sexta-feira, junho 20, 2025

Crescer mais para não ter que partir

Na sexta-feira passada, 6 de Junho, o INE divulgou os dados do desemprego em Cabo Verde a descer para 8%, a partir de 10,3% em 2023. Ontem, 10 de Junho, o Banco Mundial actualizou em alta as previsões de crescimento do país para 2025 de 5,3% para 5,9%. Em 2024 o PIB cresceu 7,4 e a expectativa para 2026 é de continuar acima do potencial de crescimento podendo atingir 5,3% de acordo com os dados mais actuais do Banco Mundial. Está-se, de facto, perante boas notícias: na conjuntura actual de muitas incertezas as taxas de crescimento de Cabo Verde continuam acima das previsões de crescimento de 3,7% para a África Sahariana e de 2,3% para a economia global, mesmo considerando que, segundo o INE, 47,5 % dos empregados trabalha na informalidade.

As boas notícias, porém, não devem desviar o foco do país da situação extremamente séria e delicada que se vive hoje no mundo. É um facto assente que as ameaças de guerra comercial já causaram estragos terríveis. Também é evidente que as tensões geopolíticas, resultantes do reposicionamento de potências emergentes, e a quebra da ordem internacional, que tinha reinado nos últimos 80 anos, já estão a redefinir as relações internacionais e a elevar os níveis de risco para a paz mundial. O que não é muito claro é que haja ambiente em Cabo Verde para se compreender a gravidade da situação e mostrar a devida ponderação perante os extraordinários desafios que se colocam.

Vários factores contribuem para que as expectativas de todos sejam altas, entre os quais estão o nível crescente de educação, o acesso universal à informação, que dá conta de oportunidades existentes no mundo, e a crença que todos devem ser capazes de realizar os seus sonhos. O problema é quando tudo isso choca com a realidade e há que ter alguma razoabilidade considerando os recursos existentes, a necessidade de organização e capacitação para produzir riqueza e o tempo exigível para a materialização dos objectivos. De facto, não é razoável esperar a gratificação instantânea de todos os desejos, a satisfação de todas as reivindicações e solução imediata de todos os problemas, como prometido pelos populistas.

A democracia, pelo contrário, ajuda a aderir à realidade quando funciona em pleno com as suas regras e procedimentos. E é assim porque propicia o diálogo, chama à ponderação e abre espaço à negociação e ao compromisso. No processo cria-se dinâmica social, política e económica ao promover a iniciativa e criatividade do indivíduo e ao incentivar o desenvolvimento do sentido de responsabilidade para a comunidade. Responsabilidade essa que deve acompanhar o exercício da liberdade e é essencial para cumprir o contracto social com vista à prosperidade de todos. Como é de esperar em situações normais e particularmente em processos de desenvolvimento nada é linear, nem tudo acontece como planeado, não se pode ter tudo e desigualdades tendem a reproduzirem-se, não obstante os esforços para as eliminar.

Um dos problemas mais complexos com que o mundo se depara actualmente é o das migração de pessoas de uns países para outros. Os que são emissores ficam com os problemas de perda de mão-de-obra, fuga de cérebros e eventualmente perda de produtividade em sectores-chave da economia. Em contrapartida, poderão ter ganhos significativos com remessas enviadas pelos seus emigrantes e futuramente com investimentos e transferência de tecnologia, know-how e espírito empreendedor. Nos países receptores preenchem-se vagas em sectores necessitados de mão- de-obra, rejuvenescem em termos demográficos, mas têm que lidar com o problema da integração dos imigrantes e as questões políticas que podem surgir da gestão de entradas.

Cabo Verde atingiu o nível de desenvolvimento que particularmente o deixa exposto ao fenómeno das migrações. Sempre foi um país de emigrantes, mas as razões eram fundamentalmente outras. Um país sujeito a secas periódicas e a fomes terríveis forçava a saída de uma parte da população para vários continentes à procura de sobrevivência e de sustento para os familiares que ficavam para trás. As saídas actualmente parecem seguir mais o padrão típico dos países de rendimento médio que atingem o patamar dos 4 mil dólares de rendimento per capita. A motivação já não é a sobrevivência, mas sim, a procura de novas oportunidades. O perfil dos novos emigrantes é o de pessoas já com um nível médio-alto de escolarização, e com formação e experiência profissional e rendimento suficiente que permite viagem e relocalização para uma nova vida em outros países.

Naturalmente causa preocupação um fluxo migratório para o exterior de gente qualificada que cria escassez de mão-de-obra em sectores importantes da economia. A solução não passa, porém, por reivindicações contraditórias de querer facilidade de visto para viajar e ao mesmo pretender coibir emigração à procura de oportunidades de trabalho e de carreira. Estudos comparados da relação entre emigração e crescimento do PIB per capita deixam entender que em geral o fenómeno surge a partir dos 4 mil dólares per capita, atinge um máximo aos 10 mil dólares, diminuindo à medida que o país se torna mais desenvolvido.

O facto de se a estar a assistir actualmente ao que é chamado, em certos sectores, de emigração massiva, deve-se mais ao estádio de desenvolvimento em que Cabo Verde se encontra actualmente do que à questão posta por alguns se é real ou não que o país cresceu a 7,3 %, em 2024, e tem uma previsão de crescimento de 5,9% para 2025 e 5.3 para 2026, muito superior às médias mundial e da África Subsaariana. Pode-se é perguntar se, 50 anos após a independência, Cabo Verde não devia estar num outro patamar. Imagine-se se não tivesse perdido os primeiros quinze anos com políticas económicas estatizantes contrárias à iniciativa privada que bloquearam o investimento externo, impediram o desenvolvimento do turismo e não exploraram a possibilidade nos anos setenta e oitenta, a exemplo das Maurícias, de uma industrialização para a exportação, criadora de empregos e de uma mão-de-obra mais qualificada.

Só a partir dos anos noventa o país viria a ter a chance de aumentar o seu potencial de crescimento, mas muitas oportunidades ficaram para trás, irremediavelmente perdidas. A isso deve-se ainda somar as marcas que essas políticas deixaram nas instituições estatais e na cultura centralizadora, avessa ao mérito e promotora da dependência e do assistencialismo que permeia a vida do país a vários níveis. As reformas que se impõem para aumentar a produtividade e a competitividade do país, para elevar o potencial de crescimento a níveis mais elevados e permitir que os jovens e outros profissionais possam optar por ficar e se realizarem no país, estão por fazer, não obstante as promessas dos sucessivos governos.

Por causa disso já há quem, alimentando ressentimento contra as “elites”, queira ir por caminhos que minimizam o diálogo e os compromissos e inevitavelmente resvalam para o autoritarismo e correspondente perda de direitos. Basta um só olhar para o espectáculo de tropas nas ruas da cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos, para concluir que, de facto, o inimaginável pode acontecer quando a política é substituída pela exploração de sentimentos de medo e de ódio ao outro. Com o mundo sob a ameaça de uma recessão global, o desastre que a via populista representa revela a sua completa dimensão.

Cabo Verde mostra capacidade de crescer mesmo com as dificuldades que apresenta nos transportes, na segurança, na educação e na saúde que têm sido foco de preocupação das pessoas. Como os 50 anos de independência já demostraram, só a democracia, por manter sempre a possibilidade de se encontrar vias para ultrapassar as dificuldades e remover os obstáculos, pode trazer soluções. Para isso é fundamental que não se caia em derivas autoritárias, que haja confiança nas suas instituições e que prevaleça na comunidade nacional um espírito de pertença e de solidariedade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1228 de 11 de Junho de 2025.

 

sexta-feira, junho 13, 2025

Populismo vive de problemas, não resolve problemas

 

A corrida para os extremos continua. No domingo passado, 1º de Junho, na Polónia, mais uma candidatura apoiada pela direita radical ganhou as eleições presidenciais. Tudo leva a crer que forças radicais em vários outros países não vão ficar por aí, particularmente quando, como no caso polaco, se tem o apoio explícito do movimento de Donald Trump (MAGA). A persistência nessas sociedades de condições propícias ao crescimento do extremismo político tanto da direita como de esquerda, entre as quais a extrema polarização, a preferência pelo discurso político na base do ressentimento e a actuação política dirigida para a descredibilização das instituições, garante que haverá mais vitórias dos radicais.

O espantoso é que quem mais sai a perder com o processo continue a actuar da mesma forma. É o que se nota nas forças políticas tradicionais apesar da sua decrescente representação eleitoral e também nos contrapoderes, como os média, os sindicatos e as ONGs, e nos próprios indivíduos, mesmo perante a evidente derrapagem a favor dos extremos. Ninguém parece disposto a alterar a sua abordagem política, sentida como distante, mas apresentada como de proximidade, nem as suas reivindicações, que ignoram consequências e responsabilidade ou a sua preferência pela gratificação pessoal e instantânea tirada de denúncias de corrupção e de demonstrações de indignação. Mesmo quando é claro e evidente para onde se dirigem as soluções de mudança propostas pelos extremos – o mal-estar e o sofrimento que geram, a erosão de direitos que provocam e o futuro menos próspero e previsível que deixam – percebe-se que não é fácil travar ou inflectir tais abordagens políticas e avançar com reformas vantajosas para todos.

Não há, porém, como negar o resultado de certas políticas, de certa forma de governar e de um certo entendimento do mundo face ao que se assiste nos Estados Unidos, e ainda não se completaram seis meses do mandato de Donald Trump. Assim, na forma típica de exercício do poder pelos populistas centrada no líder tem-se reforçado a autoridade da presidência face ao poder legislativo e ao poder judicial. O sistema de checks and balance ficou mais fraco ao se forçar a submissão do congresso e ao se desafiar continuamente os tribunais até ao limite do não cumprimento pelo executivo de decisões judiciais, no que pode vir a configurar uma crise constitucional.

Na própria administração federal, com a imagem da serra eléctrica empunhada por Elon Musk, procurou-se tornar os funcionários vulneráveis, reduzir a independência das autoridades reguladoras e diminuir a isenção e imparcialidade do serviço público a favor da lealdade directa ao presidente. Nem as forças armadas, as polícias e os serviços de inteligência ficaram imunes a intervenções divisivas em contra-corrente com a cultura institucional existente que privilegia o mérito, a competência e o respeito pela constituição.

A erosão de direitos fundamentais que de imediato se sentiu naturalmente acabou por ter o maior impacto nos imigrantes e nas minorias, com prisões, deportações e perdas de emprego e de benefícios sociais. Para a criação do novo ambiente socio- político caracterizado pela compressão de direitos, deve-se juntar a ofensiva contra os média institucionais e contra universidades de referência e institutos científicos sob a capa de combate às políticas de diversidade, equidade e inclusão.

O impacto no mundo com o desencadear da guerra das tarifas tem sido terrível a ponto da OCDE, esta terça-feira, ter previsto que o crescimento mundial em 2025 será o mais baixo depois da pandemia da Covid-19. Com a guerra comercial têm-se deteriorado também as relações entre os países, entre os chefes de Estado com o exemplo das cenas grotescas na Casa Branca nas visitas do presidente da Ucrânia e da África do Sul. O mundo globalmente tornou-se mais perigoso, com guerras intensas sem fim à vista e com o sistema de alianças que mantiveram o mundo estável a desmantelar-se.

Também as fragilidades do mundo ficaram mais expostas com o sistema de ajudas internacionais a ameaçar colapso e as instituições multilaterais a debaterem-se com várias indefinições em relação ao futuro, designadamente em relação ao processo de globalização, às migrações, à transição energética e à luta contra as alterações climáticas. E ainda está para ver como vai ser enfrentado o futuro que já se anuncia cada vez mais próximo, marcado pela emergência e a utilização universal da Inteligência Artificial.

Tratando-se da maior potência mundial e da mais velha democracia constitucional, o que se passa na América pode ser, com as devidas proporções, a imagem da actuação do populismo noutras latitudes. Aliás, o seguimento pelos modernos líderes populistas do essencial do playbook de Trump já sugere o que virá depois do acesso às rédeas do poder quanto ao impacto a ser esperado no sistema político, na estrutura económica, no tecido social e no ambiente mediático. Se nem na América se sabe realmente se os estragos serão reversíveis, imagine-se o que pode vir a verificar-se à escala de outros países com menos capacidade e recursos para resistir e inverter a marcha depois da passagem da onda populista.

A melhor opção é, a tempo, não deixar a onda formar-se e crescer. Depois de já ter ganho dimensão seria de a impedir de chegar ao poder porque pela experiência de Trump já se sabe o que vai acontecer: a tendência para o culto de personalidade do líder, para se eliminar os equilíbrios de poder que impedem a concentração do poder, para condicionar a legalidade à conveniência do poder, para limitar a liberdade dos média e para expor o indivíduo à maior discricionariedade e arbitrariedade das autoridades. Nem como putativo prémio de consolação tais regimes se mostram capazes de fornecer serviços públicos com eficiência e eficácia, gerir o país com competência nos vários sectores e implementar estratégias inovadoras para o futuro.

Cabo Verde, à semelhança da generalidade das democracias, também se confronta actualmente com uma tentação populista. Para a enfrentar é fundamental que haja convergência de forças e vontade democrática para trabalhar na renovação da confiança nas instituições democráticas. Sentimentos anti-sistema em certos sectores de opinião acenam com supostas vantagens de regimes autoritários, até trazendo exemplos de movimentos militares em países da África Ocidental. É preciso informar aos mais novos e relembrar os outros que Cabo Verde já teve a experiência durante quinze anos de ditadura do partido único à mistura com o culto de personalidade do líder messiânico rodeado dos “melhores filhos do nosso povo”. Não deu certo.

O povo teve que conquistar a democracia para ter oportunidade de ser livre e construir a prosperidade que existe hoje. Nos processos de desenvolvimento há sempre a possibilidade de deparar com obstáculos que podem afectar o crescimento. Ultrapassá-los nem sempre é fácil. Como ninguém tem a verdade, há mais hipótese de os vencer com diálogo num ambiente de pluralismo de ideias e em que há confiança porque as regras do jogo democrático são respeitadas e acredita-se que mesmo com opinião diferente todos defendem o interesse público e o bem comum.

O populismo alimenta-se da falta de confiança, da divisão e da negação da pertença de todos à comunidade nacional. A partir daí não há uso para o diálogo, adversários são inimigos, a verdade é só uma. Acaba a política e o pensamento próprio e só resta a lealdade ao líder e à sua orientação. Não custa muito ver que esse é o caminho para o autoritarismo e para o atraso do país e das suas gentes.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1227 de 4 de Junho de 2025.

segunda-feira, junho 02, 2025

Liberdade e democracia garantem terreno seguro para construir prosperidade e combater a pobreza

 

Já está a compor-se o panorama para o confronto político nas legislativas no segundo trimestre de 2026. No domingo, 25 de Maio, Francisco Carvalho, actual presidente da câmara municipal da Praia foi eleito presidente do PAICV e certamente que será o candidato a primeiro-ministro. Do lado do MpD, ficou decidido numa reunião da direcção nacional, em Janeiro último, que o actual primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva procurará um terceiro mandato. Considerando a conjuntura mundial de grandes incertezas e o ambiente politico nacional de crescente polarização e de perda de confiança nas instituições, provavelmente vai-se ter nessas eleições um embate mais crispado, menos sintonizado com o futuro e potencialmente desafiante dos fundamentos do próprio regime democrático.

As democracias vivem actualmente um momento único. Uma das razões para isso é o progressivo colapso do centro político e dos partidos tradicionais, que são os pilares do sistema constitucional, e a emergência em simultâneo de forças políticas nos extremos. Com a ascensão de forças anti-sistema, deixa de existir diálogo entre visões e estratégias de futuro a partir de uma base consensual comum para passar ao confronto político permanente e, a partir daí, à degradação do Estado de Direito e à erosão dos direitos fundamentais. É um processo visível em várias democracias onde há claros sinais de uma deriva iliberal com o enfraquecimento dos checks and balance do sistema político, a demonização dos media e a contestação do poder judicial.

Não estranha que algo similar aconteça em Cabo Verde tendo em conta que na actual conjuntura factores presentes em países democráticos favorecem o sentimento anti-sistema entre indivíduos e grupos. Normalmente difuso, esse sentimento, quando mobilizado e conjugado com a tentação populista que culpa elites, promove a desconfiança nas instituições e alimenta a desesperança, pode lançar um partido numa espiral ascendente e eventualmente até à posição de principal força política de oposição. Já aconteceu em vários países, recentemente em Portugal com o Chega, pouco antes na Alemanha com a AfD, anteriormente na América pela via da captura do partido republicano por Trump e os seus apoiantes.

É evidente que isso não acontece sem que haja resistência das outras forças políticas quando se trata de um novo partido ou de resistência interna nos casos de captura. Assim, há partidos que são deixados isolados por cercas sanitárias que lhes são impostas ou impedidos de entrar em coligação por linhas vermelhas estabelecidas pelos partidos institucionais. O processo de captura de um partido já é mais complexo e mais duro. Primeiro, conforme o ambiente encontrado, há que seduzir, aliciar e intrigar para conseguir posições de influência e controlo futuro dos lugares no partido. Conquistado, porém, um lugar sólido de poder, passa-se para a fase seguinte quando as eleições se aproximam e com elas vem “o cheiro do poder”. Aí desaparecem as resistências e a corrida para se colocar à frente e alinhar com quem mais promete sobrepõe-se a qualquer espírito crítico e a quaisquer lealdades passadas.

A disputa de liderança no PAICV tem sido vista por vários observadores como exemplo de um processo de captura de um partido. Realmente, vê-se isso pelo momento e a forma como foi anunciada a pretensão do presidente da câmara da Praia, logo que foi reeleito, em ser líder do partido e candidato a primeiro-ministro. Percebe-se que o então líder não tinha outra saída perante o que configurava um golpe de força. Também não se pode deixar de notar que as três candidaturas que se seguiram aparentemente compartilhavam da mesma motivação de impedir que uma espécie de “hostile takeover” do partido se concretizasse.

O facto de a corrida pela liderança ter sido resolvida de forma democrática com uma maioria sólida para o vencedor não impede que se olhe para todo o processo com a devida atenção e se verifique se, de facto, um partido do arco do poder em Cabo Verde foi capturado por uma liderança populista com tentações anti-sistema. Os incidentes à volta do pagamento de quotas, que estão na origem do adiamento das eleições internas, e o questionar da integridade do banco de dados dos militantes fazem lembrar as encenações provocatórias de outras paragens onde que quem as inicia tem a arte de se apresentar depois como vítima. Aliás, nas autárquicas de 2024 foram feitas acusações sobre o plano que envolvia a NOSi na alteração dos resultados eleitorais que depois se esfumaram a seguir às eleições. Se se continuar a seguir pelo mesmo “playbook” pode-se já prever novas denúncias nas vésperas das eleições legislativas.

A prática de pôr em cheque as instituições, de contornar, senão de violar, os procedimentos democráticos e de ultrapassar no exercício do poder as competências estabelecidas na lei favorece o populismo. Parece dar razão aos populistas que insistem em passar a ideia que a democracia é um jogo de cartas marcadas em que só as “elites” ganham. O “povo” ganha se confiar no seu líder que é autêntico e realmente o representa. Com isso, está-se a dizer às pessoas que a democracia não funciona, que não se pode acreditar no Estado de Direito, que política e políticos significam corrupção e que a solução para os problemas é mais simples do que parece e está á mão se for seguida a liderança do chefe. Não é à toa que nas democracias se procura evitar que tais forças populistas, que postulam uma divisão entre o “nós” e os “outros”, assumam as rédeas do poder.

Para não correr esse risco e considerando o papel central dos partidos no sistema político democrático, é do interesse geral que os seus processos internos sejam seguidos pelos cidadãos, particularmente nos momentos de escolha dos líderes. Realmente, é da capacidade dos partidos poderem representar o povo na pluralidade de opiniões e na diversidade de seus interesses que depende a qualidade do diálogo, essencial para a definição, execução e fiscalização de políticas com vista ao bem geral.

Também é do comprometimento dos partidos com as regras do jogo democrático que se assegura que, se erros forem cometidos e opções de política não se revelarem as melhores, há sempre a possibilidade de alternativas. Se, porém, se permitir que desvios sejam introduzidos no sistema político e que os procedimentos democráticos deixem de ser respeitados, a possibilidade de mudar de rumo, de corrigir erros e de acelerar o desenvolvimento com inovações e novas práticas pode ser seriamente comprometida.

Nestes tempos de grandes perigos para a democracia, a liberdade deve ser acompanhada de um sentido agudo de responsabilidade para a manutenção das condições necessárias ao seu pleno exercício, em particular a segurança e a ordem pública. Nas próximas legislativas poderão vir confrontar-se pela primeira vez, depois do 13 de Janeiro de 1991, forças comprometidas com a democracia liberal e constitucional e forças assumidamente populistas.

É fundamental, para preservar a base da prosperidade criada a partir dos anos noventa, e a capacidade de a elevar a um outro patamar e construir um futuro para todos, que não se continue a cavar o fosso entre as pessoas. E que não se promova a cultura do individualismo, do cinismo e da irresponsabilidade de quem tudo quer ou tudo promete sem a preocupação se é exequível, se compromete o futuro e se não aumenta a frustração e a desesperança. Uma coisa é certa: nos tempos difíceis que correm não é de pôr em risco o terreno seguro para construir a prosperidade e combater a pobreza que só a liberdade e a democracia garantem. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1226 de 28 de Maio de 2025.