sexta-feira, novembro 28, 2025

Cabo Verde não precisa de resgate: precisa é de mais sentido de responsabilidade da sua classe política

 As chuvas torrenciais no Tarrafal, S. Miguel e Santa Cruz, que provocaram a morte de uma pessoa e estiveram na origem de perdas diversas de animais e de outros bens da população, também ainda causaram estragos consideráveis nas casas, nas propriedades agrícolas e nas infraestruturas rodoviárias e outras. O inesperado do acontecimento a meio de Novembro, praticamente fora da época das chuvas, e a comoção provocada por mais um evento climático extremo, depois do que aconteceu em S. Vicente em Agosto último,não deixam de criar preocupação geral quanto ao que o futuro tem em reserva. Pelas reações políticas imediatas, percebe-se a propensão para com mais uma calamidade se fazer da intervenção do Estado matéria de disputa entre os partidos, quanto ao seu escopo e abrangência. Estão para breve as eleições legislativas.

Catástrofes naturais, pandemias e outros choques externos deviam ser motivo para demonstrações unânimes de solidariedade nacional por várias razões. Uma delas é que, face a qualquer crise, um país como Cabo Verde não pode dispensar solidariedade internacional, e convém que ela tenha correspondência nacional para ser mais substancial e efectiva. Uma outra razão é que o sentido de comunhão na sociedade gerado na adversidade pode servir de base a uma forte vontade geral, primeiro, para reparar rapidamente os estragos e enfrentar as vulnerabilidades criadas e depois para avançar com reformas que servirão de prevenção a futuras crises.

Evita-se no processo atentação de vitimização das populações e de instrumentalização das crises para ganhos políticos.

E deixa-se em aberto a possibilidade, mesmo num quadro do contraditório, de cooperação futura dos partidos na busca de soluções para os problemas actuais no terreno, que comprovadamente amplificaram o impacto das calamidades. Também poderá ajudar na concretização das reformas indispensáveis para as conter.

É fundamental que se enverede pelo caminho de não partidarização das respostas às calamidades. A tendência é tornarem-se mais frequentes, provavelmente mais extremos devido às mudanças climáticas. A última coisa que pode acontecer é o país deixar-se atrasar nas respostas pelas disputas partidárias e pela falta de cooperação de uma população pouco incentivada à auto responsabilização pelas políticas de vitimização em voga.

Nos países dos outro lado do Atlântico, muitos deles pequenos estados insulares como Cabo Verde, são frequentes os desastres naturais e numa escala nunca antes verificada nestas ilhas. Assim como são recorrentes as inundações, os furacões ea destruição das zonas costeiras também o é o ânimo das pessoas em reconstruir depois das catástrofes. Há, ainda, um esforço organizado e cada vez mais efectivo para salvar vidas, conter estragos e assegurar o essencial aos mais expostos, tanto durante o flagelo dos fenómenos naturais como posteriormente, para as pessoas regressarem à sua vida, ao trabalho e aos negócios.

Recentemente como furacão Melissa a ilha de Jamaica sofreu perdas, segundo vários relatos, calculadas entre dois a oito bilhões de dólares , ou quase um terço do PIB anual. Ainda bem que, a pensar na minimização dos estragos e reconstrução do país, foi adoptada uma complexa estrutura financeira com várias camadas, incluindo fundos nacionais para necessidades imediatas em abrigos e mantimentos e um fundo de seguros com vários intervenientes internacionais e regionais, que vai permitir que a economia se recupere e os planos de desenvolvimento tenham continuidade. Cabo Verde já tem o fundo de emergência eo fundo soberano para respostas institucionais e, na contingência de vir a sofrer eventos climáticos extremos com mais frequência, o Estado deverá apoiar e incentivar o recurso de privados a planos de seguro que ajudem a minimizar efeitos de desastres naturais.

A maior dificuldade para o país enfrentar a nova realidade ditada pelas mudanças climáticas está em ultrapassar o excessivo eleitoralismo que caracteriza muito da actividade política actual. O ambiente crispado não facilita debate entre os partidos sobre como proceder com as reformas que podiam preparar as ilhas para responder a desastres naturais. Nem se nota convergência para fazer cumprir o que já existe. Por exemplo, não é fácil levar os municípios a fazer uma melhor gestão do território urbano quando muito da política local é afectada por práticas de campanha política permanente. E, sem isso, será muito difícil conter estragos, perdas de bense destruição de infraestruturas em caso de chuvas torrenciais.

Numa outra perspectiva, é difícil manter uma cultura de respeito pela autoridade do Estado quando se procura justificar roubos significativos de energia e água com necessidade de pessoas “desenrascarem”, fazendo ligações clandestinas ou mostrando compreensão pelos desvios com a proposta de electricidade de “graça”. Além de porem em séria situação financeira as empresas do sector e comprometerem a sua capacidade de fornecimento desses bens públicos com qualidade e fiabilidade, normaliza-se uma postura de desafio às leis e de falta de responsabilidade cívica. E isso não deixa de afectar outras áreas de interação na sociedade, com impacto directo na ordem e tranquilidade públicas.

O habitual eleitoralismo, já exacerbado pela proximidade das eleições, torna as coisas mais difíceis quando passa a impressão de se poder ter “tudo, em todo lugar e ao mesmo tempo”. Em consequência não parece existir preocupação com compatibilizar reivindicações com recursos disponíveis, aliás procura-se tirar da equação a necessidadede crescimento económico sustentável para as suportar, nem há uma postura compromissória que poderia trazer razoabilidade às negociações. Greves ao suceder-se umas após outras, a parde carências e ineficiências, com origem em causas múltiplas e complexas que apesar dos transtornos noutras situações seriam tomadas de outra forma, passam a imagem de um país em permanente sobressalto.

Uma imagem que não condiz com a forma como Cabo Verde é visto no mundo pelas organizações internacionais, agências de rating e por operadores económicos ou pelos turistas de diferentes país que cada vez mais chegam não só às ilhas turísticas mas a todas outras. Percebe-se que há uma tendência para fazer política projectando um quadro de desesperança do qual pretende-se resgatar o país não com soluções nem com políticas alternativas. Ao se afirmar anti-elites acaba por negar o diálogo democrático e a aposta passa a ser quebrar as regras do jogo, tido como viciado em detrimento do “povo”. O ambiente político assim criado torna ainda mais difícil reencontrar o equilíbrio que poderia permitir o país enfrentar os múltiplos desafios que o mundo de hoje representa e as policrises entre as quais as potenciadas pelas mudanças climáticas que tornam o futuro menos previsível.

Cabo Verde não vive sob a ameaça permanente de fenómenos climáticos extremos do tipo dos que assolam as ilhas a oeste nas Caraíbas. O país é o que é porque foi moldado pelo extremo de secas cíclicas e correspondente carestia e fomes periódicas. Daí não saiu um povo triste, fatalista ou sentindo-se vítimado mundo. Pelo contrário. Por onde emigrou ao longo de séculos afirmou sempre com orgulho a sua caboverdianidade e procurou manter por várias formas a sua relação profunda de afecto com a sua terra e a sua ilha.

A convivência com escassez profunda e demasiadas vezes dramática de alimentos e outros bens não fez do caboverdiano um dos “condenados da terra” que precisa de resgate. Não será, pois, pelas fragilidades ainda existentes reveladas por desastres naturais que irá cair na desesperança. Pôr-se na condição de vítima como parecem pretender as forças políticas abraçadas no eleitoralismo e a virar para esquerda entre o paternalismo e o assistencialismo não é certamente o caminho. Liberdade e cidadania plena para todos é a base para se construir a prosperidade e encontrar a felicidade.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1251 de 19 de Novembro de 2025.

sexta-feira, novembro 21, 2025

Ultrapassar obstáculos e crescer mais para combater a pobreza

 Em discussão está o Orçamento do Estado (OE) de 2026. Considerando que as legislativas vão se realizar entre abril e junho, trata-se de um OE que vai ser executado em grande medida na próxima legislatura e por outro governo, mesmo que seja da mesma cor política. Em qualquer das circunstancias é um OE para o futuro e como tal deverá merecer a devida atenção e ponderação no processo da sua aprovação. Em simultâneo servirá para que os cidadãos tenham já uma primeira noção de como os partidos veem o país a confrontar os desafios actuais e os do médio e longo prazo.

O relatório da política monetária d oBanco de Cabo verde prevê “um abrandamento do crescimento da economia nacional, de 7,2 por cento em 2024, para 5,5 por cento em 2025, 4,8 por cento em 2026 e 5,0 por cento em 2027”. Parece estar em convergência com as previsões do FMI e do Banco Mundial que apontam para taxas até 2029 próximas do potencial de crescimento do país à volta de 5%. Essas taxas poderão variar para mais ou para menos, conforme a realidade externa for favorável ou não, designadamente para o turismo e para as exportações. Em 2024, a taxa do PIB conseguiu atingir 7,2%, mas também pode ir em sentido contrário se houver quebra na dinâmica da economia mundial ou, então, como aconteceu este ano, se o país for fustigado por algum desastre natural.

É evidente que, se Cabo Verde quer ver melhorado essas previsões, tem que fazer subir o potencial da sua economia, aumentando a sua produtividade e competitividade. Esse é o grande desafio que tanto se coloca aos partidos da governação quanto aos caminhos a seguir para atingir esses objectivos como também exigirá da sociedade cabo-verdiana um outro engajamento e atitude para vencer os múltiplos obstáculos à realização desse desiderato. Não é à toa que não se tem conseguido avançar ao passo certo com as reformas necessárias para aumentar o potencial da economia, nem se conseguiu melhorar a eficiência do sector empresarial do Estado, nem ainda diminuir os custos de contexto e os custos dos factores.

Na sua última missão, no início de novembro, o FMI propôs-se analisar entre várias matérias as implicações da questão com CVInterilhas, o custo salarial da administração pública e a redução das despesas com bens e serviços. Incluiu também na análise o reforço de execução dos investimentos. Já na nota final da missão constatou “desaceleração no investimento”. Num padrão que parece repetir-se no fim dos ciclos legislativos, o FMI, mesmo nas entrelinhas, deixa transparecer com mais clareza as suas preocupações. Deve-se ter isso em conta, até porque quem for governo, provavelmente logo à partida, vai ser alvo de grande pressão para fazer correcções de percurso.

Ao novo governo, em2016, foi retirado apoio orçamental até que o acordo de privatização daTACV fosse assinado, o que viria a acontecer em fevereiro de 2019.

O quadro global que o FMI apresentado país,mesmo que com riscos, considerando as vulnerabilidades a choques externos, é globalmente positivo como se pode constar, de entre outros indicadores, das taxas de crescimento económico, dos números da inflação, da diminuição da dívida pública e das reservas de divisas, que poderão atingir em 2025 7,3 meses das importações. Mas não é de ignorar as insuficiências nas reformas e no investimento, nem a crescente rigidez orçamental com o aumento das despesas, em particular das despesas como pessoal, que de 23.431 milhões de escudos em 2023 passou para 29.177 milhões (+24,5%) em 2025   e agora se prevê 32.936 milhões para 2026  (+12,8%). Ou seja, se não se fizer as escolhas certas, o grande objectivo de aumentar o potencial da economia do país e abrir a possibilidade de a prosperidade chegar a todos pode não ser atingido.

Infelizmente, em Cabo Verde não se reflecte suficientemente sobre o ponto a que o país conseguiu chegar a partir do início da década de noventa, em que definitivamente se deixou para trás o modelo de desenvolvimento na base de reciclagem da ajuda externa e se fez a transição de uma economia estatizada para uma economia de mercado. Com as reformas feitas, o potencial da economia aumentou, assim com a produtividade e o volume de investimentos, tanto nacionais como estrangeiros, e o país, no fim da década, já atingia os níveis mais altos elevados de crescimento. A estabilidade económica criada pelo acordo cambial e a estabilidade política suportada no sistema de governo parlamentar asseguraram que a prosperidade continuasse. É preciso que agora Cabo Verde dê um salto para que a riqueza nacional cresça mais com o esforço qualificado de maior número de pessoas e que os benefícios sejam abrangentes e cheguem a todos, eliminando definitivamente a pobreza.

Pode-se perguntar se há vontade e a energia para ultrapassar os obstáculos e crescer mais. A tentação, em certos círculos, será talvez a de fazer “o mais do mesmo”, a passo e em sintonia com as recomendações e os programas da cooperação e dos financiadores internacionais e seguindo a agenda das organizações multilaterais. Afinal, o país está a crescer à volta de 5% do PIB e, com o alargamento do Estado Social, pode-se dar uma resposta para à pobreza e à pobreza extrema existentes. O problema é que não se consegue manter estado social sem crescimento económico dinâmico e sustentável.

De facto, dificilmente se obtém níveis altos de crescimento quando recursos são alocados para despesas cada vez mais pesadas como pessoal da administração  pública, em detrimento de investimentos públicos. Para além disso, reforçam-se certos interesses corporativos, geralmente inibidores da inovação, e se desincentiva o investimento directo estrangeiro e o investimento privado nacional, essenciais para a criação do emprego e para o aumento das exportações.

Perante a complexidade da situação há quem se sinta atraído por soluções simples, de quebrar as regras do jogo e de negar o diálogo plural na busca de soluções. Promete-se um mundo de “almoços grátis” e não se reconhece o quanto é preciso em termos de instituições, de conhecimento e de cultura cívica e de espírito crítico e cooperativo para construir a riqueza das Nações. Posturas messiânicas de resgate, por serem logo à partida de exclusão de parte da comunidade, produzem círculos viciosos que perpetuam a pobreza.

No passado foram as lutas de classes e a luta contra exploração do homem pelo homem. Agora são as lutas contras as elites. Como facilmente pode-se observar, tais vias tendem em desembocar em violência e mais pobreza, enquanto o que já foi provado é que a prosperidade caminha passo e passo com a liberdade. Importa não cair no canto da sereia dos messias, nem se deixar ficar pela inércia que favorece os interesses instalados. Na discussão da OE devia-se ver mais ousadia, guiada pelo conhecimento, para o país ter mais possibilidades de vencer.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1250 de 12 de Novembro

sexta-feira, novembro 14, 2025

Não se combate a pobreza abandonando o jogo democrático

Hoje fala-se muito na crise da democracia, mas contraditoriamente tende-se a fazer pouco para a conter ou inflectir. Em particular, os partidos políticos, personalidades políticas, académicos e comentadores dedicam muito tempo a lamentar e a discutir o declínio da democracia. Mas claramente que não se faz o suficiente para evitar a descredibilização das instituições e a degradação do discurso político, nem se procura refrear o excessivo protagonismo dos políticos e combater a apatia da sociedade civil e os efeitos corrosivos das redes sociais. Pelo contrário, no que parece configurar um exercício de hipocrisia política, percebe-se que de vários sectores, a par das lamentações públicas, há uma intenção ou uma aposta em ganhar com os sobressaltos sucessivos criados, com a imagem do caos projectada e com a desesperança alimentada.

O resultado, como se tem observado em vários países, é o aprofundamento da crise com perdas para os partidos tradicionais e ganhos crescentes para os extremistas, que actualmente são maioritariamente da extrema-direita, mas em alguns casos específicos são de sectores radicais da esquerda. Ou seja, só se perde fazendo uso de tácticas políticas que pressupõem algum abandono dos princípios e valores democráticos. Esse facto, porém, não tem impedido muitos partidos de continuar a fazer o mesmo, diminuindo o fosso anterior entre eles e os radicais e em alguns casos até abrindo-lhes o caminho para o governo. Ainda bem que, como se comprovou nas eleições nos Países Baixos na semana passada, o eleitorado pode sempre inverter a situação particularmente quando confrontado com a incompetência dos populistas na governação.

Cabo Verde como qualquer democracia moderna vem dando sinais de crise no processo democrático que não destoam muito do que se verifica noutros países democráticos. Há alguma fragilização das instituições, tensões entre órgãos de soberania e falhas no diálogo interpartidário criam bloqueios e os municípios parecem campos de batalha para confrontação política partidária com o governo. Os partidos, entretanto, focados no poder e cada vez mais dependentes dos lideres, falham em produzir dinâmica interna que permita produzir discurso político elevado e pedagógico e em propor soluções inovadoras para o país. Na relação externa com a sociedade não se mostram capazes de estabelecer uma ponte para ajudar a ultrapassar a crise de representatividade e a potenciar a energia e a criatividade existentes. Sem um impulso renovador que poderia forçar um novo olhar sobre os problemas existentes, a tendência é para manter o status quo, mesmo que venha a verificar-se alternância na governação.

Por isso é que com as forças políticas já a apressar o passo para as legislativas no segundo trimestre do próximo ano é grande a tentação de se cair no “vale tudo” para conquistar o poder. Não há motivação para se ter bem presente o estádio a que Cabo Verde já atingiu e propor soluções alternativas para os problemas novos e para os que têm arrastado durante décadas, de forma a aumentar o potencial de crescimento e lançar o país para um outro patamar de desenvolvimento. A estratégia, pelo contrário, é de procurar aproveitar quaisquer incidentes, insuficiências ou falhas na prestação de serviços ou ainda conflitos laborais para demonstrar que se está a descambar para a ingovernabilidade. Também inclui a adopção de uma postura de negacionismo que põe em causa indicadores macroenómicos, estatísticas oficiais e avaliações de performance em vários domínios (democracia, liberdade económica, liberdade de imprensa, desenvolvimento humano) apresentadas por organizações internacionais.

Uma outra vertente nessa estratégia que ajuda a consolidar esse negacionaismo é pôr em ênfase no quão distante se está de cumprir em “absoluto” com certos direitos como o direito à saúde, à educação e à habitação para se minimizar os avanços já conseguidos. Omite-se que são direitos que para seu exercício implicam, designadamente recursos, tempo para criação de estruturas e formação especializada e ainda vontade política na definição das prioridades de investimento estatal, considerando que as receitas do Estado são sempre escassas. Assim, por um lado, alimenta-se a insatisfação e a indignação pelo não exercício pleno de direitos. Por outro, dificulta-se a possibilidade de um debate aberto e construtivo de como se aproximar do ideal, em termos de qualidade e abrangência na concretização desses direitos, a partir da base real proporcionada pela capacidade de produção de riqueza do país.

Não é estranho a esses argumentos a velha contenda de uma certa esquerda com a democracia liberal por considerar imprescindível a garantia dos direitos civis e políticos para a criação da base de prosperidade necessária ao exercício dos direitos sociais e económicos. Mesmo depois das experiências comunistas que falharam em garantir prosperidade sem liberdade, com custos enormes em vidas perdidas, pobreza e atraso, ainda se procura recuperar os velhos argumentos de uma esquerda que se considera moralmente superior. Tudo para que em nome de uma pretensa luta contra a desigualdade social de pôr em causa a necessidade de se ter uma ordem económica na base da liberdade que é indispensável para o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável.

Com uma abordagem cínica em relação à democracia e ao exercício dos direitos quer-se trazer de volta a velha crença na distribuição da riqueza sem uma base sustentável da sua criação, quando a verdade é outra, como já foi comprovada em outros países e em Cabo Verde desde 1991. O que importa fazer agora é aumentar a eficiência do sistema económico, promover o conhecimento e fazer as reformas que irão permitir aumentar o potencial da economia. Para isso é fundamental que haja mais democracia, e não menos. Não é procurando deitar tudo abaixo, negar os avanços feitos e tentar recuperar abordagens antigas, que falharam redondamente, que se vai dar o salto em frente para levar a prosperidade a todos.

Como se vai fazer e quem vai fazer e com que recursos isso deverá ser decidido não por métodos revolucionários de paralisar sectores, de criar poderes paralelos ou de instigar paixões, medos e ressentimos, mas por persuasão que é a via da democracia. De facto, como o autor americano David Brooks, “as instituições democráticas são criadas para aumentar a deliberação, a conversação e a persuasão na sociedade. As eleições decidem quem foi mais eficaz em persuadir os votantes”. No processo de persuasão na base do respeito pelas regras do jogo democrático e servindo-se dos métodos da razão e aderindo aos factos deve-se deixar para trás as memórias de Luta na perspectiva de guerrilha política, de emboscar adversários e de criar realidades alternativas pela via da propaganda.

Pela persuasão o jogo é de soma positiva, enquanto na Luta é de soma zero e só resulta em estagnação e pobreza, como a história já bem demonstrou. Afinal os dez grãozinhos de terra “el é di nós, é ca tomad na guerra” como canta o saudoso Jorge Cornetim.   

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1249 de 05 de Novembro de 2025. 

sexta-feira, novembro 07, 2025

Preservar a estabilidade que o sistema parlamentar de 92 proporcionou

 A questão dos poderes do presidente da república é um tema de debate actual em vários países e nos mais diferentes sistemas políticos. Nos Estados Unidos com o sistema presidencialista a grande discussão é se no quadro da teoria executiva unitária o presidente tem competência para demitir qualquer titular de cargo público, incluindo as autoridades reguladoras e possivelmente o governador do banco central. Na França semipresidencialista pergunta-se se o presidente devia renunciar ao mandato porque em sucessivas tentativas não consegue uma maioria parlamentar favorável às suas políticas. Em Portugal e em Cabo Verde, de sistemas de governo parlamentar, questiona-se a partir de que limites o exercício dos poderes deixa de ser moderador e de não ingerência para ser perturbador e desestabilizador.

Em qualquer dos casos, o maior protagonismo dos presidentes, seja nos sistemas presidencialistas ou semipresidencialistas, seja nos sistemas parlamentares, acaba por afectar os outros órgãos de soberania enfraquecendo o equilíbrio dos poderes e os pesos e contrapesos (checks and balances) do sistema. Nos primeiros casos em que o presidente governa, como na América, o congresso vê a sua competência fundamental de cobrar impostos e de alocar fundos limitada por um presidente que arbitrariamente determina tarifas alfandegárias e selectivamente recusa-se a disponibilizar às entidades públicas meios aprovados previamente por lei. Também na França sem uma maioria em linha com o presidente e com a dificuldade dos partidos em conseguir chegar a acordo, instala-se a instabilidade como vem acontecendo com quedas sucessivas de governo.

Nos regimes parlamentares, o excessivo protagonismo do PR aumenta a probabilidade de tensões com o primeiro-ministro e o governo e fragiliza o próprio parlamento. A oposição é tentada em procurar alianças extra-parlamentares, incluindo a aproximação táctica ao presidente da república, e no limite a criar caminho para a dissolução do parlamento. A instabilidade governamental que se torna regra, como se vê no caso português, pode levar à ascensão de forças antissistema. Noutros casos gera mal-estar que pode propagar-se para outras instituições do Estado, cujos titulares são nomeados pelo PR sob proposta do governo, e até para a relação governo/sociedade, quando interesses vários pressionam e se põem a jeito para que a magistratura de influência se configure como ingerência nas competências do governo.

Com eleições presidenciais no próximo ano, no mês de Janeiro em Portugal, e em Novembro possivelmente em Cabo Verde, o debate está aberto em como ultrapassar esses riscos de instabilidade política e de mal-estar social que veem ameaçando a democracia. A acicatar o debate está o constitucionalista português, Vital Moreira, com o seu novo livro, “Que presidente de república para Portugal”, em que enumera requisitos para o cargo: (i) compromisso incondicional com os valores constitucionais; (ii) percepção clara do papel do Presidente,especialmente quanto aos limites dos seus poderes; (iii) estrita imparcialidade partidária, como representante unitário de toda a coletividade nacional; (iv) adesão firme ao princípio republicano da separação entre interesse público e interesses particulares ou de grupo; (v) prudência, ponderação, recato institucional e elevação nas suas decisões e declarações! Entretanto, unanimidade parece existir entre os candidatos a presidente da república que é de evitar o tipo de magistratura presidencial do actual PR, Marcelo Rebelo de Sousa.

Em Cabo Verde, o PR José Maria Neves em posicionamentos públicos e em reflexões nos discursos, entrevistas e recentemente em “notas avulsas” na sua página pessoal do Facebook deixa entender que tem estado a pensar detidamente sobre a Constituição e os poderes do presidente. Um resultado prático disso tem sido o que aparenta ser uma tentativa de expansão dos poderes do PR no quadro da competência partilhada em relação a alguns cargos públicos de nomeação dos titulares sob proposta do governo. É evidente que daí só pode vir mais tensão nas relações entre os órgãos de soberania, o que em certa medida é normal, mas não a ponto de interferir na continuidade da autoridade do Estado investida nas instituições.

A falta de recato institucional no processo, traduzido em declarações públicas provavelmente feitas para passar a culpa pela demora na nomeação de novos titulares ou para pressionar, deu origem a leituras públicas que estariam caducados e sem validade os cargos públicos que chegaram ao termo do mandato. Ainda bem que para além de algumas manifestações antissistema que sempre existem nas democracias ninguém andou a questionar a validade dos acórdãos do tribunal de contas e das decisões e pareceres do ministério público. Também é de valorizar a responsabilidade republicana dos titulares desses cargos em se manterem nos seus postos. De facto, nas repúblicas, mesmo nos casos extremos de desentendimento entre órgãos de soberania como acontece actualmente na América com a paralisia da administração federal por bloqueio de fundos, não há vazio. Os cargos de polícia e outros que encarnam a autoridade do Estado são exercidos sem que funcionários recebam o salário devido.

O PR que tem a função de velar pelo normal funcionamento das instituições deveria ser o primeiro a dar garantia da validade do exercício dos cargos pelos seus titulares até serem substituídos. Nas democracias os mandatos eleitorais é que não podem ser encurtados ou prolongados sem respaldo constitucional quanto às circunstâncias. Para os cargos que dependem do processo político entre partidos ou entre órgãos de poder político deve-se evitar sinais que podem pôr em causa as instituições.

Em particular em relação às forças armadas cuja subordinação ao poder civil é um pilar fundamental das democracias, a Lei de Defesa atribui ao PR, enquanto comandante supremo, a função de garantir a fidelidade das FA às instituições. Para isso pode aconselhar o governo que, de facto, dirige o Estado, mas em privado. Claramente que trazer para o público, em “notas avulsas” no Facebook, que nomeou o novo Chefe de Estado Maior “depois de limar algumas arestas” e que recusara uma primeira proposta “por razões que se prendem com ética republicana que orienta o funcionamento da instituição castrense”, não promove a lealdade institucional entre órgãos de soberania nem a confiança das FA que está na base da sua fidelidade à ordem constitucional.

Mas como diz Vital Moreira, “se o presidente da república se excede, se abusa dos seus poderes, não há meio nenhum de o impedir. Sem poder ser responsabilizado politicamente é de se exigir que seja cumprido o juramento de defender e de cumprir e fazer cumprir a Constituição para se ter a garantia do normal funcionamento das instituições. De outra forma é o caos que pode vir a instalar-se com a desconfiança entre órgãos de soberania, com a perda da autoridade do Estado e com a falta de confiança e previsibilidade quanto ao cumprimento actual e futuro das regras do jogo democrático, em particular quanto ao princípio da separação de poderes.

Com as eleições legislativas no horizonte e tendo em conta eventuais sinais de turbulência nas relações entre o PR e o governo devido à interpretação expansiva dos poderes do PR, há que fazer um esforço para regressar aos contornos constitucionais que nestes 35 anos de democracia garantiram ao país estabilidade política, condição essencial para o país continuar a crescer e a prosperar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.