois da segunda guerra mundial manter-se-ia.

A realidade actual veio provar que isso não estava para acontecer. Se dúvida houvesse foi dissipada no encontro entre Trump e Zelensky na Casa Branca em que ao presidente da Ucrânia se quis impor um acordo de fim da guerra, sem a sua participação nas negociações e sem garantia de segurança. Ainda se lhe exigia que mostrasse gratidão disponibilizando recursos ricos do seu país a empresas americanas. Antes, uma resolução da Assembleia Geral da ONU de condenação da invasão russa tinha passado com o voto contra dos Estados Unidos e só com 93 dos votos a favor, num total de 174.

De facto, o tratamento indigno dado ao presidente Zelensky, incluindo o de lhe chamar ditador, e o voto dos EUA contra a condenação da agressão russa indiciam que os princípios e valores que nortearam o mundo nos últimos 80 anos deixaram de ser seguidos. Aparentemente já não se pode confiar que países grandes ou pequenos sejam igualmente merecedores de respeito, nem que, sem seu consentimento, tenham mudanças territoriais ou que os países possam livremente escolher os seus governantes e relacionar-se ou fazer comércio em igual termos que os outros. Se não houver qualquer inversão desse comportamento, provavelmente será o fim da uma era nas relações internacionais iniciada por Roosevelt e Churchill, em 1941-2, na Carta Atlântica e que abriu caminho para a criação da ONU e de outras organizações multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, a OMS e a Organização Mundial do Comércio.

Infelizmente não se vê muito espaço para optimismo nesse sentido. Há um mês atrás, a 4 de Fevereiro, o presidente Donald Trump emitiu uma ordem executiva decretando a retirada dos Estados Unidos de organizações como a UNESCO e a UNHRC. Também deu o prazo de 180 dias para a revisão da presença e financiamento do país em todas as organizações intergovernamentais internacionais. Certos observadores não excluem a possibilidade de saída do FMI e do Banco Mundial. Aliás, o Projecto 2025 associado à candidatura de Trump explicitamente reduz o FMI e o BM à condição de intermediários caros que interceptam o financiamento americano antes de chegar aos projectos no estrangeiro.

O esventramento da USAID nas últimas semanas é sinal claro que essas políticas de diminuição da sua participação na ajuda internacional e nas organizações multilaterais são para continuar. Problemático também é que é provável que essa atitude não fique só pela América e que seja imitada na Europa. No Reino Unido uma boa parte da ajuda externa vai ser reconduzida para a defesa nacional e tudo leva a crer que outros países europeus vão se sentir pressionados a fazer algo similar, considerando a necessidade de apoiar a Ucrânia e de responder à ameaça russa, particularmente quando não há garantia absoluta do apoio americano em caso de guerra.

O enfraquecimento do princípio da solidariedade mútua entre os aliados expresso no artigo 5º da NATO é mais um elemento que anuncia que se está no fim de uma era e no início de uma outra mais caótica, mais propensa a conflitos e fundamentalmente mais desigual na relação entre os Estados. No mundo multipolar que se desenha aparentemente dominado pelos Estados Unidos, pela China e pela Rússia já livre da guerra e das sanções internacionais por obra e graça de Trump, não vão faltar tensões complicadas. São esferas de influência a consolidar, podem ser novas potências nucleares a surgir para evitar o destino da Ucrânia e também novas cadeias de valor e de abastecimento a serem forjadas. Paralelamente a isto tudo há que lidar com as grandes manchas de pobreza e subdesenvolvimento que não deixaram de pressionar o resto do mundo, ora limitado na sua intervenção por deficiências das organizações multilaterais e ausência de uma solidariedade universal consolidada e focada nos mais carentes.

Há quem diga que a União Europeia mais o Reino Unido, se souberem ultrapassar as rivalidades no seu esforço para garantir a segurança do continente e o estatuto de superpotência económica, poderão fazer a diferença na nova era e manter a esperança que o mundo não é apenas para os mais fortes, os mais ricos e os mais sem escrúpulos. Não será uma tarefa fácil porque é perceptível que uma vaga iliberal, potencialmente maioritária, como já provou ser nos EUA e cresce a olhos vistos noutras democracias, poderá torpedear a UE ao aliciar alguns países a criar individualmente relações especiais com os centros multipolares. E para a ascensão dessa vaga maioritária mais migrações e mais pedidos de ajuda vindos do Sul serão um incentivo perfeito, criando um círculo vicioso que só pode contribuir para mais caos internacional.

Naturalmente que nessas circunstancias os países mais pequenos e mais expostos a choques externos sejam eles climáticos, económicos, sanitários ou resultantes de guerras são os mais afectados. Na lei da selva que tende a prevalecer e na nova era de relações “transaccionais” é cada vez mais forte a pressão para ceder a exigências dos mais fortes. Como a Ucrânia constatou, essa pressão não é acompanhada de qualquer acréscimo de confiança ou de garantia de segurança.

Mais uma razão para que ao nível de cada país haja um maior esforço de conhecimento da nova realidade internacional marcada por tensões entre as grandes potências e pela diminuição catastrófica da ajuda externa. Infelizmente, em vários casos, ao nível local, forças similares aos que alimentam o processo de desagregação da ordem liberal no mundo trabalham na perspectiva de lucrarem politicamente com o caos institucional, relacional e pessoal que é gerado sempre que não se consegue conciliar recursos, expectativas e a realidade do mundo envolvente.

Em Cabo Verde, também acontece e são nesses momentos pré-eleitorais e eleitorais que são mais perceptíveis assim como também as opções para as evitar. Nada está predestinado. Na encruzilhada perigosa em que o mundo se encontra neste momento é fundamental um olhar especialmente atento para todos os lados para se fazer a melhor escolha. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1214 de 5 de Março de 2025.

segunda-feira, março 03, 2025

Não há ganhadores na corrida ao fundo do poço

 Não tem diminuído a tentação dos actores políticos em se engajarem numa competição predatória entre si a qual pode ser retratada como uma “corrida ao fundo do poço” da confiança nas instituições. Pelo contrário, prossegue-se na corrida apesar dos seus óbvios efeitos erosivos e ignorando os seus próprios apelos para uma maior contenção. Na fúria da corrida, nem se presta atenção ao que se passa no resto do mundo onde já são vários os exemplos de reacção de maiorias eleitorais à procura de soluções autocráticas para inflectir atitudes e políticas em sectores sensíveis. Muito menos se nota que algumas vezes não se trata de simples correcções, mas sim de autênticos terramotos, como se tem assistido nos Estados Unidos da América.

Indiferente a isso, em Cabo Verde continua-se na política a correr para o fundo do poço acreditando uns e outros que poderão beneficiar da intranquilidade social ou do descrédito das instituições em detrimento dos outros. Recentemente apanhado nesse jogo foi o presidente da república, de acordo com seu post de sábado na sua página pessoal no Facebook. No seu texto refere-se a activistas que usam algumas das suas intervenções para o pôr “a apoiar este ou aquele candidato a Presidente do PAICV ou para, indecentemente, atacar-me”. Também reitera que não tem qualquer actividade partidária e que não faz sentido “colar-me a este ou aquele candidato como pretexto para soezes ataques à minha pessoa”.

O facto de nunca antes terem sido dirigidas a um PR acusações de tal gravidade ao ponto de ele se sentir obrigado a vir publicamente negar intromissão na escolha do candidato a presidente de um partido político denota o quanto mudou na percepção das pessoas a relação entre os órgãos de soberana, o papel de cada um dos órgãos no sistema político e as suas interacções com o sistema de partidos. Originariamente, no sistema constitucional cabo-verdiano, o presidente da república não sendo, segundo os constitucionalistas, co-governante a par do Governo, nem co-legislador a par da Assembleia Nacional, fica numa posição privilegiada para exercer o poder moderador e a função de garante do regular funcionamento das instituições. Também ao não fazer parte do executivo, nem ser chefe da oposição, e muito menos expressão de interesses partidários, sindicais ou de classe, e ainda de não responder perante ninguém, isso concede-lhe uma autoridade e uma representatividade impar que o põe acima de todas as suspeitas de interferências partidárias.

Acusações como as que o PR referiu no seu texto no Facebook nunca deveriam ter sido formuladas. Não aconteceu antes nos trinta anos de democracia. Daí que a questão que se coloca é saber que alterações houve no relacionalmente e no funcionamento do sistema de governo que as poderão ter propiciado.

Em Portugal, com um sistema constitucional bastante próximo do de Cabo Verde, a aproximação das eleições presidenciais tem desencadeado o debate sobre o papel do presidente da república no sistema político. O debate encontra a sua razão de ser no especial desafio que tem sido o exercício do cargo pelo actual presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Na percepção de muitos, o seu estilo distingue-se do dos anteriores presidentes e nem sempre pela positiva. Para o constitucionalista Vital Moreira o seu desempenho “arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial”.

Na perspectiva deste constitucionalista, o presidente entre outras coisas deve exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial; nunca esquecer que não lhe compete a função de governar e não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição; não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência e defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial. No mesmo sentido vai o ex-presidente da Assembleia da República, Santos Silva, que num artigo no jornal Expresso sobre a função presidencial aconselha que o Presidente não tem de se substituir à oposição, nem avaliá-la, nem intrometer-se nos debates parlamentares, nem interferir directa ou indirectamente na vida dos partidos, nem funcionar como comentador omnipresente dos actos dos outros.

Curiosamente o estilo no exercício do mandato que em maior ou menor grau os dois últimos presidentes de Cabo Verde resolveram adoptar aproxima-se do seguido pelo presidente português. Sendo, porém, os governos em Cabo Verde de maioria absoluta, são maiores as probabilidades de gerar tensões entre os órgãos de soberania. Essas tensões acabam fundamentalmente por depender da disponibilidade ou não do primeiro-ministro em aceitar interferências na esfera da governação do país. De qualquer forma, a possibilidade de abuso de poder surge sempre que os outros órgãos de soberania não assumem na plenitude as suas competências.

Abre-se também a porta para interferências complicadas quando, como aconteceu nas cerimónias de cumprimentos de Ano Novo, se ouve representantes do poder judicial a pedir ao PR para exercer a sua influência nos partidos sobre propostas de lei em debate no parlamento. Ou então, quando são recebidos em audiência sindicatos em processo negocial com o governo e há petições para influenciar as negociações ou mesmo para vetar diplomas legislativos. O risco é maior quando o PR se torna activista de causas e abre debates sobre políticas públicas para os quais não tem meios para implementar e mobiliza forças que depois confrontam quem governa. Com todas essas oportunidades de intervenção, fica difícil o exercício do poder moderador, por definição um poder neutro, que segundo Vital Moreira deve estar acima da dialéctica Governo-Oposição.

Uma das consequências de não ser percebido como neutro é tornar-se alvo de ataques pessoais e de acusações de interferência não só em questões da esfera governativa como também partidárias. É o que, segundo o post do PR no Facebook, está a acontecer actualmente por causa das eleições internas para presidente do PAICV. Ninguém precisa de mais uma acha na fogueira daqueles que aproveitando das falhas ou insuficiências na actuação da presidência da república, no governo, no parlamento e na justiça procuram descredibilizar as instituições democráticas. Há uma responsabilidade a assumir por todos os titulares de cargos públicos para que isso não aconteça. Não se deve cair na ilusão de que haverá um ganhador na “corrida ao fundo do poço”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1213 de 26 de Fevereiro de 2025.